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O Código de Defesa do Consumidor e os contratos bancários

O Código de Defesa do Consumidor e os contratos bancários

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Os Estabelecimentos bancários são hoje, sem dúvida alguma, um dos pilares mais importantes da Sociedade Moderna. Relevância que decorre, principalmente, da possibilidade que detêm de aumento, circulação e fomento de riquezas, garantindo aplicações rentáveis ao capital, atualização dos recursos aplicados e possibilidade de obtenção de novos recursos, tão necessários ao incremento e fomento de atividades empresarias. E, também, porque direta ou indiretamente, as atividades bancárias estão sempre envolvendo a vida quotidiana, do recebimento de salários ou aposentadorias, passando pelo pagamento das mais diversas contas até os empréstimos e financiamentos.

Como qualquer outro estabelecimento comercial, visam, os Bancos, ao lucro, obtido principalmente no spread cobrado. Ocorre que nem sempre a busca desse lucro, através do resultado ótimo na relação: Recursos Obtidos ð empréstimo ð spread apresenta-se de forma medida e aceitável.

Embora expressamente definidos como fornecedores (art. 3º, §2º do CDC), grande é o debate doutrinário sobre a incidência das normas de proteção ao consumidor nos contratos firmados entre cliente e instituição bancária.

A oposição do setor bancário a esse dispositivo é manifesta, sob o argumento de que não há como se falar em relação de consumo nos contratos assinados entre o cliente (pessoa física ou jurídica) e o Estabelecimento bancário. Defendendo essa posição encontramos, por exemplo, o ilustre Profº Arnoldo Wald (1), sob o argumento que não é possível que o crédito seja usado por um destinatário final, já que, por sua própria natureza, destina- se à circulação como meio de pagamento (2). Por outro lado, seria aplicável o CDC aos serviços bancários, como, por exemplo, guarda de documentos e locação de cofres.

Há, entretanto, outras posições, como a de Luiz Rodrigues Wambier (3), que afirma que os contratos bancários estão sujeitos ao CDC, se caracterizada a relação de consumo, isto é, que o contratante seja o próprio consumidor (inexistindo na relação qualquer intermediário). Assim, "Se, todavia, o tomador dos recursos se utilizou do montante obtido por meio de operação de crédito (em sentido amplo) para a realização de atividades próprias, tanto de produção quanto de consumo, estará efetivamente consumindo aqueles recursos e, com isso, sujeitando a operação bancária ao crivo do CDC." (4) Wambier não aceita a argumentação de Wald, e esclarece que o tomador do empréstimo é destinatário final no sentido de que é o último destinatário daquela relação de consumo. Uma vez que utilize os recursos constituirá outras relações completamente desvinculadas da anterior (5).

Também admite aquela aplicação José Geraldo Brito Filomeno (6) quando afirma que as instituições financeiras prestam serviços lato sensu aos consumidores quer quando prestam serviços aos seus clientes (cobrança de contas, expedição de extratos, etc.) quer quando concedem mútuos ou financiamentos.

James Marins também é da opinião de que todos os contratos bancários, inclusive aqueles que envolvem operações financeiras de risco, estariam sujeitos ao CDC pois tratam-se de atividades oferecidas ao público, no mercado de consumo, mediante remuneração. A mesma opinião é compartilhada por Antônio Carlos Efing. Ambos os autores baseiam-se na extensão conferida pelo art. 29 do CDC a todos aqueles potencialmente atingidos por práticas abusivas, principalmente porque na maioria dos casos tratam-se de contratos de adesão.

Wambier mais uma vez discorda, principalmente porque o conceito de consumidor não seria tão elástico, e se fosse realmente essa a interpretação adequada não haveria porquê existir o conceito restrito de consumidor estabelecido pela própria lei. Para o autor o que o art. 29 pretendia albergar seriam os entes despersonalizados (massa falida, condomínio, etc.) quando em condições equiparáveis aos consumidores.

Apesar da dignidade dos argumentos, essa opinião não parece ser a mais adequada, uma vez que além de expresso o dispositivo legal, não cabe ao intérprete criar restrições quando a própria lei não o faz. Além disso, a extensão do art. 29 não é uma extensão a todos e quaisquer casos, mas apenas àqueles em que se figura abusividade contratual. Além disso, uma vez que os entes despersonalizados estejam em situação equiparável ao consumidor estarão abrangidos pelo próprio caso do art. 2º.

