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O direito e a justiça para os clássicos

Uma análise dos conceitos à luz da prestação jurisdicional atual

O direito e a justiça para os clássicos. Uma análise dos conceitos à luz da prestação jurisdicional atual

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O artigo analisa os conceitos de justiça e direito para o realismo jurídico clássico, confrontando-os com seis recentes julgados, a fim de se observar o cumprimento do princípio da efetividade das decisões judiciais, à luz da justiça material.

RESUMO: Este artigo analisa os conceitos de justiça e direito para as escolas do Realismo Jurídico Clássico e do Positivismo Jurídico, confrontando-os com seis recentes julgados, a fim de se observar o cumprimento do princípio da efetividade das decisões judiciais, à luz da concretização da justiça material defendida pela escola realista. Para isso, foi desenvolvida uma pesquisa exploratória, prezando-se pelo levantamento bibliográfico, sobretudo de obras de renomados autores do Realismo Jurídico Clássico e de autores cujas obras dedicam-se a explanar os conceitos abordados por Aristóteles e Tomás de Aquino. Além disso, foi feita uma pesquisa jurídico-sociológica compilando o conhecimento desenvolvido com seis julgados levantados entre os anos de 2007 e 2018. Dessa forma, após definir-se os conceitos supracitados para as duas correntes do direito e interpretar-se os julgados compreendidos entre os anos de 2007 a 2018, pôde-se perceber que, devido à influência do movimento neoconstitucional, vem sendo buscado o atingimento da justiça material, mais propriamente da justiça distributiva, no que se refere a direitos fundamentais, tais como o acesso à justiça e aos direitos à saúde e à educação. Entretanto, muitas vezes, o reconhecimento desses direitos ocorre apenas no plano formal, devido à influência que o Positivismo Jurídico ainda exerce na prática forense. Percebe-se que é utilizado como principal argumento ante a ausência estatal em prover a efetiva tutela jurisdicional, os princípios da reserva do possível fática e jurídica. Assim, condicionam tal inefetividade à falta de recursos públicos ou de autorização orçamentária, sendo ambos de competência outra que não do magistrado.

Palavras-chave: Efetividade, julgados, Realismo Jurídico Clássico


1.    INTRODUÇÃO

 Dentre tantos motivos que se pode encontrar para desenvolver um trabalho cujas bases remontam a teóricos como Aristóteles, os juristas romanos e Tomás de Aquino é que a primeira certeza que temos é que a Filosofia, tal como por nós concebida, teve origem na Grécia antiga. A filosofia na Grécia surge através de condições sócio-econômico-culturais especiais que traçam um evento original e originário, e isto representa um salto qualitativo, pois nunca antes se havia privilegiado a razão na tentativa de compreender o universo, a vida humana, a vida política.

O povo grego incumbiu-se dessa tarefa, no Século VI ou V a.C. e com ela chegou-se ao conceito de justiça que atravessou os séculos e encontra guarida e importância até os dias de hoje.  O direito como objeto da justiça é o foco dos estudos de autores como Platão e principalmente Aristóteles. Em sua obra Ética a Nicômaco, (1969) escrita em X a. C., Aristóteles, trata da justiça social, uma vez que diferencia a justiça comutativa da justiça distributiva. Enquanto a primeira corresponderia à uma igualdade formal, tal como trabalhada posteriormente pelos positivistas, a segunda configuraria a igualdade substancial, donde se extrai a máxima “tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual na medida em que eles se desigualam”.

Aristóteles (1996) já trazia no bojo de sua teoria a preocupação com a aplicação da igualdade e a necessária percepção de que cada caso concreto demanda uma análise específica. Quanto ao direito, este encontra-se intrinsecamente relacionado à justiça, pois dela é objeto, sendo assim algo concreto. O direito é, pois, o justo, o devido a cada homem dentro de uma relação de justiça.

Na Idade Média, esses ideais de justiça como virtude social e de direito como justo evoluem, reafirmando-se com a Encíclica Rerum Novarum, escrita pelo papa Leão XIII e com a Summa Teológica, de autoria de São Tomás de Aquino, escrita entre os anos de 1265 e 1273.

Tomás de Aquino (1980) trabalha o conceito de direito de Aristóteles e refina o seu pensamento sobre a justiça, todavia, mantém o pensamento a base da teoria aristotélica reafirmando ser o direito objeto da justiça e uma res, algo devido ao homem pelos outros homens.

Mas é também no final da idade média, mais precisamente no século XIV, com o desenvolvimento da filosofia jurídica do escolástico franciscano, Guilherme de Ockham, que ocorre a eclosão, quanto às fontes do direito, do positivismo jurídico, e quanto à sua estrutura, da noção do direito subjetivo individual.

É reputado por muitos, a Ockham, a inauguração da via moderna, pois, segundo Michel Villey (2009), é em seus estudos que se situa a linha divisória entre o direito natural clássico, inseparável do realismo de Aristóteles e São Tomás, e o positivismo jurídico. Para a metafísica ockhamiana, no real e na natureza real não existe nada acima dos indivíduos: não existem universais, estruturas, direito universal. Daí, quanto às normas jurídicas, sua origem estará exclusivamente nas vontades positivas do indivíduo, donde se extrai que o positivismo jurídico, filosofia em voga da Idade Moderna até os dias atuais, seja filha do nominalismo.

Conforme demonstrado, a filosofia do direito que vai se desenvolvendo culmina com o positivismo jurídico na Idade Moderna. Dessa forma, há um retrocesso, uma vez que o Estado se limita à declaração formal dos direitos humanos e à criação de instrumentos de justiça, sem se preocupar com a efetividade da prestação jurisdicional.

