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Indivíduo e pessoa

reconhecimento, consideração e sua relação com o Direito

Indivíduo e pessoa: reconhecimento, consideração e sua relação com o Direito

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A humanização do direito requer a análise não de uma pessoa no sentido técnico, impessoal e quase asséptico, mas de uma pessoa sociologicamente construída e reconhecida como alguém que merece reconhecimento e consideração.

            A Rita matou nosso amor

            De vingança

            Nem herança deixou

            Não levou um tostão

            Porque não tinha não

            Mas causou perdas e danos

(Chico Buarque)


            A partir de um caso concreto [01], discutiremos aqui alguns conceitos importantes que são extrajurídicos, no entanto, relevantes ao direito. Um melhor termo talvez seja: parajurídicos. Para defendermos nossa hipótese central, seguiremos a seguinte trajetória: após a apresentação de um caso concreto (I), analisaremos a situação por duas óticas, quais sejam: primeiramente (II) as conseqüências sociológicas sob um ponto de vista institucional e em um contexto mais abrangente. Para essa análise, utilizar-nos-emos de Jürgen Habermas, pois temos a impressão de que seu pensamento lança uma luz sobre esse caso para que se passe da concretude de uma experiência vivenciada para um nível maior de teorização (que esperamos conseguir ao final do texto). Em seguida (III), apoiado nos conceitos de reconhecimento e dignidade de Charles Taylor, cujo pensamento julgamos também pertinente nesse empreendimento, esperamos voltar a um nível mais individual que é o que nos interessa mais de perto. Ressalte-se que a categoria "indivíduo" tratada aqui é sempre em sua análise sociológica, ou seja, intersubjetivamente construída. A última parte do texto (IV) tem a intenção de inserir toda a discussão no cenário do direito.

            Gostaríamos de deixar registrado que esse relatório é mais um portfólio da experiência de quase quatro anos (03/2000 a 01/2004) trabalhando em um Juizado Especial (Primeira Vara do Juizado Especial de Competência Geral do Paranoá/Distrito Federal) e a percepção de uma dupla formação (sociologia e direito).


I. O caso que nos despertou o tema

            Trata-se de uma ação de reparação de danos morais em desfavor de uma empresa de telefonia. O autor narrava que possuía uma linha telefônica fornecida pela empresa ré e que as contas de janeiro e fevereiro de 2003 vieram com um equívoco, qual seja, ligações para o número fictício cujo prefixo é "9980". Alega ainda que, muito embora tenha protocolado em 06.01.2003 uma carta requerendo a revisão dos valores e dos possíveis equívocos, a empresa ré, em 23.02.2003, desconsiderando esse pedido, enviou-lhe uma carta de cobrança pelo valor total da fatura e, logo após, cortou-lhe o fornecimento do serviço por inadimplemento. Após o recebimento desta cobrança, além de protocolar novo pedido de reconsideração junto à empresa em 07.03.2003 (por intermédio de nova carta), procurou também o PROCON para ver solucionado o conflito.

            Em sua contestação, a ré assume o erro em que incorreu e se compromete a pagar em dobro a quantia cobrada indevidamente. No entanto, no que se refere aos danos morais, a pretensão inicial não deve prevalecer, pois faltam provas para embasar o pedido do autor. Este "alegou apenas que sofrera ‘alguns constrangimentos’, não precisando o suposto dano moral sofrido". Consta ainda na contestação que o instituto do dano moral está se banalizando e que a vida em sociedade é intrinsecamente passível de vicissitudes, percalços e frustrações. Termina por incluir a demanda do autor no rol de "sensibilidades afloradas ou susceptibilidades exageradas".

            O fato de ter escrito uma carta para a empresa é revelador de uma tentativa sincera de ver resolvido o conflito de uma forma altamente simbólica para o autor da ação. A forma de contato escolhida: uma carta (e não um e-mail ou um formulário de reclamação já pronto), possuía algo de pessoal e de tradicional. Essa circunstância era claramente racionalizada na sua fala. Ele tem razão nessa ênfase. Tanto é assim que vários poetas se referem a esta forma de comunicação de uma forma especial. Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, ao reclamar da vida em uma cidade grande [02] reclama: "Nenhuma carta escrita nem recebida". Mudando o contexto, agora falando do correio de amigos [03], afirma o mesmo poeta: "As cartas vão chegando, e uma festiva sensação de amizade mais se apura."

