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Algumas anotações sobre o princípio da insignificância

Algumas anotações sobre o princípio da insignificância

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Segundo o princípio da insignificância, o direito penal só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas.

I – O princípio da insignificância

O princípio da insignificância não deve ser estudado à luz das causas de exclusão da antijuridicidade. Deve ser estudado à luz da tipicidade material.

É certo que Francisco de Assis Toledo (Princípios básicos de direito penal, 4ª edição, pág. 133) trouxe à análise a posição de Welzel, que considerava que o princípio da adequação social era levado em consideração para excluir certas lesões insignificantes. Assim se permitiria excluir tipos onde os danos fossem de pouca significância.

Segundo o princípio da insignificância, o direito penal só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas. O dano, previsto no artigo 163 do Código Penal, não deve ser aplicado para qualquer lesão, mas sim para aquelas que representam um prejuízo de alguma significação.

O crime de descaminho, previsto no artigo 334, § 1º, do Código Penal, não será a posse de pequena quantidade de produto estrangeiro, de valor reduzido, mas sim a de mercadoria cuja quantidade ou cujo valor indique lesão tributária, de certa expressão para o Fisco. A injúria, a calúnia, a difamação devem restringir-se a fatos que possam afetar, significativamente, a dignidade, a reputação.

A insignificância baseia-se nos postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima no direito penal; a insignificância exclui a tipicidade material; para o reconhecimento da insignificância devendo ser observados vetores como: a mínima ofensividade da conduta do agente; a nenhuma periculosidade social da ação; o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Ainda, o Ministro Ayres Britto (HC 107.082) apresentou parâmetros para aplicação do princípio da insignificância: vulnerabilidade social do agente; irrelevância da lesão para a vítima; amadorismo na execução do delito, desde que sem violência ou grave ameaça; desproporcionalidade da pena; existência de conteúdo econômico quanto ao objeto do crime.

A infração bagatelar ou delito de bagatela expressa o fato insignificante, de ninharia, ou, em outras palavras, de uma conduta ou, de um lado, de um ataque ao bem jurídico que não requer (ou não necessita a intervenção penal), como aduziu Luiz Flávio Gomes (Infração bagatelar imprópria).A infração bagatelar deve ser compreendida sob dupla dimensão: a) infração bagatelar própria; b) infração bagatelar imprópria. Própria é a que nasce sem nenhuma relevância penal, ou porque não há desvalor da ação (não há periculosidade da conduta, Isto é, idoneidade ofensiva relevante) ou porque não há o desvalor do resultado (não se trata de ataque grave ou significativo ao bem jurídico).

Para todas as situações da infração bagatelar própria o princípio a ser aplicado é o da insignificância(que tem o efeito de excluir a tipicidade penal, ou seja, a tipicidade material). A infração bagatelar imprópria é a que nasce relevante para o direito penal(porque há relevante desvalor da conduta bem como desvalor do resultado), mas depois se verifica que a incidência de qualquer pena em caso concreto apresenta-se totalmente desnecessária.

Há lição de Luiz Flávio Gomes (Princípio da insignificância e outras excludentes da tipicidade) no sentido de que o principio da insignificância está para a infração bagatelar própria, assim como a irrelevância penal do fato está para a infração bagatelar imprópria. De toda sorte, o princípio da irrelevância penal do fato está coligado de forma estreita com o princípio da desnecessidade da pena.

O fundamento da desnecessidade da pena reside em múltiplos fatores: ínfimo desvalor da culpabilidade, ausência de antecedentes criminais, reparação de danos, reconhecimento da culpa, colaboração com a justiça, o fato de o agente ter sido processado, o fato de ter ficado preso por um período, em análise que deve ser feita em concreto, caso a caso.

A infração bagatelar imprópria resulta na ofensa de bem juridicamente relevante para o ordenamento jurídico penal. Contudo, por uma questão de política criminal, mediante a análise das circunstâncias judiciais (artigo 59 do Código Penal) que envolvem o caso concreto, a aplicação da pena torna-se desnecessária.