No século XX, com a formação do Estado Social de Direito, as constituições passam a tornar os direitos acessíveis e efetivos, e não apenas formais. Nasce o neoconstitucionalismo, que altera o núcleo axiológico da tutela jurídica vigente, fazendo com que o Estado seja voltado à concretização dos direitos e garantias fundamentais. No Brasil, com a Constituição Cidadã (1988), esses direitos vêm expressos, assim como o acesso à justiça, determinado como um de seus valores supremos.

Corroborando com essa última forma de entender o fenômeno jurídico, o Realismo Jurídico Clássico, uma tradição que mantém história de mais de dois milênios, mas que foi esquecida diante do predomínio do positivismo jurídico, defende a igualdade material, aquela da adequação do direito e seu titular. O tratamento que essa escola dá à justiça, quanto à igualdade, significa que, sendo todos iguais devido ao fato de serem pessoas, todos os indivíduos terão respeitados os seus direitos, ou seja, a proporção entre a coisa devida e o seu título.

De acordo com a escola do realismo jurídico clássico, para que o direito e a justiça se efetivem, é necessário que seja garantida a prestação jurisdicional que produza resultados que sejam individual e socialmente justos. O caminho a ser percorrido para que esse objetivo seja atendido envolve o acesso à justiça a todos e concessão de proteção àqueles que necessitem da tutela jurisdicional.

A partir do conhecimento das ideias do realismo jurídico, que toma a eficácia como requisito fundamental, sustentando que o direito é o conjunto de normas efetivamente aplicadas pelos tribunais de uma determinada comunidade, restou-nos constatar se na realidade dos tribunais é buscado o justo, ou nas palavras de Villey (2009), esse valor estritamente definido, que é a harmonia, equilíbrio, boa proporção aritmética ou geométrica entre as coisas ou as pessoas.


 2   MATERIAL E MÉTODOS           

Com o intuito de atingir os objetivos supracitados, esse trabalho foi desenvolvido sob a forma de pesquisa exploratória, prezando-se pelo levantamento bibliográfico, sobretudo de obras de renomados autores do realismo jurídico clássico e de autores cujas obras dedicam-se a explanar os conceitos abordados pelos clássicos. Além disso, foi feita uma pesquisa jurídico-compreensiva compilando o conhecimento desenvolvido com as jurisprudências levantadas.  Dessa forma, a partir da pesquisa a ser realizada e do levantamento de decisões jurisprudenciais atuais, procedeu-se à análise da adequação entre os recentes julgados em relação aos conceitos de direito e de justiça defendidos pelos clássicos. Foi feito o aprimoramento de tais ideias e a construção de induções baseadas nos resultados obtidos.

Com base nos procedimentos técnicos utilizados, que têm como objetivo confrontar a visão teórica com os dados da realidade, é importante ressaltar o delineamento da pesquisa. Conforme Gil:

 O delineamento refere-se ao planejamento da pesquisa em sua dimensão mais ampla, que envolve tanto a diagramação quanto a previsão de análise e interpretação de coleta de dados. Entre outros aspectos, o delineamento considera o ambiente em que são coletados os dados e as formas de controle das variáveis envolvidas. (GIL, 2010, p. 43).

Conforme já mencionado, este trabalho utilizou a pesquisa bibliográfica, aliada ao levantamento de jurisprudências sobre o assunto tratado. Outra característica a ser ressaltada no desenvolvimento do trabalho é que, para a maioria dos autores do realismo jurídico clássico, não existe direito faculdade ou direito norma, sendo apenas aceito o direito objetivo, aquele definido como a coisa justa. Resta-nos também observar se essa tal coisa justa vem sendo praticada nos tribunais, principalmente no que se refere à justa distribuição das coisas, que se realiza através da prática da justiça material, restituindo o que é de direito a cada um de forma objetiva e equitativa.

Levando-se em consideração os aspectos teórico-exploratórios da pesquisa e sua relevância na atualidade, o foco do trabalho será descrever as características do direito e da justiça para o realismo jurídico clássico, bem como atrelar essas concepções à prática jurisprudencial, analisando-se questões como o acesso à justiça e a busca pela igualdade material, princípios que, inclusive, são abordados pela CF/88 e pela legislação processual. 


3.    DESENVOLVIMENTO 

3.1 Definindo justiça e direito para o Realismo Jurídico Clássico

3.1.1    O conceito de justiça para os clássicos

Os autores realistas acreditam ser a justiça uma virtude, e não, um valor, um ideal ou uma forma a priori. Outro ponto fundamental é que a justiça que importa aos realistas é aquela própria dos juristas, e não, a que interessa aos moralistas.

Para Hervada (2008), a justiça como virtude não é um juízo deontológico, mas sim uma disposição do ser humano para agir de acordo com os juízos deontológicos. Dessa forma, a justiça é uma disposição permanente da vontade e seu objeto é dar a cada um o que é seu, o seu direito. Ela tem estatuto volitivo, é ação, e não, estado intelectual.

O segundo ponto é a especificação da justiça que é própria do jurista. Para o jurista, de acordo com a escola do realismo jurídico, a justiça consiste em dar a cada um o que é seu. Dessa forma, não importa a ele o conceito que define justiça como virtude interior, pois ela deve possuir um caráter prático, de ação, de concretização dentro da sociedade.

Como terceiro ponto, é necessário ressaltar a intrínseca relação entre a justiça e o direito. Segundo Gomes (2013), todos os realistas clássicos se ocupam da definição da justiça em inúmeras ocasiões e obras. Ainda segunda a autora, para os realistas, os dois termos estão ligados de forma que a definição de um depende da do outro.