Certo é que, uma vez editada a Lei nº 8.078/90, muito argumentou-se que não se poderia aceitar sua vigência nos contratos bancários, pois não seriam esses de consumo. Tal argumento embasava-se no fato de que, como negociava-se crédito, não sujeitando, desse modo, a relação ao disposto no Código de Defesa do Consumidor, pois não haveria como se consumir o dinheiro e, portanto, não poderia existir relação de consumo.

Primeiramente, cabe lembrar que, de acordo com o disposto no art. 51 do Código Civil, dinheiro é um bem consumível. Esta é a posição da melhor doutrina representada por Clóvis Beviláqua (7): Ora, se o dinheiro é bem juridicamente consumível, o argumento de que não pode haver relação de consumo envolvendo-o torna-se vazio. Conforme comenta Wambier: "Sob esse argumento (ser destinatário final) não se podem excluir da incidência das normas do CDC os contratos de crédito, cujos recursos sejam tomados pelo consumidor para fazer frente as despesas de produção ou de consumo, pois a circunstância de "gastar" esse dinheiro tomado do banco não o inclui na cadeia de fornecedores." (8)

Além desse argumento, aqueles que pretendem ver afastada a incidência do CDC aos contratos bancários, alegam que não poderia haver destinatário final ao crédito. Deve-se reconhecer que a principal função do crédito é a de meio de circulação das riquezas, entretanto, negar que pode ser possuído em consumo final é esquecer-se de que não se pode obrigar o "cliente" a manter consigo o crédito obtido. Na verdade trata-se de duas relações distintas, como demonstra Wambier. A primeira refere-se à relação de consumo entre o cliente e a instituição bancária, na qual aquele é consumidor final do crédito obtido, e que pode ou não ser seguido de outras relações. Obviamente, se o crédito obtido for utilizado como insumo para o incremento da atividade empresarial do "cliente", não há que se falar em relação de consumo, pois haverá relação de intermediação. Nada impede, contudo, que se aplique a extensão do conceito de consumidor no caso do art. 29 CDC.

Há ainda aqueles que acreditam existir uma presunção iuris tantum de que o crédito obtido será utilizado como fator de produção, não havendo consumo final por parte do cliente. E que além disso só poderia se falar em abrangência pelo CDC nos serviços, operações passivas (poupança e conta corrente sem concessão de crédito, aplicações financeiras e contratos atípicos – custódia de valores, aluguel de cofres, etc.).

Primeiramente deve-se indagar o porquê da existência de uma presunção que indique que o crédito será utilizado como meio de produção (não há qualquer resposta lógica neste sentido). Poderia inclusive se dizer da existência da presunção contrária frente, daí sim verdadeira, à presunção de fragilidade do consumidor. Em segundo lugar não há porque se excluir as atividades bancárias ditas ativas (9), visto que além do oferecimento do produto "crédito" há a prestação de serviço (10) por parte do Estabelecimento bancário nas operações bancárias ativas.

Este aliás é o ponto de maior controvérsia no que concerne à aplicação do CDC às atividades bancárias. A doutrina ainda não se assentou, e muito menos a jurisprudência, sobre como tratar as operações bancárias fundamentais ativas. Como se depreende da argumentação anteriormente exposta, o melhor entendimento é aquele que aceita a incidência do CDC, desde que o consumidor não utilize o crédito como insumo para atividade lucrativa outra (pois na verdade caracterizar-se-ia intermediação). Entretanto, se o consumidor é o destinatário final desse crédito, no sentido de que não o utilizará para criar ainda mais crédito, é pacífica e indubitável sua abrangência pelo CDC. Até porque, não há critério lógico ou legal para o descriminação entre as operações ativas e passivas, ambas merecedoras da proteção consumerista.

Newton de Lucca ensina que a origem do CDC está muito ligada aos abusos cometidos pela instituições financeiras contra seus clientes. Para o ilustre Professor não se pode, através da interpretação, chegar-se a um absurdo. Aceitar que o CDC não se aplica aos Bancos permitir-lhes-ia a veiculação de propaganda enganosa, utilização de cláusulas abusivas, etc. sem qualquer tipo de sanção.

Concluindo com a clareza ímpar de Cláudia Lima Marques, podemos afirmar que: "A caracterização do banco ou instituição financeira como fornecedor está positivada no art. 3º, caput do CDC e especialmente no § 2º do referido artigo, o qual menciona expressamente como serviços as atividades de ‘natureza bancária, financeira, de crédito’." E mais adiante: "A caracterização do banco ou instituição financeira como fornecedor sob a incidência do CDC, é hoje pacífica." (11) A mestre gaúcha acrescenta ainda: "O CDC rege as operações bancárias, inclusive as de mútuo ou de abertura de crédito, pois relações de consumo.

