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O direito talmúdico como precursor de direitos humanos

O direito talmúdico como precursor de direitos humanos

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Time present and time past

Are both perhaps present in time future

And time future contained in time past.

T. S. Eliot, Burnt Norton


Sumário: 1. Introdução – 2. A história como sistema – 3. Os direitos humanos integrados à história – 4. O direito hebreu – 5. Possíveis relações entre o direito hebreu e o direito ocidental – Conclusões.

Resumo: O presente trabalho busca, nas fontes da história do direito, elementos que justifiquem o desenvolvimento do jushumanismo no ocidente através de preceitos contidos no antigo direito hebreu (especialmente os do direito talmúdico), que terão chegado aos nossos dias através de um inquestionável tronco cultural judaico-cristão. Para lograr tal fim, o autor destaca que os direitos humanos se inserem no plano histórico – desenvolvidos pelo espírito humano em razão de sua carga de experiências – em vez de serem depreendidos pura e simplesmente do direito natural.

Palavras-chave: direitos humanos – direito hebreu – história do direito – história como sistema – normas éticas.


1. Introdução

A história da humanidade faz-se como a projeção das ondas do mar sobre as areias, alternada, pois, entre os baixios e as cristas que mais tarde se arrebentarão e testemunharão a indesmentível sina que persegue o homem, que é esta de ter de refazer-se, sempre – para alguns, gerando o tedium vitae, para outros, talvez constituídos de melhor material moral, uma autêntica missão. O elemento que nas ondulações se inscreve é o mesmo: a espécie humana e todas as contradições que integram seu conceito. Seja visto do ponto de vista antropológico-existencial; sócio-cultural; filosófico; político ou, simplesmente, encarado como elemento constante que escreve a história, o homem encarna (e constrói) uma série de condições que o põe à prova a cada intersecção de seu curso, às vezes determinando a negação de valores supremos que ele mesmo engendra à guisa de bem-viver em sociedade. E já não lhe parecerá tão estranho recorrer à guerra e à crueldade, que enformarão o cadinho onde se misturam as esperanças de harmonia e paz sociais. Si vis pacem, para bellum, costuma-se dizer. E nenhuma paz se logra sem um bocado de confrontos, como se eles significassem a exasperação de um conjunto de circunstâncias do homem: a paz, que sobrenada as cristas das ondas, tende, inevitavelmente, para a arrebentação. Mesmo que consideremos as culturas seculares da velha Europa, sedimentadas no apreço da democracia, das liberdades e do respeito à diferença, lá, também, e, com maior razão, encontraremos a intolerância que colocará em causa o conjunto de valores ferreamente construído pela tradição ao longo de muitos anos. E diremos que a percepção deste estado de coisas é muito mais clara na Europa, justamente pelo fato de o homem europeu ter criado técnicas de controle do poder político, para refrear as tendências deletérias para a noção de bem-viver. Mas qual nossa surpresa quando constatamos que lá brotaram políticas segregacionistas, as grandes guerras mundiais, e a intolerância dos dias atuais, embora... embora o europeu persista em falar de direitos humanos.

O conjunto de normas que se enfeixa na idéia de direitos humanos e que bem podem radicar-se na axiologia, é a demonstração mais autêntica deste traço antropológico comumente referido como o princípio ou mecanismo de auto-preservação do homem. E por mais que a experiência histórica da vida humana conheça as guerras, holocaustos, chacinas em favelas ou as brutalidades de uma faxina étnica, sempre recorreremos a alguns princípios de hominidade que resgatam aquele mecanismo, a indicar que se existe uma missão inscrita na psicologia do homem é ela a da procura do aperfeiçoamento pessoal e social.

Pois bem, poderíamos dizer que os mecanismos de auto-preservação do homem são ativados pelas normas éticas que são identificadas como integrantes dos direitos humanos e, por serem de todos os homens e de cada um dos indivíduos, não terão sido de privilégio deste ou daquele povo. Encontraremos ao longo da história do direito, expressões variadas de sua existência, mesmo no direito germânico que admitia o Blutrache, a vingança de sangue, que se justificava para a preservação de um clã. Ou na consciência popular da antiga civilização grega quando, mesmo visando à libertação do povo de uma tirania, votava o ostracismo do governante que se exilava por período limitado de até dez anos, mas tinha o direito de retornar à cidade-estado findada a sanção [01]. Ou no direito visigótico da alta Idade Média que autorizava ao juiz a concessão do perdão. E, ainda, encontraremos variadas manifestações político-jurídicas tendentes à garantia da liberdade, antes, muito antes do habeas corpus dos ingleses, na Roma antiga em que se recorria ao interdito de homine libero exhibendo e depois deles na Península Ibérica, com a carta de seguro dos portugueses e a manifestación de personas dos espanhóis [02]. Nestes e em muitos outros institutos jurídicos comuns aos povos, teremos referenciais normativos convergentes, mas que padecerão, tout court, de uma demonstração etiológica. Por outras palavras, dificilmente conseguiremos explicar, v.g., a trajetória de uma garantia político-jurídica da liberdade, como o habeas corpus e será muito precipitada a afirmação de que tal e tal sistema jurídico o implantou por influência de um tronco comum de direitos. Isto quase nos conduz a confirmar a teoria do imperativo categórico kantiano, que leva a cismar sobre a existência de um conjunto de normas éticas de valor universal. Existirá realmente a consciência ética universal?

Não nos propomos a adentrar a questão, embora seja ela instigante. Mas pretendemos demonstrar que os direitos humanos referidos no mundo ocidental democrático descendem diretamente de um tronco único de direitos que se desenvolveu a partir da Torah – fonte do antigo direito hebreu – e, posteriormente, com o cristianismo e com a exegese talmudista, ramificou-se até chegar aos nossos dias.