            Ou seja, a correspondência pressupõe e estabelece uma relação. Para Venâncio (2001): "A prática epistolar de um indivíduo só existe em função de um outro, para que se enuncia uma fala e de quem se aguarda uma resposta." Não se trata, portanto, de uma prática isolada de um só indivíduo. Na verdade, ela pressupõe uma relação. Apoiado ainda em Venâncio: "É portanto uma via de mão dupla, um ir e vir entre uma intenção anunciada, uma espera ansiosa e uma resposta que tem por função principal o restabelecimento do início do processo." Vejamos então as implicações sociológicas dessa experiência.


II – Análise sociológica dos fatos

            No diagnóstico Habermasiano de mundo moderno, temos dois tipos de modernização, a societária e a cultural. Quando o guia da ação é a escolha racional e a razão instrumental, estamos falando da modernização societária. No que Habermas chama de "modernização cultural" (apud SOUZA, 1997), que expressa o que ele mesmo chama de mundo da vida, ocorre o predomínio da razão comunicativa. Em sua teoria da ação comunicativa, pensa a solidariedade social a partir de um interesse comum e racionalidade obtida. Enquanto essa razão comunicativa se estrutura no mundo da vida (relações espontâneas, pré-reflexivas, típicas das relações sociais quotidianas), a razão instrumental se estrutura no universo sistêmico (pela esfera da economia – mercado – e do Estado – poder administrativo). A teoria da ação comunicativa procura justamente integrar o universo sistêmico ao mundo da vida. O instrumento ideal para fazer essa mediação, traduzindo uma linguagem comum a ambos, é justamente o direito.

            Nesse empreendimento de entender os processos de troca entre sistema e mundo vivido, Habermas nota que os subsistemas da economia e da política passam a regular suas trocas com os outros subsistemas sociais através dos meios "dinheiro" e "poder". Muito embora o próprio Habermas enfatize o ganho em eficiência das novas formas organizatórias, na medida em que elas resolvem melhor os problemas da reprodução material do mundo vivido, a conseqüente monetarização e burocratização da vida impõe-se sob o preço da destruição das formas de vida tradicionais. E é isso que ele chama de "patologias da modernidade". Explicando melhor: a patologia se dá quando a monetarização da força de trabalho e a burocratização dos serviços estatais significam destruição violenta das formas de interação tradicionais, sem a devida compensação, ou seja, sem implicar um aumento da eficiência no atendimento das necessidades da reprodução material.

            O fenômeno da abstração na relação entre o cliente e o Estado é para Habermas, com certeza, o caso modelo de colonização do mundo vivido nas sociedades do capitalismo tardio. Esse caso é efetivado, todavia, apenas quando a destruição das formas de vida tradicionais não pode ser compensada por uma solução mais efetiva das funções societárias globais. (SOUZA, 1997, p. 109).

            A situação analisada enquadra-se exatamente nesse cenário. A prestadora de serviço, ignorando o poder comunicativo das missivas enviadas pelo autor, não só burocratizou a questão (destruindo uma "forma de vida tradicional"), mas foi além, incorrendo inclusive em erro. Somente foi analisado seu caso, quando esse, recorrendo habermasianamente à linguagem comum a ambos, qual seja, o direito, procurou o PROCON e a prestação jurisdicional.

            Durante a Audiência, o autor acrescentou que assim que recebeu a conta cobrando indevidamente os valores, entrou em contato telefônico com a ré para que resolvesse o problema. Alegou que sua única "exigência" foi que os valores fossem ressarcidos com os mesmos encargos que a empresa cobra dos clientes em caso de mora. Disse ainda que, além das duas cartas que constavam nos autos, houve ainda uma terceira, das quais nunca teve resposta.

            Ao desconsiderar a reclamação do autor realizada por meio das três cartas e alguns telefonemas, inclusive cortando o fornecimento do serviço por um mês sem, voluntariamente atender ou ao menos apurar a situação, a conduta da empresa ré, além de violar um explícito dever de diligência, extrapolou os limites do razoável. É essa segunda idéia que interessa mais de perto nesse empreendimento, porque a situação resultou uma desconsideração à pessoa do autor enquanto um cliente e também atingindo sua cidadania. É sobre isso que nos debruçaremos com mais vagar.


