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Teto dos gastos públicos e seus impactos no regime jurídico dos servidores

Teto dos gastos públicos e seus impactos no regime jurídico dos servidores

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O presente artigo propõe-se a abordar algumas das recentes mudanças legislativas publicadas e em fase de discussão, atinentes ao teto dos gastos públicos, têm causado na esfera jurídica dos servidores públicos, à luz das normas constitucionais vigentes.

1 INTRODUÇÃO

A temática abordada neste estudo aponta grande polêmica atual, sobretudo em decorrência da promulgação da Emenda à Constituição nº 95/2016, a qual estabelece um limite de gastos públicos da União nos próximos vinte seguintes, com vistas à redução gradual e contínua das despesas primárias do governo federal para equilibrar as contas públicas, exigindo uma reflexão sobre a necessidade de fixar teto nos gastos públicos e as consequências jurídicas sobre o servidor público.

A proposta dos congressistas brasileiros de fixação do teto para os gastos públicos federais foi aprovada em 16/12/2016, consolidando-se na Emenda Constitucional 95/2016, que instituiu um novo regime fiscal para vigorar nos próximos 20 (vinte) anos, valendo, portanto, até 2036.

Os recentes governantes brasileiros e sua base política, sob forte pressão da classe empresarial que exige intervenção do Estado na superação da crise econômica e, por via oblíqua, aumento exponencial da lucratividade das classes abastadas, têm defendido novo regime fiscal com cortes de gastos públicos que trazem injustificável prejuízo aos direitos individuais e coletivos dos servidores públicos e das classes sociais inferiores, aumentando a desigualdade social e exonerando as classes mais favorecidas de qualquer sacrifício para a satisfação do interesse comum.

Diante disso, referidas propostas, tanto do Poder Executivo quanto do Poder Legislativo, têm sido alvo de protestos pela sociedade civil. Entretanto, isso não tem impedido aprovações de projetos de emendas constitucionais (PECs), de medidas provisórias e projetos de lei tendentes à supressão dos direitos individuais e sociais já consolidados, a exemplo da Reforma Trabalhista, instrumentalizada pela Lei n. 13.467/2017, e da PEC 6/2019, conhecida como PEC da Reforma da Previdência, em vias de debate e votação pelo Senado.

Além da ausência da efetiva e considerável participação popular na discussão das propostas pretendidas, predomina um discurso governamental da necessidade de um novo regime fiscal, por meio da limitação de gastos e investimentos públicos, notadamente contra os servidores públicos e contra a classe baixa da sociedade, rotulados como os maiores responsáveis pela atual crise financeira e orçamentária.

Ladeados pelos donos do grande capital, os políticos, majoritariamente empresários, alegam que a redução de certos direitos conquistados dos trabalhadores, apresentada como modernização, é a única medida capaz de retomar o crescimento da economia, que teria sucumbido diante de um suposto comportamento fiscal irresponsável de governos anteriores (os quais reduziram as desigualdades sociais e valorizaram a carreira do serviço público), ignorando, porém, qualquer traço secular do mau gerenciamento e corrupção política na corrosão da coisa pública e degeneração dos direitos sociais já alcançados.

2 ANÁLISE JURÍDICA DA FIXAÇÃO DE TETO DOS GASTOS PÚBLICOS 

Nesse cenário, pretende-se analisar os impactos das medidas de ajuste fiscal adotadas pelos governantes recentes no plano federal brasileiro, como os impactos da EC 95/2016 e da MP 805/2017, enquanto vigente, sob o ângulo da constitucionalidade das normas e dos meios utilizados para o atendimento da pretendida higidez fiscal.

Deve-se advertir, no entanto, que, dada a exiguidade de espaço do presente trabalho, foge qualquer pretensão de investigar qual a melhor técnica atuarial ou financeira para o acerto dos desajustes fiscais, limitando-se tal escrito apenas a uma breve análise, sob o ponto de vista jurídico, da razoabilidade e da proporcionalidade de fixação do teto dos gastos públicos e seus desdobramentos no regime jurídico dos servidores.