O produto da empresa banco é o dinheiro ou o crédito, bem juridicamente consumível, sendo, portanto, fornecedora; e consumidor o mutuário ou creditado." (12)

Diante dos argumentos trazidos pela melhor doutrina, não há como se negar a aplicação das regras protetivas do Código de Defesa do Consumidor à atividade bancária e sua operações, quer fundamentais (ativas e passivas), quer acessórias quando o produto (crédito) for utilizado pelo destinatário final em atividade não lucrativa (não caracterizando insumo) (13).


NOTAS

1.. WALD, Arnoldo. O Direito do Consumidor e suas repercussões em relação às instituições financeiras. In Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, Vol. 666, Abr. 1991, p.7-17.

2.. Nota o autor que só haveria destinatário final em dois casos: o colecionador de moedas e quando o BACEN retira de circulação moedas antigas.

3. WAMBIER, Luiz Rodrigues. Os Contratos bancários e o Código de defesa do Consumidor. In Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, Vol. 18, Abr./Jun. 1996, p.125-132.

4. WAMBIER, Op. cit., p.127.

5. Em relação ao contrato de abertura de crédito em conta corrente, argumenta o autor que o destinatário final do recurso é o usuário que saca de sua conta corrente "na medida em que ele efetivamente faz uso daquele serviço bancário (ajuste concessivo de crédito rotativo) e utiliza os recursos assim obtidos para si ou para sua família, ainda que na aquisição de outros bens e serviços." (WAMBIER, Op. cit., p.130).

6. FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Direitos do Consumidor. São Paulo: Atlas, 1991.

7. Código Civil comentado. Francisco Alves, 1956. V. 1, p. 226.

8. WAMBIER, Op. cit., p.131.

9. Os bancos desempenham uma série de negócios jurídicos com seus clientes visando ao lucro (pois possuem intuito comercial). Esses negócios são denominados operações bancárias, e podem ser classificadas em principais e acessórias. "As operações bancárias fundamentais são representadas pela intermediação do crédito, ou seja, pelo recolhimento e concessão de dinheiro. Estas se subdividem em passivas – que têm como objetivo a arrecadação de fundos, tornando o banco devedor do cliente; como exemplo, pode-se citar o depósito e as contas-correntes – e ativas, que visam à colocação de crédito no mercado, passando o banco a credor do cliente, consistindo nos empréstimos, aberturas de crédito, descontos entre outros." (HOLTHAUSEN, Fábio Zabot. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor às Operações Bancárias. In Ajuris, Edição Especial, Tomo II, p.710). As acessórias, por sua vez, são as que não intermediam o crédito como cobrança de títulos e aluguel de cofres.

10. Recentemente o Superior Tribunal de Justiça se manifestou em relação à aplicação do CDC aos Bancos nos seguintes termos: "Os Bancos, como prestadores de serviços especialmente contemplados no art. 3º, parágrafo segundo, estão submetidos às disposições do Código de Defesa do Consumidor. A circunstância de o usuário dispor do bem recebido através da operação bancária, transferindo-o a terceiros, em pagamento de outros bens ou serviços, não o descaracteriza como consumidor final dos serviços prestados pelo banco". (Resp nº 57.974-0-RS, Relator Min. Ruy Rosado de Aguiar). No mesmo sentido, Resp’s 163616/RS; 1757995/RS e 142799/RS.

11. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 3ªed, p.198/199.

12. MARQUES, Contratos..., p.202.

13. Cabe destacar, por fim, que Cláudia Lima Marques admite essa possibilidade quando o profissional comprovar sua vulnerabilidade.


Autor

  • Frederico Eduardo Zenedin Glitz

    Frederico Eduardo Zenedin Glitz

    Advogado. Mestre e Doutorando em Direito das Relações Sociais (UFPR); Especialista em Direito e Negócios Internacionais (UFSC) e em Direito Empresarial (IBEJ); Professor de Direito das Obrigações, Direito dos Contratos e Direito Internacional Privado e Econômico da Faculdade de Direito das Faculdades do Brasil (UNIBRASIL). Professor de Direito das Obrigações dos Contratos da Faculdade de Direito da Universidade Positivo (UP). Professor convidado da Escola Superior de Advocacia da OAB/PR e da Academia Brasileira de Direito Constitucional - ABDConst. Membro do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP). Membro do Conselho de Comércio Exterior da Associação Comercial do Paraná

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin. O Código de Defesa do Consumidor e os contratos bancários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 47, 1 nov. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/720. Acesso em: 25 abr. 2024.