III – Charles Taylor: reconhecimento e dignidade

            Para o filósofo canadense Charles Taylor, a passagem do antigo regime para a modernidade no plano do surgimento da noção de identidade individualizada e o declínio das sociedades hierarquizadas está ligada aos novos ideais tanto de autenticidade (identidade autêntica) como de dignidade (em contraposição ao conceito de honra – que só alguns possuíam).

            Para Taylor, a preocupação com os conceitos de identidade e reconhecimento é inevitável. Duas são as mudanças que, juntas, proporcionaram o surgimento (ou a problematização) do conceito.

            A primeira é o colapso de hierarquização social, que era usada como base para a honra. Taylor usa esse conceito de honra no sentido dado pelo ancien régime, ou seja, intrinsecamente ligado a desigualdades. Existem ainda resquícios dessa noção. Por exemplo, condecorações dadas em eventos públicos normalmente repletos de autoridades. Claro que essa "honra" perderia totalmente seu sentido se todas as pessoas o recebessem. Tal condecoração somente possui valor, pois nem todos possuem o status necessário para recebê-la.

            Em contraposição a esse conceito de honra, Taylor propõe uma noção moderna de dignidade. Ele a usa como um sentido universal e igualitário, como, por exemplo, da dignidade da pessoa humana ou de dignidade cidadã (citizen dignity), ou seja, a designação da possibilidade de uma eficaz igualdade nos direitos individuais que são potencialmente universalizáveis.

            A segunda mudança ocorre no fim do século XVIII com o surgimento da noção de identidade individualizada ("individualized identity"). Tanto no plano individual como no coletivo, Taylor fala de uma identidade autêntica. Esses novos ideais, tanto de autenticidade como de dignidade estão ligados ao declínio das sociedades hierarquizadas. Nessas sociedades, a identidade estava ligada à posição social ocupada pelo indivíduo. Ou seja, o cenário que permitia que a pessoa pudesse se auto-reconhecer como importante era, em grande medida, determinado pelo lugar que ocupa na sociedade e pelo papel ligado a essa posição.

            Já no caso da dignidade, essa idéia está intimamente ligada aos ideais de igualdade de todos os cidadãos, que somente acontece em democracias modernas. O reconhecimento entre iguais implica a dignidade, para Charles Taylor. Ou seja, existe um sentido universal e igualitário, como, por exemplo, da dignidade da pessoa humana ou de dignidade cidadã, ou seja, a designação da possibilidade de uma eficaz igualdade nos direitos individuais que são potencialmente universalizáveis.

            Em função da natureza dessa mudança (da "honra" à "dignidade"), ela não se dá sem uma mudança na forma de percepção da moralidade. A minha própria identidade não é construída isoladamente ou individualmente. Ela depende de uma relação dialógica com outras pessoas. (TAYLOR, 1997, p. 48). É por isso que o desenvolvimento do ideal de identidade fornece uma importância crucial ao reconhecimento. A novidade da "era da autenticidade", segundo Taylor, não é o surgimento dessa dependência do outro. Uma forma de dependência sempre existiu. A questão é que esse reconhecimento social nunca foi problematizado. Esse diálogo com outros passa a ser passível de falha e deixa de ser apriorístico como era na pré-modernidade.

            A compreensão de que no plano social nossa identidade é formada em um diálogo aberto, ou seja, não é pré-determinada em um script social faz com que a categoria reconhecimento seja não só imprescindível em sociedades que possuem democracias saudáveis, mas quando não ele não está presente, a projeção de uma imagem desfavorável, pode, na verdade, distorcer e oprimir o indivíduo que interioriza essa representação. Por isso, a "luta" que um indivíduo trava ao requer o reconhecimento entre iguais, se livrando de uma visão oprimida, aprisionada e reduzida de si, está intimamente ligada ao reconhecimento de sua dignidade.

            Ressalte-se, no entanto, que a análise de Taylor está bastante distante da realidade do Distrito Federal. Ele está preocupado, na verdade, com questões de multiculturalismo. Esse conceito de autenticidade, que é um reconhecimento da diferença, é analisado, sobretudo, na questão dos "Quebecois" dentro do Canadá. [04]

            Ocorre que a concepção de dignidade vista como um conceito dialógico, ou seja, fundamentado no recíproco reconhecimento (diferente do monólogo) passando a exercer papel constitutivo de nossas relações sociais, é de extrema importância no nosso empreendimento. Vejamos.