2.1 A constitucionalização do Direito Administrativo e a participação popular

No dia 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves foi eleito presidente do Brasil, encerrando um período de 21 anos de regime militar no Brasil. Era o fim do ordenamento constitucional reacionário e antidemocrático imposto pelos governos militares, ao mesmo tempo em que surgia novo espectro normativo no ordenamento jurídico brasileiro. Buscava-se, com a nova Constituição dirigente, um rompimento com o regime autoritário até então prevalecente, sobrevindo uma carta política que permitisse a participação popular e possibilitasse a construção de um novo projeto de democracia, consubstanciando, assim, num Estado Democrático de Direito.

A retomada da democracia trouxe consigo a preocupação com a garantia dos direitos humanos e sua positivação em direitos fundamentais na Constituição Federal, assumindo a dignidade humana o centro do ordenamento e critério de legitimidade das normas e princípios, tanto constitucionais como infraconstitucionais, em ordem a formar uma relação de “interdependência ou reciprocidade” (BINENBOJM, 2008) entre a democracia e os direitos fundamentais, sendo a Constituição um instrumento de institucionalização de ambos perante o Estado.

Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 assumiu papel fundamental para o direito administrativo, seja em caráter normativo ou principiológico, dando sua delineação e seus parâmetros, seus limites e suas prerrogativas.

Tanto que o art. 37 da Constituição Federal em regência lista alguns princípios que devem reger os atos da Administração Pública direta e indireta: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, formando os pilares sobre os quais devem se assentar as diretrizes da atuação estatal.

Assim, a Constituição Federal de 1998 revestiu-se de caráter normativo, dando comandos explícitos e um norte a ser seguido, independentemente de leis ou atos normativos que reforçassem isso. O grande mérito dessa Constituição foi o de romper com a lógica das anteriores e nascer enquanto produto da participação popular, de toda a sociedade frente ao Estado (KREUZ, 2012).

Sobre o tema, a ministra do STF Cármen Lúcia Antunes Rocha (1994, p. 121) aponta dois elementos que definem este Estado, sendo eles: “o reconhecimento e garantia dos direitos fundamentais do ser humano pelo Estado de Direito e a participação democrática do cidadão na elaboração e aplicação deste Direito”, envolvendo a noção de busca pela justiça social concreta ao cidadão que participa na elaboração do que a ele será aplicado.

Contudo, observa-se que a política brasileira tem caminhado em sentido oposto a este espírito, uma vez que as mudanças legislativas, em particular contra o servidor público, são conduzidas açodadamente pelos políticos e não tratam de forma adequada os que serão mais afetados pelo congelamento dos gastos públicos.

2.2 Os servidores públicos como prepostos do Estado

Como aduz José dos Santos Carvalho Filho, “Agentes públicos são todos aqueles que, a qualquer título, executam uma função pública como prepostos do Estado. São integrantes dos órgãos públicos, cuja vontade é imputada à pessoa jurídica. [...] Os agentes são o elemento físico da Administração Pública. Na verdade, não se poderia conceber a Administração sem a sua presença (SANTOS FILHO, 2017, p.629).

Como gestor dos interesses da sociedade, o Estado deve agir com o objetivo de propiciar o bem-estar e os interesses coletivos, em cumprimento ao fim social e às exigências do bem comum. E para que tais tarefas sejam executadas e tais interesses providos, é imprescindível que existam pessoas físicas que externem essas ações e manifestem determinada vontade, que, a rigor, é imputada ao próprio Estado.

Desse modo, a atividade exercida pelo servidor público (ou agente público) se reveste de uma relevante função na direção da Administração Pública no sentido lato, pois o servidor público tem o papel distintivo de garantir, executar e efetivar as escolhas políticas feitas em prol do interesse coletivo, sendo verdadeiros instrumentos e prepostos do Estado, dignos, portanto, de um plexo de direitos indisponíveis e uma estabilidade jurídica necessária à execução dos serviços públicos que o Estado tem o dever de prestar.

2.3 Regime jurídico dos servidores públicos

Não ao esmo que a Constituição Federal de 1988 prevê um regime jurídico especial aos servidores públicos, conceituado como o conjunto de princípios e regras referentes a direitos, deveres e demais normas que regem a sua vida funcional.

Assim, o servidor público é sujeito de direito e deveres, ainda que na essência seu vínculo jurídico com o Estado seja firmado de maneira praticamente unilateral por este, o que não torna incompatível com qualquer forma de diálogo entre o Estado e seus trabalhadores. É que o vínculo não está engessado, pois sofre alterações temporais e espaciais na medida em que a sociedade também se transforma.

