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Autoria e participação delitiva.

Da teoria do domínio do fato à teoria da imputação objetiva

Autoria e participação delitiva. Da teoria do domínio do fato à teoria da imputação objetiva

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Os princípios da teoria do domínio do fato são complementares aos postulados da teoria da imputação objetiva. Assim, nada impede que seja propiciado tratamento mais adequado e unívoco aos supostos da co-delinqüência.

1. Autoria, co-autoria e participação (1): a leitura clássica. O Código Penal brasileiro

Na conhecida dicção de S. Soler [01], autor, em Direito Penal, é quem executa a ação expressa pelo verbo típico da figura delituosa. Na preleção de von Liszt [02] ¾ que designava pela expressão "ato principal" ("Täterschaft"), em oposição a participação ("Teilnahme"), toda realização iniciada ou terminada do(s) ato(s) de execução da infração penal [03] ¾ autor é aquele executa, por si mesmo, o ato de execução do ilícito penal definido na lei (autor único), assim como o é aquele que se serve, como instrumento de ação, de outro homem ¾ quiçá a própria vítima ¾ e que comete, mediante esse, o ato de execução (autor mediato, falando-se, nesse caso, de ato principal mediato ou de atos do autor intelectual ¾ "intellektuelle Urheberschaft").

A autoria mediata, ainda no magistério de von Liszt, dá-se quando o instrumento não é imputável (e.g., alienado mental ou pessoa menor ante a lei penal), quando atua sem liberdade (e.g., na coação moral irresistível ¾ artigo 22, 1ª parte, do Código Penal brasileiro), quando não age dolosamente (e.g., na indução a erro de tipo ou de proibição escusável), quando o delito exige uma intenção ou qualidade determinada que não se encontra no instrumento (e.g., nos tipos penais que encerram dolo específico) ou ainda quando o instrumento está obrigado a executar o ato, por deveres de serviço ou disposição legal (e.g., na obediência hierárquica: artigo 22, 2ª parte, do Código Penal brasileiro).

Autor é também aquele que, em colaboração consciente com outros, inicia ou termina um ato de execução da infração penal; dão-se, nesse caso, os atos do co-autor ("Mittäterschaft"), que pressupõem a intervenção direta no ato de execução. Já os executantes de atos meramente acessórios, não descritos no tipo penal, seriam simplesmente partícipes. A diferença entre autoria e participação estabelecer-se-ia, pois, objetivamente.

Nas infrações penais complexas, basta para a co-autoria a realização de um dos atos de execução ¾ ato principal ¾ que integram a descrição típica; assim, se "A" emprega violência contra a mulher "C" ou ameaça "D" com perigo atual para sua pessoa, mas é "B" quem mantém conjunção carnal com "C" ou que subtrai a carteira de "D", serão ambos, "A" e "B", co-autores dos delitos de estupro e roubo, pois a violência e a ameaça são, respectivamente, elementares dos crimes citados, assim como o são a própria relação sexual e a subtração patrimonial. Já se "A" permanece em vigilância e "B" emprega violência e subtrai o bem alheio, o primeiro não é co-autor, por não ser a vigilância ato de execução do roubo; haverá, pois, participação ou, mais especificamente, cumplicidade, vez que "A" não realizou um ato principal. Dessarte, os atos do co-autor não são uma forma de participação acessória na conduta do outro, senão ação própria, independente.

A participação, para Liszt, corresponde ao fato de tomar parte no ato de execução iniciado ou terminado por outro [04]; o partícipe não realiza o ato principal, mas seus atos a ele acedem. Liszt referia duas modalidades de participação, a saber, a instigação (determinação dolosa de outrem a um ato doloso punível) e a cumplicidade (auxílio doloso prestado a outrem em infração penal intencionalmente praticada por esse último) [05]. Daí a máxima segundo a qual somente a instigação ou a cumplicidade dolosas para um ato doloso são participação no sentido jurídico-penal [06], traduzindo a inadmissibilidade da participação dolosa em ato culposo ou da participação culposa em ato doloso. Vê-se, pois, que a máxima em comento é mera derivação das noções originais de participação acessória.

O pensamento de von Liszt, que sedimentou as elucubrações até então cogitadas, espraiou-se pela doutrina universal, chegando aos dias de hoje; a teoria respectiva ¾ teoria objetivo-formal da autoria ¾ alçou, em meio aos doutos, foros de hegemonia [07]. Daí a referência freqüente, na doutrina pátria, às teorias sobre a autoria ¾ uma restritiva, pela qual autor é quem realiza a conduta tipicamente descrita, e outra extensiva, pela qual autor é quem dá causa ao evento, determinando, por seu comportamento, uma modificação no mundo exterior (não o seria apenas aquele que realiza a conduta tipicamente descrita, mas também aquele que, de qualquer modo, contribui para a produção do resultado) ¾ e ao acolhimento, pela legislação vigente, da teoria restritiva; com efeito, o artigo 29 do Código Penal brasileiro, em seu "caput" e parágrafos, distinguiu nitidamente as figuras do autor e do partícipe [08]. Assim, "na co-autoria, os vários agentes realizam a conduta descrita pela figura típica. Na participação, os agentes não cometem o comportamento positivo ou negativo descrito pelo preceito primário da norma penal incriminadora, mas concorrem, de qualquer modo, para a realização do delito" [09].

O Código Penal brasileiro acatou, ainda, a teoria monista da co-delinqüência, reconhecendo, a despeito da pluralidade de condutas, um único delito, sem prejuízo do caráter acessório da participação [10], que acede à conduta principal (autoria); nesse sentido, os artigos 26, 27, 45 e 48 da Parte Geral de 1940 e, com o advento da Lei 7.209/84, o artigo 29, que emprega a expressão "crime" no singular, em clara alusão à unidade do fato típico em relação a todos os concorrentes. Pontifica a doutrina, portanto, serem os seguintes os requisitos para a configuração do concurso de agentes: (1) pluralidade de condutas; (2) identidade de infração para todos os participantes; (3) relevância causal de cada conduta; (4) liame intersubjetivo de natureza volitivo-cognitiva, orientado para o resultado danoso (nos contextos dolosos, que são a regra), ou de natureza normativa (nos contextos culposos, de formulação praticamente acadêmica; e.g., "suponha-se o caso de dois pedreiros que, numa construção, tomam uma trave e a atiram à rua, alcançando um transeunte. (...) Para ambos houve vontade atuante e ausência de previsão" [11]).

A participação, estribada no artigo 29 do Código Penal brasileiro, é uma modalidade de adequação típica de subordinação mediata por extensão espacial e pessoal, uma vez que, "com o auxílio do art. 29, há ampliação espacial e pessoal da figura típica, abrangendo ela não somente os fatos definidos no preceito primário da norma, mas também aqueles que, de qualquer modo, concorrem para a realização do crime" [12]. Diz-se, entre nós, da adoção da teoria da acessoriedade limitada, com respeito à natureza da participação. Listam-se quatro teorias, a saber, teoria da acessoriedade mínima (basta, para a participação, que a conduta do partícipe aceda a um comportamento principal que constitua fato típico), teoria da acessoriedade limitada (a conduta principal à qual acede a ação do partícipe deve ser típica e antijurídica), teoria da acessoriedade extrema (o comportamento principal, ao qual acede a conduta do partícipe, deve ser típico, antijurídico e culpável) e teoria da hiperacessoriedade (devem concorrer, em relação ao partícipe, as mesmas circunstâncias de agravação e atenuação que existem em relação ao autor principal). A opção pela acessoriedade limitada encontra-se no magistério de Hans Welzel [13], patriarca da teoria finalista da ação, para quem o fundamento da punibilidade da participação, no âmbito interno da acessoriedade, está em provocar ou favorecer a prática de uma ação típica e antijurídica, e no âmbito externo, em ter ao menos iniciado sua execução; encontra-se, ainda, na grande maioria dos autores contemporâneos [14].


2. Participação (2): modalidades. A figura do ajuste

Também quanto às modalidades de participação, a despeito da evolução doutrinária, seguem-se ainda os passos de Liszt, aprimorando-se-lhe a terminologia.

Distingue-se entre participação moral e participação material: na primeira, o partícipe incute na mente do autor principal o propósito criminoso (determinação ou induzimento), ou reforça o desiderato preexistente (instigação); na segunda, o partícipe insinua-se no processo de causalidade física, auxiliando materialmente o autor principal (auxílio).