            Muito ligado a essa concepção, Cardoso de Oliveira toma por base esses conceitos para escrever seu livro "Direito Legal e Insulto Moral" (2002). Segundo ele:

            A desconsideração, como insulto moral, é caracterizada como um ato ou atitude que agride direitos de natureza ético-moral (...) Diferentemente das agressões a direitos jurídico-legais, o insulto não pode ser traduzido, de imediato, em evidências materiais. Embora se trate de uma agressão à pessoa do ator efetivamente ofendido, e não se confunda com a perda eventualmente sofrida com a quebra de um contrato ou em decorrência de um ilícito civil, também se distingue de uma agressão física de caráter criminal, que sempre deixa marcas palpáveis, facilmente identificáveis e percebidas como tais por terceiro. Na mesma direção, quando o insulto ou desconsideração é produto da falta de reconhecimento de uma identidade autêntica (...) a agressão também pode se situar mais na atitude ou na intenção do agressor do que nas suas ações em sentido estrito. (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2002, p. 09).

            O insulto moral seria, em outros termos, a insatisfação, vista pela própria pessoa, com a qualidade do vínculo. É a falta de reconhecimento de Taylor. A negação de identidade e, por essa via, a negação de direitos.

            Outro autor que utiliza Charles Taylor em seu argumento (SOUZA, 2000), ao tematizar os limites de uma interpretação da sociedade vista como um contrato social hobbesiano, afirma que esse contrato não encerra a luta de todos contra todos. Esse contrato deve ser pensado como uma realização reflexiva de direitos. Com essa mudança de perspectiva, propõe, que o que está em jogo não é a preservação física, mas a luta pelo reconhecimento. Dessa forma uma ameaça a um bem de terceiro não obtém como resposta, por parte do ofendido, um sentimento de medo, mas um sentimento da injustiça sofrida e "pelo fato de ter sido ignorado e não reconhecido pelo outro". (p. 98 – grifos no original). Nesse sentido é que os conceitos de reconhecimento e de dignidade são também importantes para o indivíduo moderno.

            Para ilustrar esse conceito, poderíamos nos valer de várias situações ocorridas no Juizado em que trabalhamos: exemplos no balcão, nas audiências, nas petições ou mesmo em bilhetes escritos pelas partes em conflito. No entanto, citaremos um trecho da belíssima peça "O Mercador de Veneza", de Willian Shakespeare [05]:

            Para isca de peixe. Se não servir para alimentar coisa alguma, servirá para alimentar vingança. Ele me humilhou, impediu-me de ganhar meio milhão, riu de meus prejuízos, zombou de meus lucros, escarneceu de minha nação, atravessou-se-me nos negócios, fez que meus amigos se arrefecessem, encorajou meus inimigos. E tudo, por quê? Por eu ser judeu. Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos? Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não morreremos? E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos? Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito. Se um judeu ofende a um cristão, qual é a humildade deste? Vingança. Se um cristão ofender a um judeu, qual deve ser a paciência deste, de acordo com o exemplo cristão? Ora, vingança. Hei de por em prática a maldade que me ensinaste, sendo de censurar se eu não fizer melhor do que a encomenda. (Ato III, Cena I).

            Ou seja, muito embora se tratar de um conflito que se insere em questões religiosas (o que torna sua análise muito mais complexa), contentar-nos-emos com a citação de um dano juridicamente relevante ("impediu-me de ganhar meio milhão") que não subsiste sozinho. Todo o resto da citação revela uma revolta do judeu em função de um Cristão não o ter reconhecido como uma pessoa merecedora de consideração.

            Essas questões somente puderam aparecer, pois, por trabalharmos em um Juizado Especial, observamos o caso na perspectiva da própria parte. Essa percepção, de alguma forma, restaria inviabilizada em qualquer outro lugar do Poder Judiciário [06], eis que a questão apresentada já é filtrada por um operador do mundo do direito, qual seja, o advogado que postula em nome da parte em Juízo.

            Esperamos ter demonstrado sociologicamente a importância das questões levantadas aqui. No entanto, como o título do trabalho sugere, qual a relação dessas questões com o direito? É sobre esse tema que tentaremos avançar na próxima seção.