Ainda segundo autores do realismo clássico, como Hervada (1977) e Villey (2009), é em Aristóteles que encontramos as bases da filosofia do direito. Para ele, a justiça é uma virtude e, enquanto tal, é uma qualidade que consiste em uma disposição de hábito de se praticar o justo. Segundo palavras do próprio mestre:

A justiça é a forma perfeita de excelência moral porque ela é a prática efetiva da excelência moral perfeita. Ela é perfeita porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente a si mesmas como também em relação ao próximo.” (ARISTÓTELES, 1996, p. 195).   

Na obra Ética a Nicômaco, Aristóteles define a justiça como o hábito ou a virtude pela qual se declara do justo que pratica deliberadamente o justo. Ele também distingue dois tipos de justiça: a total e a parcial. Enquanto a primeira é virtude de cumprir as leis (também conhecida por justiça legal), a segunda é uma parte da justiça total e consiste na justa distribuição dos bens e no correto reconhecimento de formas e acordos. (HERVADA, 2008).

A justiça é, por esse autor definida, segundo Hervada (2008), como dar a cada um o seu. Esse seu, a res, a coisa, seria o seu direito, aquilo que lhe é devido dentro de uma relação de justiça.

Também Tomás de Aquino, influenciado por autoridades pagãs, como Aristóteles, Cícero e Ulpiano, compartilha da ideia de justiça como “dar a cada um o que é seu”, ressaltando seu caráter de alteridade, conforme podemos observar neste trecho da obra Suma Teológica:

Dentre as outras virtudes, é próprio à justiça ordenar os nossos atos que dizem respeito a outrem. Porquanto, implica uma certa igualdade, como o próprio nome indica; pois, do que implica igualdade se diz, vulgarmente, que já está ajustado. Ora, a igualdade supõe relação com outrem. Ao passo que as demais virtudes aperfeiçoam o homem só no referente a si próprio. (AQUINO, 1980, p. 2095)

Para Vigo (1991), ao tratar da relação tomista entre a justiça e o direito, a justiça é considerada em relação ao direito, pois uma interpretação fidedigna do aquinate não pode deixar de inferir que o segundo seja objeto da primeira.  A partir da leitura desses autores e da Suma Teológica, podemos concluir que o objeto da justiça é denominado o justo, logo, o direito.

3.1.2    O direito segundo os clássicos

Para entender o que seja o Direito para os clássicos, faz-se necessário desdobrar sua definição em quatro: o direito como res, o direito como objeto da justiça, o direito como o devido e o direito como relação.

A definição realista de direito o considera algo concreto, a res justa, e não algo intelectual. A esse respeito, Schoupe (1984) reitera: “As coisas não podem pertencer ao mundo jurídico se elas forem entendidas somente como uma realidade mental. Participar do mundo jurídico implica em uma relação entre o credor e o devedor”. Além disso, essa coisa não é qualquer coisa, mas sim, a coisa justa.

Ainda a respeito dessa definição, Gomes (2014), desvela que o direito é coisa concreta e real, podendo ser corpórea ou incorpórea. Outro traço inerente ao direito é a exterioridade, ou seja, ele se dá sempre que a coisa possa ser objeto de relação entre duas ou mais pessoas. Nesse sentido, Hervada (2008) afirma que o direito nasce em uma relação de justiça como algo devido a seu titular. Segundo o autor, o direito é algo comunicável, algo que se precise dar.

O direito enquanto objeto da justiça é uma das premissas da escola do realismo jurídico. Ele pode ser entendido como a ação justa, a coisa que se dá, logo, objeto da justiça. Segundo Hervada (2008), as virtudes são disposições das potências humanas que produzem atos que a razão regula imprimindo a retidão. Dessa forma, esses atos são objeto primeiro das virtudes. Segundo Gomes (2013), interpretando os dizeres de Hervada, esses atos de virtude podem recair sobre uma coisa, constituindo os objetos mediatos e imediatos. Por essa interpretação, o objeto imediato da justiça é a ação justa, enquanto o objeto mediato é uma coisa, o que se dá, o seu direito.

Além de ser o direito entendido como coisa e como objeto da justiça, os realistas também o consideram como o devido, sendo inseparável da noção de dívida. Para entender essa definição, é que se faz necessário entender que ela só existe quando as coisas estão repartidas, logo, no convívio em sociedade. Se uma pessoa vivesse isoladamente, inútil seria falar em coisas de seu direito. A justiça está, assim, na perspectiva dos outros perante as coisas, enquanto a perspectiva do jurista é a da ação justa, da coisa como uma dívida, como o que deve ser dado. Ao contrário de outras correntes do pensamento jurídico que trazem a idéia de direito subjetivo, aquele ligado à faculdade de exigir, a justiça para os realistas clássicos não espera exigência, dá as coisas quando necessário se faz.

Por último, o direito como relação torna imprescindível o caráter de dívida e a relação com a justiça que a coisa deve possuir para tornar-se a coisa justa. Nas palavras de Hervada (2008): “Se o constitutivo do direito é a marca de devida por causa da repartição ou atribuição, a marca essencial e característica de direito é uma relação.” Hervada destaca a importância da relação de alteridade, que é a relação devida entre a coisa e o credor. Além dessa relação, ele destaca também outras duas: a suidade (relação entre a coisa e seu titular), que é o fundamento do direito e uma terceira relação, entre duas ou mais pessoas, que tem como fundamento o direito. Assim, conclui Gomes (2013) que a relação advém do direito como sendo uma coisa justa e que não há antítese em se afirmar que o direito é coisa justa e também relação.