Francesco Carrara [15] traz minudência à terminologia, distinguindo ainda outras modalidades de participação moral: o mandato (acomete-se a perpetração da infração penal a outrem, em proveito e utilidade do partícipe), o conselho (acomete-se a perpetração da infração penal a outrem, em proveito e utilidade de quem a executará), a ordem (mandato imposto pelo superior hierárquico ao seu subordinado, com abuso de autoridade [16]), a coação (mandato imposto por meio de ameaça de grave mal) e a sociedade (pacto entre várias pessoas para a perpetração da infração penal, em utilidade e proveito comuns e privativos dos associados), também dita ajuste.

O artigo 31 do Código Penal brasileiro alude, incidentalmente, a essa última modalidade de participação, que aqui merecerá tratamento apartado por predispor o texto à introdução coerente do tema seguinte.

O ajuste, ali referido textualmente, é definido como o acordo que entre si fazem dois ou mais indivíduos para praticarem a ação criminosa, pressupondo em todos uma resolução determinada e consubstanciado na promessa de ajuda material e/ou moral ao executor após o delito [17]. Em face da teoria acolhida pelo direito positivo brasileiro (monista), o partícipe, nesse caso, poderá ser condenado à mesma pena impingida ao executor; nada obstante, à luz dos conceitos clássicos de von Liszt, terá sido partícipe e não co-autor [18], ainda que a cogitação do delito e a iniciativa de procurar e contratar o executor tenham sido exclusivamente sua (como, e.g., no homicídio mercenário), o que arrefece inegavelmente, do ponto de vista jusfilosófico e sociológico, a carga de desvalor que informa a sua conduta [19]: não terá ele praticado o ato principal, mas apenas concorrido para sua realização, porquanto o ato de execução foi realizado pelo agente contratado. Nada obstante, não fosse a iniciativa do partícipe em firmar o ajuste com terceiro, a lesão ao bem jurídico jamais se teria verificado, o que demonstra que, em circunstâncias tais, o aspecto psicológico prepondera sobre o aspecto causal, no que diz respeito à configuração semântica da atividade de cada qual, i.e., ao seu significado contextual.

Partindo dessa observação (com inglório registro na história recente alemã, sob os auspícios do nacional-socialismo hitlerista, em que agentes políticos e militares comandavam o extermínio de pessoas sob suas ordens hierárquicas, exercendo o domínio da organização e dirigindo o curso dos fatos, em toda a sua extensão, sem praticar qualquer ato executório, o que lhes carreou a alcunha de "assassinos de escrivaninha" [20]), como de outras similares, a doutrina germânica contemporânea reformulou as teorias de concurso de agentes, concebendo diversas construções alternativas, dentre as quais se celebrizou a teoria do domínio do fato, sobre a qual passamos a discorrer [21].


3. A teoria do domínio do fato

A noção de domínio do fato é contemporânea ao finalismo de Hans Welzel (1939), que propugnava ser autor, nos crimes dolosos, aquele que detém o controle final do fato.

Superando as teorias puramente objetivas (objetivo-formal, pela qual é autor aquele cujo comportamento amolda-se ao círculo abrangido pela descrição típica, e objetivo-material, que privilegia a maior perigosidade que caracteriza a contribuição do autor) e a teoria subjetiva (aliada ao conceito extensivo de autor, que não distingue objetivamente autoria de participação; a diferença estaria em que o autor quer o fato como próprio, agindo com "animus auctoris", enquanto que o partícipe quer o fato como alheio, agindo com "animus socii"), a teoria do domínio do fato parte do conceito restritivo de autor para sintetizar os aspectos objetivos e subjetivos da conduta, tal qual teoria eclética, de ordem objetivo-subjetiva [22]. Antes de Claus Roxin, porém, não havia propriamente uma teoria, senão um cipoal de postulados de conteúdos amiúde contraditórios e raquíticos [23], que seriam sistematizados pelo catedrático de Munique e condensados em quatro critérios: domínio da ação (para casos de autoria direta e infrações penais de mão própria [24]), domínio de volição e cognição (para casos de autoria mediata como, respectivamente, coação e erro; aglutinadamente, diz-se domínio de vontade) e domínio funcional (para a co-autoria em geral).

O domínio do fato pressupõe, em suma, o controle final do ponto de vista subjetivo, mas não lhe basta a finalidade, própria de toda ação propriamente humana (Nikolai Hartmann); é necessário, ainda, que a posição objetiva do sujeito determine o efetivo domínio das circunstâncias. Desse modo, autor não é apenas aquele que executa o ato principal de Liszt (conduta típica), mas também aquele que se utiliza de outrem, como instrumento, para a execução da infração penal (autoria mediata), ou aquele que controla o curso dos fatos mediante planificação e gestões intelectuais (autoria intelectual), como no caso, já mencionado, dos "assassinos de escrivaninha". A importância material de cada interveniente no contexto fático não se resume à realização dos atos preparatórios ou executórios, abrangendo outros aspectos igualmente relevantes, como o planejamento, a determinação, a organização e a funcionalidade. Daí seus principais consectários:

(1) a realização pessoal e plenamente responsável de todos os elementos do tipo fundamentam, sempre, a autoria (domínio da ação);

(2) também é autor quem executa o fato empregando outrem como instrumento (autoria mediata ¾ domínio de volição e/ou de cognição);

(3) é autor, enfim, aquele que realiza uma parte necessária do plano global, desde que o faça predisposto à resolução delitiva comum, e ainda quando não descrita a sua conduta no preceito penal primário (co-autoria ¾ domínio funcional).

No escólio de Claus Roxin, o domínio do fatopode ser escalonado em graus, conforme a natureza e a intensidade da dominação (adiante, citar-se-ão exemplos de dominação de primeiro, segundo, terceiro e quarto graus). Fala-se em domínio da ação na determinação da autoria de quem realiza a conduta tipicamente descrita pessoalmente, dolosamente e sem estar sob coação; recusa ainda, nesse particular, relevância à subordinação da vontade como critério de aferição da modalidade concursual (i.e., reconhecimento da participação quando a vontade do agente está subordinada à de outrem, ou da autoria quando a vontade do agente atua com supremacia): assim é que, "verbi gratia", o indivíduo que, sob estado de necessidade, vê-se compelido à realização da conduta típica, não por coerção humana mas pela premência das circunstâncias objetivas, não deixa de ser, apenas por isso, autor da conduta, que é obra sua (ainda que lhe tenha sido arrancada por compulsão factual, com elisão da antijuridicidade da conduta). A análise não há de ser distinta em se tratando de compulsão pessoal, proveniente de terceiro coator: se o executor não detém o domínio da vontade, detém o domínio da ação, sendo ambas manifestações do domínio do fato que, em concorrendo, determinam a prelação do domínio da ação, que sobrepuja o domínio da vontade [25]. Daí se reconhecer, no agente coator, a figura do autor mediato; nada obstante, também o coagido é autor (imediato), conquanto inculpável (entre nós, artigo 22, 1ª parte, do Código Penal ¾ causa legal de exculpação, por elidir a exigibilidade de conduta diversa [26]), não se justificando atribua-se-lhe a condição de partícipe, como pretendera Hans Welzel. A hipótese abarca, ainda, todas as modalidades de infrações penais de mão própria.

O chamado domínio de vontade alcança todas as hipóteses conhecidas de autoria mediata:

(a) Domínio de vontade em virtude de coação. Atribui-se ao agente coator o domínio da vontade, pelo princípio da responsabilidade [27], quando o legislador exime o executor, em virtude da coerção exercida, da responsabilidade penal pelos atos típicos praticados.

(b) Domínio da vontade em virtude de erro ou domínio do conhecimento. O executor, incorrendo em erro, atuará conforme uma das seguintes contextualizações [28]: realização de conduta isenta de dolo ou culpabilidade [29]; realização do tipo com culpa inconsciente; realização do tipo com culpa consciente; realização dolosa do tipo, sem consciência da antijuridicidade [30]; realização dolosa do tipo, com convicção errônea de coexistência de causa dirimente de culpabilidade; realização intencional, sob erro, de determinada conduta, que todavia é atípica ou lícita; realização típica, antijurídica e culpável da conduta, a despeito do erro [31].

(c) Domínio da vontade no emprego de menores e inimputáveis em geral [32]. A esse respeito, a doutrina vem distinguindo, no pólo ativo da execução, entre a inimputabilidade e a imputabilidade diminuída [33]; entre crianças e adolescentes [34]; entre autolesão e lesão a outrem [35].