IV – "Indivíduo" e "Pessoa" para o direito

            Vigora no direito uma visão de que os "percalços, frustrações e vicissitudes próprias da vida em sociedade não geram o dever de indenizar". Não é à toa que esse trecho citado é usado como tese de defesa por todos os réus de processos de dano moral. A contextualização sociológica dessa visão nos remete a Max Weber, para quem o direito moderno logrou chegar a um grau de calculabilidade de resultados nunca antes vistos, sob o ponto de vista histórico, ou seja, em detrimento de formas não-racionais anteriores. A virtude especial louvada na natureza específica da burocracia é sua desumanização, na medida em que eliminam das negociações oficiais o amor, o ódio (trata-se do princípio do sina ira ac studio) e elementos pessoais que fogem ao cálculo.

            Dois autores clássicos [07] na teoria das obrigações endossam esse entendimento. O Primeiro deles é Washington de Barros Monteiro:

            Como ensina Enneccerus-Kipp-Wolff, o Estado não se ocupa da satisfação de simples caprichos, nem tem a missão de realizar atos puramente religiosos e morais, que se subtraem à órbita do direito. Existem, sem dúvida, prestações cujo substractum é meramente afetivo ou moral. Mas, reconhecida judicialmente sua exigibilidade, adquirem para logo expressão econômica, valor patrimonial. O dano moral só era ressarcível quando produzia reflexos de ordem patrimonial. Fora desse caso, dizia Lafayette, haveria mera extravagância do espírito humano. (MONTEIRO, 1999, p. 10-11).

            Nesse mesmo diapasão, Caio Mário da Silva Pereira:

            ...não justifica a mobilização do aparelhamento jurídico por uma insignificância, como seria o fato de alguém ajustar com outrem cumprimentá-lo como um aceno de mão, ao passar à sua porta. Embora haja nisto uma ação humana, é vazia de um mínimo de conteúdo a que o direito seja sensível; falta-lhe então seriedade. (Pereira, 1997, 18).

            Existem expressões, contudo, de dentro do campo do direito que visam exatamente o sentido oposto da tecnicização da "pessoa" no mundo jurídico. O que interessa não é o questionamento em si (o que é minoria), mas o diagnóstico lúcido da situação da categoria "pessoa" para o direito. A nova concepção dessa problemática é dada, por exemplo, por Judith Martins-Costa (2001), que, por ser bastante esclarecedora e se trata de uma voz de dentro do campo do direito, vale ser citada um tanto longamente:

            Submergida a idéia de "pessoa" na de "indivíduo" (ao senso "egoísta" do termo) e não-visualizada a de "personalidade" pela preeminência do conceito técnico de "capacidade", traçaram-se as tramas semânticas que acabaram por fundir o "ser pessoa" com o "ser capaz de adquirir direitos e contrair obrigações". Em outras palavras, instrumentalizou-se a personalidade humana, reproduziu-se, na sua conceituação, a lógica do mercado, o que conduziu à desvalorização existencial da idéia jurídica de pessoa, para torná-la mero instrumento da técnica do Direito, ponto que foi percebido com especial nitidez pela civilista Argentina Ainda Kemelmajer de Carlucci, segundo a qual, sob a ótica codificatória oitocentista, o dano (el mal hecho) à pessoa se justificava "em la supuesta existencia de um verdadero derecho del sujeto sobre el próprio cuerpo, concebido a imagem y semejanza Del derecho de Propriedad". A frase "eu sou dono de meu corpo" expressa lapidarmente esta lógica. O corpo humano, reificado, é visto como objeto de um direito de propriedade, integrante de um patrimônio individual, e, como os demais bens patrimoniais, pode ser objeto de mercancia (MARTINS-COSTA, 2001, p. 23-24).

            No prosseguimento do artigo, afirma que a previsibilidade dos danos à pessoa como espécie de danos extrapatrimoniais, quando incluída nas cláusulas gerais das Constituições do século XX permitiu o desenvolvimento jurisprudencial de novas hipóteses. Dessa forma, poder-se-ia elaborar um novo direito geral de personalidade que não está no rol elencado nos tradicionais atributos Constitucionais, como a honra, o nome, a imagem, a intimidade e a vida privada [08]. Ela defende a possibilidade da expansão desses direitos (p. 26), mas reconhece que "a jurisprudência brasileira foi extremamente tímida, não desenvolvendo todos os casos de reparação" (p. 30). A tradição exegética da maioria da jurisprudência entende que a previsão deve ser expressa. Portanto, a possibilidade de se acolher o dano não patrimonial restringe-se aos poucos casos previstos no Código Civil. Citando a autora:

            Mesmo após a Constituição, porém, poucos são os acórdãos que buscam no princípio da dignidade da pessoa humana a fonte para a criação de novos casos ou para operar a ponderação de valores quando conflitantes os princípios e as garantias constitucionais, ante os constantes atentados verificados na ordem prática, ao livre desenvolvimento da personalidade e à dignidade humana. (MARTINS-COSTA, 2001, p. 31).