3.2  Considerações acerca do direito e da justiça para a escola do Positivismo Jurídico

A transição da Idade Média para a Moderna, de meados do século XVIII para o XIX, trouxe consigo o surgimento da lei, um mito no sistema jurídico com vistas a coibir o poder ilimitado e concentrado do soberano. Desenvolve-se assim o Positivismo Jurídico, cuja principal característica é a busca pela segurança e objetividade do sistema, criando a norma positiva. Nesse momento da história, a sociedade necessitava afastar a abertura do sistema jurídico aos valores jusnaturais, uma vez que muitas atrocidades eram realizadas em nome do Direito e de seus princípios naturais (religiosos ou não).

O Positivismo Jurídico, corrente que marcou uma era de ligação entre a ciência e o direito, foi seguida por uma série de doutrinadores, dentre os quais Hans Kelsen e Noberto Bobbio. Tal escola, considerada por muitos como filha do nominalismo ockhaniano, exerceu e até hoje exerce grande influência no pensamento filosófico e jurídico.Para Kelsen (1985):

o Direito é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano”, possuindo uma pronunciada tendência antiideológica. Na sua descrição de direito positivo, ele mantém isento de qualquer confusão com um direito “ideal” ou “justo”. Neste mesmo sentido, Mata-Machado (2005) ressalta que entre os propósitos mais acentuadamente expressos da Teoria Pura está o de isolar a exposição do direito positivo de toda sorte de ideologia jusnaturalista em termos de justiça.

Corroborando com as ideias de Kelsen, o doutrinador Norberto Bobbio, em sua Teoria do Ordenamento Jurídico (1995), afirma que o direito é um ordenamento, cuja fundamentação não é o alcance da justiça, mas de sua validade e eficácia. Assim, a questão da justiça não diz respeito à ciência do direito, pois esta é avalorativa. Daí já se poder perceber a grande divergência em relação ao entendimento do seja o direito e a justiça para o positivismo jurídico em relação ao realismo jurídico clássico.                     

Para a teoria bobbiana, através da qual o direito é definido por sete características principais, este deve ser definido como fato, e não, como valor. Para Bobbio, o que importa é a validade e a legalidade da norma, desprovido de valorações. O direito então deve se ocupar da eficácia do ordenamento, e não, da justiça, conforme podemos extrair do seguinte excerto, retirado de sua obra Positivismo jurídico: lições de filosofia do direito (1995):

A validade de uma norma jurídica indica a qualidade de tal norma, segundo a qual existe na esfera do direito ou, em outros termos, existe como norma jurídica. Dizer que uma norma jurídica é válida significa dizer que tal norma faz parte de um ordenamento jurídico real, efetivamente existente numa dada sociedade.” (p. 136-137)

Outro ponto divergente em relação à escola do realismo jurídico é o fato de que os positivistas consideram a lei como fonte proeminente do direito, considerando-o uma ciência exata. Por sua vez, os realistas centram sua análise nas decisões emanadas pelos tribunais. Dessa forma, Schouppe (1984, p. 556), dissertando sobre a escola realista, afirma que Aristóteles centrou seu ponto de vista na decisão do juiz entre o justo e o injusto, observando assim a realidade jurídica.

Por último, dentre outras características do direito para a escola positivista, podemos citar a caracterização deste pelo uso da força do estado em caso de violação à norma; a universalidade da norma; a teoria do ordenamento jurídico, que trata o direito como um conjunto de normas a reger a sociedade; a interpretação mecanicista do direito e a teoria de obediência à norma.

3.3 A influência do Neoconstitucionalismo na prestação jurisprudencial

O Constitucionalismo, segundo CANOTILHO apud Lenza (2011, p.54), é uma teoria que representa a limitação do poder estatal autoritário em prevalência dos direitos fundamentais do cidadão. O Neoconstitucionalismo, por sua vez, representa uma evolução do constitucionalismo, surgindo a partir do século XXI, com a formação do Estado Social de Direito. Ele altera o núcleo axiológico da tutela jurídica vigente, uma vez que as constituições passam a tornar os direitos acessíveis e efetivos, e não apenas formais, como propunha o Positivismo Jurídico.

Tal evolução representa um conjunto de transformações que possuem três marcos, quais sejam: o histórico, o teórico e o filosófico, nos quais estão contidas as ideias e as mudanças de paradigma que influenciaram a doutrina e a jurisprudência, criando uma nova percepção do papel da Constituição na interpretação jurídica.

Segundo Ana Lúcia da Costa Barros (2014), com o Neoconstitucionalismo, ocorre o fenômeno da materialização da Constituição, caracterizado pela absorção de valores morais e políticos, principalmente em um sistema de direitos fundamentais autoaplicáveis. Tal constitucionalização repercurte sobre a atuação dos três Poderes. Em relação ao Judiciário, objeto de análise do nosso estudo, ele representou um avanço na participação do julgador na criação do Direito, uma vez que o juiz tem o dever de fazer escolhas dentre as possíveis, complementando a função do legislador.

No Brasil, com o advento da Constituição de 1988, houve uma maior adesão às transformações propostas pelo movimento neoconstitucional, uma vez que esta introduziu novos direitos, aumentou a demanda por justiça e conscientizou a população sobre a redescoberta da cidadania. Dessa forma, houve uma busca pela eficácia constitucional, principalmente na expectativa da concretização dos direitos fundamentais e garantias de condições dignas mínimas.

Além disso, o neoconstitucionalismo ampliou o exercício da jurisdição, uma vez que tornou o julgador um participante na criação do Direito, passando ele a ter o dever de fundamentação e a ciência de que sua decisão produzirá consequência prática no mundo fático. Desse modo, podemos perceber que o movimento neoconstitucional aproximou o exercício da tutela jurisdicional daquele defendido pelos clássicos, ou seja, da busca pela justiça material, através da maior participação dos tribunais na criação do Direito.

