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A função social da propriedade imóvel e o MST

A função social da propriedade imóvel e o MST

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Num país de dimensões continentais, como é o caso do Brasil, a posse pela terra tem causado grandes conflitos nos quais a violência parecer ter sido o traço mais marcante.

O conflito pela terra em nosso território é manifesto e violento desde que o Brasil foi conquistado. Portugueses e indígenas travaram, já no ano de 1500, uma sangrenta luta pela posse e propriedade da terra brasilis. Os "mais civilizados", dessa feita, eram os invasores e, pela força de suas armas, saíram vitoriosos.

Cinco séculos depois, a luta continua. Agora, os "mais civilizados" (grandes proprietários de terra) sentem-se agredidos pelas ocupações e, no conflito, têm saído "vitoriosos" pelo uso da força de suas armas e de seus direitos.

O presente trabalho visa, exatamente, questionar a força desses direitos à luz da Constituição Federal de 1988, do Novo Código Civil de 2002 e dos princípios da justiça social.

Abordaremos, para tanto, a evolução do conceito da propriedade e da sua função SOCIAL através da Constituição e do Código Civil Brasileiro, a atuação do Estado na normatização e regulamentação dos direitos à propriedade e à desapropriação, e o papel desenvolvido pelo MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – na busca de uma vida melhor para uma minoria desprestigiada em nosso país.

Através da "dissecação" de um caso concreto levado ao judiciário, tentaremos demonstrar que a função social é um princípio e como tal não se aplica à maneira de um "tudo ou nada", podendo, em certas circunstâncias, exigir juízos de ponderações em face de outros princípios.

Por fim, quanto ao corte temático, o trabalho concentrar-se-á na função social da propriedade imóvel, a despeito de o princípio incidir também em face de outros tipos de propriedade.


I - PROPRIEDADE: Conceituação na História

Antes de começarmos a expor o que venha a ser a chamada função social da propriedade imóvel, é imperioso que façamos uma breve análise da evolução histórica da propriedade, ressaltando que o princípio da função social tem como pressuposto necessário a Propriedade e, por isso, faz-se necessário e importante, também, cuidarmos simultaneamente, ainda, que em breves linhas, do elo existente entre função social e o direito da propriedade.

Modernamente o direito de propriedade é o mais amplo de todos os direitos reais – "plena in re postesta". Sua conceituação pode ser feita à luz de três critérios: o sintético, o analítico e o descritivo. Sinteticamente, é de se defini-lo, com Windscheid, como a submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa. Analiticamente, o direito de usar, fruir e dispor de um bem, e de reavê-lo de quem injustamente o possua. Descritivamente, o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei. [01]

No entanto, o conceito e a compreensão, até atingir esta concepção moderna de propriedade, sofreram inúmeras influências no curso da história dos vários povos, desde a antiguidade, as quais detalhamos a seguir.

Antes da época romana, nas sociedades primitivas, somente existia propriedade para as coisas móveis. O solo pertencia a toda a coletividade. Isso acontecia porque esses homens viviam exclusivamente da caça, da pesca e de frutos silvestres e quando esses recursos se tornavam escassos ou desapareciam, o grupo social tinha que se deslocar para outras terras. Não estava o homem preso ao solo, porque essa constante movimentação não o permitia. Destarte, não havia noção de utilização privativa do bem imóvel. No curso da história, a permanente utilização da mesma terra pelo mesmo povo, pela mesma tribo e pela mesma família passa a ligar então o homem à terra que usa e habita, surgindo daí, primeiramente, a concepção de propriedade coletiva e, posteriormente, individual. [02]

Quanto ao momento em que surge, na sociedade romana, a primeira forma de propriedade territorial, é difícil precisar. A noção de propriedade imobiliária individual, segundo algumas fontes, data da Lei da XII Tábuas. Nesse primeiro período do Direito Romano, o indivíduo recebia uma porção de terra que devia cultivar, mas, uma vez terminada a colheita, a terra voltava a ser coletiva. Paulatinamente, fixa-se o costume de conceder sempre a mesma porção de terra às mesmas pessoas ano após ano. Ali, o pater famílias instala-se, constrói sua moradia e vive com sua família e escravos. Nesse sentido, arraiga-se no espírito romano a propriedade individual e perpétua. A Lei das XII Tábuas projeta, na verdade, a noção jurídica do ius utendi, fruendi et abutendi. Considerava-se o domínio sobre a terra de forma absoluta. Nos primeiros séculos da história romana somente se admite o dominium ex jure quiritium, propriedade adquirida unicamente sob formas determinadas, fora das quais não poderia constituir-se. Apenas na época clássica o Direito Romano admite a existência de uso abusivo do direito de propriedade e sua reprimenda.

A concepção romana de propriedade foi transmitida pelos glosadores para a cultura jurídica da Europa continental.

Na Idade Média, a propriedade perde o caráter unitário e exclusivista. Com as diferentes culturas bárbaras, modificam-se os conceitos jurídicos. O território, mais do que nada, passa a ser sinônimo de poder. A idéia de propriedade está ligada à soberania nacional. Os vassalos serviam ao senhor. Não eram senhores do solo.

O Direito Canônico incute a idéia de que o homem está legitimado a adquirir bens, pois a propriedade privada é garantia de liberdade individual. No entanto, por influência de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, ensina-se que a propriedade privada é imanente à própria natureza do homem que, no entanto, deve fazer justo uso dela.

A partir do século XVIII, a escola do direito natural passa a reclamar leis que definam a propriedade. A Revolução Francesa recepciona a idéia romana. O código de Napoleão, como conseqüência, traça a conhecida concepção extremamente individualista do instituto no art. 436: "a propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas do modo mais absoluto, desde que não se faça uso proibido pelas leis ou regulamentos." Como sabido, esse código e as idéias da revolução repercutiram em todos os ordenamentos que se modelaram no código francês. [03]

Então, é a partir do século XIX, com a revolução e o desenvolvimento industrial e com as doutrinas socializantes, que o exagerado individualismo começa a perder força. Passa a ser buscado um sentido social para a propriedade, frente aos abusos cometidos pelos grandes detentores dos bens, móveis e imóveis.

Embora a propriedade móvel continue a ter sua relevância, a questão da propriedade imóvel, da moradia e do uso adequado da terra passam a ser a grande, senão a maior questão do século XX, agravada nesse início de século XXI pelo crescimento populacional e empobrecimento geral das nações. Este novo século terá, sem dúvida, como desafio, situar devidamente a utilização social da propriedade.


II – FUNÇÃO SOCIAL

Simplificadamente, podemos conceituar a função social da propriedade como a submissão do direito de propriedade, essencialmente excludente e absoluto pela natureza que se lhe conferiu modernamente, a um interesse coletivo.