Diverso é o principio da intervenção mínima. O ordenamento positivo deve ter como excepcional a previsão de sanções penais e não se apresentar como um instrumento de satisfação de situações contingentes e particulares que podem servir a situações políticas de momento que servem para aplacar o clamor público que e exacerbado pela propaganda. Além disso, a sanção aplicada para cada delito deve ser a necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime. Tais ideias que consubstanciam o princípio da intervenção mínima servem para inspirar o legislador, que deve buscar na realidade fática o substancial dever ser, como explica Fabbrini Mirabete (Manual de direito penal, volume I, 7ª edição, pág.115) para tornar efetiva a tutela dos bens e interesses considerados relevantes quando do momento da criminalização, neocriminilização, descriminilização e despenalização.


II – A Insignificância e o crime de furto

Um homem denunciado por tentativa de furto ao subtrair uma barra de chocolate, avaliada em R$4,99, teve a ação penal contra ele suspensa após decisão liminar do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O pedido de trancamento foi analisado pela presidente da corte, ministra Laurita Vaz, que aplicou ao caso o princípio da insignificância.

De acordo com a denúncia do Ministério Público, o homem entrou em um supermercado em Curvelo (MG), retirou o doce da prateleira e colocou dentro de sua calça. Ao tentar sair do estabelecimento, ele foi abordado por um fiscal, que localizou o chocolate e chamou a polícia. O produto foi devolvido ao supermercado.

Em análise do pedido de habeas corpus, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais manteve a ação penal por entender que os eventuais motivos para sua extinção – inexistência de indícios de autoria ou de prova de materialidade – não estavam presentes no processo.

Afirmou-se, outrossim, que o réu era primário.

Em tempos de milionárias ou bilionárias fraudes ao erário, o Judiciário não pode se ocupar com um furto de uma barra de chocolate.

No Supremo Tribunal Federal encontramos decisões seja pela insignificância da conduta e outras não.

Em 11 de setembro do ano passado, a Primeira Turma manteve condenado um réu acusado de tentar furtar um par de tênis e 19 garrafas de cervejas vazias, avaliados em R$ 34,25. No recurso, a Defensoria Pública alegou que, pelo princípio da insignificância, o réu deveria ser absolvido. Nâo obteve êxito.

Os ministros da turma argumentaram que o princípio da insignificância não deveria ser aplicado no caso específico porque o réu era reincidente. Mas o valor que o acusado tentou furtar foi levado em conta para se diminuir a pena aplicada.

Em 12 de novembro de 2018, a Segunda Turma do Supremo julgou o recurso do Ministério Público contra a absolvição de um réu pela tentativa de furto de um frasco de desodorante, uma caixa de comprimidos para dor de cabeça e um sabonete líquido, avaliados em R$ 30. Os bens foram devolvidos ao estabelecimento comercial, depois da tentativa frustrada de furto. Nesse caso, o réu também era reincidente. Tinha sido condenado a quatro meses de reclusão no regime aberto, mais pagamento de multa. Em recurso, o ministro Gilmar Mendes, do STF, absolveu o acusado, mas o Ministério Público recorreu com o argumento de que o princípio da insignificância não poderia ser aplicado no caso específico, pela reincidência. A Segunda Turma manteve a decisão do relator.— Não é razoável que o Direito Penal e todo o aparelho do estado-polícia e do estado-juiz movimentem-se no sentido de atribuir relevância à hipótese de furto de bens avaliados em R$ 30 — disse Gilmar Mendes, no voto.

Tais decisões de duas turmas, órgãos fracionários do Supremo Tribunal Federal, além de denotarem o grau de divergência já anotado pela comunidade jurídica com relação a elas, traz conclusões absolutamente contrárias ao princípio da insignificância e sua aplicação para o crime de furto.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos HC 123.533 – SP, em que foi Relator o Ministro Roberto Barroso, analisou caso em que a paciente foi acusada de tentativa de furto qualificado(Código Penal, artigo 155, § 4º, IV, combinado com o artigo 14, II), de dois sabonetes líquidos íntimos, avaliados em R$48,00(quarenta e oito reais). Houve condenação fixada em um ano e dois meses de reclusão, reconhecida a reincidência dos agentes que praticaram aquele crime, em regime inicial semiaberto, e cinco-dias multa, sem substituição por pena restritiva de direitos.

