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Uso da força policial:limite entre o legal e o arbitrário

Uso da força policial:limite entre o legal e o arbitrário

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Até que ponto o uso da força policial deixa de ser um ato constitucional e passa a constituir uma atitude arbitrária?

Resumo – Vive-se no Brasil uma recrudescente insegurança ou falta de segurança pública, fato disseminado pela mídia além de sentido e reclamado por todos os segmentos da sociedade. Essa mesma mídia, propala uma imagem da Polícia, como de uma instituição ineficiente e ineficaz, por não conseguir avaliar, controlar e evitar o aumento da escalada da violência, além de autora de inúmeros casos onde se verifica o abuso de poder. Ora, sabe-se que esse controle não depende só da Polícia, nem as causas desse problema estão somente na falta do policiamento ostensivo. A Polícia é apenas o braço armado de que dispõe o Estado por intermédio do Poder Judiciário. Quanto ao abuso de poder, trata-se de casos isolados, de autoria de alguns policiais e não da instituição como um todo. Mas não se pode analisar o comportamento violento do policial militar sem analisar o próprio ambiente de onde ele provém e para o qual ele presta serviços. Assim, este artigo se propõe a fazer uma reflexão sobre a atividade policial e o uso da força de forma arbitrária ou legal, tentando estabelecer um limite entre uma e outra.

Palavras-chave – Polícia. Violência. Abuso de poder. Arbitrária. Legal.

Abstract –Is lived in Brazil, one recrudescent unreliability or lack of public security, fact spread for the media beyond judgmented and complained for all the society segments. This same media, divulges an image of the Policy, as an inefficient and inefficacious institution, for not obtaining to evaluate, to control and to prevent the increase da scaled da violence, beyond author of innumerable cases where it verifies the abuse of being able. However, we know that this control does not only depend on the Policy, nor the causes of this problem are only in the lack of the ostensive policing. The Policy is only the armed arm of that makes use the State for intermediary of the Judiciary Power. About the breach of power, one is to isolated cases, authorship of some policemen and not of the institution as a whole. But we cannot to analyze the violent behavior of the military policeman without analyzing the proper environment of where he originates and for which he gives services. Thus, this article considers to make a reflection on the police activity and the use of the arbitrary or legal form of force, trying to establish a limit between one and another one.

Keywords – Police. Violence. Breach of power. Arbitrary. Legal.


1 INTRODUÇÃO

A Polícia Militar é uma organização composta de pessoas procedentes das mais diversas classes sociais, com formações, personalidades, grau de instrução diferenciados, além de sociabilidade de toda natureza. São homens que carregam toda uma gama de complexos, recalques, traumas e marcas e que, muitas vezes, habitam áreas povoadas de marginais.

Com todos esses agravantes, considerando um universo de milhares de homens, a Polícia Militar se depara com inúmeros problemas de ordem social que surgem de todos os lados, ora relacionados com o policial militar, ora com seus dependentes, podendo-se citar aqueles que mais os afligem, sejam eles: os ligados à escolaridade, à saúde, à habitação, à assistência social, jurídica, médica hospitalar e à remuneração. A reunião desses fatores acaba por atingir a própria instituição com a deflagração de altos índices de violência praticada por policiais militares no desempenho de suas atividades constitucionais.

A execução das ações policiais, de um modo geral, no Brasil, ocorre com base no que se pode chamar de rigor  necessário. Na maioria dos casos, a sociedade justifica certos tipos de práticas pelo fato de as vítimas serem, via de regra, suspeitos ou bandidos. Porém, o senso comum julga que, no combate eficiente contra a marginalidade urbana, a polícia precisa aplicar o mesmo código de conduta dos transgressores, o que torna cada vez mais difícil e arriscado diferenciar uns dos outros. Deste modo, a truculência e o despreparo de alguns profissionais designados para propiciarem a segurança pública torna cada vez mais tênue a linha que os separa dos verdadeiros marginais e bandidos.