            No caso das cartas enviadas, lembramo-nos muito bem que o autor da ação acima analisada se sentia extremamente ressentido por ter sido desconsiderado. Cécile Dauphin (apud Venâncio, 2001, p. 28) considera o termo "correspondência" como um texto produzido e trocado entre duas pessoas que se (co)respondem. A prática epistolar acima descrita toma novas cores quando tomamos conhecimento da formação da identidade de uma forma intersubjetiva, tal como sugere Taylor. Ao frustrar de toda a ansiedade (e, nesse caso, extrapolando todos os limites do razoável) que foi depositada pelo autor da ação, ao iniciar o processo de comunicação por carta, a empresa ré não correspondeu à sua expectativa.

            Ora, se considerarmos as lições da professora Judith Martins-Costa no sentido de que o princípio da dignidade humana não deve ser restrito e o pensamento de Charles Taylor (a transformação do conceito de honra em dignidade), nada impede que, junto com o dano propriamente dito (o fato de ter sua linha telefônica cortada sem justa causa), o direito leve em consideração esse sentimento de injustiça sofrida pela parte. O reconhecimento da dignidade, nesse contexto, está longe de ser considerado como uma frustração normal da vida em sociedade, eis que o que está em jogo, nesse caso, é a própria construção dialógica de um indivíduo sujeito de direitos.


V – Considerações finais

            Enfim, não estamos requerendo que a cada desconsideração que sofremos no nosso dia-a-dia o direito nos socorra por meio de uma previsão legal. No entanto, para operacionalizar as questões levantadas aqui, gostaríamos de defender que os casos que chegam aos operadores do mundo do direito deveriam ser analisados na sua completude, ou seja, o que a parte traz? O que é realmente importante em toda a questão? Qual a origem do problema? Em que circunstância se deu a experiência mal-sucedida? Que tipo de relacionamento havia entre as partes na eclosão do conflito? Perguntas como essas são inevitáveis pelas partes presentes numa audiência judicial em qualquer vara. No entanto, a singularidade da faculdade de assistência de um advogado faz com que essas questões "embutidas" [09] na causa sejam mais evidentes em um Juizado Especial (seja na tentativa conciliatória, seja a audiência de Instrução e Julgamento).

            Certamente, o curso de direito não nos prepara a enxergar todo o conflito (é certo também que o direito não possui essa pretensão), mas a experiência de um Juizado Especial não nos deixa incólumes a essas questões. Sob pena de responder aos jurisdicionados com um déficit de sentido, ou seja, o que é apresentado ao Judiciário não corresponde à resposta que dele se obtém.

            Como foi visto acima (II) em Habermas, a história levou o direito burocrático-racional (Max Weber), em seu processo civilizatório moderno, a se abstrair de questões pessoais. Essa idéia, contextualizada com a passagem da honra à dignidade de Charles Taylor, nos descortina uma visão do direito atual de uma forma muito mais clara. Estamos repletos de exemplos nos quais a utilização do espaço público para fins pessoais gera toda espécie de iniqüidade possível. O simples fato de "furar uma fila" alegando que não tem tempo, está-se dizendo que o seu problema pessoal é maior que o de todas as pessoas que estão ali esperando (e podem também ter outras prioridades pessoais). A corrupção nada mais é do que a imersão da vida privada no espaço público. O que há de comum nesses dois exemplos de iniqüidade é que a pessoa (com uma história de vida e, sobretudo, com relações pessoais importantes) surge em uma circunstância em que deveria estar o indivíduo impessoal e abstrato (esse que é visado pelo direito racional) que ocupa a esfera pública da vida em sociedade.