Acrescenta o Ministro Roberto Barroso que, “assim, respeitado o direito de defesa, se a punição se impuser, ela deve ser aplicada. O direito penal desempenha idealmente uma função social importante de prevenção social. Seu papel é – ou deveria ser – menos retributivo e mais o de desestimular novos atos criminosos”. 

Disse o Ministro Roberto Barroso que, sendo a situação do sistema carcerário tão calamitosa, os juízes, em geral, apegam-se a qualquer formulação razoavelmente aceitável que impeça enviar alguém para o sistema penitenciário.

No julgamento do citado HC 123.533/SP, o Ministro Roberto Barroso afirmou que não se convenceu de que a reincidência deva, invariavelmente, impedir a aplicação do princípio da insignificância. Disse ele que “o direito penal não se destina a punir meras condutas indesejáveis, “personalidades”, meios ou “modos de vida”, e sim crimes, isto é, condutas significativamente perigosas ou lesivas a bens jurídicos, sob pena de se configurar um direito penal do autor, e não do fato”.

No que concerne ao furto qualificado, o Ministro Roberto Barroso, naquele julgamento referenciado, considerou que “não é possível que a aplicação do princípio dependa de circunstâncias pessoais do agente ou de fatores atinentes a etapa posterior da análise do delito(culpabilidade)”.

Em razão disso, concluiu o Ministro Roberto Barroso que para se reconhecer a insignificância no furto prepondera a ausência de desvalor do resultado.

Para o Ministro Roberto Barroso, a simples circunstância de se tratar de réu reincidente ou de incidir alguma qualificadora(CP, artigo 155, § 4º) não deve, automaticamente, afastar a aplicação do principio da insignificância, pois seria necessário uma motivação específica à luz das circunstâncias do caso concreto, como o alto número de reincidências, a especial reprovabilidade decorrente de qualificadoras. Ademais, para se aplicar o princípio da insignificância, não deve bastar a mera existência de inquéritos ou processos em andamento, pois será necessário a condenação transitada em julgado(HC 111.016, Relator Ministro Celso de Mello: HC 107.500, Relator Ministro Joaquim Barbosa).

Respeitosamente entenda-se que deve ser lembrado o que foi decidido no HC 115.850 AgR, Relator Ministro Luiz Fux, em caso em que foi denegada ordem a paciente reincidente, condenado a um ano e três meses de reclusão, em regime inicial semiaberto, por furtar seis barras de chocolate, avaliadas conjuntamente em R$31,80, as quais seriam vendidas para comprar drogas quando se disse que “o reconhecimento da atipicidade da conduta do paciente, pela adoção do princípio da insignificância, poderia, por via transversa, imprimir nas consciências a ideia de estar sendo avalizada a prática de delitos e de desvios de conduta”. Realmente seria um verdadeiro incentivo à prática de pequenos delitos patrimoniais, recomendando a prudência que se leve em conta a obstinação do agente na prática delituosa, no intuito de se evitar que a impunidade o estimule a continuar a caminhar na senda criminosa, como disse o Ministro Luiz Fux. Observe-se que, naquele HC 115.850, AgR, apreciava-se situação envolvendo o furto de quatro galinhas caipiras, avaliadas, conjuntamente, em R$40,00(quarenta reais).

Naquele julgamento do HC 123.533, o Relator Ministro Roberto Barroso entendeu por conceder, de ofício, habeas corpus, para, no caso, reconhecer aplicável o princípio da insignificância. De toda, sorte, de forma alternativa, apresentou voto para que a paciente tivesse alterado o seu regime inicial de cumprimento da pena para aberto domiciliar.


III – O princípio da insignificância e os crimes cometidos contra a Administração

No dia 20 de novembro de 2017, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) aprovou uma nova súmula, de nº 599, com o seguinte teor: “O princípio da insignificância é inaplicável aos crimes contra a Administração Pública.”

Quais são os crimes contra a Administração Pública?

Que falar da apropriação de poucas resmas de papel por parte do servidor?

Os crimes contra a Administração Pública estão no Título XI do Código Penal, indo do art. 312 até o art. 359-H. Essa classificação abrange, por exemplo, os crimes de peculato, corrupção ativa e passiva, contrabando, descaminho etc.