A função social da terra foi admiravelmente definida por Leon Duguit, ao sustentar que a propriedade não é um direito, mas uma função social. O proprietário ou possuidor da riqueza é vinculado a uma função ou dever social. Enquanto ele, detentor da propriedade, cumpre essa missão, seus atos devem ser protegidos. Não o cumprindo ou cumprindo mal ou de forma imperfeita; se não a cultiva ou deixa que sua propriedade se arruine, torna legítima a intervenção do poder público para compeli-lo ao cumprimento de sua função social de proprietário, consiste em assegurar a utilização da riqueza conforme o seu destino. (in "Las Transformaciones generales del Derecho Privado desde el Condigo de Napoleón", trad. Castelhana, Edit, Francisco Beltrán, Buenos Aires). [04]

José Cretella Júnior, ao tratar da função social da propriedade conclui que: "... o direito de propriedade, outrora absoluto, está sujeito em nossos dias a numerosas restrições, fundamentadas no interesse público e também no próprio interesse privado de tal sorte que o traço nitidamente individualista, de que se revestia, cedeu lugar à concepção bastante diversa, de conteúdo social, mas do âmbito do direito público". [05]

Leon Duguit pode ser considerado o pai da idéia de que os direitos só se justificam pela missão para qual devem contribuir e, portanto, que o proprietário se deve comportar e ser considerado, quanto à gestão dos seus bens, como um funcionário. De um de seus textos abstrai-se: "a propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar a função social do detentor da riqueza mobiliária e imobiliária; a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de empregá-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só o proprietário pode executar certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder". [06]

Isto não significa, evidentemente, o fim do direito de propriedade, mas tão-somente o seu exercício útil e racional. As transformações, em nenhum momento, acusam o sentido de um movimento para a abolição do direito de propriedade. É certo que progride de tendência para submeter certos bens de produção ao poder exclusivo do Estado, mas não deve ser interpretada como indícios de socialização da propriedade. O significado da evolução contemporânea do direito de propriedade é o de sua preservação, mediante concessões e através de sua popularização. Quanto ao seu exercício com o sentido funcional que se lhe pretende emprestar, cumpre distinguir a propriedade dos bens de produção da propriedade dos bens de consumo ou dos bens de uso.

Observe-se que a função social da propriedade não grava todo e qualquer bem, indiscriminadamente. [07]

As medidas tendentes a adequá-la ao sentido novo só se justificam quanto à propriedade dos primeiros. A propriedade dos bens de uso, ou dos bens de consumo, permanece livre de restrições na sua aquisição e utilização visto que o domínio dessas coisas é reconhecido e protegido para gozo pessoal. [08]


III – HISTÓRICO DA FUNÇÃO SOCIAL

É a partir das obras de direito agrário que melhor se remonta o retrospecto da função social da propriedade. Com base na obra do ilustre professor da Faculdade de direito da Universidade Federal de Goiás Benedito Ferreira Marques, as origens do princípio da função social estão em lições de ARISTÓTELES, o primeiro a entender que aos bens se deveria dar uma destinação social. [09]

Depois de ARISTÓTELES, a idéia só foi impulsionada por Tomás de Aquino. Segundo ele, a propriedade possuía três planos distintos na ordem de valores. No primeiro, o homem teria um direito natural ao apossamento de bens materiais, dada a sua natureza de animal racional, como forma de manter sua própria sobrevivência. No segundo, considerou-se que o homem não poderia refletir apenas acerca de sua sobrevivência imediata, como ocorre com os animais irracionais, porque deveria pensar também no amanhã, pois, para que fosse verdadeiramente livre, precisaria estar no abrigo das surpresas econômicas. Num terceiro plano, permitir-se-ia o condicionamento da propriedade em razão do momento histórico de cada povo, desde que não se chegasse a negá-lo. Ou seja, embora a propriedade consistiria num direito natural, o proprietário não poderia abstrair-se do dever do zelar pelo "bem-comum". [10]

Em seguida, porém, operaram-se várias fases da evolução do conceito do direito de propriedade, até que o Código de Napoleão o fixasse características quase absolutas, oponível a quem quer que tentasse prejudicar esse direito, sem mencionar a questão da função social, apenas estabelecendo, que esse direito não poderia ser exercido se fosse proibido em leis e regulamentos.

Este novo conceber da propriedade, fundada no absoluto uso, gozo e disposição dos bens consagrados no Código Napoleônico e em outros sistemas jurídicos formados ao longo do século XIX e início do século XX, por um lado representava o definitivo rompimento com o decadente regime feudal, a representação máxima da liberdade individual, por outro, no entanto, com a crescente industrialização que se seguiu de forma desordenada pela não-interveniência do Estado, logo mostrou sua face nefasta: a exploração da propriedade de forma irrestrita e incondicional, com o desmedido intuito de lucro, permitiu a concentração de capital nas mãos de poucos, que, através do poder econômico e do monopólio dos meios produtivos, estabeleciam, unilateralmente, as condições dos contratos, tornando a tão decantada liberdade de contratar num verdadeiro cárcere aos menos favorecidos, que cada vez mais viam escasseadas as opções para a satisfação de suas necessidades, seja de trabalho, seja de consumo.

Esse quadro de desigualdade e exploração abriu, destarte, espaço para um novo pensar sobre a atividade estatal, exigindo-lhe uma atuação interventiva, através da imposição de deveres que pudessem garantir ao indivíduo condições mínimas para uma vida digna, o que na doutrina constitucional são chamados de direitos fundamentais de segunda geração. E, é nessa esteira que a doutrina da função social renasce, propondo a alteração do conceito de propriedade, de mero objeto de apropriação humana, para ser compreendido como um bem de produção a serviço do bem estar e da justiça sociais. [11]


IV – FUNÇÃO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA

Até a independência, regeu-se o Brasil pela legislação portuguesa corporificada nas Ordenações Manuelinas, Afonsinas e Filipinas. A primeira legislação pátria independente surge em 1824 com a Constituição Imperial, outorgada por D. Pedro I. Em seu artigo 179, inc. XXII, sob inspiração liberal, consagrava que era garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude. Embora se permitisse a desapropriação pelo bem público, não se pode inferir que se houvesse aí contemplado qualquer homenagem a uma função social. A Constituição de 1891 acrescentou como causas para a desapropriação a necessidade ou a utilidade pública, mas, ainda, estava dominada pelo mesmo fervor individualista na concepção do direito de propriedade. A emenda constitucional de 1926 consistiu a primeira limitação ao direito de propriedade. A esta limitação, que se referia às minas e jazidas minerais, a Constituição de 1934 somou a concernente às quedas d’água e ainda ressalvou, em seu artigo 113, que o exercício do direito de propriedade não se poderia fazer contra o interesse social ou coletivo.

Os mesmos princípios foram mantidos no texto de 1937, art. 122, n. 14, e 143, e na Lei Constitucional n. 5, de 1942. [12] A rigor, foi a Constituição de 1946 que expressou, pela primeira vez, a preocupação com a função social da propriedade, na esteira de copiosa legislação intervencionista que caracterizou os primeiros passos do Estado assistencialista e da socialização do direito civil. [13]

As Constituições de 1967 e 1969 também revelavam a preocupação do ordenamento brasileiro com a função social da propriedade. Disciplinada no art. 157, III, da CF/67 e no art. 160, III, da CF/69 a função social da propriedade foi concebida como princípio de ordem econômica e social.

Analisando o texto das Constituições anteriores a de 1988, que expressamente consignaram a função social da propriedade, percebe-se, em todas elas, que a inclusão do princípio se deu no capítulo destinado à ordem econômica. De outro turno, ainda que a Carta de 1988 tenha feito o mesmo, inovou o constituinte consagrando o princípio, em relativização ao próprio direito individual de propriedade, no capítulo destinado aos direitos fundamentais (inciso XXIII do artigo 5º). Ademais, a propriedade privada foi incluída em inciso autônomo, entre os princípios da ordem econômica (inciso II do art. 170), antes mesmo da enunciação do princípio da função social da propriedade (inciso II, do mesmo artigo). [14]

"A Constituição brasileira de 1988 introduziu profundas transformações na disciplina da propriedade, no âmbito de uma ampla reforma de ordem econômica e social, de tendência nitidamente intervencionista e solidarista". [15]

Ao passo em que estabelece como garantia fundamental, aos brasileiros e estrangeiros residentes no país, a inviolabilidade do direito à propriedade (art. 5º, caput), estabelece que esta deverá atender a sua função social para estar sob a proteção desta Constituição (art. 5º, XXIII).