Pode-se dizer, pois, que o regime jurídico dos servidores públicos não é imutável, pois, além de legal, deve ser democrático, afinal, defende-se um Estado Democrático (e não autocrático) de Direito. Não se pode tolerar que um trabalhador esteja inserido em uma lógica na qual ele apenas aceita o trabalho imposto ou não, sem quaisquer outras possibilidades de discussão acerca das condições em que presta seu serviço. Essa noção não retira o caráter unilateral do regime jurídico dos servidores públicos, já que deve prevalecer, ao final, o interesse público, mas não autoriza a supressão dos direitos individuais fundamentais.

A propósito, Carmem Lúcia ensina que, ao mesmo tempo em que está unicamente nas mãos do Estado a possibilidade de modificação das circunstâncias em que o servidor público presta seus serviços ao Estado, em razão de ser essa relação unilateral, tal relação não é estática no tempo, sofrendo alterações constantes em razão da sociedade em que esteja inserida. “O que era considerado ‘inegociável’ ontem, hoje pode não ser; nada disso muda a circunstância de que o servidor público engaja-se num processo político dinâmico” (ROCHA, 1994, p.121).

Por sua vez, Celso Antônio Bandeira de Mello leciona que o regime de direito público resulta da caracterização normativa de determinados interesses como pertinentes à sociedade e não aos particulares considerados em sua individuada singularidade, que consiste na atribuição de uma disciplina normativa peculiar que se delineia em função de dois princípios: supremacia do interesse público sobre o privado e indisponibilidade dos interesses públicos (MELLO, 2005, pag. 55).

Observa-se que os dois princípios, embora implícitos na CF/88, têm a mesma força jurídica que os princípios expressos. Ademais, são princípios basilares da Administração Pública constituindo a base de todo o sistema normativo, revestindo-se, portanto, de alta relevância no ordenamento jurídico brasileiro, inclusive na disciplina do chamado regime jurídico administrativo.

2.4 Postulado da supremacia do interesse público e o princípio da razoabilidade

Cabe ressaltar, na linha de entendimento de Mello (2005, p. 110) que o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é considerado como um “princípio geral de Direito inerente a qualquer sociedade”.

Segundo este princípio, a Administração não pode se pautar por interesses particulares, mas pelo bem comum, erigido pela Constituição Federal de 1988, no seu art. 3º, IV, como objetivo fundamental da República, sendo uma forma de concretização da própria democracia.

Mas, se é inegável que o interesse público deve prevalecer sobre o interesse privado, igualmente incontroverso é que a atuação do Poder Público sobre o regime dos particulares e servidores públicos deverá pautar-se pelos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, a fim de verificar se as medidas tomadas pelo Estado são realmente adequadas, necessárias e proporcionais no sentido estrito.

Interessante notar que Celso Antônio Bandeira de Mello separa razoabilidade de proporcionalidade, sendo que o primeiro seria a atuação em consonância com critérios aceitáveis racionalmente, com equidade, e o segundo demonstra o agir de forma proporcional, harmônica, em extensão e intensidade (MELLO, 2005, p. 110-112).

Segundo Dirley da Cunha Júnior, na seara administrativa a proporcionalidade “é um importante princípio constitucional que limita a atuação e a discricionariedade dos poderes públicos e, em especial, veda que a Administração Pública aja com excesso ou valendo-se de atos inúteis, desvantajosos, desarrazoados e desproporcionais” (CUNHA JÚNIOR, 2009, p. 50).

O princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, portanto, serve como importante meio de amparar a proteção dos direitos do cidadão em face de eventual arbítrio do Poder do Estado. Impõe-se a este que demonstre a utilidade da supressão de direitos para o alcance do fim pretendido, que adote os meios menos gravosos ou limitativos dos direitos dos servidores e que a medida adotada traga vantagens que superem quaisquer desvantagens aos servidores.

Dessa forma, a imposição de medidas políticas contra o servidor público, como a fixação de teto remuneratório, a postergação dos reajustes dos vencimentos, o aumento de alíquota da contribuição social e outras questões, sob argumento de reajuste das contas públicas, exige observar, entre outros, os critérios de adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções ao servidor público em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público.