Em relação ao contrabando, a jurisprudência do STJ, como regra, entende não ser aplicável o princípio da insignificância, haja vista que esse tipo penal tem o desiderato de tutelar não apenas um bem jurídico patrimonial, mas também a segurança e a saúde.

Excepcionalmente, o STJ admite o princípio da insignificância em relação à importação não autorizada de pequena quantidade de medicamento para uso próprio (AgRg no REsp 1.572.314).Também excepcionando essa súmula recentemente aprovada, o STJ tem entendimento de que cabe a aplicação do princípio da insignificância ao crime de descaminho, citando-se, por exemplo, o AgRg no REsp 1.538.629/RS, no qual a Quinta Turma do STJ demonstrou que o princípio da insignificância, para esse crime, teria o limite de R$ 10.000,00.

De qualquer forma, o entendimento sumulado – já aplicado pelo STJ há algum tempo – cria situações estranhas, como a possibilidade de um estagiário de um órgão público ser processado por peculato caso se aproprie de algumas folhas A4 ou de uma caneta da repartição.

O Superior Tribunal de Justiça tem jurisprudência pacífica admitindo a aplicação do princípio da insignificância penal no crime de descaminho (artigo 334 do Código Penal) qual seja, espécie de crime contra a Administração Pública onde o agente ilude, sonega, total ou parcialmente, tributo aduaneiro devido pela importação, exportação ou comercialização de mercadorias.

Nestas circunstâncias, verifica-se que recentemente (28/02/2018) a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça unificou o seu entendimento à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e, por exceção, manteve a desconsideração do teor da Súmula 599 no crime aduaneiro ao revisar o Tema 157, o qual passou a ter a seguinte redação:“Incide o princípio da insignificância aos crimes tributários federais e de descaminho quando o débito tributário verificado não ultrapassar o limite de R$ 20.000,00, a teor do disposto no artigo 20 da Lei 10.522/2002, com as atualizações efetivadas pelas Portarias 75 e 130, ambas do Ministério da Fazenda.”

Assim Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal aplicam o princípio da insignificância àquelas situações em que as mercadorias apreendidas são em pequena quantidade, com valores ínfimos e sem destinação comercial. Em virtude do baixo valor dos tributos incidentes sobre tais bens, o Fisco não promove a execução de seus créditos, utilizando-se do já conhecido argumento de que a instauração de um processo executivo fiscal, diante de um valor irrelevante a ser recebido, não será compensada no momento do pagamento. A divergência se limita ao valor máximo do tributo sonegado: a) STF: considera-se o valor de R$ 20 mil, previsto no artigo 20 da Lei 10.522/02, atualizado pelas portarias 75/12 e 130/12 do Ministério da Fazenda; b) STJ: a insignificância só se aplica se o valor questionado for igual ou inferior a R$ 10 mil, pois o Judiciário deve seguir os parâmetros descritos em lei federal, e não em portaria administrativa da Fazenda Federal.

Por fim, dir-se-á que o princípio da insignificância não se aplica ao crime de corrupção passiva.

Na matéria disse Guilherme de Souza Nucci (Princípio da insignificância no cenário da corrupção):

"Hungria, já nos anos 50, defendia a hipótese de entrega de pequenos mimos em épocas festivas a funcionários públicos, como caixinhas aos carteiros ou lixeiros. Vamos além. Em muitos fóruns, na época de Natal, os grandes escritórios de advocacia distribuem fartos mimos aos funcionários públicos, como cestas de guloseimas, bebidas, panetones, agendas, canetas, chaveiros etc. Querem, por certo, recompensar os bons serviços prestados ao longo do ano, mas não sejamos cegos. Desejam, igualmente, afagar o servidor, para que seus funcionários (estagiários e advogados iniciantes) sejam bem tratados (e rapidamente). Por isso, somos contrários a esse tipo de atitude, conforme o mimo entregue. Uma cesta de produtos natalícios pode possuir elevado custo, o que seria suficiente para representar uma forma de corrupção passiva. Uma caneta de plástico, cujo valor seja de R$ 1,00 pode ser uma bagatela. Porém, justamente por ser algo insignificante, alguns escritórios preferem abster-se de dar a referida caneta. Melhor assim. Servidores podem comprar seus próprios presentes de Natal ou componentes para a sua ceia. É tempo de cessar esse mau vezo de gratificar pessoas por nada, representando uma forma de, no futuro, demandar qualquer favor.