2. A história como sistema

A grande dificuldade enfrentada pelo investigador que se arroja pela história do direito é a de demonstrar que "O tempo presente e o tempo passado/Estão ambos talvez presentes no tempo futuro/E o tempo futuro contido no tempo passado", como sustentou T. S. Eliot, a figura de polimórfico humanista que era filósofo e poeta (dos bons!). Será mesmo possível estabelecer um elo entre as expressões de direitos humanos que havia entre os antigos e as atuais, dos ocidentais, com o propósito de justificar tudo o que se tem defendido não apenas no campo filosófico, mas, também, na normatização positiva que se lhe pretende e no que virá no porvir da política jurídica? O problema ganha foros de aceso debate e de opiniões controvertidas quando o radicamos na apreciação do princípio da dignidade da pessoa humana, que é o vetor filosófico para a estruturação de um sistema de direitos humanos. Muito antes de sua positivação no art. 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, houve expressões que significavam já a preocupação com a dignidade da pessoa humana. É célebre o trecho da tragédia Antígona, de Sófocles, em que a protagonista contesta o decreto do Rei Creonte proibindo o sepultamento de Polinice, alegando, justamente, que "[...] a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas [...]" [03], e desta forma conduzindo-nos facilmente à idéia primeira de direito natural e, subliminarmente, quando refere sobre respeito aos mortos, a idéia de dignidade da pessoa humana; no início do cristianismo, São Paulo, quando escreve aos Gálatas, refere que "[...] não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea [...] (3, 28) indicando que todos são iguais, além de, em outra passagem, proclamar a liberdade do homem, cuja natureza é inviolável, mas dirigida a servir ao próximo, respeitando-o e sendo fraternal (Gálatas, 5, 13-14). No entanto, dificilmente poderemos dizer que os hebreus tenham aprendido com os gregos ou vice-versa. E o problema adensa-se mais quando uma corrente de pensadores proclama a existência de uma natureza humana – que estabelece traços comuns para todos os seres humanos – que, a rigor, independeria do acúmulo de experiências histórico-culturais para a formação do amálgama de referenciais dos direitos humanos. E voltamos, neste ponto à questão problemática: haverá mesmo uma natureza humana da qual decorrem referenciais éticos – verdadeiros imperativos categóricos – aptos a constituir uma legislação universal, ou, as identificações político-jurídicas constatadas entre povos e culturas distintas serão apenas reflexos psicológicos do acúmulo da carga cultural adquirida ao longo da história?

Antes de mais, convém termos bem assente nesta linha de considerações a dificuldade de categorizar o próprio ser humano, pois a tarefa poderá incorrer em mero reducionismo esquemático, que deixa de lado a intrincada rede de aspectos psicossociológicos que integram sua substância. Assim, já não será admissível ver no homem um "espírito encarnado", como pretende Jorge Adame Goddard [04], nem um mero produto do ambiente, como queria a sociologia positivista, ambas posições errando pelo exacerbado determinismo. Por outro lado, a antropologia existencialista do jusfilósofo Baptista Machado [05], que se radica na idéia da inespecificidade instintiva do homem, que o estabelece como ser incompleto, por isso mesmo aberto aos seus semelhantes e solidário, tudo visando a auto-preservação, já não será contraditória se considerarmos estes fatores como a própria natureza do homem? Bem sabemos que o homem é mais que isto, embora as dificuldades filosóficas e científicas remetam-nos para a sua relativização, ou, pura e simplesmente, para mitificação sobre a origem sobrenatural. Se, de fato, o homem é mais que um "espírito encarnado" e nele convivem aspectos somáticos e psicossociais adquiridos, resta-nos ainda a dificuldade de sabermos se existe uma natureza humana, como algo que nos é predeterminado ou se somos apenas produtos da experiência sócio-cultural acumulada.

Uma olhadela no conceito de direito natural de Ulpiano, inserido no Digesto, dá-nos já uma pista para o desbaratamento do problema:

Ius naturale est, quod natura omnia animalia docuit: nam ius istud non humani proprium, sed omnium animalium, quae in terra, quae in mari nascuntur, avium quoque commune est. Hinc descendit maris atque feminae coniunctio, quam nos matrimonium appellamus, hinc liberorum procreatio, hinc educatio [...] (D. 1.1.1. 3).

O direito natural é, portanto, tudo aquilo que o ser humano depreende da natureza, dela decorrendo o ensinamento de que homens e mulheres devem se casar, procriar e educar seus filhos. E com esta lição dos romanos, voltamos ao ponto fundamental de que a existência humana se justifica numa missão, que é a de preservação da espécie (e disto ninguém duvidará). É como disse Ortega y Gasset: "A nota mais trivial, porém ao mesmo tempo a mais importante da vida, é que o homem não tem outro remédio senão fazer alguma coisa para manter-se na existência" [06]. Já é muito, parece-nos. E quanto ao mais – o substrato que dá estofo ao homem – já será difícil demonstrar que seja elaborado a partir da mesma matéria.