Questiona-se então: onde o uso da força policial deixa de ser um ato constitucional e passa a constituir uma atitude arbitrária? Este artigo pretende, por meio do estudo exploratório e da pesquisa bibliográfica, refletir sobre essa questão.


2 VIOLÊNCIA: ASPECTOS RELEVANTES

O policial militar é um profissional com atribuições definidas em lei e responsável pela manutenção da ordem pública no Estado. No entanto, este mesmo homem, instrumento sem o qual não haveria como a Corporação oferecer seu produto final à sociedade, faz parte de um contexto social onde, sofrendo os desafios do cotidiano, acaba utilizando seu poder de forma incorreta, sendo vítima e autor de diversos tipos de atos violentos. Mas como a situação chegou a esse ponto?

Nas últimas décadas, com a aceleração do êxodo rural, o processo de concentração urbana atingiu taxas extremamente altas, gerando a formação das megalópoles e o agravamento dos problemas sociais.

Convivem, nas mesmas cidades, uma minoria moderna da população em condições equivalentes às de uma adiantada sociedade dos países desenvolvidos, com uma minoria primitiva, ignorante e miserável, vivendo em condições, muitas vezes sub-humanas. Essa convivência tem se mostrado conflituosa e inviável diante de um quadro alarmante do crescimento acelerado das taxas de criminalidade. Mas a violência não é um fato novo na sociedade, ela acompanha a vida em sociedade desde a formação dos primeiros grupos humanos, quando a isso se recorria como forma de sobrevivência.

Na história do Brasil, mais especificamente falando, atos extremamente violentos, os quais envolveram muitas vezes a coação de pessoas, foram encabeçados pelo próprio Estado ou tiveram o seu consentimento. Segundo Bastos Neto (2006, p. 153):

[...] no Estado Novo, criminoso comum e revolucionário socialista, muitas vezes foram confundidos pelo “sistema”. Eram jogados numa mesma sela, torturados pelas mesmas razões e esquecidos no interior das instituições prisionais, com o mesmo objetivo.

Isso traduz o abuso de poder e a violação da pessoa humana, que naquela época eram condições fundamentais para a manutenção daquele modelo de sociedade.

Com base em Da Matta (1982) pode-se afirmar que a violência no Brasil se associa fundamentalmente à estrutura de poder vigente numa sociedade. Este autor defende que atitudes violentas são classificadas comumente como formas de ação resultantes do desequilíbrio entre fortes e fracos. Entretanto, elas deveriam ser analisadas como um processo que permeia o sistema. Olhando pelo ângulo da razão prática, a violência não é um mecanismo social e uma expressão da sociedade, mas uma resposta a um sistema. Por essa lógica, a violência está tão reificada quanto o capitalismo, o sistema, o poder, entre outros, como um elemento visto isoladamente, da sociedade na qual ela aparece. Como se fosse acidente ou anomalia que um determinado tipo de sistema provoca e não uma possibilidade real e concreta de manifestação da sociedade brasileira.

Desde o período colonial, a estrutura de poder é responsável pela negação dos direitos da maioria da população. Hoje, pode-se exemplificar essa tese com a violência resultante dos conflitos agrários ou das chacinas. Bastos Neto (2006, p. 152) assinala que:

A construção de um país para poucos levou cinco séculos, com vários levantes, revoltas, derramamentos de sangue que ensopam a história do nosso país, desde principalmente, os séculos XVIII e XIX. De um grupo de descobridores, marujos aventureiros, formou-se também uma elite igualmente aventureira e irresponsável.

Assim, é impossível analisar a violência de uma única maneira, tomando-o como um fenômeno único. O termo violência reúne tudo o que se refere ao conflito, ao controle, à luta, ou seja, à parte sombria que sempre atormenta o corpo social ou individual. Deste modo, a violência pode ser, ainda, classificada como: tiranias, conflitos políticos e sociais, terrorismo, repressão, guerras civis entre outros. Diante de tantos sinônimos fica uma curiosidade, que vem a ser a violência no sentido etimológico?