A fim de nortear todos aqueles que estão sob a égide desta norma constitucional, define, nos artigos 182, § 2º e 186 da CF/88, os requisitos necessários ao cumprimento da função social da propriedade urbana e rural, respectivamente.

Art. 182, § 2º: "A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressa no plano diretor."

Art. 186: "A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I – aproveitamento racional e adequado;

II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores."

Portanto, somente a propriedade que a atenda a todos os requisitos dos arts. 182, § 2º e 186 da CF/88 é que terá atendido a sua função social. Assim, ainda que produtiva, a propriedade rural não atenderá a sua função social se a sua produção estiver baseada em violação das normas trabalhistas, por exemplo. [16]

Os preceitos, contidos nos arts. 182, § 2º e 184, como se vê acima, condicionam a fruição individual do proprietário ao atendimento dos múltiplos interesses não proprietários, demonstrando a preocupação do legislador constituinte com os dramáticos conflitos sociais. A proteção ambiental, a utilização racional das reservas naturais, as relações de trabalho derivadas da situação proprietária, o bem-estar desses mesmos trabalhadores são interesses tutelados constitucionalmente e que passaram a integrar o conteúdo funcional da situação proprietária.

O art. 182 e seus §§, da Constituição, disciplinam a utilização da propriedade urbana no âmbito bem mais amplo da política territorial urbana, tendo por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Nesta mesma linha, o artigo 184 e seus parágrafos regulam a propriedade rural no capítulo dedicado à Política Agrícola e Fundiária e à Reforma Agrária. Pode-se notar a previsão de diversas disciplinas de acordo com a potencialidade econômica da propriedade, levando-se em conta a sua destinação.


V – FUNÇÃO SOCIAL NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO

Como se sabe, o Código Civil Brasileiro de 1916 não definia o direito de propriedade e se limitava a indicar, no caput do art. 524, os poderes do proprietário: "A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua." Sendo que tais poderes compunham o aspecto estrutural do direito de propriedade, sem nenhuma referência ao aspecto funcional do instituto.

O Novo Código Civil Brasileiro de 2002, por sua vez, trouxe importantes inovações na disciplina da propriedade destacando-se:

Art. 1228 – "O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha."

"§1º. O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas".

Como se vê, o caput do art. 1.228, ao tratar da estrutura dos poderes do proprietário, substitui a locução "a lei assegura ao proprietário", de matriz nitidamente jusnaturalista, em que a norma legal se limita a reconhecer o poder a ela pré-existente, pela expressão "o proprietário tem a faculdade", mais técnica e consentânea com a concepção positivista da propriedade privada.

Por outro lado, o § 1º, ao vincular o exercício do direito de propriedade às suas finalidades econômicas e sociais, visa a perseguir a tutela constitucional da função social, reclamando uma interpretação que, para além da mera admissão de eventuais e contingentes restrições legais ao domínio, possa efetivamente dar um conteúdo jurídico ao aspecto funcional das situações proprietárias. [17]


VI – O DIREITO DE PROPRIEDADE, O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL E A ATUAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

"A propriedade atenderá à sua função social" (art. 5º, XXIII, CF/88). Não obstante já ter sido objeto de inúmeras obras jurídicas, tanto no campo do direito constitucional quanto na seara do direito privado, tendo em vista a sua recente codificação pela novel Lei Nº 10.406/02, o princípio da função social da propriedade parece ainda não ter sido compreendido (ou aceito), em toda sua plenitude, pela sociedade civil e por aqueles que a representam.

Quem já não presenciou em disputas ou, simplesmente, ouviu falar a seguinte frase: "tudo posso em minha propriedade, faço dela o que bem entender e tenho pena daqueles que a tentarem invadi-la; afinal, minhas riquezas vêm do meu suor e tenho o direito de defendê-las".

Tais palavras, apesar de prolatadas sem conotações propriamente jurídicas, são fruto de uma cultura individualista, em que acima do interesse de todos estão os interesses pessoais. Essa cultura resultou e ainda resulta na exclusão dos que não têm fortuna e acesso ao capital, implicando necessariamente a manutenção de uma desigualdade insustentável, que naturalmente gera tensão e conflito social.

No intuito de reduzir tais desigualdades, resguardando na medida do possível os direitos e garantias individuais, é que foi instituído o Estado Democrático de Direito em nosso país, tomando por base, dentre outros, os princípios da soberania popular e da dignidade da pessoa humana.

São bastante claros, nesse sentido, o inciso III e o parágrafo único do artigo 1º, assim como o preâmbulo da Carta Magna brasileira, que, apesar deste não ter um caráter normativo, servem de diretriz política, filosófica e ideológica aos aplicadores do texto constitucional, tornando-se relevantes ferramentas para a sua interpretação, in verbis:

"Preâmbulo: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL". (grifos apostos).

"Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana

(...)

Parágrafo único. Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."

Destarte, diversamente do que ocorre nos Estados Liberais, em que se pregam a mínima intervenção estatal e a liberdade individual, como valores supremos, no tipo de Estado adotado por nossa Constituição há uma dilatação de suas atribuições e funções, deixando ele de exercer exclusivamente o Poder de Polícia e passando a se responsabilizar também pela prestação dos serviços essenciais à sociedade, tornando-se, como já destacado pelo festejado constitucionalista citado, verdadeiro "promotor de justiça social".

"A conseqüência direta e imediata da implementação de um Estado Democrático de Direito preocupado com o bem-estar da sociedade é a inversão de princípios, pelo que se passa a aceitar uma maior intervenção estatal na esfera privada e a se pregar a supremacia do interesse social sobre os interesses individuais. Dessa forma, inevitável é uma mitigação da clássica dicotomia entre o público e o privado, não sendo possível, nesse contexto, a subsistência de direitos individuais absolutos, tendo em vista a sua limitação pelo interesse social". [18]

Importante destacar, porém, que ainda que caiba à lei regular como a função social estará sendo cumprida, a não-satisfação do princípio só haverá de acarretar as conseqüências estabelecidas na própria Constituição.

E tais conseqüências podem ser: (a) o parcelamento ou a edificação compulsória dos imóveis urbanos (inciso I do §4º do art. 182 (60)); (b) o aumento progressivo da carga tributária incidente sobre os imóveis urbanos (§1º do art. 156, na redação que lhe deu a EC n. 29/2000, c/c inciso II do §4º do art. 182 (61)) e rurais (art. 153, §4º); (c) a desapropriação-sanção de imóveis urbanos, com pagamento integral mediante títulos da dívida pública (inciso III do §4º do art. 182 (62)); (d) a desapropriação-sanção de imóveis rurais, com o pagamento em dinheiro das benfeitorias úteis e necessárias (§1º do art. 184) e o restante em títulos da dívida agrária (art. 184, caput); (e) a desapropriação-sanção, sem indenização, no caso das glebas onde forem encontradas culturas ilegais de plantas psicotrópicas (art. 243 (63)), e; (f) a desapropriação comum, prévia e integralmente indenizada em dinheiro, por motivo de interesse social, nas situações a serem estabelecidas por lei ordinária (inciso XXIV do art. 5º).

Fora dessas hipóteses, porém, remanesce a garantia da propriedade, inclusive a de reivindicá-la das mãos de terceiros que, injustamente, a detenham.