Pois bem, uma outra linha de raciocínio, que pode arrancar da mesma máxima de Ulpiano, considerará que o homem adquire o conhecimento ao longo de sua trajetória. Não terá sido isto que o jurisconsulto romano quis dizer ao referir que a natureza ensina ao homem? Então, este ser, que é inegavelmente falho, incompleto, como reconhece a antropologia existencialista e antes dela Ulpiano, tende ao aperfeiçoamento de si, ou, como em outro lugar dissemos, busca a auto-compreensão enfrentando ao longo de sua trajetória existencial tragédias renováveis [07], tudo em nome da preservação da espécie (abramos aqui um parêntese para nos anteciparmos ao leitor que pode cogitar tenhamos caído numa armadilha. A busca de aperfeiçoamento induz-nos a aceitar uma certa aptidão para o efeito, não negamos. Aptidão de todos os homens? Ou, por outras palavras, é da natureza do homem a busca incessante de aperfeiçoamento ou auto-compreensão? Ou, por outro lado, terão sido as circunstâncias que compeliram o homem para a busca de si mesmo – a auto-compreensão e o aperfeiçoamento? Tentemos, logo adiante, responder às questões subjacentes em relação ao problema principal).

Esta vertente de pensamento rivaliza, logicamente, com todos os postulados reducionistas, que tendem para a absolutização de dogmas acerca da substância axiológica do homem – que, se perspectivada através da ótica jusnaturalista, seria formada por aquele conjunto de normas integrantes da própria natureza humana, depreendidas da Lei Natural através do uso da razão. Basta para confirmar isto um exame sobre alguns fenômenos sócio-culturais, que põem em xeque a consideração em termos absolutos de certos bens jurídicos que se aderem estreitamente ao campo ético(-social). A vida, v.g. Se é ela uma valor ético-social supremo, por que algumas comunidades de esquimós abandonam seus idosos para que morram? Ou, por outro lado, se a vida deve ser gozada em sua plenitude, com dignidade, o que impedirá a execução da eutanásia em relação a quem esteja em estado vegetativo, para além das restrições impostas pela moral religiosa? E o que diremos da antropofagia, como a relatada por Fuller, no caso dos homens que sacrificaram a vida de um companheiro para salvar a sua? Se, de fato, é ela um valor absoluto, será lídima a subtração de uma vida requerida por meio da sorte, com o lanço de dados, para o salvamento das demais? [08] Tais problemas permitem compartimentar as normas éticas segundo culturas e situações especiais? Além destas, muitas outras hipóteses poderíamos formular à maneira de dificultar a aceitação de imperativos categóricos – ditados pela autonomia moral do homem, que mesmo Kant preferiu não exemplificar por reconhecer as dificuldades de sua teoria [09]. No entanto, partamos para a explicação do que já no tópico acima nos propusemos, embora a metodização das idéias neste campo em que ingressamos seja complicada e tenha requerido as incursões que fizemos.

Quando o homem tornou sua vida mais complexa, passando do estado de nômade para o de ser gregário e sedentário, organizando-se em comunidades, surgiu aquilo que Nietzsche denominou de má consciência [10], adquirida através de todas as pressões exercidas contra a liberdade primitiva, tudo com o intuito de erradicar o egoísmo, ou, como diremos nós, para colmatar as brechas que ficam na ponte que erguemos entre a filosofia nietzscheana e a cosmovisão, para criar condições de vida harmoniosa e minimamente pacífica. O homem, este zoón politikón, que inevitavelmente tem de relacionar-se com seus pares na pólis – vivendo e necessitando da pólis – adquiriu nesse seu estágio de vida gregária maiores responsabilidades que implicam graus variados de coesão e de solidariedade, segundo a configuração evolutiva da comunidade. Assim, as comunidades primitivas praticamente aniquilavam o senso de individualidade, uma vez que seus integrantes formavam um organismo quase indissolúvel, capaz de resistir às ameaças externas. Não terá sido isto o que imaginou Platão nos seus diálogos sobre a República, uma cidade ideal em que os estamentos sociais eram estruturados de forma a que cada um exercesse proficuamente seu papel comunitário, no mesmo passo em que a classe dos soldados, vivendo um protótipo de comunismo, não tinha razões para sublevação? É bem provável que o discípulo de Sócrates e crítico do modelo social ateniense tenha sido mais perspicaz do que imaginaram seus detratores, incluindo Aristóteles. Pois bem, o senso desenvolvido de solidariedade e de coesão fez incutir nas culturas clássicas, tanto na helênica, como na dos romanos que tiveram um Cícero a seguir as linhas filosóficas dos gregos, preocupado com as virtudes e com a ética política (que devia ser praticada na civitas – note-se: a ética devia ser praticada ao invés de ser representada por artifícios retóricos) e, em outro canto, no oriente médio, entre os hebreus, princípios de Justiça. Que não era apenas o suum cuique tribuere, mas o sentido de temperança da pólis e do próprio indivíduo, que pretendia a felicidade – esta noção que é tão complexa e que não se compraz apenas com os prazeres sensuais. É mais que isto, disse-o Santo Agostinho [11].

Através deste raciocínio, queremos dizer que antes de ser uma vocação predeterminada, a busca de paz e de harmonia sociais e o respeito pelo outro, são princípios que se estabeleceram na consciência do homem-coletivo. E em razão desta especificidade. É o que facilmente se depreende quando em Êxodo (6,XX, שמות) [12] se refere que as Leis são entregues a Moisés por D’us [13] com a promessa de que receberão Sua misericórdia até as duas mil gerações dos que as observarem. As leis, sublinhemos, foram dadas para o povo de Israel, quando já estabelecido em território determinado e sob uma autoridade político-religiosa e que, portanto, pretendia alguns objetivos comuns. São normas de caráter social e religioso, e devem ser cumpridas pelo homem, aqui inegavelmente descrito como um ser-em-sociedade, visando à misericórdia divina, que podemos interpretar sob múltiplos aspectos, inclusive no sentido de que propicia a preservação do povo.