            Ocorre que o filtro do direito, que delimita o que é juridicamente relevante, em várias situações, não reconhece uma importante esfera simbólica da relação social. Em outros termos, o que compreende o conceito de reconhecimento não corresponde às delimitações legais. Não é à toa que um dos instrumentos de trabalho mais usados dentro do campo do direito é a "redução a termo". O que defendemos é que levar essas questões pessoais trazidas pelas partes para ser apreciadas pelo Poder Judiciário não significa um déficit de modernidade [10] para a ocasião.

            De alguma forma, a humanização do direito requer a análise não de uma pessoa no sentido técnico, impessoal e quase asséptico, mas de uma pessoa sociologicamente construída e reconhecida como alguém que merece reconhecimento e consideração, no sentido dado por Charles Taylor.


V – Referências Bibliográficas

            ALVES, Juliano Vieira. Juizados Especiais Cíveis do Paranoá: Pessoalidade e Impessoalidade nos interstícios do Estado. Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília – UnB, 2003.

            CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. Direito Legal e insulto moral: dilemas da cidadania no Brasil, Quebec e EUA. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

            DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Amar se aprende amando. Rio de Janeiro/São Paulo, Editora Record, 1987.

            MARTINS-COSTA, Judith. "Os danos à pessoa no direito brasileiro e a natureza da sua reparação" Revista dos Tribunais, vol. 789, ano 90:21-47, 2001.

            MONTEIRO, Washington de Barros. (1999). Curso de Direito Civil: direitos das obrigações. 1ª parte. 30ª ed., São Paulo, Saraiva.

            PEREIRA, Caio Mário da Silva (1997). Instituições de Direito Civil. Vol. II. Teoria Geral das Obrigações. 15ª ed., Rio de Janeiro, Forense.

            SOUZA, Jessé. Patologias da modernidade: Um diálogo entre Habermas e Weber. São Paulo: Annablume, 1997.

            _____. "Charles Taylor e a teoria crítica do reconhecimento" in ______. A modernização seletiva: Uma interpretação do dilema brasileiro. Brasília: Editora da UnB, 2000.

            SHAKESPEARE, William. O Mercador de Veneza. Disponível em . Acesso em 16.06.2002.

            TAYLOR, Charles "The Politics of Recognition". In Amy Gutmann (ed.) Multiculturalism. Princeton, Princeton University Press, 1994.

            ______. The Ethics of Authenticity. Cambridge, Harvard University Press, 1997.

            VENÂNCIO, Giselle Martins. "Presentes de papel: cultura e sociabilidade na correspondência de Oliveira Vianna". Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 28, 2001, p. 23-47.


Notas

            01 Cuida-se de um processo que tramitou na Primeira Vara do Juizado Especial de Competência Geral do Paranoá, no 1º semestre de 2003.

            02 "A flor e a náusea"

            03 "O correio de amigos é doçura"

            04 Como não se tem pretensão de abordar esse tema, remete-se o leitor à obra de Charles Taylor (1994).

            05 Shakespeare não é utilizado aqui á toa. Taylor afirma que a problematização do conceito de reconhecimento a partir do século XVIII, sendo que "O Mercador..." foi escrito no fim do século XVI, o que, definitivamente, não invalida a descoberta de Charles Taylor.

            06 Mesmo em uma Vara de Família, onde questões de ordem moral são levantadas a todo momento no processo, são casos construídos por operadores do direito.

            07 Em uma conversa mui simpática com a doutora Judith Martins-Costa, professora da Faculdade de Direito da UFRGS, quando escrevia a dissertação (Alves, 2003), ela perguntou: "Você se fixou em autores tão medianos e ultrapassados por uma razão especial – para denotar o senso comum dos juristas?". Para justificar sua utilização, digo que são esses os autores que me são recomendados por meus professores de direito. Além da faculdade em que estudo (AEUDF) esses autores também são utilizados, no DF, pelo menos nas seguintes Faculdades de Direito: IESB e CEUB.

            08 Trata-se do rol taxativo da Constituição brasileira, que é previsto no artigo 5º, inciso X: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

            09 Termo cunhado por Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2002).

            10 O argumento completo pode ser visto em Alves (2003). Esse conceito foi tomado de Luís Roberto Cardoso de Oliveira e de Roberto Kant de Lima.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Juliano Vieira. Indivíduo e pessoa: reconhecimento, consideração e sua relação com o Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 835, 16 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7422. Acesso em: 26 abr. 2024.