VII – FUNÇÃO SOCIAL E A DESAPROPRIAÇÃO

A Constituição regulamenta em seu texto possibilidades de desapropriação por interesse social. O art. 182, § 4º, no capítulo referente à política urbana, atribui ao Estado poderes para desapropriar a propriedade imobiliária urbana não edificada, subutilizada ou não utilizada, cujo proprietário, nos termos da lei, não promova o seu adequado aproveitamento. Por sua vez, o art. 184 estabelece que "compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização (...)". [19]

Por outro lado, em relação à pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra; e à propriedade produtiva, estabelece o art. 185 da Constituição uma zona de imunidade à desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, ainda que a função social não esteja sendo observada.

Nesse prumo, o art. 185, I previu que as definições, acerca da pequena e média propriedade rural, seriam fixadas, posteriormente, por lei, de modo a atender às peculiaridades da região onde se situa cada imóvel rural. E essa tarefa foi confiada à Lei 8.629/93. A conceituação de pequena e média propriedade rural veio a ser estabelecida com o art. 4º da referida Lei, pelo qual ficou assentado que pequena propriedade é aquela com área compreendida entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos rurais, e média propriedade é o imóvel rural de área superior a 4 (quatro) e até 15 (quinze) módulos rurais.

O módulo rural é a área mínima, em determinada zona, considerada necessária à produção da renda capaz de sustentar o grupo doméstico, variável em função do tipo de exploração, das condições ecológicas e outros fatores. Tão importante é o módulo que nem mesmo por efeito de sucessão hereditária e partilha pode ser dividido.

A propriedade produtiva pode ser reconhecida, consoante ao estabelecido no esquema legislativo de fixação dos critérios de cumprimento da função social do imóvel rural, estabelecidos pela Lei 8.629/93, atualmente alterada pela MP 1.577, de 11/06/97, e reedições (atualmente, MP 2.183-56, de 24/08/2001), através da observação dos critérios resumidos abaixo.

"O reconhecimento da produtividade da gleba exige sejam atingidos, cumulativamente, nos termos do art. 6º da Lei 8.629/93: (a) um percentual mínimo de 80% do grau de utilização da terra (GUT), e; (b) um percentual igual ou superior a 100% do grau de eficiência da exploração econômica (GEE).

O cálculo do índice do GUT considera a área efetivamente utilizada do imóvel, em cotejo com a área potencialmente utilizável, excluídas, desse último conceito, por força do art. 10 da Lei 8.629/93, as áreas ocupadas por construções e instalações, excetuadas aquelas destinadas a fins produtivos, como estufas, viveiros, sementeiros, tanques de reprodução e criação de peixes e outros semelhantes; as áreas comprovadamente imprestáveis para qualquer tipo de exploração agrícola, pecuária, florestal ou extrativa vegetal; as áreas sob efetiva exploração mineral; as áreas de efetiva preservação permanente e demais áreas protegidas por legislação relativa à conservação dos recursos naturais e à preservação do meio ambiente.

De sua vez, o GEE é obtido por meio da aplicação de sistemática de cálculo que leva em consideração a destinação econômica da gleba em face de índices de rendimento considerados medianos, de acordo com a região onde se localiza o imóvel. Assim, determina o art. 6º, §2º, da Lei 8.629/93, que, para os produtos vegetais, divide-se a quantidade colhida de cada produto pelos respectivos índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea (inciso I); para a exploração pecuária, divide-se o número total de Unidades Animais (UA) do rebanho, pelo índice de lotação estabelecido pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea (inciso II). Então, a soma dos resultados obtidos na forma anterior é dividida pela área efetivamente utilizada e multiplicada por 100 (cem), determinando-se assim o grau de eficiência na exploração (GEE) do imóvel rural. Dessa forma, um imóvel, com níveis de exploração econômica mais eficiente que aqueles relativos à média exigida pelos órgãos oficiais, poderá obter um percentual superior a 100% de GEE". [20]

Importante relembrar, que a produtividade, para impedir a desapropriação, deve ser associada à realização de sua função social, ficando imune desta obrigatoriedade, apenas, a pequena e média propriedade rural, conforme conceituadas na constituição.

Utilizada para fins especulativos, mesmo se produtora de alguma riqueza, não atenderá a sua função social se não respeitar as situações jurídicas existenciais e sociais nas quais se insere. Em conseqüência, não será merecedora de tutela jurídica, devendo ser desapropriada, pelo Estado, por se apresentar como um obstáculo ao alcance dos fundamentos e objetivos – constitucionalmente estabelecidos – da República. [21]

Em referência a desapropriação para reforma agrária, é exigida, além dos requisitos acima descritos, também, a edição de decreto que:

a)declare o imóvel como de interesse social, para fins de reforma agrária;

b)autorize a União a propor ação de desapropriação.

A análise dos requisitos constitucionais leva à conclusão de que a finalidade do legislador constituinte foi garantir um tratamento constitucional especial à propriedade produtiva, vedando-se sua desapropriação e prevendo a necessidade de edição de lei que fixe requisitos relativos ao cumprimento de sua função social. Note-se que a constituição veda a desapropriação da propriedade produtiva que cumpra a sua função social. [22]


VIII – DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL

Depois do que foi acima exposto, nos indagamos: como podemos explicar que uma reintegração de posse pleiteada por proprietário, cuja propriedade atenda aos requisitos do art.186 CF (cumprimento da função social) e aos critérios definidores de produtividade, não encontre êxito em sua ação, perdendo a posse para os "posseiros", descritos como pessoas carentes, que não dispõem do mínimo necessário a uma existência digna?

Isto acontece porque estamos diante de princípios constitucionais que se chocam.

De acordo com o que apreendemos dos doutrinadores, os princípios diferem das regras.

A definição de princípio ("Grundsatz") foi elaborada por ESSER já em 1956. Para ele os princípios, ao contrário das normas (regras), não contêm diretamente ordens, mas apenas fundamentos, critérios para justificação de uma ordem. A distinção entre princípios e regras não seria, portanto, apenas com base no grau de abstração e generalidade da prescrição normativa relativamente aos casos aos quais elas devem ser aplicadas: a distinção seria de "Qualität". Os princípios não possuem uma ordem vinculada estabelecida de maneira direta, senão que apenas fundamentos para que essa seja determinada.

"Segundo o critério do fundamento de validade adotado por WOLLFBACHOF e FORSTHOFF, os princípios seriam diferentes das regras por serem dedutíveis objetivamente do princípio do Estado de Direito, da idéia de Direito ou do princípio da justiça. Eles funcionariam como fundamentos jurídicos para as decisões. Ainda que com caráter normativo, não possuiriam a qualidade de normas de comportamento, dada a sua falta de determinação". [23]

Na dicção de DWORKIN, as regras são aplicadas à maneira de um "tudo ou nada" (all or nothing), no sentido de que se a hipótese de incidência de uma regra é preenchida, ou é a regra válida e a conseqüência normativa deve ser aceita ou ela não é considerada válida. Os princípios, ao contrário, não determinam vinculativamente a decisão, mas somente contêm fundamentos, os quais devem ser conjugados com outros fundamentos provenientes de outros princípios. Daí a afirmação de que os princípios, ao contrário das regras, possuem uma dimensão de peso ("dimension of weight"), demonstrável na hipótese de colisão entre os princípios, caso em que o princípio com peso relativo maior sobrepõe-se ao outro, sem que este perca validade. Nesse sentido, a distinção elaborada por DWORKIN não consiste numa distinção de grau, mas numa diferenciação quanto à estrutura lógica, baseada em critérios classificatórios, em vez de comparativos, como afirma ALEXY.