Nascimento (2006) informa que a palavra violência vem do latim violentia, que significa violência, caráter violento ou bravio, força. O verbo violare significa tratar com violência, profanar, transgredir. Tais termos devem ser referidos a vis, que quer dizer força, vigor, potência, violência, emprego de força física, mas também quantidade, abundância, essência ou caráter essencial de uma coisa. Mais profundamente, a palavra vis significa a força em ação, o recurso de um corpo para exercer sua força e, portanto, a potência, o valor, a força vital.

A passagem do latim para o grego confirma este núcleo de significação. Ao vis latino corresponde o is homérico, que significa músculo, ou ainda força, vigor, e se vincula a bia, que quer dizer a força vital, a força do corpo, o vigor e, conseqüentemente, o emprego da força, a violência, o que coage e faz violência.

Ainda, Nascimento (2006) afirma que os dicionários de francês contemporâneo definem a violência como: a) o fato de agir sobre alguém ou de fazê-la agir contra a sua vontade empregando a força ou a intimidação; b) o ato através do qual se exerce a violência; c) uma disposição natural para a expressão brutal dos sentimentos; d) a força irresistível de uma coisa; e) o caráter brutal de uma ação. Esses sentidos diversos de violência indicam duas orientações principais: de um lado, designa fatos e ações; de outro, designa uma maneira de ser da força, do sentimento ou de um elemento natural - violência de uma paixão ou da natureza.

Feita essa pesquisa etimológica sobre o vocábulo, passa-se a tentar estabelecer o que é violência policial, o que se torna difícil em virtude das conceituações que existem a respeito da violência. Adotar-se-á então uma linha objetiva, levando-se em conta apenas os fatos. Por essa linha admite-se que:

A violência se define, no sentido estrito, como um comportamento que visa causar ferimentos às pessoas por prejuízos aos bens. Coletiva ou individualmente, podemos considerar tais atos de violência como bons, maus, ou nem um nem outro, segundo quem começa contra quem (GRAHAM e GURR apud SOUZA e OLIVEIRA, 2001, p. 16).  

Analisando as definições acima, vê-se claramente que a violência da forma como está colocada se restringe a pessoas ou bens definindo contornos e efeitos, ignorando situações mais insidiosas. Procurando estabelecer uma definição que abarque tanto os estados quanto o ato de violência, assinala Michaud (1995, p. 20):

Há violência quando numa situação de interação um ou vários outros agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses ou em suas participações simbólicas ou culturais.

Com esta conceituação ampla de violência Michaud (1978) teve por objetivo consagrar justificadamente alguns tópicos:

a) o caráter complexo da possibilidade de interação múltipla de atores, até máquinas administrativas, pois nela se dilui a responsabilidade;

b) modalidades diversas de produção de violência onde os processos caminham no sentido de uma violência produzida individualmente por meios limpos;

c) distribuição temporal da violência, podendo ser maciça de uma só vez ou gradual e até insensível. Pode-se matar ou morrer até de fome (favorecendo condições de subnutrição);

d) diferentes tipos de danos que podem ser impostos: danos físicos mais ou menos graves, danos psíquicos e morais, danos aos bens, danos aos próximos ou aos laços culturais.

Veja-se agora de que outra forma o ambiente estimula a violência.

2.1 BASES NEUROFISIOLÓGICAS DA VIOLÊNCIA

O ambiente gera estímulos que provocam reações nos organismos mais elementares, que sentem aqueles estímulos ambientais como se fossem agressões. Selye (1962) apud Souza e Oliveira (2001) dedicou seus estudos à síndrome de adaptação dos organismos complexos, que reagem às tensões oriundas do meio, isto é, ao stress. A Síndrome Geral de Adaptação (SGA) se traduz na reação geral do organismo atacado (modificações endócrinas, metabólicas), como a febre, as perturbações cardiovasculares e o desfalecimento (desmaio). Já a Síndrome Local da Adaptação (SLA) corresponde às reações inflamatórias locais (úlceras, abcessos, dores localizadas). O organismo recebe um alarme, depois resiste e em seguida esgota-se rapidamente. Daí para a agressividade a distância é pouca.