(d) Domínio da vontade em virtude de mecanismos de poder organizados. Dá-se nas hipóteses relacionadas com o crime organizado, com os crimes societários ou, genericamente, com instituições fortemente hierarquizadas [36]. A idéia deve-se à extensa casuística, recolhida na Alemanha do pós-guerra, em que se constatou a disponibilidade, ao agente remoto, de aparatos de controle pessoais, organizados institucionalmente, com cujo auxílio o mandante estava apto a perpetrar ilícitos penais sem condicioná-los à decisão autônoma do executor. O dado diferencial dessa figura está na fungibilidade do executor, uma vez que a hesitação de um dos órgãos de execução no cumprimento da ordem superior não prejudica, em absoluto, o plano global (como ocorreria, p. ex., no domínio em virtude de erro ou coação): outro órgão de cooperação, integrado à estrutura organizacional, tende a suprir-lhe a falta, automática e imediatamente [37]. Assim, a recusa de um executor não tem o condão de impedir o resultado desvalido, pois há sempre um "executor de reserva".

Em suma: o domínio de vontade do agente remoto baseia-se, em contextos de coação, no controle da formação de vontade do executor e, em contextos de erro, na capacidade de dirigir o evento em virtude da supradeterminação configuradora de sentido [38]; já nas estruturas de poder organizadas, os conceitos ortodoxos de autoria mediata e participação não têm guarida, recorrendo-se a um conceito aberto de domínio do fato [39], adequado aos escopos de política criminal: embora não falte ao executor nem a liberdade e tampouco a responsabilidade penal (trata-se, pois, de autor culpável), ainda assim o agente remoto assume o papel de autor mediato, porquanto o agente próximo não se apresenta, no contexto organizacional, como individualidade livre e responsável, mas como figura anônima e substituível [40].

O domínio do fato funcional, enfim, diz respeito ao elenco de hipóteses jungidas à zona periférica das regiões até aqui exploradas (domínio da ação ¾ conduta exterior ¾ e domínio da vontade ¾ predisposição psíquica), alcançando o espectro de atividades delitivas nas quais o agente não detém uma ou outra classe de domínio e, não obstante, deve ser considerado autor da infração penal [41]; distinguem-se, nesse ínterim, a cooperação em fase executiva e a cooperação em fase de preparação.

Na primeira espécie (cooperação em fase executiva), cada agente pode, separadamente, comprometer o plano comum, desde que retire, na fase executiva do delito, seu aporte causal; por outro lado, só podem realizar o plano comum atuando conjuntamente. A co-autoria identifica-se, pois, pela "posição-chave" de cada interveniente, que confere a cada qual o domínio do fato. Essa posição evoca noções de divisão de trabalho, caras também à teoria da imputação objetiva (mormente na leitura de Günther Jakobs): atendendo à divisão de papéis mais apropriada à consecução do fim proposto, haverá co-autoria ainda quando uma dada contribuição não ingresse formalmente no marco da ação típica, desde que se trate de uma parte necessária da execução do plano global, consoante os ajustes comuns de divisão de trabalho [42]. Assim, e.g., se "A" não imobilizar os funcionários do banco, esses investirão contra "B" e impedirão o acesso ao cofre; da mesma forma, se "B" não subjugar o funcionário responsável pela abertura do cofre e não providenciar o transporte do numerário subtraído, os esforços de "A" serão inúteis, já que não pode, a um tempo, manter rendidos os demais funcionários e transportar o enorme volume de cédulas. Da mesma forma, a ação de "C", que interfere nos sistemas de comunicação e segurança da agência para evitar o alarme silencioso acionado pela abertura extemporânea do cofre, é fundamental para a execução do plano global, ainda que sua conduta não esteja descrita no tipo penal respectivo (não está, com efeito, empregando violência ou ameaça, e tampouco está subtraindo; nada obstante, é co-autor). O co-autor tem consigo mais que o domínio sobre sua porção do fato, porque o dirige, em sua integralidade, conjuntamente com os demais [43]. O mesmo não ocorre com o partícipe, uma vez que seu aporte causal não é imprescindível ao êxito do plano comum (ações secundárias, como a monitoração das rotinas do estabelecimento bancário ou o municiamento prévio das armas). Nesse contexto, a subordinação interna de um co-autor aos desígnios de outro, no sentido da teoria do dolo, é absolutamente irrelevante; interessa, tão-somente, a cooperação essencial na fase executiva.

Já na segunda espécie (fase dos atos preparatórios, logicamente anteriores aos atos de execução), a equação é ligeiramente diversa. No centro do evento tipicamente relevante, encontram-se os atos de execução; portanto, a figura central do evento ¾ o autor ¾ não pode ser alguém que não tenha tomado parte na realização daqueles atos, atendo-se à criação de condições prévias para o ilícito; tampouco é razoável afirmar esteja aquele que apenas cooperou na preparação do delito dominando o curso dos eventos. Na ilustração de Bockelmann, é partícipe o bancário que subministra ao ladrão profissional dados sobre as datas em que o cofre está repleto e os horários de ronda do vigilante, estando, a partir de então, eliminado do contexto; o que irá ocorrer e como se haverá de executar a subtração deve deixar a critério do ladrão, sob pena de se agregar ao plano global como "posição-chave" e assumir a condição de co-autor [44].

Hans-Heinrich Jescheck [45] analisa que os preceitos penais primários da Parte Especial do StGB [46] ¾ assim como, de regra, dos códigos penais em geral ¾ descrevem geralmente condutas de uma só pessoa (exceto nas chamadas infrações penais de concurso necessário, como é o crime de quadrilha ou bando do artigo 288 do Código Penal brasileiro, e nos crimes bilaterais, como a bigamia e o adultério ¾ artigos 235 e 240), sendo o autor o anônimo "quem" ("wer") encontradiço no começo da maioria das descrições delitivas. E sendo o autor o sujeito que realiza, por si mesmo, todos os elementos típicos da ação punível, convém reconhecer que a teoria da autoria e da participação constitui uma parte da teoria do tipo penal; essa é, com efeito, a tese dominante (Hans Welzel, Johannes Wessels, Hermann Blei, Peter Cramer, Rolf-Dietrich Herzberg). Nada obstante, o conceito de autoria não se limita ao autor individual que realiza a conduta típica por si mesmo; abrange, ainda, aquele que realiza o delito por intermédio de outrem (autoria mediata ¾ § 25, 1, do StGB), todos os que colaboram como autores em um mesmo fato (co-autoria ¾ § 25, 2) e todos os que intervém em um mesmo fato como autores, embora com recíproca independência (autoria paralela, gênero abrangente da autoria incerta e da autoria colateral [47]). Já o indutor, que determina dolosamente a realização dolosa do fato típico pelo terceiro (participação moral "lato sensu"), assim como o cúmplice, que dolosamente presta auxílio a outrem no fato típico doloso de sua realização (participação material), não atendem à descrição típica, sendo contemplados por preceitos penais específicos (respectivamente, no StGB, §§ 26 e 27).

Jescheck pondera ainda, com todo acerto, que a classificação das manifestações de intervenção na ação punível não é algo que esteja sujeito ao livre talante do legislador ou do juiz; trata-se, ao contrário, da descrição de processos vitais que, providos de sentido social próprio, encontram-se completamente determinados para o juízo jurídico. Dessarte, conceitos como autoria, autoria mediata, co-autoria e participação aparecem cunhados de antemão pela natureza das coisas, devendo ser intuídos pelo operador jurídico de molde a conservar, na leitura legal ou judicial, um conteúdo que corresponda à sua compreensão natural. Nesse diapasão, sobressai a excelência da teoria do domínio do fato, que atende melhor ao sentido social dos processos vitais de cooperação ao privilegiar a configuração material das relações sociais, em detrimento do tecnicismo formal da teoria de von Liszt ou da precariedade das teorias subjetivas; assim, quem executa pessoalmente uma pessoa é autor do assassinato e não cúmplice, ainda que atue por determinação de um serviço secreto estrangeiro. Compreender diversamente ¾ como fez o Supremo Tribunal Federal alemão no caso Staschynskij, com espeque na teoria subjetiva ¾ é vilipendiar o sentido social da conduta, negando a ordem lógica dos processos vitais envolvidos [48].

De um modo geral, a realização pessoal e plenamente responsável de todos os elementos do tipo fundamenta, sempre, a autoria; entretanto, a teoria formal-objetiva tende a engessar o processo cognitivo do intérprete por circunscrevê-lo à literalidade da lei, enquanto que as teorias subjetivas relegam o arbítrio judicial ao sabor das circunstâncias e ideologias, com prejuízo à segurança jurídica. A interpretação mais adequada dos tipos penais revela que, no concurso de agentes, a descrição da ação penal típica deve ser entendida de um modo material que flexibilize o seu sentido literal. Daí concluir-se que o tipo penal, sob certas condições, pode ser realizado também por quem, posto não execute uma ação típica em sentido formal, possui o domínio do fato ou o compartilha com outrem [49]; confiram-se, a propósito, os exemplos de ajuste).