Para ele, ALEXY, os princípios jurídicos consistem apenas numa espécie de normas jurídicas por meio das quais são estabelecidos os deveres de otimização aplicáveis em vários graus, segundo as possibilidades normativas e fáticas. Os princípios, portanto, possuem apenas uma dimensão de peso, e não determinam as conseqüências normativas de forma direta, ao contrário das regras. É só a aplicação dos princípios diante dos casos concretos que os concretiza mediante regras de colisão. Por isso a aplicação de um princípio deve ser vista sempre com uma cláusula de reserva, a ser assim definida: "se no caso concreto um outro princípio não obtiver maior peso". É dizer o mesmo: a ponderação dos princípios conflitantes é resolvida mediante a criação de regras de prevalência, o que faz com que os princípios, desse modo, sejam aplicados também ao modo "tudo ou nada" ("Alles-oder-Nichts"). [24]

Do modo de solução da colisão de princípios é que se induz o dever de proporcionalidade. Quando ocorre uma colisão de princípios é preciso verificar qual deles possui maior peso diante das circunstâncias concretas. Por exemplo: a tensão que se estabelece entre a proteção da dignidade humana e da esfera íntima de uma pessoa (CF, art. 1º, III e art. 5º, X), de um lado, e o direito de proteção judicial de outra pessoa (CF art. 5, XXXV), de outro, não se resolve com a primazia imediata de um princípio sobre outro. No plano abstrato, não há uma ordem imóvel de primazia, já que é impossível saber se ela seria aplicável a situações ainda desconhecidas. A solução somente advém de uma ponderação no plano concreto, em função da qual estabelecer-se-á que, em determinadas condições, um princípio sobrepõe-se ao outro.

Humberto Ávila, contrariando, em parte, o pensamento de ALEXY, defende que "não são os princípios que possuem uma "dimensão de peso", mas às razões e aos fins aos quais eles fazem referência é que deve ser atribuída uma dimensão de importância. A maioria dos princípios não diz nada sobre o peso das razões, mas é a decisão que lhes atribui um peso em função das circunstâncias do caso concreto. A citada "dimensão de peso" ("dimension of weight") não é, então, atributo abstrato dos princípios, mas qualidade das razões e dos fins a que eles fazem referência, cuja importância concreta é atribuída pelo aplicador. Vale dizer: a dimensão de peso não é um atributo empírico dos princípios, justificador de uma diferença lógica relativamente às regras, mas resultado de juízo valorativo do aplicador". [25]

Exemplo: se a realização de uma audiência oral num processo crime, poderia trazer risco de vida para o acusado – acometido de grave moléstia -, o direito à vida, deste último, sobrepõe-se ao dever do Estado de garantir aplicação adequada do direito penal, constituindo-se esta circunstância (ameaça à vida do acusado), no fato gerador de uma regra que expressa a conseqüência do princípio precedente (não realização da audiência).

Portanto, em vigor a Constituição de 1988, encaixa-se perfeitamente no conceito de princípio constitucional explícito a exigência de que a propriedade cumpra sua função social (inciso XXIII do art. 5º). No entanto, a observância da função social da propriedade não se aplica à maneira de um tudo ou nada, tampouco se pode, de antemão, indicar todas as condições necessárias à sua incidência. Em vez disso, a verificação do cumprimento da função social pode exigir juízos de ponderação em face de outros princípios, sendo necessária a "concretização" de seu alto grau de abstração. Este é o caso do primeiro parágrafo deste tópico, ou seja, no confronto entre o princípio da função social e da dignidade da pessoa humana, em muitas situações, prevalece este último.

DA JURISPRUDÊNCIA A SER ESTUDADA

Como alhures referido, o presente estudo pretende dissecar um caso concreto levado ao judiciário a fim de demonstrar como se têm posicionado algumas câmaras cíveis de nosso egrégio Tribunal de Justiça ao decidir questões que, intrinsecamente, envolvam o conflito entre princípios Constitucionais. Também, pretende-se mostrar que a função social é um princípio e por isso não pode ser aplicada como se regra fosse.

Trata-se de agravo de instrumento intentado por José Cenci e outros, contra decisão em ação de reintegração de posse que tem por autora Merlin S/A Indústria e Comércio de Óleos Vegetais, oriundo da Comarca de São Luiz Gonzaga.

O referido agravo visa impedir a execução de despejo, deferida, liminarmente, na ação de reintegração de posse à empresa arrendatária em detrimento dos "sem terras". Face à urgência, a agravante requereu a concessão liminar da tutela do Estado, pedindo que o agravo fosse recebido com efeito suspensivo.

Em regime de urgência no Tribunal de Justiça, o eminente Desembargador Plantonista Rui Portanova recebeu o recurso e suspendeu a liminar do Juízo de 1º grau, até decisão final do agravo.

RELATÓRIO

A Merlin S/A Indústria e Comércio de Óleos Vegetais, em 14.5.1997, celebrou com Agropecuária Primavera Ltda. Escritura Pública de Arrendamento de Imóveis Rurais, registrada no livro de Contratos do Tabelionato de Bossoroca, pelo prazo de 10 anos.

Em face da iminência de ver a propriedade invadida pelos integrantes do Movimento dos Sem Terra, acampados às margens da Rodovia BR 285, em frente da Agropecuária Primavera ou Fazenda Primavera, ajuizou Ação de Manutenção de Posse, cuja liminar foi indeferida.

Em 4.9.98, os integrantes do Movimento dos Sem Terra invadiram as dependências da Agropecuária Primavera e expulsaram os funcionários da fazenda, o que ensejou o ingresso da empresa arrendatária, Merlin Indústria e Comércio de Óleos Vegetais S/A, com Ação de Reintegração de Posse, com pedido liminar contra o Movimento dos Sem Terra, alegando, em síntese, que:

a) na área arrendada com a Agropecuária Primavera estão edificadas as benfeitorias elencadas às fls.;

b) a área arrendada destina-se à produção agrícola de culturas temporárias, o que não pode ser alterado;

c) encontram-se estocados aproximadamente 20 mil sacos de soja, 1.200 sacos de soja semente, 60 toneladas de adubo, defensivos agrícolas, óleo diesel;

d) há exploração da pecuária (80 bovinos);

e) o MST apossou-se do caminhão da fazenda e transporta invasores de outros locais;

f) os escritórios foram invadidos e houve destruição de documentos e equipamentos da fazenda;

g) estão preenchidos os requisitos legais elencados no artigo 927 do CPC;

O Ministério Público manifestou-se pela concessão da liminar requerida; a tentativa de conciliação resultou inexitosa; os representantes do MST foram citados, provavelmente, em audiência, e, quanto aos demais integrantes, determinou-se a citação editalícia.

Conclusos para decisão, entendeu a MM Magistrada em conceder "a liminar de reintegração de posse para determinar que a empresa Merlin Indústria e Comércio de Óleos Vegetais S/A seja reintegrada na posse do imóvel esbulhado, determinando que os integrantes do MST procedessem a desocupação voluntária da Fazenda Primavera no prazo de 5 dias, a contar de 11.9.98, data do deferimento da medida.