O elo de ligação entre o stress e a agressividade é a irritabilidade difusa, quando o organismo tem uma modificação em seu equilíbrio, voltando sua energia contra um alvo. A própria agressividade esgota a existência do organismo e aprofunda o nível de stress e o círculo volta a repetir-se. A agressividade transforma-se em energia, e essa energia desviada é a violência, posta a serviço de uma busca ilegítima de poder sobre o outro ou sobre a própria sociedade.

Assim, uma ação violenta é aquela em que o psiquismo humano é afetado marcantemente, tornando as pessoas mais submissas a ponto de perder o seu controle interior.

2.2 TIPOS DE VIOLÊNCIA

A violência pode se manifestar sob vários aspectos: de forma legal ou de forma arbitrária.

a) Violência legal – a violência é legal quando o ato está amparado na Lei e não chega a constituir-se abuso, excesso ou desvio. É a violência juridicamente aceita. Ela constrange, coage, às vezes chega a ser brutal, mas visa a um objetivo maior que é o bem comum, preservando a ordem jurídica.

O art. 292 do Código de Processo Penal contempla o emprego da força para defender-se ou para vencer resistência no caso da prisão legal (em flagrante ou mediante ordem de autoridade competente), usando-se moderadamente os meios necessários, conforme postula:

Art. 292.  Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas (BRASIL, 1941, p. 37).

Como se viu, exige-se, nesse caso, a lavratura de um Ato de Resistência, subscrito pelo executor e duas testemunhas. Por outro lado, o Código de Processo Penal Militar admite o emprego da força, quando indispensável, no caso de desobediência ou tentativa de fuga, como assinala:

Art. 234. O emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas. Emprego de algemas. 1o O emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o art. 242. Uso de armas. 2o O recurso ao uso de armas só se justifica quando absolutamente necessário para vencer a resistência ou proteger a incolumidade do executor da prisão ou a de auxiliar seu (BRASIL, 1969, p. 48-49).

b) Violência arbitrária – quando o ato extrapola os limites e o emprego da força está fora dos parâmetros legais. O artigo 322 do Código Penal brasileiro, para os casos de violência arbitrária, estabelece que, aquele que “praticar violência, no exercício de função ou a pretexto de exercê-la” fica sujeito a “pena - detenção, de seis meses a três anos, além da pena correspondente à violência” (BRASIL, 1940, p. 88).


3 REFLEXÕES SOBRE A VIOLÊNCIA E A AÇÃO DE POLÍCIA

Segundo Santos et al. (2000) a palavra polícia é derivada do grego polis, que significa cidade, induzindo à compreensão de civilização, progresso, estado adiantado, em oposição a bárbaro que denominava aquele que não vivia nas cidades. Policiais seriam então os vigilantes do local específico de reuniões harmoniosas daqueles que viviam em sociedade.

Mas, afinal, para que polícia? Existe até uma música que questiona “quem precisa de polícia”? Todos os cidadãos precisam de polícia porque vivem num mundo urbano e complexo e a sociedade tem a necessidade simbólica de uma autoridade que a faça limitar-se. A polícia é um segmento da sociedade, instituído pela própria cidadania para que ela se autolimite. Não existe uma sociedade minimamente organizada sem o conseqüente poder de polícia.

O modelo brasileiro de polícia militar funciona bem dentro das peculiaridades do país, no entanto, vive-se hoje uma recrudescente falta de segurança pública; fato amplamente propalado pela mídia, além de sentido e reclamado por todos os segmentos da sociedade, devido ao vertiginoso aumento da escalada de violência, que, a cada dia, revela-se multivariada e perversa, excedendo aos limites da razoabilidade, suportabilidade e aceitabilidade e que a Polícia não tem conseguido avaliar, controlar e evitar. Essa imagem passada pela mídia em relação à conjuntura atual, além de atribuir à Polícia Militar a responsabilidade maior, aduz ineficiência e ineficácia nesse combate.