3.4  Fundamentos sobre a tutela e a prestação jurisdicional- A importância da efetividade da prestação jurisdicional

A própria definição de direito, ou seja, aquilo que é justo, leva, segundo Villey (2009), ao resultado ao qual tende o trabalho do jurista: a justa relação objetiva, a justa proporção descoberta entre duas partes. Segundo o autor, a própria consciência da partilha é o objetivo da ordem jurídica. Sendo assim, segundo ele, “o jurista descobre o direito pela observação da ordem presente no corpo social natural, de onde só se podem extrair relações, proporções, conclusões objetivas”.

Assim, de acordo com a escola do realismo jurídico clássico, para que o direito e a justiça se efetivem, é necessário que seja garantida a prestação jurisdicional que produza resultados que sejam individual e socialmente justos. O caminho a ser percorrido para que esse objetivo seja atendido envolve o acesso à justiça a todos e concessão de proteção àqueles que necessitem da tutela jurisdicional. Segundo Lucon (1999), “o direito material somente se efetiva se lhe corresponderem instrumentos adequados de tutela, com um processo justo mediante o tratamento igualitário das partes”.

É interesse também do jurista, segundo a escola do realismo jurídico clássico, analisar o direito da perspectiva de um observador, visando a descrever o que, efetivamente, os juízes tendem a fazer, e não, o que eles deveriam fazer. Desse modo, analisar a (in)efetividade da prestação jurisdicional brasileira e os caminhos a serem percorridos para que esta seja atingida plenamente são objetos de estudo desta pesquisa.


4 RESULTADOS E DISCUSSÃO 

O trabalho consistiu na análise de seis jurisprudências encontradas nos sites do Supremo Federal e dos tribunais de justiça de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul e do Tribunal Regional Federal da 5ª região, entre os anos de 2007 e 2018. Para realização das buscas, foram utilizadas como termos de busca “efetividade, “acesso à justiça”, “direito à educação”, “direito à saúde” e “reserva do possível”.   

Tal pesquisa teve o escopo de analisar se as decisões proferidas pelos citados tribunais atendem aos preceitos jus filosóficos básicos do Realismo Jurídico Clássico, ou seja, se a justa distribuição das coisas, através da prática da justiça material, vem ocorrendo.

Aliado à pesquisa jurisprudencial, foi realizada a leitura da base principiológica, sobretudo do princípio da reserva do possível fática e jurídica, com vistas a compreender o embate que envolve a efetividade e eficácia dos direitos prestacionais, diante de obstáculos de ordem econômica e política.

Por último, foram colhidos dados recentes do Conselho Nacional de Justiça, que demonstram que o número de processos baixados em 2014 cresceu, mas não foi capaz de acompanhar a demanda. Tal fato (o congestionamento de processos pendentes na justiça) aliado à questão da falta de tutela judicial são responsáveis pela falta de efetividade da prestação jurisprudencial, como será destacado nas conclusões deste trabalho.

4.1 Compilado das decisões judiciais  encontradas  

Segue abaixo o compilado de seis decisões judiciais encontradas no período de  2007 a 2018 com sua interpretação e comentário abaixo:

Direito Constitucional. Direito à educação. Matrícula em escola pública. Criança portadora de paralisia cerebral. Educação especial. Falta de vaga. Inclusão em instituição de ensino particular. Despesas a serem arcadas pelo Município. Aplicação dos arts. 5º e 205 da Constituição Federal de 1988, arts. 53 e 54, III, da Lei nº 8.069/90 e arts. 3º, 58 a 60 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ("Lei Darcy Ribeiro"), nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996."Segundo dispõe o art. 53, V, do ECA, o poder público deve assegurar à criança e ao adolescente.

(BRASIL. V. TJRJ. 0014235-13.2009.8.19.0014 - Reexame Necessario. Relator: Des. Nagib Slaibi. Julgamento: 02/02/2011. Sexta Câmara Cível. Disponível em: http://www.tjrj.jus.br/. Acesso em 23/04/2018)

O julgado acima, proferido no dia 02/02/2011 pela sexta câmara cível do TJ-RJ (tribunal de justiça do Rio de Janeiro), ressalta a obrigatoriedade da matrícula das crianças e adolescentes na rede de ensino. Para tanto, menciona além da Constituição Federal, dois dispositivos infralegais (o ECA e a “Lei Darcy Ribeiro”, que também legislam sobre o assunto. Para tanto, conclui que a deficiência fática de provimento da rede pública não é escusa para que seja negado o direito à educação à criança com paralisia cerebral, a qual necessita de inclusão em instituição de ensino particular.

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO EM RELAÇÃO AO DISPOSTO NOS ARTS. 6º, 23, INC. V, 208, INC. I, e 214, INC. I, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. ALEGADA INÉRCIA ATRIBUÍDA AO PRESIDENTE DA REPÚBLICA PARA ERRADICAR O ANALFABETISMO NO PAÍS E PARA IMPLEMENTAR O ENSINO FUNDAMENTAL OBRIGATÓRIO E GRATUITO A TODOS OS BRASILEIROS. 1. Dados do recenseamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística demonstram redução do índice da população analfabeta, complementado pelo aumento da escolaridade de jovens e adultos. 2. Ausência de omissão por parte do Chefe do Poder Executivo federal em razão do elevado número de programas governamentais para a área de educação. 3. A edição da Lei n. 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) e da Lei n. 10.172/2001 (Aprova o Plano Nacional de Educação) demonstra atuação do Poder Público dando cumprimento à Constituição. 4. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão improcedente.