Inconformado com a decisão proferida nos autos da Reintegração de Posse, interpôs, José Cenci e outros, Agravo de Instrumento com pedido de efeito suspensivo e concessão de assistência judiciária gratuita, citando, em síntese, que:

a) o recurso é cabível e tempestivo;

b) as peças obrigatórias estão juntadas à inicial;

c) a área correspondente à fração de terras de campos e matos (434ha91ca), localizada no lugar denominado Pessegueiro, no Município de São Luiz Gonzaga é "coisa litigiosa, tanto por iniciativa do titular da propriedade, que pretende anular o arrendamento feito, quanto por credor que já penhorou parte do imóvel e tem até data aprazada para leilão";

d) há interesse tanto do INCRA como do INSS na gleba e, portanto, deve-se questionar a competência da Justiça Federal para processar e julgar a ação;

e) devem ser consideradas em feitos desta natureza, as disposições constitucionais e a Resolução n. 2.200-A da ONU a que aderiu a República Federativa do Brasil;

f) as "ocupações" ou "invasões" de terra não podem ser enquadradas como esbulho possessório pois configuram-se conflito entre direitos que não são prestados "nem pelo Estado, nem pelo livre mercado".

Em 17 de setembro de 1998, no Plantão, o eminente Desembargador Rui Portanova recebeu o agravo de instrumento, deferindo o pedido liminar para suspender a execução do despejo até decisão final do recurso.

O procurador da agravada foi devidamente intimado e, inconformado com a decisão supra, interpôs Agravo Regimental – não conhecido, em face do que dispõe os artigos 365, III e 385, ambos do CPC –, e ofereceu contra-razões, refutando as pretensões do agravante e requerendo a reforma da liminar deferida.

Vieram as informações da Magistrada; manifestou-se o Ministério Público pelo não provimento do recurso e, a pedido desta Relatora, foi encaminhado ofício dando conta do não cumprimento do artigo 526, do CPC.

D.A ANÁLISE DO RECURSO

Entre os quesitos argüidos no recurso de agravo foi, preliminarmente, alegada a incompetência de foro para o julgamento da ação de reintegração de posse em virtude da existência pendente Execução Fiscal do INSS contra os proprietários do imóvel, com penhora e licitação marcada para o dia 7 de outubro/98 e o interesse do INCRA na fazenda.

Por unanimidade este argumento não foi acolhido baseando-se na alegação de que a discussão é entre partes sem o privilégio do foro invocado, envolvendo exclusivamente posse atual, sem que outras ações com garantia real em andamento, venham a impedi-la. Não há interesse da União e suas autarquias sendo discutido no processo. A existência de penhora ou hipoteca, por dívida dos proprietários, não dos agravados, não torna a posse litigiosa. A resposta do INCRA de que tem interesse na área, desde que livre dos litígios judiciais paralelos, não tem o condão de deslocar a competência para a Justiça Federal.

Apesar do eventual interesse do INCRA pela área da fazenda invadida, estaria limitado a uma aquisição, eis não se tratar de imóvel rural improdutivo e, por isso, insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária.

DO MÉRITO

Ao examinar o mérito do agravo de instrumento em estudo, a Presidenta Relatora não deu provimento ao recurso, apresentando a seguinte fundamentação:

"O argumento prévio de que a relação jurídica entre arrendadores e arrendatários é litigiosa não confere com a verdade fático-jurídica. A proprietária da área, Agropecuária Primavera, que arrendou a área aos agravados, não questiona a "posse direta" transferida à agravada através de contrato de arrendamento por escritura pública, devidamente registrada. A lide instaurada entre a agravada e arrendadora não trata de Rescisão de Contrato ou Retomada do Imóvel; limita-se a discutir, no Judiciário, cláusulas que considera abusivas. Logo, a ação referida não torna litigiosa a posse.

O direito de defendê-la contra turbação ou esbulho lhe é garantido, na forma do artigo 499 do Código Civil. A posse foi legalmente transferida pela escritura de arrendamento e é dever do arrendatário preservá-la, guardá-la e defendê-la de terceiros que, injustamente, a violem.

A posse da agravada está comprovada não só pela identificação e instrumento acima referido, como pelo uso efetivo da área para atividade agrícola. A agravada mantém empresa em pleno funcionamento. Existem escritórios, casas, demais prédios para uso de empregados e oficinas, armazéns, silos e outros. Conforme consta de peças e relação, existem 300ha de trigo prestes a serem colhidos, 300ha de aveia e também milho, 80 animais, utensílio maquinaria, 20 mil sacos de soja no silo e 1.200 de soja semente, bem como outros produtos a pleno funcionamento e produção.

Não tenho qualquer dúvida que a Merlin Indústria e Comércio de Óleos Vegetais tem a posse, sendo a área útil e produtiva, portanto, observando o fim social a que se destina.

O esbulho praticado pelos réus é notório. Não questionam que tenham invadido a área, tanto que compareceram em juízo e até audiência conciliatória foi tentada pela Magistratura, que refere, em suas informações, ter constatado o uso útil e social do imóvel. Não lhes socorre, portanto, direito face à lei civil.

Os argumentos suscitados pelos agravantes para manter a invasão são de natureza moral e de caráter político-social, suscitando seus direitos fundamentais, garantidos pela Constituição Federal.

O juiz não é um mero interpretador das leis; procura humanizá-las, afeiçoá-las aos princípios de Justiça, adstrito aos limites constitucionais não podendo ignorar a lei, desconsiderando direitos também legítimos, violando o princípio do justo no caso concreto a decidir.

No caso sob exame, verifico que a terra invadida e reintegrada não é uma área improdutiva, sem função social. Os agravados exercem socialmente a sua função; evidente que não desmerece ser uma empresa de exploração agrícola, pois produz alimentos, mantém pessoas trabalhando, gerando, portanto, riquezas e bens necessários à sobrevivência. A posse pleiteada não é sobre uma área pública abandonada, desviada de seus fins, servindo a interesses de poucos. Também não é uma área particular, improdutiva, apenas servindo a interesses especulativos futuros ou gananciosos.

Ora, explorando os agravados economicamente toda a área, com trabalhadores e relações de trabalho e produção, em pleno andamento, estão a exercer direitos garantidos pelo artigo 5º da Constituição Federal, inciso XXIII, atendendo a função social nela inserta e, portanto, o direito a exigir a proteção possessória, garantida pelos artigos 499 do CC e 926/927 do CPC."

O Desembargador Guinther Spode decidiu diversamente, sob as seguintes alegações:

"Voltando ao fato e resumindo o dilema que pende de solução, temos, de um lado, o esbulho à posse de uma empresa, de outro, os direitos fundamentais (o mínimo social) de 600 famílias a reclamar proteção.

Evidente que a melhor alternativa para solver o litígio seria a conciliatória. Como esta não se viabilizou, vieram as partes a Juízo.

Em suma, para decidir, ter-se-á, obrigatoriamente, de optar entre duas alternativas: 1ª o prejuízo patrimonial que a invasão certamente causará (ou até já está causando) à empresa arrendatária das terras ocupadas; 2ª a ofensa aos direitos fundamentais (ou a negativa do mínimo social) das 600 famílias dos "sem terra" que, sendo retirados de lá, literalmente não têm para onde ir.

Apesar da agravada afirmar na fls., que o INCRA já teria colocado à disposição do MST outra fazenda, para onde seriam removidos os acampados, nenhuma prova a respeito disto veio aos autos.

Os doutrinadores afirmam que, havendo necessidade de sacrificar o direito de uma das partes, sacrifica-se o patrimonial, garantindo os direitos fundamentais, se a outra opção for esta.

Não bastante a doutrina apontar esta solução, o bom senso impõe tal direcionamento. Sendo assim, meu voto será no sentido de dar provimento ao agravo, mantendo os "sem terra" na posse da Fazenda Primavera.