Entretanto, sabe-se que a efetividade desse controle não depende apenas da Polícia Militar, uma vez que suas causas não resultam somente da falta de policiamento ostensivo, posto que este controla e evita (ou pelo menos tenta evitar) as conseqüências delituais e infracionais e não suas causas. Estas têm origem em outros fatores e aspectos.

A atual conjuntura se define na frase de Sachs apud Freitas (1996) qual seja: "Estado desorganizado; crime organizado!". E, nesse sentido, a Polícia Militar não representa e não é o Estado; ela é apenas instrumento e manifestação deste, mediante o exercício do seu poder. É, pois, o "braço armado e forte" de que dispõe o Estado por intermédio do Poder Judiciário - como sistema de controle criminal e social - na consecução de seus fins: o bem comum.

Além disso, saliente-se que segurança não pode ser medida, alcançada e, concretamente, refletida somente por dados estatísticos. Segurança não se vê, não tem forma, posto ser sensitiva. "E segurança é estado de espírito [...] que nada mais é do que segurança - psicológica" (GOUVEIA, 1989, p. 68), que se manifesta na percepção individual de cada cidadão, com reflexos no grupo social. É, em sentido amplo, um estado sensitivo de bem-estar que influi no coletivo (bem comum). Daí ser objeto finalístico do Estado e não só da Polícia Militar.

Desta forma, é de se supor que os assassinatos, as chacinas, o extermínio, as mortes nos acidentes de trânsito, o crescente estado de pobreza e a miséria, que conduzem à favelização das urbes, o descaso ao presente e ameaçador crime organizado do tráfico de drogas, entorpecentes e armas, não podem ser considerados normais, pois refletem a desorganização do Estado e o descaso dos Governos Federal, Estadual e Municipal na solução e/ou minimização desses problemas, os quais, aliados, à má distribuição de rendas, à perversa concentração de riquezas nas mãos de poucos e a conseqüente falta de terras produtivas, têm sido as causas dessa gigantesca onda de violência. Constata-se então que os instrumentos de repressão à violência constituído das polícias, da justiça, do sistema penitenciário e criminal não são respeitados.

Quando se pensa nas possíveis causas desse desrespeito, em especial quando se refere àqueles primeiros, a primeira coisa que vem à mente é a contraprestação financeira, normalmente irrisória, que os tornam passíveis e vulneráveis às ações de corrupção e os levam a procurar nas horas de folga o exercício de atividades paralelas e estranhas a seus serviços, aumentando a evasão e o desinteresse pela carreira abraçada. Essa observação se aplica às polícias de um modo geral, pois afeta tanto a Polícia Militar como a Civil. No que tange especialmente à essa última pode-se afirmar que é invariavelmente qualificada de corrupta e desacreditada até pela Polícia Militar, numa generalização que não é de todo correta, conforme acentua Chesnais (1998, p. 25):

Se a violência e a corrupção são inegáveis, levando-se em conta as condições de trabalho e dos meios pelos quais se recrutam as forças da ordem, é preciso, entretanto, evitar qualquer generalização prematura, pois a maioria do pessoal é honesta e devotada.

Contudo, a Ouvidoria de Polícia de São Paulo divulgou há anos atrás que, em 1999, o número de pessoas mortas pelas polícias Civil e Militar teria subido 23,8 % com relação ao ano anterior. À Polícia Civil foram imputadas aproximadamente 80 mortes. À Polícia Militar foram imputadas aproximadamente 570 mortes. Em cada um dos anos seguintes a 1999, o índice de mortes cujo agente é o policial só não foi superior às 1.421 mortes ocorridas em 1992, quando, a pretexto de conter uma rebelião, 120 PMs e 1 policial Civil executaram 111 presidiários na Casa de Detenção de São Paulo (MORGADO, 2002).

A existência de quatro polícias (Militar, Civil, Federal e Rodoviária) mal coordenadas e sempre rivais cria geralmente uma confusão que, apesar de elas terem papéis complementares embora mal definidos, impede a eficiência no local quando, por exemplo, acontece um tiroteio. Esse tipo de ocorrência gera sempre muitas críticas quanto à atuação policial.