(BRASIL. V. STF. ADI 1.698. Rel. Min. Carmem Lúcia, j. 25.02.2010, Plenário, DJE de 16.04.2010. Disponível em: http://www.stf.jus.br/ portal/ peticaoInicial/ verPeticaoInicial.asp ? base= ADIN&s1=1698 &processo = 1698. Acesso em: 16/01/2018.)

Teve significativa repercussão essa ação direta de inconstitucionalidade por omissão impetrada pelos partidos políticos PT, PC do B e PDT em 29/10/1997, mas que só foi decidida doze anos depois no STF, em 2009. O pedido consistia na declaração de inconstitucionalidade e, consequentemente, na fixação de prazo para a adoção de medidas efetivas, em relação à omissão governamental na erradicação do analfabetismo. Com maioria dos votos, o STF decidiu pela improcedência do pedido, afirmando que o Poder Público não está inerte quanto ao direito à educação, pois editou leis e mantém diversos programas governamentais afetos ao setor educacional. Questão esta controversa, uma vez que, mesmo com as melhorias na educação, o Brasil ainda possui no ano corrente, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 11,8 milhões de analfabetos, cerca de 7,2% da população de 15 anos ou mais.

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MAL DE PARKINSON. MEDICAMENTOS ESPECIAIS. FORNECIMENTO PELO ESTADO. REGULARIZAÇÃO. PRINCÍPIO DA RESERVA POSSÍVEL. INCIDÊNCIA. SEQÜESTRO DE VERBA PÚBLICA. DESNECESSIDADE. IMPROVIMENTO. 1. Comprovada pelo ente federativo estadual a atual regularização no fornecimento da medicação excepcional para os portadores do Mal de Parkinson, incabível o seqüestro de verba pública para atender a esse propósito. 2. O atendimento aos direitos sociais se sujeita ao princípio da reserva do possível, estando o seu adimplemento limitado às possibilidades orçamentárias do Estado. 3. Improvimento do Agravo de Instrumento.

(TRF-5 - AGTR: 67336 PB 0008842-80.2006.4.05.0000, Relator: Desembargador Federal Francisco Wildo, Data de Julgamento: 08/02/2007, Primeira Turma, Data de Publicação: Fonte: Diário da Justiça - Data: 14/03/2007 - Página: 678 - Nº: 50 - Ano: 2007.)

Nessa decisão, de relatoria do desembargador Francisco Wildo, cujo julgamento ocorreu em 08/02/2007, foi indeferido provimento ao agravo de instrumento que pleiteava o sequestro de verba pública para a distribuição e aquisição gratuita de medicamentos imprescindíveis ao tratamento de pacientes portadores de Mal de Parkinson no estado da Paraíba. A justificativa para a decisão, de relatoria do desembargador federal Francisco Wildo, é que o atendimento dos direitos sociais deve se sujeitar ao princípio da reserva do possível.

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA PARA FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. CLÁUSULA DA RESERVA DO POSSÍVEL. Seja pela observância das cláusulas da reserva do possível e da reserva em matéria orçamentária, seja pelos princípios da isonomia, da seletividade e da distributividade, seja ainda pela realização dos objetivos da República Federativa do Brasil, de justiça social e redução das desigualdades sociais, não está o Estado obrigado a fornecer medicamentos não padronizados pelo SUS. Recurso conhecido e parcialmente provido.

(TJ-MG - AC: 10024081940736002 MG, Relator: Albergaria Costa, Data de Julgamento: 24/01/2013, Câmaras Cíveis Isoladas / 3ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 01/02/2013.Disponível em: https://tj-mg.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/118271431/apela-o-c-vel-ac-10024113012645001-mg/inteiro-teor-118271466. Acesso em: 09/06/2018)

Em mais um julgado, desta vez proferido pela 3ª Câmara Cível do TJ-MG (tribunal de justiça de Minas Gerais), é possível visualizar a utilização do princípio da reserva do possível como argumento ante à ineficiência estatal em prover a tutela jurisdicional. Na fundamentação do acórdão, a relatora Albergária Costa ainda argumenta que a Constituição Federal não definiu o objeto do “direito à saúde”, não elucidando se tal direito abrangeria qualquer tipo de prestação afeta à saúde humana ou se apenas aquelas consideradas básicas e essenciais.