A teoria do domínio do fato está circunscrita ao âmbito das infrações penais dolosas, eis que os ilícitos culposos caracterizam-se, justamente, pela perda do domínio factual; daí porque a construção alemã tende a manejar dois conceitos distintos de autor, a saber, um restritivo para as infrações penais dolosas (desafiando os postulados da teoria do domínio do fato) e outro, mais amplo e unitário, para as infrações penais culposas, em que não se admite a teoria do domínio do fato, não se concebe o concurso de agentes e não se distingue autoria de participação. Essa cisão compromete a coerência ínsita à teoria do concurso de agentes, pelo que não atende, em nossa concepção, ao desiderato de unidade científica do Direito Penal, alvitrado desde os escritos de Liszt [50]; nessa medida, parece-nos que a teoria do domínio do fato, se por um lado engenhosa e operacional, opõe-se por outro à tendência universal de simplificação e unificação teorética, de que a teoria da imputação objetiva é a manifestação mais convincente e atual. Demanda, por isso, reformulação e elastecimento, talvez para reconhecer, nos ilícitos penais culposos, o domínio factual da ação corrente sem o elemento teleológico preordenado ao resultado lesivo (discrepando, desse modo, as violações do dever objetivo de cuidado, com a conseqüente imputação objetivo-subjetiva da conduta ao tipo penal culposo, das hipóteses em que o agente não deteve qualquer domínio da ação corrente ¾ caso fortuito e/ou força maior) [51].

Vê-se, pois, que o domínio do fato é um conceito aberto, como alhures pontificado. Dele não se espera, por isso, a mesma consistência cartesiana da teoria formal-objetiva, de von Liszt. Com efeito, a expressão "domínio do fato" não admite uma definição conceitual exata em sentido técnico, indicativa do "genus proximum" (conceito genérico superior) e da "differentia specifica" (diferença caracterizadora da espécie). Antes, remete a uma construção descritiva, baseada em elencos contextuais não-exaustivos. A construção descritiva é privilegiada por Roxin, por ser "sensiblemente más próxima a la vida que una meramente abstrata" [52]. Doutra feita, se por um lado a descrição delimita com precisão diversos casos típicos de intervenção de agentes múltiplos em uma mesma ação delitiva (permitindo, assim, a formulação de juízos genéricos), por outro não oferece uma solução generalizadora, cabendo-lhe, como conceito aberto, a função de subministrar ao julgador princípios reguladores que o orientem, por indução, no vácuo dos modelos de conduta. Eis, pois, os dois elementos do conceito aberto, na preleção de Claus Roxin: o procedimento descritivo e os princípios reguladores informativos.


4. Teoria do domínio do fato e teoria da imputação objetiva: confluências

Como se sabe, a teoria da imputação objetiva foi paulatinamente desenvolvida pela doutrina alemã ― a partir das construções de Karl Larenz para o Direito Civil e do seu traslado, por Honig, para o Direito Penal ― com vistas à revitalização da ciência jurídico-penal, contaminada por excessivas doses de subjetivismo que já comprometiam a segurança do tipo. Para tanto, lançou mão de conceitos como a criação do risco permitido, o incremento e a diminuição do risco proibido e a esfera de proteção da norma penal, concretizando uma abordagem funcional do Direito Penal. No escólio de Günther Jakobs, determinada conduta carece de imputação ao tipo penal se, apesar da lesão ao bem jurídico-penal, não frustrou as legítimas expectativas sociais que se impunham ao sujeito em face de seu rol pessoal de deveres e obrigações (assim, e.g., quando o boxer golpeia e fere seu oponente).

Mas apresentar ao leitor a teoria da imputação objetiva não é o objetivo deste artigo, que pressupõe o conhecimento básico de seus termos. O que interesse saber, nos restritos limites deste artigo, é se os elementos teoréticos que informam a teoria do domínio do fato são compatíveis com a teoria do domínio do fato.

A exposição até aqui empreendida revela, desde logo, os pontos de confluência entre a teoria da imputação objetiva e a teoria do domínio do fato. Destaquemo-los, porém, para efeitos didáticos.

A. Os princípios reguladores da teoria do domínio do fato são, inegavelmente, critérios de imputação pessoal (imputa-se o fato típico ao agente na condição de autor, co-autor ou partícipe).

B. O rol de deveres e obrigações que acede a cada cidadão, segundo as expectativas sociais criadas em torno de suas competências (em virtude de instituição e/ou em virtude de organização), tem esteio nos papéis que ocupa em sociedade, i.e., na divisão social do trabalho, fenômeno sociológico universal que espraia desdobramentos em praticamente todos os setores do conhecimento humano. Essa percepção, de dimensão macrossocial, devemo-la a Günther Jakobs, que enuncia o princípio da confiança como pressuposto de existência daquela divisão [53]. No plano microssocial, o fenômeno da divisão social do trabalho ganha novo fôlego na teoria do domínio do fato, como fundamento remoto da autoria e de suas modalidades; com efeito, "a participação consiste exatamente naquilo que, nos demais casos, pode-se denominar repartição de trabalho: o trabalho para obter uma obra única é partilhado entre várias pessoas, cada uma das quais aportando sua contribuição" ¾ observando-se que, no Direito Penal, "a obra cuja realização é objeto de divisão constitui um delito" [54].

Tal cotejo demonstra que há um imo sociológico comum a ambas as teorias, a saber, a divisão social do trabalho: no âmbito macrossocial, engendra e justifica as expectativas sociais, de ordem geral (institucional e/ou organizacional), que constituem o rol de deveres e obrigações de cada cidadão; no âmbito microssocial, engendra e justifica a imputação objetiva do fato ao agente, na condição de autor, diante das expectativas sociais, de ordem local (interativa), nutridas pelos demais agentes no contexto do plano global ajustado. O fundamento remoto comum exsurge, pois, como fator indiciário da compatibilidade teorética.

C. Ambas as construções repudiam, na teoria do crime como na teoria do concurso de agentes, a retórica fria e cartesiana do discurso jurídico. Esse discurso, sob o pálio do tecnicismo formal, reconhece, ali, fato típico na ação do sobrinho que convence seu tio, com "animus necandi", a embarcar em avião cujo vôo é adiante tolhido por acidente absolutamente fortuito; aqui, nega a condição de autor a quem não realizou atos compreendidos no marco da descrição típica, mas os determinou com absoluto controle do curso causal. Pela teoria da imputação objetiva, a morte do tio não se imputa ao nefasto sobrinho, por não ter ele criado ou incrementado, com sua conduta, risco juridicamente reprovado; pela teoria do domínio do fato, o fato típico imputa-se ao agente remoto, na condição de autor, por deter o domínio da volição e/ou da cognição no contexto delitivo.

Privilegia-se, em ambas as teorias, o sentido social da conduta e a percepção objetiva dos processos vitais envolvidos; privilegia-se, ainda, o elemento nomológico-abstrato em detrimento do elemento causal (na primeira ilustração, conquanto a ação determinante do sobrinho seja causa-condição para o evento morte, recusa-se-lhe, pela teoria do risco, o nexo jurídico-normativo com o resultado; na segunda ilustração, malgrado a atuação do agente remoto seja meramente intelectual, reconhece-se-lhe, à luz da teoria do domínio e da interpretação flexível dos respectivos preceitos legais ¾ parágrafo 25, 1, 2ª parte, do StGB; artigo 29 do Código Penal brasileiro ¾ , a condição de autor do fato). Na metodologia jurídica, doutra feita, ambas as teorias primam pelo método indutivo, partindo do dado empírico e de seu sentido social para consolidar casuísmos e emitir postulados; abdicam, nesse passo, das inflexões dedutivas que partem de premissas teóricas incensuráveis mas que conduzem a juízos injustos. Ambas dão guarida, portanto, à conhecida máxima alemã, cara ao patrimônio cultural daquele povo: "Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis" [55].