Para tanto, uma atuação da corregedoria do local onde trabalha o servidor presenteado cairia muito bem. O pior é representado pelo fato de o próprio juiz, corregedor do cartório, aceitar de determinado escritório, uma farta cesta de presentes. Como poderá impedir o mesmo gesto destinado aos servidores do cartório? Nem um, nem outro possui justificativa para isso.

É corrupção passiva o presente dado pelo perito ao juiz, que o nomeou durante o ano, ou de quem pretende a nomeação. Tais presentes não se limitam a canetinhas de R$ 1,00, mas a mimos bem mais caros.

Somente para argumentar, imagine-se o policial que, para não multar o motorista infrator, consente em receber a quantia de R$ 10,00. Poder-se-ia dizer que é simples bagatela? Em nosso entendimento, não. De R$ 10,00 em R$ 10,00 o policial se acostuma a ser corrupto. Sua função pública é multar o infrator e não negociar o ato de ofício. Se ele se vende barato, isto não é problema do Direito Penal, que deve incidir em qualquer nível de corrupção."


IV – O crime da insignificância e o crime de moeda falsa

O ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso negou provimento ao Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) 107959, no qual a Defensoria Pública da União (DPU) pedia a aplicação do princípio da insignificância ao caso de um condenado pelo crime de moeda falsa.

De acordo com os autos, M.G.J. foi surpreendido por policiais com quatro cédulas falsas de cinquenta reais, as quais tentava colocar em circulação em Franco da Rocha (SP). Ele foi condenado pelo delito previsto no artigo 289, parágrafo 1º, do Código Penal à pena de três anos de prisão, em regime aberto, substituída por duas penas restritivas de direito. A Defensoria interpôs apelação ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região requerendo a aplicação do princípio da insignificância, mas o recurso foi desprovido. Em seguida, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) também rejeitou a tese de aplicabilidade do princípio ao negar habeas corpus lá impetrado.No recurso ao Supremo, a DPU reiterou o argumento de que a conduta do recorrente não pode ser considerada como um ataque intolerável ao bem jurídico tutelado, não configurando ofensa à fé pública, por não ter efetivamente perturbado o convívio social. Pediu, assim, o trancamento da ação penal.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 84.412/SP, de Relatoria do Ministro Celso de Mello, entendeu que o princípio da insignificância deve ser analisado em correlação com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do direito penal, no sentido de excluir ou afastar a própria tipicidade da conduta, examinada em seu caráter material, observando-se, ainda, a presença dos seguintes vetores: mínima ofensividade da conduta do agente, ausência total da periculosidade social da ação, ínfimo grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica ocasionada.

O Supremo Tribunal Federal decidiu que o uso de moeda falsa não comporta aplicação do principio da insignificância, como se lê de decisão da Segunda Turma, por unanimidade de votos, no HC 112.708, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de irmãos condenados, no Maranhão, por colocar em circulação duas notas falsas de R$50,00 (cinqüenta reais). A esse propósito, ainda decidiu o Supremo Tribunal Federal, na matéria, na mesma linha, no HC 105.638/GO, Relator Ministra Rosa Weber; no HC 111.266/SP e ainda no HC 97.220/MG, Relator Ministro Ayres Brito.

Ora, como bem dito no AgRg no AREsp 383.534/MG, Relator Ministro Rogério Schietti Cruz, DJe de 13 de outubro de 2014, o bem jurídico tutelado no artigo 289 do Código Penal é a fé pública, a credibilidade da moeda e a segurança de sua circulação. Sendo assim independentemente da quantidade e do valor das cédulas falsificadas, haverá ofensa ao bem jurídico tutelado, razão pela qual não há que falar em mínima ofensividade da conduta do agente, o que afasta a incidência do princípio da insignificância.

No mesmo sentido, vemos as seguintes decisões, dentre outras: AgRg no AREsp 454.465/SP, Relator Ministro Jorge Mussi, DJe de 21 de agosto de 2014; AgRg no AREsp 450.544/SP, Relator Ministro Jorge Mussi, DJe de 21 de agosto de 2014.