AGRAVO DE INSTRUMENTO – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO RECURSO DE AGRAVO – DEFENSORIA PÚBLICA – IMPLANTAÇÃO – OMISSÃO ESTATAL QUE COMPROMETE E FRUSTRA DIREITOS FUNDAMENTAIS DE PESSOAS NECESSITADAS – SITUAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE INTOLERÁVEL – O RECONHECIMENTO, EM FAVOR DE POPULAÇÕES CARENTES E DESASSISTIDAS, POSTAS À MARGEM DO SISTEMA JURÍDICO, DO “DIREITO A TER DIREITOS” COMO PRESSUPOSTO DE ACESSO AOS DEMAIS DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS – INTERVENÇÃO JURISDICIONAL CONCRETIZADORA DE PROGRAMA CONSTITUCIONAL DESTINADO A VIABILIZAR O ACESSO DOS NECESSITADOS À ORIENTAÇÃO JURÍDICA INTEGRAL E À ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITAS (CF, ART. 5º, INCISO LXXIV, E ART. 134) – LEGITIMIDADE DESSA ATUAÇÃO DOS JUÍZES E TRIBUNAIS – O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS INSTITUÍDAS PELA CONSTITUIÇÃO E NÃO EFETIVADAS PELO PODER PÚBLICO – A FÓRMULA DA RESERVA DO POSSÍVEL NA PERSPECTIVA DA TEORIA DOS CUSTOS DOS DIREITOS: IMPOSSIBILIDADE DE SUA INVOCAÇÃO PARA LEGITIMAR O INJUSTO INADIMPLEMENTO DE DEVERES ESTATAIS DE PRESTAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE IMPOSTOS AO ESTADO – A TEORIA DA “RESTRIÇÃO DAS RESTRIÇÕES” (OU DA “LIMITAÇÃO DAS LIMITAÇÕES”) – CONTROLE JURISDICIONAL DE LEGITIMIDADE DA OMISSÃO DO ESTADO: ATIVIDADE DE FISCALIZAÇÃO JUDICIAL QUE SE JUSTIFICA PELA NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DE CERTOS PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS (PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL, PROTEÇÃO AO MÍNIMO EXISTENCIAL, VEDAÇÃO DA PROTEÇÃO INSUFICIENTE E PROIBIÇÃO DE EXCESSO) – DOUTRINA – PRECEDENTES – A FUNÇÃO CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA E A ESSENCIALIDADE DESSA INSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA – “THEMA DECIDENDUM” QUE SE RESTRINGE AO PLEITO DEDUZIDO NA INICIAL, CUJO OBJETO CONSISTE, UNICAMENTE, na “criação, implantação e estruturação da Defensoria Pública da Comarca de Apucarana” – RECURSO DE AGRAVO PROVIDO, EM PARTE.

(BRASIL. V. STF. AI 598212 ED / PR. Relator(a): Min. CELSO DE MELLO. Julgamento: 25/03/2014 Órgão Julgador: Segunda Turma. Disponível em:http://www.stf.jus.br /arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/ anexo / AI598212CM.pdf. Acesso em 23/03/2014.)

No julgado supracitado, o Supremo Tribunal Federal invoca a impossibilidade da utilização do princípio da reserva do possível como argumento para que seja negado um direito constitucionalmente previsto, que é o acesso ao judiciário e à defensoria pública aos necessitados. Ao contrário da maior parte das decisões jurisdicionais que não prezam pela tutela, neste julgado, o STF ressalta o papel do poder judiciário na implementação de políticas públicas instituídas pela constituição e não efetivadas pelo Poder Público.      

Já no tocante ao direito ao acesso à justiça, o qual encontra-se insculpido no inciso XXXV, do artigo 5º da CF/88 com os seguintes dizeres “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, devemos entender que a lei não pode criar obstáculos ao acesso à justiça. Dessa forma, no que diz respeito à justiça do trabalho, as condenações de reclamantes ao pagamento de honorários de advogados das reclamadas, sobretudo em vultosas quantias constituem grave afronta à garantia constitucional do acesso à justiça. É o que podemos constatar em uma decisão que trouxe o seguinte fundamento:

“Na forma do caput e do §2º e 3º do art. 791-A da CLT, inserido pela Lei 13. 457/2017, julgo procedentes os honorários advocatícios no importe de 15% sobre o valor da condenação em favor das partes, observando-se a sucumbência recíproca. No caso, o reclamado somente foi sucumbente nas horas extras decorrente da não concessão do intervalo do art. 384 da CLT, condenação esta que fixo em R$ 50.000,00, razão pela qual condeno o réu ao pagamento de R$ 7.500,00. Já a reclamante foi sucumbente nos demais pedidos - R$ 450.000,00 -, razão pela qual a condeno ao pagamento de honorários sucumbenciais no importe de R$ 67.500,00.”[grifo nosso]

(Segunda Vara do Trabalho- Volta Redonda-RJ: 01003668020165010342. Magistrado: Thiago Rabelo da Costa. Data de julgamento: 01/02/2018. Disponível em: http://bd1.trt1.jus.br/xmlui/handle/1001/999769. Acesso em: 21/06/2018.)

4.2 Reserva do possível fática e jurídica e sua limitação à efetividade da tutela jurisdicional

Primeiramente, antes de definir o que seja o princípio da reserva fática e jurídica, faz-se necessário diferenciar prestação de tutela jurisdicional. Quando o Estado garante a realização do serviço judiciário, que se instrumentaliza por meio do processo para a solução da lide, ele está realizando a prestação jurisdicional. Segundo Humberto Theodoro Junior, na satisfação do direito à composição do litígio (definição ou atuação da vontade concreta da lei diante do conflito instalado entre as partes) consiste a prestação jurisdicional.

A tutela jurisdicional, por sua vez, é o amparo de que o Estado se utiliza para dirimir, pacificar e resolver conflitos seguindo um procedimento de aplicação de leis ao caso concreto, obtendo um resultado prático para o processo, com vistas a se aproximar da decisão “justa”. Assim, a tutela preocupa-se não apenas em declarar direitos, mas também em torna-los concretos, buscando meios para sua concretização. Nas palavras de José Roberto dos Santos Bedaque (2003, p.29):

Tutela jurisdicional deve ser entendida, assim, como tutela efetiva de direitos ou de situações pelo processo. Constitui visão do direito processual que põe em relevo o resultado do processo como fator de garantia de direito material. A técnica processual a serviço de seu resultado.

Dado o exposto, podemos concluir que a tutela vai além da prestação jurisdicional, uma vez que ela não se preocupa apenas em declarar direitos, mas também em resguardar in concreto o direito subjetivo da parte. Em alguns dos 6 exemplos de julgados que ilustramos no tópico 5.1 deste trabalho, foi possível perceber a efetividade da prestação jurisdicional, mas não podemos garantir que foi realizada a tutela efetiva dos direitos reconhecidos, uma vez que esta depende não apenas do judiciário, mas também dos poderes executivo e legislativo. E é justamente neste ponto que é necessário compreender a reserva fática e jurídica como justificativa utilizada para a ausência estatal em cumprir seu papel de provedor das necessidades da sociedade, ou seja, de realizar a justiça objetiva, tal qual defendida pelos realistas jurídicos clássicos.