D. A imputação objetiva, assim como o domínio do fato, é um conceito aberto. Não admite um conceito técnico, parametrado pelo "genus proximum" e pela "differentia specifica", mas apenas uma noção consistente e uma ubicação (em ambos os casos, no âmbito do fato típico penal); os autores, com efeito, evitam defini-la. A noção, por sua vez, é haurida, por indução, da casuística; fia-se, pois, em um procedimento descritivo para operacionalizar a teoria a partir de elencos contextuais não exaustivos. Para as hipóteses, enfim, que não admitem adequação aos casuísmos mais freqüentes, a noção subministra princípios reguladores que iluminam os juízos autorizados (diminuição, criação e incremento do risco, âmbito de proteção da norma, princípio da confiança etc.). Daí representar, tal qual o domínio do fato, um conceito aberto no sentido proposto por Roxin (supra).

São, pois, teorias tecnicamente compatíveis; mais que isso, reclamam-se reciprocamente, dadas as similitudes apontadas (fundamento sociológico, elisão da forma com vistas ao justo material, metodologia, natureza conceitual).

Esse diagnóstico, todavia, não é compartilhado pela doutrina majoritária.

Em sentido contrário, Günther Jakobs preconiza a incompatibilidade entre as teorias, vaticinando, em contrapartida à adoção da teoria da imputação objetiva, o abandono do domínio do fato como critério para delimitação concreta de autoria, co-autoria e participação, uma vez que o domínio do fato, enquanto teoria mista de autoria, está baseado em um conceito final de ação, insustentável para os padrões da imputação objetiva, em que o conceito de ação compreende um esquema de interpretação do evento determinado pela sociedade e não pela valoração individual que dele tem o autor; mais além, observa que a acessoriedade na participação independe da existência de um fato principal doloso, preconizando a reconstrução da teoria da acessoriedade com autonomia em relação ao dolo; a máxima, acima reportada, de que somente haveria participação no favorecimento doloso da ação dolosa de outrem, não resistiria à nova perspectiva, em que tanto se admitem as formas clássicas de participação (determinação e cumplicidade) no delito culposo ¾ possibilidade visceralmente refutada pelos fautores da teoria do domínio do fato ¾ como a participação culposa no delito doloso [56]. O eixo central da acessoriedade não seria o dolo, mas sim a teoria da proibição de regresso, pela qual "um comportamento que de modo estereotipado é inócuo não constitui participação em uma organização não permitida" [57] (assim, e.g., o taxista que transporte indivíduo imbuído de ânimo assassino até o local em que comete o crime, ainda quando saiba ou cogite das intenções do passageiro, não responde pelo delito na condição de partícipe, por excluída a imputação).

Aduza-se ainda, aos argumentos de oposição, as críticas de Reyes Alvarado [58] ao conceito de dominabilidade. Contrapondo Karl Larenz e Richard Honig, Alvarado observa que, para a imputação objetiva, não é relevante se os eventos poderiam ser dominados ou conduzidos pelo autor, isto é, se o sujeito poderia ou não ter evitado o resultado desvalido. Importa saber, tão-somente, como deveria ter se comportando diante das circunstâncias concretas, enquanto abstrato portador de funções sociais (o rol de Günther Jakobs); interessa, pois, o que deve fazer e não simplesmente o que lhe é possível realizar. Os conceitos de evitabilidade, dominabilidade e conducibildade teriam importância como pressupostos teóricos ou empíricos para a consolidação normativa das expectativas de comportamento cuja defraudação cria riscos juridicamente reprovados, mas não desempenhariam qualquer função na ulterior etapa de realização dos riscos.


5. À guisa de conclusão: superação da crítica

O viés crítico, todavia, não convence.

Por primeiro, cremos não sejam conflitantes o conceito final de ação ¾ exercício de atividade finalista, qualificada pela colimação de um fim [59] ¾ e a teoria de imputação objetiva, que não pretende construir um novo conceito jusfilosófico de ação, mas subministrar, a partir do reconhecimento de um nexo nomológico-abstrato entre o fato e a norma penal, instrumentos formalmente seguros e materialmente justos para a imputação de condutas desvalidas. A teoria final da ação e a teoria da imputação objetiva ¾ que não é uma teoria da ação ¾ podem, em síntese, conviver [60]. Nessa ordem de idéias, a objeção de Jakobs à teoria do domínio do fato queda falaciosa: ainda que o domínio do fato esteja imbricado com o conceito final de ação, não restará desde logo excluído, se esse último convive com a teoria da imputação objetiva.

Por segundo, insta reconhecer, com fidelidade à própria natureza da teoria do domínio do fato, que as modalidades concursuais ¾ autoria imediata, autoria mediata, co-autoria e participação ¾ ostentam um aspecto objetivo e outro subjetivo, qual dupla face da mesma moeda; isso porque ao intérprete não é dado imputar ao sujeito certo fato, na condição de autor ou partícipe, sem antes formular, na sua completude, o juízo de imputação (objetiva e subjetiva). Para o desate condenatório, assim como a conduta increpada deve estar referida ao tipo penal objetivo (imputação objetiva), há de estar também referida ao tipo subjetivo (imputação subjetiva), culminando com a emissão do juízo positivo de imputação plena, em que se reconhece configurado o fato típico; agregam-se-lhe, em seguida, os juízos de antijuridicidade, de culpabilidade e de punibilidade (todos de natureza negativa ou impeditiva), para a prestação íntegra da jurisdição penal. Da mesma forma, uma vez reconhecido o crime (fato típico, antijurídico e culpável) e à vista da conduta compartilhada, parte-se à consideração das responsabilidades compartidas, tomando-se em consideração os aspectos objetivos e subjetivos da atuação conjunta, à mercê dos princípios retores do domínio do fato ¾ que incluem, a seu modo, a teoria de proibição de regresso [61]. Sobre a possibilidade jurídica da participação em delitos culposos, manifestei-me alhures, introduzindo a idéia de domínio factual da ação corrente sem preordenação ao resultado desvalido; de qualquer modo, assiste razão a Jakobs nesse particular: em tal matéria, a teoria do domínio do fato pede reformulação pontual [62] (o que não lhe priva, porém, dos demais méritos).

Por terceiro, a propósito das críticas de Reyes Alvarado (que não denega importância ao conceito de dominabilidade, mas o expurga, por prejurídico, da teoria da imputação objetiva), consideramos que, a par da reconhecida utilidade no processo de elaboração legislativa, a dominabilidade recupera significância hermenêutica após completado o juízo de imputação da conduta ao tipo penal, ganhando relevo no âmbito da responsabilidade penal compartida (com vista à distinção entre autores, co-autores e partícipes, com reflexos legais na esfera da punibilidade). Para além disso, a dominabilidade poderá ter, ocasionalmente, papel fundamental na própria imputação da conduta, se por ela couber neutralizar todas as formas possíveis de imputação ao sujeito mediato (como, e.g., o suposto "mentor" do fato) ― porque recusar-lhe, a um tempo, a condição de autor, co-autor e partícipe significará excluí-lo do pólo de imputação [63].

Dessarte, rechaçadas as críticas mais veementes que profligam a convivência teorética, é de rigor admitir, pelas razões apontadas, que os princípios retores da teoria do domínio do fato são compatíveis com os postulados da teoria da imputação objetiva e, mais que isso, que os complementam. Daí porque nada tolhe à boa doutrina o caminho da convergência, propiciando tratamento mais adequado e unívoco aos supostos da co-delinqüência. Afinal, não é apenas na Física que certos modelos [64], quando aparentam repelir-se, funcionam melhor em conjunto. Isso se dá também no Direito ― e, no Direito Penal, este é um exemplo propício.


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Notas

01 Derecho Penal argentino, Buenos Aires, TEA, 1978, t. 2, p.244.

02 Tratado de Derecho Penal, Trad. Luis Jimenez de Asúa, 4ª ed., Madrid, Reus, 1999, tomo III, pp.71 e ss.

03 A doutrina mais recente controverte a premissa e o conceito de Liszt, observando que é possível o encadeamento concreto de uma série de "autores por trás de autores", reconhecendo-se no intermeio a autoria da ação típica, ainda quando o sujeito não tenha cooperado nem no princípio e tampouco no final do fato, limitando sua intervenção ao elo intermediário da cadeia, como no caso Eichmann (cfr. Claus Roxin, Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal, p.274, citando Servatius). Eichmann, criminoso nazista, foi responsabilizado pelo extermínio de incontáveis judeus durante a 2ª Guerra Mundial; oficial intermediário, recebia ordens de instâncias superiores e as fazia cumprir, mas também emanava ordens a seus subordinados, não sendo mero executor. Alegara, em sua defesa, que ainda se houvesse recusado as ordens superiores, seu ato em nada aproveitaria aos judeus, já que o aparato estatal as faria cumprir por intermédio de outrem; "frente à ordem do todo-poderoso coletivo", concluía, "o sacrifício carece de sentido", vez que, ali, o crime não seria obra do indivíduo, mas do próprio Estado (Claus Roxin, Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal., pp.271-272). Diante da declarada dificuldade em definir, tecnicamente, quem havia auxiliado quem, os juízes do tribunal qualificaram de crimes de massa os delitos em questão, de molde a excluir a aplicação das categorias normais de participação.