O Desembargador Carlos Rafael dos Santos Jr., assim, decidiu: "A questão que ora se examina neste recurso de agravo de instrumento, transcende, em muito, o mero exame do texto legal, da doutrina mais influente ou da jurisprudência majoritária. Trata-se, a toda evidência, de uma revisão de todo um ordenamento jurídico, e da postura dos juristas mais eminentes e conhecidos, exteriorizada, então sim, pelos escritos e julgados que se conhece.

No caso dos autos, se está diante de um dilema. A aplicação da norma jurídica que disciplina a posse e a propriedade em sua acepção e valoração mais costumeiramente encontrada na jurisprudência e doutrina tradicionais, conclui por denegar o agravo. Todavia, já se nota, não é assim que penso se deva agir no caso dos autos, em que se está a tratar de direitos fundamentais do cidadão, como bem posto pelo eminente Desembargador Guinther, em seu lúcido voto.

Com efeito, a Constituição Federal, ao garantir o direito de propriedade e possessório que lhe é inerente, em seu artigo 5º, incisos XXII e XXIII, condicionou seu exercício ao atendimento de uma garantia maior, qual seja, a de que este exercício, do poder dominial em toda a sua amplitude, fica limitado, ao atendimento de sua função social.

Tenho para mim, que de fato, o despacho liminar concessivo da reintegração da agravante na posse do imóvel, não examinou estes fundamentos limitadores do direito à posse. A decisão liminar, que já citei, com muita propriedade (mas aqui de conhecimento), percebeu e referiu, modo expresso, o tema, cujo tópico transcrevo para evitar tautologia:

"A decisão só se preocupou em fundamentar o fato (ocupação/invasão) e a norma (art. 499, do Código Civil Brasileiro e 926 do Código de Processo Civil). Não há sequer uma referência à dimensão valorativa do direito de propriedade (função social). Renovada venia, a Constituição Federal (Lei Maior) e seu inciso XXIII não mereceu a devida consideração."

Gize-se que, ainda que a área seja produtiva, se não obstante tal produção, seus proprietários não vêm atendendo aos impostos, incidentes ou não sobre a área discutida, a função social da propriedade não está sendo atendida. Ocorre que a produção singelamente considerada tem função direta de lucro ao produtor, que a vende pelo melhor preço possível, e somente secundária, de alimentação do povo. A função social direta da empresa produtiva é o recolhimento de impostos, taxas públicas, encargos sociais, e a geração de empregos. Aqueles porque aplicados, pelo menos em tese, na garantia dos direitos mínimos da população, na saúde, na educação, no transporte, alimentação e moradia, este porque, como disse o poeta, sem o seu trabalho o homem não tem honra. E ao que parece, já que pendente execução movida pela União contra os proprietários do imóvel, esta propriedade não vem atendendo a sua função social, considerada em sua plenitude.

E este exame, mais profundo, da produtividade da área, de sua função social efetivamente exercitada, em todos os seus termos, demanda maior investigação probatória, notadamente a demonstração da efetividade da penhora noticiada nos autos, do atendimento dos impostos incidentes, da origem da execução em que penhorada a área, de sua produção e outros itens ainda não examinados ou, pelo menos, não passíveis de exame liminar.

Anoto, ao final, que a questão é eminentemente política, de há muito se verificando a omissão, na solução da questão agrária, das autoridades do Executivo, postura esta extremamente cômoda, na medida em que os particulares atingidos por atos desta natureza, por si, providenciam na defesa de sua posse ou propriedade através da demanda judicial própria.

E a isto, o Judiciário tem servido, infelizmente, atribuindo foro de mera questão jurídica, a um dilema político de alta importância, e que as autoridades do Executivo se furtam, esquecem ou não querem resolver. Esta postura, todavia, cessa aqui.

Com estas considerações acompanho integralmente o Desembargador Guinther e dou provimento também ao agravo, para desconstituir a liminar concedida em primeiro grau, e determinar dilação probatória sobre estes temas que dizem diretamente com a função social da área cuja posse se discute."

Em sede de agravo, sob o número 598.360.402, vistos, relatados e discutidos os autos. Acordaram, na Décima Nona Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por maioria, conhecer do recurso, vencida a Presidente-Relatora que não o conhecia: à unanimidade, rejeitaram a preliminar de deslocamento da competência. No mérito, por maioria, deram provimento ao agravo, vencida a Presidente/Relatora que o denegava.

Presidente e Relatora: Desemb.Elba Aparecida Nicolli Bastos

Participaram do julgamento: Desemb. Carlos Rafael dos Santos Jr. e Desemb. Guinter Spode, que foi o relator.

Doutora Cristina L. M. da Silva, Juíza da sentença.

Data da Sentença: 06/10/98.

Diante da singularidade do caso relatado, pensamos não ser possível aos juristas manterem-se presos às amarras da legislação, especialmente da processual que é apenas veículo para se chegar à melhor decisão. Por melhor decisão, deve-se entender, é óbvio, a mais justa.

Para se chegar ao justo, nem sempre podemos nos socorrer da legislação específica porque, quando estamos diante de princípios (ainda mais quando universais) de direito, se inverte aquela regra de hermenêutica, segundo a qual a lei especial derroga a geral. Ora, se é inquestionável do ponto de vista hermenêutico, que lei especial não derroga lei principiológica, os princípios fundamentais de direito, reconhecidos universalmente por óbvio, se sobrepõem a qualquer norma especial de direito interno.

Importante destacar que quando se trata do direito de propriedade, entre defender o valor individual e defender o valor social, o direito brasileiro fez uma opção clara: defendeu o valor social.


IX – O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST

Em todo esse processo o MST tem papel de grande importância, pois é o órgão que se preocupa em identificar os anseios e necessidade de uma sociedade de flagelados que buscam uma vida digna conforme prometida em nossa constituição.

Fundado em 1984, o MST é um movimento nacional extremamente organizado, presente em 23 Estados Brasileiros, dos quais nenhum é a Amazônia, uma vez que o Movimento não concorda com a colonização da floresta. [26]

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) começa a se constituir no final dos anos 70/início dos anos 80, num contexto histórico marcado pelo início da crise do regime ditatorial militar que se instalara no país em abril de 1964. Várias lutas localizadas anunciavam o surgimento de um novo movimento de luta pela terra no Brasil: em Ronda Alta, no Rio Grande do Sul, em setembro de 1979, 110 famílias ocuparam as glebas Macali e Brilhante; em Campo Erê, Santa Catarina, em 1980, ocorre a ocupação da fazendo Burro Branco; no Paraná, mais de dez mil famílias, que teriam suas terras inundadas pela construção da barragem de Itaipu, organizavam-se contra o Estado; em São Paulo, ocorria a luta dos posseiros da fazenda Primavera, nos municípios de Andradina, Castilho e Nova Independência, no Mato Grosso do Sul, nos municípios de Naviraí e Glória de Dourados, milhares de trabalhadores rurais arrendatários lutavam pela permanência na terra. [27]

Esses movimentos localizados, a partir de uma articulação promovida pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada ao setor progressista da Igreja Católica, promoveram vários encontros regionais entre suas lideranças, que desembocaram num Encontro Nacional ocorrido em janeiro de 1984, em Cascavel, município do Paraná, no qual é fundado o MST como um movimento nacional de luta pela terra, pela reforma agrária e por mudanças sociais. Um ano depois, em janeiro de 1985, na cidade de Curitiba (PR), o MST realiza seu 1º Congresso Nacional. [28]

Nesta época, o Movimento dos Sem Terra compreendia a mobilização de agricultores que reivindicavam o direito à terra, à uma propriedade onde pudessem viver e tirar seu sustento. Muitos de seus componentes eram agricultores que trabalhavam nas terras de grandes proprietários ou possuíam pequenas propriedades e não tiveram suporte para mantê-las .