Tudo o que se engendra em termos normativos, inclusive as normas éticas que darão conteúdo aos direitos humanos, portanto, é reflexo não de uma natureza humana, mas da carga histórica de experiências, costumes, que se propagam pela tradição, até que se tornem norma normada de um corpus iuris. Ortega y Gasset, após analisar o cientificismo que decorreu de Descartes e seu método de raciocínio geométrico, opõe-se de maneira veemente, bem ao seu estilo, contra as ciências naturais que pretenderam demonstrar a natureza humana, referindo que "O prodígio que a ciência natural representa como conhecimento de coisas contrasta brutalmente com o fracasso dessa ciência natural ante o propriamente humano. O humano escapa à razão físico-matemática como a água por uma peneira". E sentencia peremptoriamente: "A vida humana [...] não é uma coisa, não tem uma natureza, e, por conseguinte, é necessário decidir-se a pensá-la por categorias, por conceitos radicalmente diferentes dos que nos são esclarecidos pelos fenômenos da matéria" [14]. E para chegar ao seu ponto de vista, o filósofo espanhol descarta as teorias reducionistas, como aquelas que surgem nas Geisteswissenschaften, as ciências do espírito, que englobam as ciências morais e as ciências da cultura. O homem e a idéia que dele decorre imediatamente, a de homem-coletivo, como referimos, não podem ser vistos como apenas realidades espirituais. Mais que isto, o homem é um drama – a vida é um drama, terá dito o atormentado filósofo – de sucessivos acontecimentos, alguns implicando dificuldades, outros facilidades para existir, mas tudo a formar seu arcabouço moral que o arrimará na tarefa de viver – isto que se nos acomete e que não é dado pronto e acabado, mas, pelo contrário, está a se construir constantemente, a ponto de se poder dizer que "A vida é um gerúndio, e não particípio: um faciendum, e não um factum" [15]. Assim, o homem, na sua perspectivação mais lata, que é a de viver como um ser-em-sociedade, inventa projetos de vida segundo as circunstâncias, o homem orteguiano não será mais que produto das circunstâncias e das experiências que vai enfrentando ao longo de sua trajetória. Esta premissa leva Ortega y Gasset a afirmar que o nosso presente nada mais é do que o acúmulo de tudo o mais que passou: "Esse passado é passado não porque passou a outros, mas porque forma parte do nosso presente, do que somos na forma de ter sido; em resumo, porque é nosso passado" [16]. E chegado a este ponto, no qual fica claro que o homem é um produto sócio-cultural, e, para além disto, produto de todas as circunstâncias que determinaram suas idealizações e concretizações, numa palavra, um verdadeiro acúmulo de experiências, Ortega y Gasset refere que "A história é um sistema – sistema das experiências humanas, que formam uma corrente inexorável e única" [17].

Ora, se o homem – e, note o leitor, aqui o consideramos como homem-coletivo, homem-social ou um ser-em-sociedade – é mais do que corpo e espírito (uma coisificação segundo a abordagem estática típica do raciocínio geométrico), mas um autêntico produto do passado que se carrega no presente, englobando as esquematizações idealizadas e as concretizações boas ou ruins em sua trajetória – as experiências do constante faciendum que é a vida –, temos como possível demonstrar que os direitos humanos – aquelas planificações ético-normativas tendo por fim um pouco de paz e de harmonia sociais – também se inscrevem no sistema histórico. Avancemos, pois.


3. Os direitos humanos integrados à história

A compreensão do jushumanismo não pode ser realizada satisfatoriamente através dos postulados metafísicos ou do jusnaturalismo, seja porque estas correntes deixam de considerar o aspecto eminentemente histórico-social em que se circunscreve o tema, seja porque tende a última corrente para o fixismo determinista. Os direitos humanos não são obra divina, mas o resultado de planificações de bem-viver, que se sedimentam nas culturas jurídicas através da tradição ao longo dos séculos. E hoje transmitem-se no mundo globalizado com incrível velocidade, embora travestidos simbólica e, talvez, inconscientemente, de intenções como a que se refere ao "politicamente correto" – isto que se tornou lugar-comum e gera riscos de insatisfação devido ao policiamento ideológico levado a efeito pelos seus defensores.

Os direitos humanos são, assim, o produto do acúmulo de projetos, idealizações e concretizações levados a efeito pelas sociedades ao longo de sua história, em meio a qual se inscrevem certas circunstâncias determinantes. E quem duvidará de que o modelo ético dos antigos hebreus, que formou seu corpus iuris hoje milenar, ainda empregue no Estado de Israel, terá decorrido das adversidades encontradas ao longo das inúmeras sujeições a povos estrangeiros no decorrer de sua história? Da escravidão e da opressão pode ter surgido a necessidade de preservação da identidade judaica e uma violenta crítica – em forma de normas ético-religiosas – contra tudo ao que os judeus viram e entenderam como errado. Concordamos, pois, com a Professora Fariñas Dulce quando refere que o enfrentamento do tema dos direitos humanos prende-se a um conceito de caráter histórico, "[...] marcado especialmente por la conciencia de su propia historicidad y relatividad, lo cual no permite la construcción – al amparo de los derechos humanos – de dogmas absolutos o suprahistóricos, cargados de idealismo [...]" [18]. E prossegue a jusfilósofa da Universidade Carlos III de Espanha:

[...] a parte de las diferentes fundamentaciones [o estudo dos direitos humanos] requiere también una comprensión sociológica, histórica e, incluso, antropológica de los mismos, que contribuya a desmitificar las concepciones metafísicas e iusnaturalistas de los derechos humanos, los cuales – sin cuestionar su significación e importancia histórica en la lucha por la dignidad y por la libertad del ser humano – son, en la actualidad, difícilmente sostenibles desde una perspectiva teórica y, además, no dan una respuesta suficientemente aceptable a las concretas situaciones socio-históricas y socio-culturales planteadas, especialmente, en las últimas décadas y en los diversos contextos sociales. [19]

Da mesma forma, entendemos possível estabelecer uma ponte que liga o antigo direito hebreu, mais tarde sistematizado no que se conhece como direito talmúdico, às planificações de direitos humanos presentes no direito constitucional-processual penal moderno. Suas estruturas são as circunstâncias históricas que formaram o tronco cultural judaico-cristão das sociedades modernas, como adiante tentaremos demonstrar.