04 Idem, p.87.

05 O autor não distingue entre induzimento e instigação. Na mesma linha, em obra mais recente, Julio Fabbrini Mirabete (Manual de Direito Penal, Penal, 6ª ed., São Paulo, Atlas, 1991, v. 1, p.222), analisando que, se variadas as formas de participação (ajuste, determinação, instigação, organização e chegia, auxílio moral, adesão sem prévio acordo etc), a doutrina atém-se a duas espécies básicas, a saber, a instigação e a cumplicidade.

06 Idem, p.92.

07 Contrapõem-se a ela a teoria objetivo-material e a teoria subjetiva, a que faremos referência, en passant, adiante.

08 Damásio E. de Jesus, Direito Penal, 15ª ed., São Paulo, Saraiva, 1991, v. 1, p.355.

09 Idem, p.356.

10 José Frederico Marques, Tratado de Direito Penal, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1965, v. II, p.309. Note-se que o ajuste, como prévio acordo de vontades, é dispensável na co-autoria: basta que haja em cada um dos concorrentes o conhecimento de concorrer à ação de outrem (Francisco de Assis Toledo, Princípios Básicos de Direito Penal, 4ª ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p.305). Assim, e.g., há co-autoria na ação de serviçal que, ciente da presença de um ladrão nas imediações, escancara portas e janelas do imóvel à espera do larápio, na intenção de prejudicar o empregador.

11 E. Magalhães Noronha, Do Crime Culposo, 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 1974, p.105. Essa concepção é refutada por segmento expressivo da doutrina alemã, que nega a possibilidade da co-autoria em delitos culposos, por inocorrente, na espécie, o domínio do fato; cada pedreiro, no exemplo citado, seria autor acessório ou paralelo e não co-autor do delito; cfr., por todos, Hans-Heinrich Jescheck (Tratado de Derecho Penal: Parte General, trad. José Luiz Manzanares Samaniego, 4ª ed., Granada, Comares, 1993, p.617), "in verbis": "No hay, consecuentemente, coautoría alguna en los hechos por imprudencia, puesto que falta entonces la resolución común. Si varias personas cooperan de modo imprudente, cada uno de los que intervienen es autor paralelo y las diversas contribuciones al hecho tienen que ser examinadas por separado en cuanto a su contenido de imprudencia". Isso se deve, na correta ilação de Cezar Roberto Bitencourt (Manual de Direito Penal, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2000, v. 1, p.391), à adoção da teoria do domínio do fato, que a seguir destrinçaremos.

12 Damásio E. de Jesus, Direito Penal, v. 1, p.360.

13 Derecho penal alemán, 12ª ed., trad. Bustos Ramírez e Yãnez Perez, Santiago, Jurídica de Chile, 1987, pp.161-165.

14 Na doutrina alemã, confira-se Hans-Heinrich Jescheck (Tratado de Derecho Penal, p.419), em alusão "a latere" no discurso sobre discriminantes putativas (erro sobre causas de justificação ou erro indireto de proibição): "La doutrina dominante y la jurisprudencia (...) adotan una posición ecléctica que desemboca en una conclusión similar a la da doctrina de los elementos negativos del tipo, si bien la fundamenten de otro modo (teoría restringida de la culpabilidad). Ciertamente, el error vencible sobre los presupuestos de una causa de justificación no se considera error de tipo, pero se aplica analógicamente el § 16, porque la semejanza estructural con el auténtico error de tipo parece decisiva. Se excluí así el injusto del hecho doloso, de forma que desaparece también la posibilidad de la participación" (g.n.). Noutras palavras, coarctada a ilicitude da conduta principal, não se reconhece participação penalmente relevante na conduta adesiva (teoria da acessoriedade limitada).

15 Programma del corso di diritto criminale: del dellito, della pena, Bologna, il Mulino, 1993, pp.278-283.

16 Hipótese diversa daquela alhures referida, de autoria mediata, em que a ordem emanada não é manifestamente ilegal, não havendo, portanto, abuso (cfr. Damásio E. de Jesus, Direito Penal, 1º v., p.363). Carrara observa que o mandato e sociedade podem ser punidos como delitos autônomos (é o caso, no Brasil, do crime de bando ou quadrilha: artigo 288 do Código Penal), mas é um erro crasso reconhecer na hipótese a forma tentada da infração penal à qual se destinam, porque a tentativa pressupõe, como condição essencial de existência, o início da execução da infração colimada (prática de atos preparatórios ou executórios), o que poderá não ocorrer no mandato ou no ajuste (op.cit., p.280, nota n. 1).

17 José Frederico Marques, Tratado de Direito Penal, v. II, pp.318-319.

18 Nesse sentido, José Frederico Marques (Tratado de Direito Penal, v. II, p.319), ilustrando a figura da participação com "a coação de outrem a execução material do crime é forma de participação" e, a seguir, com a "execução mercenária por paga ou promessa de recompensa".

19 "Nem sempre os tipos penais descrevem com clareza o injusto da ação, dificultando a distinção entre a autoria e participação, especialmente nos crimes de resultado. A teoria objetivo-material procurou suprir os defeitos da formal-objetiva, considerando a maior perigosidade que deve caracterizar a contribuição do autor em comparação com a do partícipe; em outras palavras, considerando a maior importância objetiva da contribuição do autor em relação à contribuição do partícipe" (Cezar Bitencourt, Manual de Direito Penal, p.380 – g.n.). Nos casos de autoria intelectual, a contribuição do mentor, partícipe na construção clássica, é usualmente superior, em importância, à do executor.

20 Johannes Wessels, Direito Penal: Parte Geral, trad. Juarez Tavares, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris, 1976, p.124.

21 A teoria equaciona o problema jurídico dos criminosos nazistas, ante a figura do domínio de vontade por estruturas organizadas de poder; não soluciona a contento, porém, a questão da execução mercenária, ao menos na concepção de seu maior idealizador, Claus Roxin (para quem o mandante é mero partícipe).

22 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, pp.379-381. Cfr. também Claus Roxin (Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal, trad. Joaquín Cuello Contreras, José Luís Serrano Gonzáles de Murillo, Madrid, Marcial Pons, 1998, pp.51-77), mais exaustivo, refere a teoria objetivo-formal de Beling, Mayer e Liszt, as teorias objetivo-materiais (teoria da necessidade do aporte causal, de Baumgarten, Liepmann e Kohlrausch; teoria da cooperação anterior e simultânea ao fato, ou teoria da simultaneidade, de Fuchs, reconhecendo a participação na cooperação anterior aos atos de execução e a co-autoria na cooperação simultânea; teorias de causalidade físico-psíquica, arrimadas em Feuerbach e divulgadas por Horn; teoria da supremacia do autor, de Dahm e Schmidt, dinstinguindo entre a co-autoraia e a participação com fulcro, respectivamente, na nota da coordenação ou da subordinação), as teorias subjetivas (teorias do dolo, que distinguem entre a vontade do autor e a vontade do partícipe, como em Wachter; teorias do interesse, de Feuerbach, Henke e Geib, que distinguem entre o interesse autônomo do autor e o interesse acessório do partícipe, que não pode ter interesse independente na causação do resultado) e teorias mistas ou subjetivo-objetivas (Haupt e Tjaben; esse último propôs considerar autores os que executam uma ação típica ¾ teoria objetivo-formal ¾ assim como todos os cooperadores imbuídos de "animus auctoris").

23 Manuel Cobo del Rosal, no Prólogo à obra de Claus Roxin (Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal, p.03).