A Reserva do Possível desdobra-se em reserva fática e jurídica. A fática representa a autonomia orçamentária e a falta de recursos do Estado. Assim, a juridicidade dos direitos sociais, ou seja, o cumprimento de uma decisão judicial com vistas a concretizar a justiça distributiva, é remetida à esfera programática, cuja concretização ficará a cargo do Poder Público, através da formulação de políticas públicas condicionadas à sua disponibilidade financeira.

Por sua vez, a reserva jurídica está ligada ao fato de que o despendimento de recursos depende de autorização orçamentária, portanto, legislativa. Desse modo, o magistrado pode proferir sua decisão, mas não pode participar do processo legislativo atinente ao orçamento público. Nesse diapasão, Ana Lúcia da Costa Barros (2003) conclui que a distribuição das coisas na sociedade jamais poderia ser sindicável pelo poder judiciário, pois tais prestações estão inseridas no poder discricionário do executivo em dar destinação das verbas públicas segundo seus critérios de conveniência e oportunidade.

Conforme já mencionamos, o princípio da reserva fática e jurídica é utilizado como principal argumento ante a ausência estatal em prover a efetiva tutela jurisdicional, condicionando tal inefetividade à falta de recursos públicos ou de autorização orçamentária, sendo ambos de competência outra que não do magistrado.


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho consistiu em um levantamento de seis jurisprudências atuais e de uma pesquisa jurídico-compreensiva com vistas a analisar a adequação entre os recentes julgados em relação aos conceitos de direito e justiça defendidos pelos clássicos. Para isso também foi realizada uma pesquisa exploratória, tanto de obras de renomados autores que se empenham em explanar os conceitos abordados pelos clássicos, quanto de artigos e trabalhos atuais que visam a tratar da (in)efetividade da prestação jurisdicional brasileira na atualidade.

Primeiramente buscamos conceituar os termos direito e justiça para o Realismo Jurídico Clássico, perpassando pelas definições adotadas por Aristóteles e São Tomás de Aquino, dois de seus grandes expoentes. Assim concluímos que tanto um autor quanto o outro concordam que a justiça é uma disposição permanente da vontade e seu objeto é dar a cada um o que é seu, ou seja, o seu direito. Ambos consideram que a justiça tem um estatuto volitivo e, não apenas, intelectual, sendo própria do exercício da atividade do jurista. Quanto ao direito, ele é entendido como res, ou coisa justa, podendo ser corpórea ou incorpórea, sendo sempre objeto da justiça, seu fim mediato. Além disso, ele também deve ser entendido como relação, devido ao seu caráter de dívida e à sua relação com a justiça.

Contrapondo-se aos conceitos de justiça e de direito defendidos pela escola realista clássica, analisamos os mesmos sob o prisma do positivismo jurídico, escola que fundamentou a formação de nosso ordenamento jurídico moderno. Depreendemos então que, para essa escola, direito e justiça não estão ligados, uma vez que o primeiro é um ordenamento que visa a alcançar sua validade e eficácia, sendo desprovido de qualquer valoração em relação a critérios de justiça.

Após definirmos os conceitos supracitados para as duas correntes do Direito, fizemos a busca e a interpretação de seis julgados compreendidos entre os anos de 2007 a 2018, de onde pudemos depreender que, devido à influência do movimento neoconstitucional, vem sendo buscado o atingimento da justiça material, mais propriamente da justiça distributiva, no que se refere a direitos fundamentais, tais como o acesso à justiça e os direitos à saúde e à educação.

No entanto, muitas vezes, o reconhecimento desses direitos ocorre apenas no plano formal, devido à influência que o Positivismo Jurídico ainda exerce na prática dos tribunais. Somado a isso e utilizado como principal argumento ante a ausência estatal em prover a efetiva tutela jurisdicional, os princípios da reserva do possível fática e jurídica condicionam tal inefetividade à falta de recursos públicos ou de autorização orçamentária, sendo ambos de competência outra que não do magistrado. Além disso, a prestação jurisdicional não ocorre por excelência, uma vez que dados do CNJ de 2014 constataram que existe um congestionamento de processos pendentes na justiça, o que impossibilita a integral observância do princípio do acesso à justiça.

Tomando como base os estudos que realizamos acerca do direito e da justiça para a escola do Realismo Jurídico Clássico, é possível constatar que a adoção de tais conceitos como um possível caminho a ser percorrido no que concerne à busca pela efetividade da prestação jurisdicional merece ser objeto de futuros estudos e discussões. O fato de o realismo jurídico clássico prezar pela igualdade substancial, ou seja, aquela que realmente promove a justiça material, contribui para uma visão menos formalista do direito, tal como aquela que foi desenvolvida pelo direito brasileiro devido à influência do positivismo jurídico. Além disso, outro ponto que merece ser destacado é que a justiça que importa aos realistas é aquela própria dos juristas, ou seja, a praticada pelos tribunais. Dessa forma haveria uma maior valorização da atividade interpretativa dos juízes, não limitada a subsunção do fato a uma norma que foi escrita em outro período histórico e que não acompanhou a evolução da sociedade, tal como ocorre nos dias atuais.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Bruna Silva; GOMES, Renata Silva. O direito e a justiça para os clássicos. Uma análise dos conceitos à luz da prestação jurisdicional atual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5599, 30 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69293. Acesso em: 26 abr. 2024.