O entendimento trazido pelo Ministro Luís Roberto Barroso é no sentido de que o acórdão do Superior Tribunal de Justiça está alinhado com a orientação do Supremo Tribunal Federal no sentido de que não se aplica o princípio da insignificância a fatos caracterizadores do crime de moeda falsa.


V – O princípio da insignificância e o estelionato

O artigo 171 do Código Penal tipifica o crime de estelionato:“Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento: Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.”

Para que o estelionato se configure é mister: a) o emprego pelo agente de artifício ou ardil ou qualquer outro meio fraudulento; b) o induzimento ou manutenção da vítima em erro; c) obtenção de vantagem patrimonial ilícita pelo agente; d) prejuízo do enganado ou terceira pessoa.Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido (Súmula n. 17/STJ) (AgRg no REsp 1566224/ES, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, Julgado em 06/04/2017, DJE 17/04/2017).

O delito de estelionato previdenciário (art. 171, § 3º do CP), praticado pelo próprio beneficiário, tem natureza de crime permanente uma vez que a ofensa ao bem jurídico tutelado é reiterada, iniciando-se a contagem do prazo prescricional com o último recebimento indevido da remuneração (AgRg no AREsp 962731/SC, Rel. Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca, Quinta Turma, Julgado em 22/09/2016, DJE 30/09/2016).

O delito de estelionato previdenciário, praticado para que terceira pessoa se beneficie indevidamente, é crime instantâneo com efeitos permanentes, iniciando-se a contagem do prazo prescricional a partir da primeira parcela do pagamento relativo ao benefício indevido (RHC 066487/PB, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Julgado em 17/03/2016, DJE 01/04/2016).

Aplica-se a regra da continuidade delitiva (art. 71 do CP) ao crime de estelionato previdenciário praticado por terceiro, que após a morte do beneficiário segue recebendo o benefício regularmente concedido ao segurado, como se este fosse, sacando a prestação previdenciária por meio de cartão magnético todos os meses (AgRg no REsp 1466641/SC, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Julgado em 25/04/2017, DJE 15/05/2017).

A devolução à Previdência Social da vantagem percebida ilicitamente, antes do recebimento da denúncia, não extingue a punibilidade do crime de estelionato previdenciário, podendo, eventualmente, caracterizar arrependimento posterior, previsto no art. 16 do CP (EDcl no AgRg no REsp 1540140/RS, Rel. Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca, Quinta Turma, Julgado em 22/11/2016, DJE 05/12/2016).

Diante disso discute-se aqui a aplicação do princípio da insignificância a esse crime de estelionato.

Em tema de aplicação do princípio da insignificância no direito penal, sedimentou-se a orientação jurisprudencial no sentido de que a incidência do princípio da insignificância pressupõe a concomitância de quatro vetores: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Como observou Guilherme de Souza Nucci (Manual de Direito Penal. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora RT, 2006, p.209), tem-se que “O princípio penal da insignificância permite afastar a tipicidade material de condutas que provocam ínfima lesão ao bem jurídico tutelado, fundado na premissa de que “o direito penal, diante de seu caráter subsidiário, funcionando como ultimaratio, no sistema punitivo, não se deve ocupar de bagatelas”.

Para isso, tem-se o voto do ministro Celso de Mello:

“PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORESCUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADODE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DATIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - DELITO DEDESCAMINHO (CP, ART. 334, "CAPUT", SEGUNDA PARTE) - TRIBUTOSADUANEIROS SUPOSTAMENTE DEVIDOS NO VALOR DE R$ 4.541,33 -DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF - PEDIDO DEFERIDO. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIAQUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIALDA TIPICIDADE PENAL. - O princípio da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material.Doutrina. Tal postulado - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: "DE MINIMIS,NON CURAT PRAETOR". - O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AO DELITO DE DESCAMINHO. - O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor - por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social. Aplicabilidade do postulado da insignificância ao delito de descaminho (CP, art. 334), considerado, para tanto, o inexpressivo valor do tributo sobre comércio exterior supostamente não recolhido. Precedentes.” (HC 101074, Relator Min. CELSO DE MELLO,Segunda Turma, DJe 30/04/2010).