4. O direito hebreu

Os judeus da antigüidade formaram seu corpo de normas ético-religiosas ao longo de séculos mas, sem dúvida, só encontraremos os primeiros traços de sistematização normativo-jurídica no período em que estiveram sob o domínio babilônico. Pode aventar-se uma série de circunstâncias que conduziram os judeus para a elaboração de um direito relativamente avançado para sua época e que se notabilizou pela preocupação com a eqüidade, como a referida ao elemento psicológico deste povo a determiná-lo para a crença e, sobretudo, para o estudo, dois fatores que se entrecruzam, mas têm sua raiz numa norma. Afinal, o estudo, refere Falk, "[...] é o mandamento mais importante na vida judaica. Somos sempre estudantes e, quando concluímos o estudo de um certo texto, imediatamente iniciamos outro. Se a pessoa estudou na sua juventude, deverá continuar até a velhice" [20]. Este verdadeiro ספר עם (a’m hasefer, povo do livro), terá tido alguma vantagem cultural na elaboração de seu sistema jurídico em relação ao que se observa na história de outros povos da antigüidade do oriente médio, pois vinha ao longo dos anos refletindo sobre as normas de caráter ético-religioso e ético-social contidas na Torah, através das leituras dos rolos com textos sagrados em ocasiões especiais e a cada Shabat. Surgiam as interpretações dos comentadores, até a formação da Lei Oral que se tornou fonte do direito talmúdico. Entendemos, contudo, que a circunstância que melhor favoreceu o desenvolvimento do direito hebreu, mais especificamente do direito talmúdico [21], terá sido a política adotada pelo rei Ataxerxes, da Pérsia. Com efeito, este monarca, talvez – imaginamos nós – por entender impossível a completa subjugação do povo judeu, determinou que o escriba Esdras nomeasse juízes locais para a administração da Justiça, autorizando o ensino tanto da Lei de Israel, quanto da Lei do Império Persa [22]. Esta decisão político-administrativa, repercutiu no aparecimento da classe dos escribas, que ao longo do séc. IV a.C. teve grande importância para a comunidade judaica.

O ambiente político-social era favorável, pois, à estruturação do direito talmúdico, que é até os dias atuais empregue em Israel especialmente na área do direito de família (normas sobre casamento, divórcio, pensão etc.). Mas o direito hebreu – no qual incluímos não apenas o direito talmúdico, mas suas fontes, que são a Torah (e tenha-se em mente o fato de que alguns judeus aplicavam tão-somente as regras nela contidas, como é o caso dos saduceus), os costumes do povo, a hermenêutica das fontes antigas – atravessa as fronteiras temporais e territoriais, influenciando na elaboração de inúmeras normas que bem podemos categorizar como pertencentes ao ramo dos direitos humanos. Examinemos algumas delas.

א) Entendemos que o processo penal no direito talmúdico abrandou as violências decorrentes da vingança, a partir de quando operou a transição do direito eminentemente privado para o público. A interpretação que os rabinos fizeram de Deuteronômio 13:10 ("Mas certamente o matarás; a tua mão será a primeira contra ele para o matar, e a mão de todo o povo no final" [23]), importou na norma que dispõe sobre a informação dos magistrados acerca da ocorrência de um crime sério, transmitindo a eles a incumbência de processar e julgar o criminoso.

ב) O direito talmúdico não admitia a condenação de um réu baseado unicamente em sua confissão, exigindo o testemunho de duas pessoas. "Que nenhuma decisão seja feita sobre evidência apresentada apenas por uma testemunha", ensinou Maimônides [24]. Tal preceito impede julgamentos divorciados do princípio da eqüidade, além de evitar os riscos da tortura no processo penal.

ג) Os juízes deviam ouvir o queixoso e o acusado antes de admitirem a fase de instrução do processo. Em caso algum se permitia que as alegações de uma parte fossem feitas na ausência da outra, de maneira a preservar-se a igualdade de armas durante o processo.

ד) As audiências eram públicas, permitindo-se, inclusive, para os casos em que se punia com pena máxima, o testemunho de qualquer pessoa que pudesse "[...] apresentar um fato ou um argumento a favor do acusado" [25]. A pena máxima constituía espécie de ultima ratio do ordenamento jurídico-penal. Havia, ainda, o convencimento de que testemunhar se tratava de um dever cívico, como se depreende do seguinte preceito: "que aquele que esteja de posse de uma evidência, testemunhe no tribunal" [26].

ה) Nos casos punidos com pena de morte ou com pena de açoite, os cuidados com o julgamento eram maiores. Assim, preceitua-se: "não executar o réu se houver maioria de apenas um para a condenação, mas unicamente se, no mínimo, houver maioria de dois" [27], num tribunal composto por vinte e três juízes. Maimônides extraiu esta regra através da exegese de Êxodo, 23:2, afirmando que "[...] ao sentenciar a pena de morte você não deve fazê-lo por causa de uma maioria casual" [28]. Contudo, a absolvição podia ser obtida pela maioria mais um.