24 Damásio E. de Jesus (Direito Penal, 1º v., p.166) conceitua os crimes de mão própria, de conduta infungível ou de atuação pessoal como sendo os que só podem ser praticados pelo sujeito ativo em pessoa; são exemplos a contravenção penal de direção perigosa, os crimes de falso testemunho, de prevaricação e de deserção e o delito de incesto, nos países que o admitem. A testemunha notificada a depor não pode pedir a terceiro que deponha falsamente em seu lugar, assim como o funcionário público não pode solicitar a terceiro que deixe de realizar ato de ofício em seu lugar e o condutor não pode fazer com que outrem dirija perigosamente em seu lugar ou divida consigo a condução simultânea do veículo. Os "extranei", nos crimes de mão própria, podem intervir como partícipes, jamais como autores; daí a ilação, na teoria do domínio do fato, de que o sujeito ativo, nos crimes de mão própria, é invariavelmente o "dominus" da ação. Rolf-Dietrich Herzberg (apud Claus Roxin, Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal, p.712) divisa, entre os delitos de mão própria, delitos referidos ao próprio autor (o tipo penal apresenta, em primeiro plano, uma conduta típica voltada ao próprio corpo do agente, como na contravenção de direção perigosa), delitos em que a possível consumação por terceiros não pode encarnar a lesão ao bem jurídico (prevaricação, gestão fraudulenta) e delitos de própria mão dependentes do direito processual (falso testemunho, perjúrio). Roxin denomina de delitos de mão própria inautênticos aqueles que consubstanciam a desobediência a um dever institucional (delitos de infração de dever), porque o aspecto decisivo para a aferição da autoria não é a constatação de um determinado comportamento, mas a vulneração de um dever especial extrapenal (caso da deserção, do perjúrio, do falso testemunho etc); o conjunto de tais delitos tem sido designado, didaticamente, de direito penal administrativo ou de ordenação.

25 Claus Roxin, Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal, pp.675-676.

26 Cfr., sobre culpabilidade e liberdade, Francisco de Assis Toledo, Princípios Básicos de Direito Penal, pp.242-250.

27 O princípio da responsabilidade, haurido por Roxin do ordenamento legal alemão, não reconhece o domínio do fato, em sentido jurídico, àquele que simplesmente exerce sobre o agente próximo (executor) influência mais ou menos intensa, desde que se mantenha a responsabilidade penal do executor; prevalece, aqui, o domínio da ação, como consignado no texto principal. Atribui-se, todavia, a condição de titular do domínio da vontade (e, por extensão, do domínio do fato) àquele que influi na ação de outrem de maneira que o agente próximo "de jure" veja-se exonerado de responsabilidade penal (cfr. Claus Roxin, Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal, p.170).

28 Claus Roxin, Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal, p.192.

29 "A" pede a "B" que acenda as luzes pressionando o interruptor, no que é inocentemente atendido por "B", que deflagra inadvertidamente explosivo que, noutro local, dá a morte a "C". "A" não agiu com dolo ou culpa e tampouco se lhe exigiria agir de outro modo; remanesce evidente, pois, a autoria mediata de "A", assim como a sua responsabilidade penal exclusiva (Claus Roxin, Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal, p.193).

30 Erro de proibição próprio ou erro sobre os pressupostos materiais de causas de justificação, com exclusão da culpabilidade (Claus Roxin, Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal, pp.216-231).

31 A hipótese subdivide-se: erro sobre o sentido concreto da ação (e.g., "error in persona"; para Roxin, o sujeito que induz ao erro o executor é autor mediato, exercitando domínio do fato de quarto grau) e erro sobre o risco (e.g., "A" e "B" encontram em sótão granada não detonada, desejando o primeiro desfazer-se imediatamente do artefato para preservar a integridade do último piso; teme, porém, lancá-la ao jardim, já que ali vê "C" trabalhando; delibera, porém, fazê-lo porque "B", desafeto de "C" e expert em explosivos, assevera ser pequeno o risco da detonação com a queda, conquanto o saiba elevado). Também nesse último caso, entende Roxin haver autoria mediata, baseada no engano sobre a probabilidade de produção do resultado lesivo, causal (do ponto de vista psíquico) para a decisão do executor; a criação ou o aproveitamento do erro alheio o tornam autor mediato, não se justificando a qualificação de partícipe (ainda mais porque haveria, nesse caso, participação dolosa em conduta culposa). Cfr. Claus Roxin, Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal, pp.235-249.

32 Esse "modus operandi" tornou-se encontradiço nas capitais brasileiras, sobretudo na última década, como forma de elisão ou atenuação da responsabilidade penal em quadrilhas e, notadamente, no tráfico de entorpecentes, em que os menores são empregados como "vapor". Vicejando, com efeito, a teoria mais ortodoxa (teoria formal-objetiva, de von Liszt), os mentores intelectuais da ação criminosa, se identificados, responderiam como meros partícipes, sendo inimputáveis os executores.

33 A expressão "imputabilidade diminuída", para significar semi-imputabilidade, é acertadamente criticada por Damásio E. de Jesus (Direito Penal, 1º v., p.442), sob o argumento de que "a expressão é incorreta, pois o agente é imputável. Há diminuição de responsabilidade (a pena é diminuída) e não de imputabilidade. Assim, podemos falar em responsabilidade diminuída e não em imputabilidade diminuída". Volvendo a Roxin, se o agente próximo, no instante do fato, é incapaz de compreender o caráter ilícito da conduta ou de se determinar por essa compreensão, o terceiro que o predispõe ¾ agente remoto ¾ detém o domínio do fato, em qualquer sorte de cooperação. Se, por outro lado, o agente próximo não percebe com clareza a ilicitude do ato, mas age com dolo no sentido da teoria da culpabilidade e com domínio do fato de primeiro grau (domínio da ação), pode ser considerado autor, ainda que não se lhe aplique pena (e.g., artigo 98 do Código Penal brasileiro); nada obstante, o agente remoto será, ainda aqui, autor mediato. De outra parte, se o agente remoto, imputável, incorre em erro sobre o injusto material do fato, será reputado partícipe, ainda quando o agente próximo seja inimputável, porque tampouco o primeiro detinha, na hipótese, a compreensão de sentido necessária para o domínio do fato em segundo grau (Claus Roxin, Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal,p.259).

34 Pela Lei 8.069/90 (Estatudo da Criança e do Adolescente), são crianças as pessoas com até doze anos de idade incompletos; adolescentes são as pessoas cuja idade está entre doze e dezoito anos (artigo 2º). Para Hans Welzel, apenas na ação preordenada de crianças, que executam a vontade alheia sem manifestação paupável de vontade própria, dar-se-ia a autoria mediata; já em relação aos adolescentes, capazes de auto-determinação, a atuação do agente remoto configuraria tão somente a participação. Já para Roxin, nos atos de menores de catorze anos o agente remoto seria, em qualquer circunstância, autor mediato; já nos atos de adolescentes, a autoria mediata verificar-se-ia apenas quando o executor não fosse penalmente responsável, consoante o parágrafo 3º da JGG (Jugendgerichtsgesetz ¾ Lei dos Tribunais para a Juventude ¾ de 11.12.1974). A distinção tem espeque na política criminal tedesca de prevenção e repressão à delinqüência juvenil, que concebe a imputabilidade relativa do menor em determinados contextos; no Brasil, a absoluta inimputabilidade do menor de dezoito anos, prevista no artigo 27 do Código Penal, alcançou "status" constitucional em 1988 (artigo 228 da CRFB), sugerindo-se até mesmo a sua natureza pétrea, em doutrina como em jurisprudência (cfr. STF, ADIn 939-07/DF, in RDA 198/123 e RTJ 151/755, reconhecendo no princípio da anterioridade tribuária uma garantia fundamental do indivíduo e, por conseguinte, admitindo a existência de direitos e garantias individuais, para os fins do artigo 60, §4º, IV, fora do rol do artigo 5º ¾ direitos sociais, direitos de nacionalidade). Conseqüentemente, a solução jurídica para a "vexata quaestio" admite, no âmbito doméstico, notória simplificação em comparação ao caso germânico: sendo inimputável a criança como o adolescente, o agente remoto será sempre, à luz da teoria do domínio do fato, autor mediato.

35 No primeiro caso (autolesão), "cabe aseverar en general: como autor mediato es punible todo aquel que posibilita que otro se autodañe o le determina a hacerlo, siempre que a éste le falte la comprensión del significado moral y social del hecho" (Claus Roxin, Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal, p.262). Nas lesões praticadas por intermédio de inimputáveis em detrimento de outrem, valem as ilações já consignadas nas notas anteriores.