No caso do estelionato previdenciário, não se mostra razoável a aplicação do princípio da bagatela dada a relevância do bem jurídico protegido,porquanto não se trata de patrimônio particular, mas sim de um direito da coletividade, informado pela dimensão objetiva dos direitos fundamentais. A tutela jurídica não é apenas a integridade do erário, mas também a proteção da confiabilidade da seguridade social e a efetividade das políticas públicas.

Observa-se do AgRg no AREsp 1476284 / PE, em que foi relator o ministro Marcelo Navarro:“Não é possível a aplicação do princípio da insignificância ao crime de estelionato contra a Previdência Social independentemente dos valores obtidos indevidamente pelo agente, pois, consoante jurisprudência do STJ e do STF, em se tratando de estelionato cometido contra entidade de direito público, considera-se o alto grau de reprovabilidade da conduta do agente, que atinge a coletividade como um todo.”

Observem-se ainda as decisões do STJ relatadas nos informativos abaixo:

Policial rodoviário da reserva remunerada (ora paciente) utilizou-se de documento falso (passe conferido aos policiais da ativa) para comprar passagem de ônibus intermunicipal no valor de R$ 48,00. Por esse motivo, foi denunciado pela suposta prática do crime de estelionato previsto no art. 171 do CP. Sucede que a sentença o absolveu sumariamente em razão do princípio da insignificância, mas o MP estadual interpôs apelação e o TJ determinou o prosseguimento da ação penal. Agora, no habeas corpus, busca a impetração seja restabelecida a decisão de primeiro grau devido à aplicação do referido princípio. Para o Min. Relator, a conduta do paciente não preenche os requisitos necessários para a concessão da benesse pretendida. Explica que, embora o valor da vantagem patrimonial seja de apenas R$ 48,00 (valor da passagem), as circunstâncias que levam à denegação da ordem consistem em ser o paciente policial da reserva, profissão da qual se espera outro tipo de comportamento; ter falsificado documento para parecer que ainda estava na ativa; além de, ao ser surpreendido pelos agentes, portar a quantia de R$ 600,00 no bolso, a demonstrar que teria plena condição de adquirir a passagem. Assim, tais condutas do paciente não se afiguram como um irrelevante penal, nem podem ensejar constrangimento ilegal. Por fim, assevera que não caberia também, na via estreita do habeas corpus, o exame da alegação da defesa quanto a eventuais dificuldades financeiras do paciente. Esclarece ainda que, de acordo com a jurisprudência do STF, para a incidência do princípio da insignificância, são necessários a mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada. Diante dessas considerações, a Turma denegou a ordem e cassou a liminar deferida para sobrestar a ação penal até o julgamento do habeas corpus. Precedentes citados do STF: HC 84.412-SP, DJ 19/11/2004; do STJ: HC 146.656-SC, DJe 1º/2/2010, e HC 83.027- PE, DJe 1º/12/2008. HC 156.384-RS, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 26/4/2011.

As instâncias ordinárias rejeitaram a denúncia do Ministério Público e aplicaram o princípio da insignificância como causa excludente de tipicidade quanto ao crime descrito no art. 171, § 3º, do CP, consubstanciado no recebimento indevido de parcelas de seguro-desemprego. Para a Min. Maria Thereza de Assis Moura, autora do voto condutor da tese vencedora, na questão está posto como violado um valor que pertence ao Poder Público, assim, independentemente do quantum, não se pode aplicar o princípio da insignificância às fraudes contra o programa de seguro-desemprego. A tese vencida, invocando a doutrina, considerou que, na espécie, há conotação própria da insignificância e, não obstante se tratar de estelionato qualificado, reconheceu a bagatela, visto que a conduta dos denunciados (recorridos) não teve força para atingir o bem jurídico tutelado pela norma penal. Isso posto, a Turma deu provimento ao recurso do Ministério Público. Precedente citado: REsp 795.803-MG, DJe 13/4/2009. REsp 776.216-MG, Rel. originário Min. Nilson Naves, Rel. para acórdão Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 6/4/2010.

Daí porque se tem como inaplicável o princípio da insignificância no que concerne ao estelionato que diz respeito à fraude ao erário.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Algumas anotações sobre o princípio da insignificância. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5860, 18 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75366. Acesso em: 20 abr. 2024.