2.5 Direito adquirido dos servidores públicos

Inevitavelmente, a fixação dos gastos públicos tem tangenciado o direito adquirido dos servidores públicos. É induvidoso que, ao ingressar no serviço público sob o regime estatutário, o servidor recebe o influxo das normas que compõem o respectivo estatuto.

Reforça José Carvalho dos Santos Filho que essas normas, logicamente, não são imutáveis, podendo o Poder Público introduzir alterações com vistas à melhoria dos serviços, à concessão ou à extinção de vantagens, à melhor organização dos quadros funcionais etc. Como as normas estatutárias são contempladas em lei, segue-se que têm caráter genérico e abstrato, podendo sofrer alterações como ocorre, normalmente, em relação aos demais atos legislativos. O servidor, desse modo, não tem direito adquirido à imutabilidade do estatuto, até porque, se o tivesse, seria ele um obstáculo à própria mutação legislativa (SANTOS FILHO, 2017, p. 666-667).

Em que pese isso, o ordenamento constitucional e infraconstitucional contempla vários direitos individuais para o servidor. A aquisição desses direitos, porém, depende sempre de um fato gerador que a norma expressamente estabelece.

Vale citar o raciocínio do citado autor, para quem, se são preenchidos os requisitos para o seu exercício, o servidor passa a ter direito adquirido ao benefício ou vantagem que o favorece. Aqui, portanto, não se trata do problema da mutabilidade das leis, como antes referido, mas sim da imutabilidade do direito em virtude da ocorrência do fato que o gerou. Cuida-se nesse caso de direito adquirido do servidor, o qual se configura como intangível mesmo se a norma legal vier a ser alterada. É que, como sabido, a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, como proclama o art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal (SANTOS FILHO, 2017, p. 666-667).

Deve-se ter em mente, porém, que as alterações infraconstitucionais, e até mesmo a alteração da Constituição por Emenda Constitucional, submetem-se a várias limitações fixadas na Constituição (art. 60, CF), destacando-se as limitações materiais, constitutivas das denominadas “cláusulas pétreas” (art. 60, § 4º, CF), que formam o núcleo duro e intangível da Constituição Federal. Em virtude destas limitações, não pode ser objeto de deliberação a proposta legislativa que vise a abolir ou reduzir “direitos e garantias individuais”. De tal modo, se o servidor já tem direito adquirido, que é um dos vetores dos direitos individuais, não pode o legislador alterar as normas e retroagir seus efeitos a fim de suprimir ou reduzir tais direitos adquiridos.

2.6 Retrocesso social

Nessa ordem de ideias, importa dizer que um dos maiores desafios do Estado Democrático de Direito é a manutenção dos direitos humanos já conquistados, protegendo-os dos refluxos políticos e econômicos. Para manter essa conquista incólume, arvora-se o princípio da proibição do retrocesso, implícito na Constituição Federal de 1988 e nas normas de direitos humanos do ordenamento jurídico nacional e internacional, o qual tem a função de tornar tais direitos reconhecidos e conquistados imunes a toda sorte de crise política, fragilidade econômica ou ruptura social.

Cláudio Pereira e Daniel Sarmento explicam que os direitos fundamentais do homem são aqueles provenientes da própria condição humana, constituídos como núcleo intangível da dignidade e liberdade humanas, e que estão salvaguardados pela Constituição Federal do Brasil de 1988 como cláusulas pétreas, cuja interpretação deve estar voltada não só à proteção das condições necessárias ao funcionamento da democracia, como também à tutela de direitos básicos, decorrentes do reconhecimento da igual dignidade de todas as pessoas, assim como a consolidação de instituições políticas que assegurem e promovam a democracia e os direitos fundamentais. (SOUZA NETO, SARMENTO, 2004).

No mesmo trilho, a melhor doutrina aduz que o princípio da proibição do retrocesso significa que, uma vez regulamentado determinado preceito constitucional, inerente à liberdade e à dignidade humana, o legislador ou constituinte não poderiam, ulteriormente, retroceder no tocante aos direitos humanos concretizados, simplesmente ignorando, revogando ou contrariando a regulamentação, retrocedendo, assim, na evolução das conquistas jurídicas.