ו) Em Avot 1:6, há já o princípio da presunção de inocência no tratamento a ser dirigido ao acusado quando prescreve: "Ao julgar uma pessoa, incline-se para a suposição de inocência" [29]. E, de maneira muito próxima, encontramos algumas recomendações de Maimônides que se inclinam para o cuidado no julgamento. Assim, recomenda o filósofo talmudista: "sede circunspectos nos vossos julgamentos [...]" [30] e "[...] julga todos com indulgência" [31]. Em outro lugar, reproduz a lição de Hilel: "Não julgues o teu próximo até que te encontres na sua situação" [32].

ז) O direito talmúdico destacava algumas normas relacionadas às testemunhas, de maneira a evitar que elas prejudicassem o julgamento, como depreendemos da proibição de a testemunha sobre caso capital atuar como juiz e a punição do falso testemunho. Além do mais, "que nos casos de pena de morte e chicotadas, aquele que apresentou argumentos para absolvição, não argumente novamente pela condenação." [33]

ח) O processo com escassez de provas não poderia conduzir os juízes a uma sentença condenatória, como se verifica no preceito "não executar alguém sob suspeita" [34].

ט) Encontram-se muitas expressões no antigo direito hebreu do princípio da igualdade, a justificarem o que Belkin, baseado nas lições de Flávio Josefo, o grande historiador e do filósofo Filo de Alexandria (Philo Judaeus), denomina de um regime de governo Teocrático-democrático [35]. Assim, ao interpretar Tossefta San’hedrin 4:2 (do Talmud), onde está determinado que "Se ele [o rei] transgride qualquer das proibições positivas ou negativas, ou quaisquer outros mandamentos, ele é tratado em todas as questões como um hediot (homem comum)", Belkin refere que o rei "[...] não estava isento de observar a lei, mas devia submeter-se a ela como qualquer outro homem e estava sujeito ao mesmo padrão de punição aplicado a todos os homens" [36]. As pessoas levadas a julgamento deviam ser julgadas com imparcialidade, não devendo os juízes demonstrar compaixão em relação a alguém pelo fato de ser pobre, nem prestar reverência no julgamento de um "grande homem". E mesmo que se tratasse de um criminoso habitual, estavam os juízes proibidos de julgá-lo com parcialidade [37]. Ao comentar Êxodo, 23:3, Maimônides refere que "[...] um juiz fica proibido de ter piedade de um homem pobre e distorcer um julgamento em seu favor por piedade. Ele [juiz] deve tratar os ricos e os pobres da mesma forma, e fazer com que se cumpra a pena imposta" [38]. E mesmo que o litígio se estabelecesse entre estrangeiro e israelita, não deveria ocorrer distorção da justiça [39].


5. Possíveis relações entre o direito hebreu e o direito ocidental

As normas do direito hebreu são nossas conhecidas e fazem parte da experiência jurídico-constitucional ocidental, e comumente são relacionadas com os princípios dos direitos humanos. Podem ser identificadas na Magna Charta Libertatum, de 1215, quando ali se exalta o valor da liberdade física; ou na Bill of Rights, editada em 1689, logo após a Revolução Gloriosa, em que o Rei britânico perde os poderes absolutos e submete-se à lei, além de proclamar-se, por esta declaração de direitos, a vedação da execução de penas cruéis; ou na Declaration of Rights, da Virginia, de 1776, em que se reconheciam o princípio da igualdade e os direitos à vida, à liberdade e à propriedade. É, também, nesta Constituição que os norte-americanos instituem o due process f law, o contraditório e o direito à ampla defesa. Na Déclaration de Droits de l’Homme et du Citoyen, de 1789, proclamada na onda da vitória da Revolução Francesa que depôs o Ancien Régime, também encontramos os princípios da igualdade e da universalidade e o reconhecimento dos direitos às liberdades. De França esse ideário passa para a Península Ibérica e, mais tarde, para o restante da Europa continental e boa parte do mundo ocidental. Tudo convergindo para a idéia do jushumanismo, que é integral e universalista. O fenômeno pode ser facilmente explicado quando tratamos de sua dispersão pelo ocidente. França respirava os ares do iluminismo e os enciclopedistas propunham liberdades, inclusive a religiosa; o ambiente sócio-político era de grande tensão e abrigou o ideário de um Locke e de um Rousseau, que conheciam a experiência política inglesa. Os colonos ingleses, por sua vez, exigiam que no continente americano fossem adotados os mesmos direitos da metrópole, desenvolvendo um sistema bem estruturado de direitos de índole constitucional-processual. Mas ainda resta a questão problemática: terá o antigo direito hebreu exercido alguma influência sobre estes povos?