Mas, há que se considerar alguns aspectos. Primeiramente, é elementar a noção de que cada organização policial é peculiar da comunidade em que está inserida, não se podendo avaliar o instituto Polícia Militar pela somatória de dados das diversas milícias estaduais, nem comparar o nosso modelo de polícia com o de outros países, ou mesmo estabelecer paralelos entre as PMS dos estados. A atividade de polícia está visceralmente ligada às condições sócio-econômicas-culturais de cada grupo onde se desenvolve. Desta forma, é importante observar o problema sob os enfoques: quem é o policial, quem é o destinatário da atividade e qual o tipo de delito enfrentado, não esquecendo que o policial será sempre, via de regra, alguém pertencente à comunidade, com costumes, hábitos, referências políticas, cultura, entre outros, idênticos aos de seus concidadãos.

Por outro lado, o destinatário da ação policial possui características próprias de sua região, e, como a lei penal é igual em todo o território nacional, um indivíduo reage perante a norma de forma diversa do que outro indivíduo de outro Estado ou região. Na medida em que se afasta do Sul e Sudeste do país, a noção de legalidade torna-se mais tênue e as relações interpessoais apresentam maior grau de pessoalismo, o que torna a corrupção mais fácil, e a violação de direitos humanos mais banalizada ou mesmo aceita.

Os delitos também mudam conforme se altera o segmento social analisado ou a região abordada. Em grandes metrópoles a ocorrência de crimes de alta complexidade e gravidade é mais freqüente, bem como a ação de grupos organizados torna-se bastante sofisticada; já em regiões com menos recursos, muito provavelmente, tais delitos nunca serão notícia de jornal.

Por estas razões o tema violência policial não poderia jamais abranger todas as organizações do Brasil, generalizando dados e fatos. Cada Polícia Militar, de cada Estado, é uma polícia diferente, com características próprias, com uma realidade própria, com um contingente peculiar, com uma situação interna diversa.

3.1 A REALIDADE DOS POLICIAIS MILITARES

Por mais numeroso que seja o contingente da Polícia Militar, ela não consegue estar presente em todo o território do Estado. Desempenha inúmeras atividades dentre as quais pode-se destacar como mais significativas: Policiamento Preventivo Ostensivo Fardado, visando sua atividade primeira, a preservação da ordem pública; atividades de Defesa Civil desempenhada pelo Corpo de Bombeiros; Policiamento de Trânsito; Policiamento Florestal e de Mananciais, forte agente de preservação do Meio Ambiente, diretamente relacionado com os Direitos Humanos; Policiamento Montado; Controle de Distúrbios Civis através das tropas de choque.

Durante seu período de formação os oficiais recebem uma enorme gama de informações jurídicas e sócio-culturais voltadas ao desempenho das funções de comando, no trato com civis, superiores e subordinados. Entre as matérias estudadas destacam-se Sociologia, Deontologia, Comunicação Social e Direitos Humanos, o que faz com que se perceba que ser policial não é algo simples.

Vale ressaltar também que o policial militar é um homem público que está em contato com todos os escamentos sociais e nas mais variadas situações: num mesmo dia tratará o homem da honestidade mais ilibada e o assassino ou traficante de drogas, devendo ter com um e outro um modus operandi e um linguajar completamente distintos. Eles podem se expor a situações que, numa fração de segundos, podem lhes custar a vida.

Em razão de seu trabalho profissional, o policial militar está à vista de todos, sejam cidadãos de bem, sejam mal-feitores. Uns o verão como um defensor, outros como inimigo. Estes últimos, entretanto, agem sempre às escondidas, e não são identificáveis por uniformes ou dísticos como os homens e mulheres da Polícia Militar.

Assim, não tardará que ocorram circunstâncias em que o policial militar – que é um trabalhador como qualquer outro, possuindo família e sendo, via de regra, uma pessoa de honestidade inquestionável, ver-se-á no limite do legal, na estreita linha divisória que o separa do mundo do crime.