Para o jurista lusitano Canotilho (2003, p. 337), o princípio da proibição de retrocesso formula-se assim:

O núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade do legislador tem como limite o núcleo essencial já realizado.

Não há dúvida, portanto, de que o princípio da proibição do retrocesso constitui-se em proteção ao núcleo essencial dos direitos já realizados e efetivados através de medidas legislativas, vedando quaisquer medidas tendentes a anular, revogar ou aniquilar esse núcleo essencial, sendo somente aceita essa supressão se forem criados esquemas alternativos ou compensatórios.

2.7 Algumas alterações legislativas consideradas inconstitucionais

Vencidas essas premissas básicas sobre o servidor público e seu espectro de direitos e deveres à luz dos ditames constitucionais, percebe-se que o caráter normativo da Constituição de 1988 no tocante ao servidor público conforma e limita as normas infraconstitucionais, devendo estas adequar-se ao que a Carta determina, buscando garantir os direitos que nela foram assegurados de forma plena, não podendo as alterações normativas seguirem em sentido diverso daquilo que foi constitucionalmente afirmado.

Sob essa ótica, o STF, em 22/08/2019, ao julgar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 2238, 2324, 2256, 2241, 2250 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 24, declarou, por maioria, inconstitucional o parágrafo 2º do art. 23 da Lei de Responsabilidade Fiscal e votou contra a possibilidade de reduzir os vencimentos.

Conforme o ministro Edson Fachin, que inaugurou a divergência em relação à redução dos vencimentos, não cabe flexibilizar o mandamento constitucional da irredutibilidade de salários para gerar alternativas menos onerosas ao Estado. Segundo ele, “Por mais inquietante e urgente que seja a necessidade de realização de ajustes nas contas públicas estaduais, a ordem constitucional vincula, independentemente dos ânimos econômicos ou políticos, a todos”. Em sua visão, não há como reduzir o salário de servidores públicos, e a Constituição "não merece ser flexibilizada por mais pesadas que sejam as neves dos tempos”.

Registre-se que, conforme portal do STF (Disponível em <https://bit.ly/2lYmkPi>. Acesso em 03 set. 2019), o julgamento foi suspenso para aguardar o voto do ministro Celso de Mello, uma vez que não foi alcançada a maioria necessária à declaração de inconstitucionalidade das regras questionadas.

É notório que os últimos governantes brasileiros têm alegado que um congelamento de gastos estabelecido na Constituição deverá aumentar a confiança de investidores, reduzindo a dívida pública e a taxa de juros, e que isso, consequentemente, ajudará a tirar o país da recessão.

Acontece que as normas constitucionais fixadas pelo constituinte originário estão sendo sucessivamente feridas pelas recentes alterações legislativas tendentes à redução dos direitos e garantias individuais, ao retrocesso social e ao desmantelamento das instituições públicas, não sendo discutido e combatido o verdadeiro fator corrosivo das contas públicas, a dizer, a corrupção ativa perpetrada por vários políticos num esquema altamente sofisticado e profissionalizado de desvio de verbas públicas.

A título de exemplo, a Medida Provisória n. 805/2017, enquanto vigente (perdeu eficácia por não ter sido votada no Congresso nacional dentro do prazo previsto), ao postergar ou cancelar aumentos remuneratórios para os servidores públicos federais nos exercícios subsequentes, atacou o comando constitucional previsto no art. 37, X, da CF/88, o qual assegura aos servidores públicos “revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices”.

Assim, a pretensão do governo atual em propor uma PEC para redução da jornada e dos salários e o congelamento das progressões nas carreiras dos servidores, conforme noticiado na mídia (cf. portal de notícias Metrópoles. Disponível em <https://bit.ly/2ZFvSAR>. Acesso em 03 set. 2019), torna-se flagrantemente inconstitucional, na medida em que mira abolir os direitos e garantias individuais (CF/88, art. 60, § 4º, IV) e ofender o princípio da vedação do retrocesso social, alhures estudado.