A demonstração de que o direito hebreu influenciou direta ou indiretamente na elaboração dos princípios do jushumanismo moderno é tão complicada quanto a sustentação da tese de Maritain, segundo a qual o reconhecimento por católicos e não católicos, cristãos e não-cristãos dos valores humanos inscritos no Evangelho propiciará a consciência da dignidade humana e dos direitos da pessoa, de modo a conduzir-nos para a promoção do bem comum (que "é a boa vida humana da multidão") [40]. Da mesma forma que será tarefa quase impossível asseverar que o direito hebreu foi feito ex nihilo, um direito original, nascido da consciência moral-social dos antigos judeus, afinal este povo sofreu várias conquistas, inclusive dos gregos e romanos, os primeiros inventores da filosofia e estes da idéia mais bem acabada de direito. Mas podemos dizer que o direito gestado na Terra de Israel é resultado do amálgama de muitas experiências, inclusive as negativas, que provocaram projetos de vida, reflexões e críticas sobre as circunstâncias que determinaram a construção da história do povo judeu. Por isto, concordamos com Falk quando refere que "Muitas de suas leis não teriam se desenvolvido em sua forma atual sem o impacto de um outro sistema legal que requeria rejeição, reação, reconhecimento ou receptividade por parte do Direito Talmúdico" [41]. Assim, v.g., o direito talmúdico estabeleceu algumas normas para a libertação dos escravos, inclusive a alforria do direito romano [42]. E com esta mesma convicção de que as experiências jurídicas se entrecruzam, podemos inferir que o caudal de normas jushumanistas dos judeus terá, por muitas vias, chegado ao ocidente, contribuindo para a elaboração do direito moderno.

Lembremos, em primeiro lugar, que por longos séculos os judeus disciplinaram a vida social baseados na aplicação das normas ético-religiosas inscritas na Torah. Que não eram suficientes, devido ao seu caráter fragmentário. Por isso, no período em que se elaborou a Lei Oral, a modo de preencher as lacunas, os comentadores, homens letrados que conheciam as leis estrangeiras tão bem quanto a própria Torah, podem ter sofrido influências externas. E de igual modo é possível terem semeado um pouco de sua cultura por entre os povos conquistadores. No período da cultura helênica, os judeus utilizavam-se não apenas do hebraico e do aramaico para redigir seus documentos, mas, também, do grego, o mesmo idioma de trânsito livre entre os judeus da diáspora e que serviu para a redação da Septuaginta, mais tarde difundida pelo ocidente.

Em segundo lugar, o cristianismo – que bebe da fonte do judaísmo – difundido pelos apóstolos e, com maior força, por S. Paulo, chega ao ocidente através de Roma, onde é considerado devastador (talvez tão devastador para sua cultura quanto às invasões dos bárbaros). E muda o eixo sócio-cultural do ocidente, preconizando a existência de um único D’us, impondo o teocentrismo e muitos dos princípios que são presididos pela dignidade da pessoa humana, como o da igualdade e da universalidade. A patrística, encabeçada S. Agostinho e a escolástica, cujo maior representante foi S. Tomás de Aquino, difundiram os preceitos do tronco judaico-cristão, cimentando-os no ocidente da Idade Média.

Em terceiro lugar, a diáspora do povo judeu ocorrida no ano 70, leva a filosofia judaica para os mais diversos pontos do ocidente, especialmente da Europa, onde surgem os comentários do Talmud. Um dos trabalhos de maior relevo desta categoria trata-se da Mishné Torah, que é a sistematização do direito talmúdico realizada por Maimônides (1135-1204), no século XIII. O filósofo neo-aristotélico judeu teve grande importância não apenas para sua cultura, mas para outros estudiosos não-judeus, inclusive S. Tomás de Aquino, por meio de quem ganha projeção. E é possível que o Doctor Angelicus tenha sido influenciado pela filosofia de Maimônides. Lembre-se, ainda, que para além da filosofia judaica, o direito talmúdico foi estudado durante a Renascença por cristãos, como Grotius e chegou a apoiar algumas posições do direito canônico (mais particularmente no que se refere à anulação do casamento). Mais tarde, no século XVIII, os judeus da diáspora inauguram, com Mendelsohn, a Hascalah, o movimento iluminista judaico, que garante a incursão de filósofos judeus no mundo europeu.


Conclusões

O campo de estudos referido aos direitos humanos, é um dos mais vastos, oferecendo ao jurista dificuldades para seu enfrentamento metodológico. A de maior envergadura é a que relaciona o jushumanismo com as zonas normativas da ética, da moral – a cultura jurídica anglo-saxônica costuma reivindicar a expressão moral rights para designar aquelas normas que exigem correção das ações morais – e do direito natural, de maneira a que se entendam os direitos humanos como um dado prévio à experiência jurídico-positiva. Tudo isto embora, partindo de uma visão mais aprofundada das coisas, possamos radicar não apenas os direitos humanos nos princípios éticos e morais.

Compreendendo, portanto, os direitos humanos e os princípios que lhes dão corpo num plano metajurídico que trata, fundamentalmente, da dignidade, liberdade e igualdade, podemos, em primeiro lugar, concluir que eles não são criados pelo direito positivo, mas podem ser reconhecidos por esta esfera normativo-jurídica através de múltiplas expressões do direito (v.g., dos direitos constitucional-penal, penal e processual penal).

Descartamos, em segundo lugar, a posição que defende uma situação estática e intemporal para os direitos humanos, como se eles fossem depreendidos pela razão humana em contacto com uma ordem normativa superior – a do direito natural. Tais conceitos jushumanísticos são produzidos pela experiência histórica do homem, aqui visto como ser-em-sociedade. É a carga de circunstâncias – positivas ou negativas – acumuladas durante a existência, que provoca reações, criações e posturas críticas, que se traduzem em soluções jushumanísticas.

Em terceiro lugar, podemos referir que o direito hebreu, partindo do seu código ético-religioso e ético-social, traduz muito claramente a carga de circunstâncias que o povo judeu carregou durante a história. De maneira que as conquistas a que os judeus foram submetidos, as relações com povos vizinhos e povos dominadores, as circunstâncias político-sociais e até a vocação para os estudos, determinaram o reconhecimento em leis (especialmente as do direito talmúdico) de princípios jushumanísticos.