Poderá, então, ocorrer que se corrompa, porque talvez não tenha motivação suficiente para permanecer irrepreensível. Talvez falte-lhe formação humana e profissional suficiente para reconhecer a ilegalidade do seu ato. Poderá pensar no seu baixo salário, nas necessidades de sua família, ou ainda, no local onde mora que pode ser uma favela, entre outras coisas.

Tudo isso pode ocorrer em virtude de fatos como, por exemplo, devido aos salários irrisórios, só buscarem essa profissão aqueles que não possuem muita qualificação. Por outro lado, a maioria dos policiais vê-se obrigada a buscar uma atividade extracorporação, o famoso “bico”. Com uma má seleção, não se pode exigir que estes homens compreendam conceitos muito elevados de cidadania, nem que ajam com completa isenção diante de fatos criminosos que abalam e revoltam até os mais esclarecidos. Já a atividade extracorporação acarreta sérias conseqüências tanto a nível profissional, como em termos pessoais.

Profissionalmente o chamado “bico”, sendo exercido em horas de folga, leva o policial ao stress físico e mental em pouco tempo. Muitas vezes, trabalhando durante toda a noite na PM, policiais deixam o necessário repouso para trabalharem fora durante o dia, o que traz como conseqüência que venha a dormir durante seu serviço, seja na PM seja no extracorporação. Os que trabalham de manhã vivem o mesmo regime, apenas invertendo-se os horários. Neste dia-a-dia, muitos são vitimados nas ações por estarem fisicamente pouco dispostos.

Ocorre que, por vezes, o serviço extracorporação remunera melhor que o Governo, levando o policial a ser mais pontual e melhor cumpridor do seu dever fora da corporação, passando, em pouco tempo, a desprezar sua profissão principal. Com este sentimento, acaba por ser um profissional tendente ao relaxamento, ao pouco caso e à falta de empenho. Com o decorrer do tempo as situações acabam se invertendo e a PM é que acaba por ser o “bico”.

Mas é no serviço extracorporação, normalmente como segurança patrimonial ou pessoal, que o policial se depara com a corrupção. É ai também que a vida pessoal do policial encontra sua ruína, pois nas horas de folga estará trabalhando, exposto a vícios de bebidas e drogas. O número de divórcios na PM é assustador e também ocorrem suicídios, embora não com tanta freqüência. Ser policial militar é um meio de vida, e não de morte. Concordando com Bastos Neto (2006, p. 258) pode-se dizer que “não é fácil situar a posição da polícia como parte dos mecanismos repressores do Estado”.


4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É fato que a polícia tem por atribuição a garantia da integridade física, da liberdade e da prosperidade das pessoas, bem como a preservação da ordem pública. Mas é fato também que somente educação e treinamento não tornam o policial militar um homem perfeito, eficiente e eficaz em seu trabalho de segurança pública.

Qualquer ser humano pode ser violento, haja vista que a agressividade pode ser estimulada pelo ambiente conforme foi visto neste estudo. Assim, não se pode dizer que a polícia militar é violenta, mas pode-se afirmar que, por um conjunto de fatores – entre eles: o salário irrisório, a moradia muitas vezes na vizinhança dos marginais, a falta de condições de bem educar seus filhos e zelar pela sua saúde – qualquer homem, não necessariamente um policial militar pode tornar-se violento e tendente à fazer a justiça com as próprias mãos.

Os policiais militares, em seu período de instrução e treinamento, tomam conhecimento do que postula a Constituição Federal, os Códigos Penal, de Processo Penal e de Processo Penal Militar. No entanto, a adoção da medida juridicamente correta vai depender da condição em que esteja esse cidadão no momento em que é exigida sua ação.

A ação do policial militar, na maioria das vezes deve ser instantânea. Nesses casos, o homem não tem tempo de raciocinar, não tem tempo de recitar os artigos constitucionais. Nesse momento, a linha que o separa do arbitrário passa a ser seu próprio conceito de justiça e o instinto de sobrevivência.                                                                                                                                                


REFERÊNCIAS

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