Além disso, é passível questionar a incidência do teto dos gastos públicos nas despesas com educação e saúde por 20 anos, estabelecida pela Emenda Constitucional 95/2016, Como destacou o impetrante da ADI 5658 no STF, a EC 95/2016, além de fixar um teto para os gastos primários, congelando-os, também congela o piso de gastos com educação e saúde. Segundo a ação, o aumento da população fará com que os gastos públicos per capita nas áreas de saúde e educação sejam, na verdade, progressivamente reduzidos, sendo que as projeções econômicas e financeiras demonstram que a perspectiva é de sério comprometimento das bases materiais que permitem a efetivação desses direitos (cf. notícia publicada no sítio do STF. Disponível em <https://bit.ly/2kgOowZ>.Acesso em 01 set. 2019).

Em outra Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 5680, o autor alega que a norma ofende diversos preceitos constitucionais, sustentando que o novo regime fiscal, implementado pela emenda constitucional, “altera profundamente os pactos jurídico-políticos que estruturaram o Estado brasileiro, e consolidam uma maneira muito específica, particular e ideologicamente orientada de entender qual a política econômica que deve ser vista como correta”. A análise da constitucionalidade da Emenda Constitucional, afirma o autor, “não pode prescindir do exame de sua compatibilidade com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil em matéria de direitos humanos”, como a Carta da Organização das Nações Unidas, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Protocolo da São Salvador. (vide notícia publicada no sítio do STF. Disponível em <https://bit.ly/2kgLkAW>.Acesso em 01 set. 2019).

É imperioso ressaltar o reconhecimento da severa deterioração das contas públicas e a necessidade de um forte ajuste fiscal por parte de medidas políticas, como a fixação de um teto dos gastos públicos, a tal ponto, se necessário, de reduzir garantias essenciais já conquistadas pelos cidadãos, inclusive no regime jurídico dos servidores públicos, mas aprovando-se somente mudanças legislativas que garantam outros meios alternativos ou compensatórios desse núcleo intangível de direitos humanos fundamentais abalados.

considerações finais

Pode-se concluir, com essas digressões, que a fixação do teto dos gastos públicos, com prejuízo em áreas como saúde e educação, inclusive com diversos impactos causados ao regime jurídico dos servidores públicos, em ato atentatório às normas constitucionais, não distribuindo equitativamente o ônus do ajuste fiscal entre todas as classes sociais e econômicas, não serão capazes de ajustar as contas públicas.

Como apontado acima, as atuais mudanças legislativas sobre o reajuste fiscal tem violado as obrigações do Brasil de acordo com o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que o país ratificou em 1992, que veda a adoção de medidas deliberadamente regressivas, a não ser que exista outra alternativa ou medida compensatória, e que uma profunda consideração tenha sido feita de modo a garantir que as medidas adotadas sejam necessárias e proporcionais.

A solução da crise orçamentária exige eliminar, senão reduzir, as causas principais da crise econômica atual: os desmandos e atos de corrupção, a pilhagem do patrimônio público, o loteamento de cargos, a concessão seletiva de benefícios fiscais e financeiros, a gestão política desastrosa com o dinheiro público, o descontrole inflacionário, a impunidade em relação aos responsáveis pelos crimes contra a administração pública, os foros privilegiados injustificados, a impunidade, entre tantas outras causas que passam ao largo dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal como instrumentos da efetivação da dignidade humana.

Afinal, os direitos do servidor público assumem a forma de direitos sociais, eis que são direitos dos trabalhadores e que pressupõem prestações do Estado, configurando-se também como direitos fundamentais por tratar-se de direitos que englobam a noção de dignidade humana e estão positivados no texto constitucional, além de serem reafirmados por tratados internacionais de direitos humanos, cujas normas assumem status constitucional. Em suma: é necessário que se reconheça o servidor enquanto um trabalhador, devendo a ele serem atribuídos os direitos e deveres correspondentes.

Por tudo isso, deve o Estado garantir a dignidade do servidor público, com evidente e necessária ênfase no que diz respeito à condição de trabalhador. É assim, respeitando-se o servidor público enquanto pessoa, cidadão e trabalhador, que se tem o pleno respeito ao princípio da dignidade humana enquanto sujeito de direitos, ao fazer valer a Constituição, com consequente repercussão na qualidade e eficiência dos serviços públicos prestados pelo Estado, na medida em que os servidores públicos, executores das políticas de governo, são valorizados na sua dignidade e dimensão humana.

REFERÊNCIAS

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