Em quarto lugar, apesar de não podermos, por um lado, confirmar o aparecimento original destas normas jushumanísticas entre os judeus, já será possível, por outro lado, referir que a cultura judaica permeou a cultura ocidental através do tronco comum judaico-cristão, que se desenvolveu a partir da Idade Média. Para além disto, é lícito inferirmos que o desenvolvimento da cultura judaica após sua diáspora pelo ocidente, pode ter influenciado para a radicação de vários dos conceitos do jushumanismo, contribuindo para o seu desenvolvimento.


Notas

01 Cf. MOSSÉ, Claude. Atenas. A história de uma democracia. 3ª ed. trad. de João Batista da Costa. Brasília: UnB, 1997, p. 23.

02 Cf. SABBÁ GUIMARÃES, Isaac. Habeas corpus. Crítica e perspectivas (um contributo para o entendimento da liberdade e de sua garantia à luz do direito constitucional). 2ª ed. ver. e ampl. 3ª tiragem. Curitiba: Juruá, 2004, p. 139-151.

03 SÓFOCLES. Antígona. In Clássicos Jackson. Teatro grego, v. XXII. Prefácio e trad. de J. B. Mello e Souza, s/l., s/d., p. 137-138.

04 Citado por CUNHA, Paulo Ferreira da. O ponto de Arquimedes. Natureza humana, direito natural, direitos humanos. Coimbra: Almedina, 2001, p. 70-71.

05 Cf. MACHADO, J. Baptista. Introdução ao direito e ao discurso legitimador. Coimbra: Almedina, 1996, passim.

06 ORTEGA Y GASSET, José. História como sistema. Trad. Juan A. Gili Sobrinho e Elizabeth Hanna Côrtes Costa. Brasília: UnB, 1982, p. 27.

07 SABBÁ GUIMARÃES, Isaac. Direito penal sexual: fundamentos & fontes. Curitiba: Juruá, 2003, p. 76.

08 Estes e outros dilemas éticos são discorridos por FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. 10ª reimp. Trad de Plauto Faraco de Azevedo. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999.

09 Cf. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, s/d.

10 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 73.

11 Cf. SANTO AGOSTINHO. Diálogo sobre a felicidade. Edição bilíngüe com trad. de Mário A. Santiago de Carvalho. Lisboa: Edições 70, s/d., passim. O pensamento filosófico do Bispo de Hipona parte da raiz platônica de filosofia, considerando o conhecimento e a sabedoria os grandes eixos formadores da felicidade.

12 Cf. a Torah, com tradução, comentários e explicações pelo Rabino Meir Masliah Melamed, s/l, s/d, p. 135.

13 Sempre grafado por nós desta forma, em respeito ao Santo Nome, ברוך חשם

14 Op. cit., p. 36.

15 Op. cit., p. 42.

16 Op. cit., p. 47.

17 Op. cit., p. 51.

18 FARIÑAS DULCE, María José. Los derechos humanos desde una perspectiva sociojurídica. Derechos y Libertades. Revista del Instituto Bartolomé de las Casas. Madri, año III, n.º 6, p. 355- 375, feb. 1998, p. 356-357.

19 Ibidem, p. 357.

20 FALK, Ze’ev W. O direito talmúdico. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 11.

21Direito Talmúdico refere-se a תלמוד (Talmud) que significa conhecimento, estudo. Trata-se de um conjunto de livros elaborado pelos sábios judeus a partir do estudo da תורה (Torah), o Pentateuco, além de incluir estudos sobre as normas práticas da vida judaica (הלכות – halachot, preceitos) e sobre ensinamentos éticos (que integram a הגדה, hagadá ). Sua sistematização transcorreu ao longo de muitos anos, editando-se o Talmud de Israel no ano 400 e o da Babilônia somente no ano 500.

22 Cf. Falk, op. cit.

23 Torah, cit., p. 330

24 MAIMÔNIDES. Mishné Tora. O livro da sabedoria. Trad. do Rabino Yaacov Israel Blumenfeld. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 102.

25 FALK, op. cit., p. 80.

26 MAIMÔNIDES, op. et loc. cit.

27 Ibidem, ibidem.

28 MAIMÔNIDES. Os 613 mandamentos. Trad. de Giuseppe Nahaïssi. 3ª ed. São Paulo: Nova Arcadia, 1990, p. 316.

29 Apud FALK, cit., p. 86.

30 MAIMÔNIDES. Comentário da Mishná ética dos pais Snahedrin. Trad. de Alice Frank. São Paulo: Maayanot, 1993, p. 19.

31 Ibidem, p. 22.

32 Ibidem, p. 33.

33 MAIMÔNIDES. Mishné Tora, cit., p. 102.

34 Ibidem, ibidem.

35 BELKIN, Samuel. A filosofia do Talmud. O caráter sagrado da vida humana na teocracia democrática judaica. Trad. de Beatriz Telles Rudge e Derval Junqueira de Aquino Neto. São Paulo: Sêfer, 2003, p. 16.

36 BELKIN, op. cit., p. 72-73.

37 Cf. MAIMÔNIDES. Mishné Tora, cit., p. 102.

38 MAIMÔNIDES. Os 613 mandamentos, cit., p. 314.

39 Ibidem, p. 315.

40 Cf. MARITAIN, Jacques. Os direitos do homem. Trad. de Afrânio Coutinho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1967, maxime p. 32.

41 FALK, op. cit., p. 41.

42 Ibidem, p. 42.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Isaac Sabbá. O direito talmúdico como precursor de direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 856, 6 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7470. Acesso em: 2 maio 2024.