36 Claus Roxin, Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal, p.679.

37 Idem, p.270. Caso rumoroso da jurisprudência alemã (BGH 18, 87 (95)) remonta à década de sessenta, em que o agente Staschynskij foi processado pela morte de dois políticos exilados no território tedesco, assassinados mediante veneno, pessoalmente e sem auxílio direto de outrem, por ordem de uma potência estrangeira. Conquanto negados os requisitos do estado de necessidade penal, além de factível e exigível a conduta diversa (o acusado poderia, desde logo, entregar-se às autoridades alemãs, antecipando-se à prática do fato e reclamando proteção e asilo político), foi condenado como mero partícipe, em consideração ao reconhecimento de que seus superiores estrangeiros, desconhecidos, seriam os verdadeiros autores do delito. O desate judicial, insatisfatório, contrapôs as então recentes elucubrações da doutrina sobre o domínio da vontade em virtude de mecanismos organizados de poder (a primeira edição da obra de Roxin data de junho de 1963; o julgado é de outubro de 1962), o que levou à afirmação de que "la penetración de la idea objetiva del dominio del hecho en la jurisprudencia no va a pasar de ser episódica" (Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal, p.125, nota 52). Nada obstante, "la jurisprudencia más reciente ha entreverado con criterios objetivos la anterior teoría puramente subjetiva, acudiendo para ello a una valoración global en la que interesan como ‘puntos de referencia’ el interés y el dominio del hecho o, al menos, la voluntad orientada a dicho dominio. Así se ha logrado un compromiso utilizable en la práctica" (Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, p.595).

38 Claus Roxin, Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal, p.267.

39 Idem, p.277.

40 Idem, p.271.

41 Idem, p.303.

42 Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, p.595.

43 Idem, pp.304-310.

44 Claus Roxin, Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal, pp.323-324.

45 Tratado de Derecho Penal, pp.585-586; 594-595.

46 Strafgesetzbuch (Código Penal alemão).

47 Modalidades usualmente citadas pela doutrina pátria: a autoria colateral "ocorre quando os agentes, desconhecendo cada um a conduta do outro, realizam atos convergentes à produção do evento a que todos visam, mas que ocorre em face do comportamento de um só deles"; já a autoria incerta dá-se quando, "na autoria colateral, não se apura a quem deva atribuir a produção do evento". Assim, se dois sujeitos postam-se de emboscada, ignorando cada um o comportamento do outro, e deflagram simultaneamente projéteis contra a vítima que vem a cair morta, e em não se apurando qual dos projéteis provocou o evento letal, cabe "puni-los como autores de tentativa de homicídio, abstraindo-se o resultado, cuja autoria não se apurou" (Damásio E. de Jesus, Direito Penal, 1º v., pp.368-378).

48 A menção crítica ao caso Staschynskij é de Jescheck (Tratado, p.586).

49 Tratado., pp. 594-595.

50 Tratado de Derecho Penal, tomo I, p.06: "Como ciencia eminentemente práctica que trabaja continuamente para satisfacer las necesidades de la administración de justicia, creando siempre nuevos frutos, la ciencia del Derecho es y debe ser una ciencia propiamente sistemática; pues solamente la ordenación de los conocimientos, en forma de sistema, garantiza aquel dominio seguro y diligente sobre todas las particularidades, sin el que la aplicación del Derecho, entregada al arbitrio o al azar, no pasaría de ser un eterno diletantismo."

51 Cfr. Claus Roxin, Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal, pp.397-399, "in verbis": "si el sujeto de detrás entrevé el hecho, no es posible imaginar la inducción a un delito no doloso, puesto que en este caso nos encontramos ante un autor que, por falta de dominio final del curso del suceso, precisamente no puede ser autor, según se desprende de la definición; junto a él está un partícipe que es señor del hecho, y por tanto, a partir de los principios de esta teoría en ningún caso puede ser partícipe. Lo inadmisible de una construcción en tal sentido no se deduce, pues, de la ‘naturaleza de las cosas’, sino de la lógica de la formación razonable de conceptos". O argumento é irrebatível; daí compreendermos que, tal como outrora pontificado pelos séquitos da teoria formal-objetiva, não há participação dolosa em delito culposo ou vice-versa, ao contrário do que propugna Günther Jakobs (cfr. Claudia López Díaz, Introducción a la imputación objetiva, Bogotá, Universidad Externado de Colombia, 1996, p.94). Não obstante, a teoria da dominabilidade pode ser manejada de maneira a acolher a figura da co-autoria nas infrações culposas (domínio funcional), reconhecendo-se a "posição-chave" de cada sujeito na ação corrente (domínio factual), com abstração do elemento teleológico; aproximar-se-iam, desse modo, as doutirnas espanhola e germânica sobre concurso de agentes, imprimindo-se à teoria do domínio do fato a desejável universalidade. Confira-se em Günther Jakobs (La imputación objetiva en Derecho penal, trad. Manuel Cancio Meliá, Madrid, Civitas, 1996, p.165): "(...) cuando al poner orden en una habitación uno de los participantes abre la ventana para que otro pueda lanzar fuera una tabla, alcanzando ésta de modo imprevisto a un peáton, ambos intervinientes han organizado la lesión imprudente del peáton en régimen de reparto de trabajo, porque al lanzar fuera la tabla de modo descuidado han llevado a cabo, a través de una organización común, un comportamiento que constituye un riesgo no permitido".

52 Claus Roxin, Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal, p.145.

53 "El principio de confianza está destinado a hacer posible la división del trabajo; por consiguiente, concluye cuando el reparto de trabajo pierde su sentido, especialmente, cuando puede verse que la otra parte no hace, o no ha hecho, justicia a la confianza de que cumplimentará las exigencias de su rol. En tales casos, ya no resulta posible repartir el trabajo para alcanzar un resultado exitoso" (Günther Jakobs, La imputación objetiva en Derecho penal, p.106).

54 Idem, p.149.

55 "Ainda se correto em teoria, não serve, porém, para a prática".

56 Claudia Lópes Díaz, op.cit., pp.94-95.

57 Günther Jakobs, La imputación objetiva en Derecho penal, p.107.

58 Yesid Reyes Alvarado, Imputación Objetiva, 2ª ed., Santa Fé de Bogotá, Temis, 1996, p.265.

59 Francisco de Assis Toledo, Princípios Básicos de Direito Penal, p.97.

60 Cfr. Damásio E. de Jesus, Imputação Objetiva, São Paulo, Saraiva, 2000, p.150: "A adoção da imputação objetiva não significa abandono da teoria finalista da ação, de modo que continuamos finalistas (...) As duas teorias podem coexistir, tanto que muitas regras, métodos e critérios da imputação objetiva têm fundamento no finalismo, como a inobservância do cuidado objetivo necessário, que corresponde à realização de conduta criadora de risco juridicamente reprovado".

61 No exemplo do taxista, não há qualquer aporte causal relevante ao evento delitual e tampouco lhe cabe qualquer forma de domínio do fato (ação, vontade ou função); não há, pois, elementos factuais indicativos de autoria ou co-autoria. De outra parte, tampouco remanesce a condição de partícipe, eis que o taxista não defraudou, com sua conduta, qualquer expectativa de comportamento (ao taxista cabe, mesmo, conduzir o passageiro de um ponto a outro, a despeito de suas boas ou más intenções), além de não aderir ao propósito criminoso. Por essa via, como pela de Günther Jakobs (proibição de regresso), chega-se à mesma conclusão: irresponsabilidade penal do condutor.

62 Não por outra razão, a doutrina espanhola, que acolhe a teoria do domínio do fato, critica a resistência germânica à admissão da participação em infrações penais culposas (cfr., por todos, Santiago Mir Puig, Derecho Penal: Parte General, Barcelona, PPU, 1985, pp.316-317).

63 Assim, e.g., ainda no caso do taxista que conduz o delinqüente ao local do crime, supra. Presumindo-se que as condutas de autor, co-autor e partícipe sejam sempre objeto de um mesmo processo (conexão ou continência: artigos 76, I, e 77, I do Código de Processo Penal), o juiz cuidará de aferir, primeiramente, a natureza do fato principal, reconhecendo-lhe ou não o caráter delitivo, para somente então analisar o fato acessório (mormente porque, para reconhecer relevância à participação, deverá ter formulado juízos prévios a propósito da tipicidade e da ilicitude do fato principal, em face da teoria da acessoriedade limitada, que reputamos válida ainda quando acolhida a teoria do domínio do fato). Nesse estágio, ao negar a relevância causal, normativa ou subjetiva da conduta acessória, estará automaticamente isentando de imputação o sujeito mediato, por via oblíqua (conquanto possa ser necessário, no contexto, o emprego de rudimentos da teoria da imputação objetiva para excluir, pela via objetiva, a mera participação).

64 Veja-se, e.g., o caso da teoria geral da relatividade, de Albert Einstein, e da física quântica, de Max Plank.


Autor

  • Guilherme Guimarães Feliciano

    Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Doutor pela Universidade de São Paulo e pela Universidade de Lisboa. Vice-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELICIANO, Guilherme Guimarães. Autoria e participação delitiva. Da teoria do domínio do fato à teoria da imputação objetiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 748, 19 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7020. Acesso em: 25 abr. 2024.