Historicamente figuram como não proprietários. São os descendentes dos índios, escravos, imigrantes e da população servidora dos grandes proprietários. Observou-se que a lei tem pouca repercussão prática para esta parcela da população que luta por uma propriedade. Não só porque não foram editadas leis, objetivando resultados de inserção social dos não proprietários com a aquisição de terras aliadas a um suporte agrícola, mas também pela falta de vontade política governamental que priorizasse o atendimento a sua população como um objetivo do Estado.

O Estado possui uma dívida com estes não proprietários. Gerencia a economia dando suporte e direitos aos grandes proprietários em detrimento da assistência à população não proprietária. Não se trata de devolver as terras aos reais proprietários que eram os índios, hoje representados por uma minoria de não proprietários, mas sim de se encontrar uma forma de viabilizar a propriedade àqueles desassistidos.

As medidas de pressão do MST são, essencialmente, as invasões de terras improdutivas, organizadas ao pormenor, o conseqüente acampamento das famílias, e o bloqueio de estradas. No total, há cerca de 170.000 famílias ligadas ao Movimento, além de 5.200 militantes (profissionalizados), a maioria na casa dos 20. As áreas ocupadas pelo Movimento rodam os 700 km2. [29]

Atualmente, o MST possui cerca de 100 cooperativas e já exporta produtos para os EUA e para a Europa. Além disso, possui também algumas pequenas indústrias. O seu slogan é "Ocupar, Resistir, Produzir", o qual se reflete nas ocupações de terra improdutiva por parte dos camponeses sem terra, negociando, posteriormente, com as autoridades a sua entrega aos camponeses. Possui uma hierarquia de membros e um calendário de eventos que faz lembrar um partido político. De tendência progressista, não tem orientação partidária, mas tem trabalhado de perto com o Partido dos Trabalhadores. Publica um jornal, desde há 15 anos, e tem cerca de 30 estações de rádio comunitárias e 5 programas de rádio, além de uma página na Internet. Lançou também, recentemente, o seu primeiro CD, estando já o segundo para ser lançado. O MST mantém relações com outros movimentos e organizações do mesmo gênero, quer na América Latina, quer noutros continentes. Os líderes do MST esforçam-se para que os camponeses sem terra tenham acesso à educação e à formação agrícola e procuram melhorar as áreas da saúde, da educação e da justiça nas zonas rurais. O Movimento acredita que se pode combater o desemprego, o analfabetismo e os cuidados de saúde precários nestas zonas e incentiva as mulheres a ocuparem posições nos vários níveis e o debate dos temas em torno delas.

As suas exigências são: a legalização das terras ocupadas e a demarcação do território Índio; a expropriação de terras pertencentes a multinacionais ou obtidas ilegalmente; o fim da política de colonização; políticas agrícolas apropriadas aos pequenos proprietários; a conservação e a regeneração ambiental; e a punição dos assassinos dos sem terra. [30]

O MST não se coloca, na atual conjuntura política, na defensiva, ao contrário do que ocorre, por exemplo, com o movimento sindical, porque se alimenta dos efeitos sociais perversos produzidos pelo próprio neoliberalismo. Explicando melhor: no momento atual, o objetivo dos trabalhadores aglutinados pelo MST é, acima de tudo, fugir do desemprego, do subemprego, ou mesmo da possibilidade de, num futuro próximo, tornar-se um desempregado. Neste sentido, a luta pela terra coloca-se para esses trabalhadores como uma espécie de busca de um "porto seguro", ou seja, como um meio capaz de garantir o sustento próprio e também o de suas famílias, longe da insegurança do emprego na cidade ou no campo. À medida que aumentam a marginalização e a exclusão social que atingem em cheio as classes subalternas, aumentam as bases sociais do MST que repõe a essa população marginalizada o sonho do trabalho, da sobrevivência e da reprodução social. Dessa maneira, poderíamos dizer que a força política do MST deriva, em grande parte, do desemprego gerado pela abertura da economia brasileira ao mercado internacional, da recessão e/ou do baixo crescimento econômico provocados pelos juros altos e pela busca a qualquer custo da estabilização monetária, da importação de maquinário computadorizado que atinge as indústrias de ponta da economia brasileira e que reduz drasticamente o estoque de empregos nesse setor, da própria mecanização das atividades agrícolas, fatores estes que se fizeram e se fazem presentes como nunca no cenário econômico desenhado pelo Plano Real e no cenário político atual. [31]

Os Fazendeiros e a Violência

Os principais opositores ao MST são os grandes proprietários de terra, os chamados fazendeiros costas largas, apoiados pela bancada ruralista do Congresso, que tem um enorme poder de pressão. São criticados por estarem isentos de impostos e as suas dívidas serem perdoadas, e por terem fácil acesso ao crédito rural. Possuem vastas extensões de terra improdutiva ou que cultivam exclusivamente para fins de exportação.

De acordo com a Anistia Internacional e outras organizações de direitos humanos, as áreas rurais no Brasil têm sido alvos freqüentes de violação dos direitos humanos, além da habitual pobreza. As ameaças, as torturas e as mortes tornaram-se uma realidade freqüente. A questão da posse da terra está na origem destes atos de violência quer por parte dos proprietários das terras quer das forças policiais, os quais recorrem à violência para expulsar os sem terra que ocuparam terras alheias. O MST possui um departamento de direitos humanos que conta com a ajuda de mais de 49 advogados voluntários. Nos últimos 10 anos, já morreram mais de 1.000 pessoas, devido a estes confrontos. Só em 1996 foram registrados 750 conflitos de terra, resultando na morte de 54 camponeses. Esse mesmo ano ficou conhecido pelo massacre de 19 trabalhadores sem terra, em Eldorado dos Carajás, no Estado do Pará, a 17 de Abril. O ano anterior, 1995, tinha sido marcado por um massacre em Curumbiara, no Estado de Rondônia, a 9 de Agosto. Desde 1985, apenas 5 pessoas foram condenadas por crimes relacionados com os sem terra e o MST. Estes acontecimentos deram origem a uma marcha gigantesca, organizada pelo Movimento em 1997, que partiu de três pontos do Brasil até Brasília e que contou com a participação de perto de 5.000 pessoas. [32]

O Brasil sofreu 8 anos com o modelo econômico neoliberal implementado pelo governo FHC, que provocou graves danos para quem vive no meio rural, fazendo crescer a pobreza, a desigualdade, o êxodo, a falta de trabalho e de terra. A eleição de Lula, em 2001, representou a vitória do povo brasileiro e a derrota das elites e de seu projeto. Mas, mesmo essa vitória eleitoral não foi suficiente para gerar mudanças significativas na estrutura fundiária e no modelo agrícola. Assim, é necessário promover, cada vez mais, as lutas sociais para garantir a construção de um modelo de agricultura que priorize a produção de alimentos e a distribuição de renda.

Hoje, completando 21 anos de existência, o MST entende que seu papel como movimento social é continuar organizando os pobres do campo, conscientizando-os de seus direitos e mobilizando-os para que lutem por mudanças. Nos 23 estados em que o Movimento atua, a luta não só pela Reforma Agrária, mas pela construção de um projeto popular para o Brasil, baseado na justiça social e na dignidade humana.


CONCLUSÃO

Superando velhas concepções absolutistas, a idéia da função social alterou a estrutura do direito de propriedade, convertendo-o em poder-dever voltado à destinação do bem a objetivos que, transcendendo o simples interesse do proprietário, venham a satisfazer indiretamente as necessidades dos demais membros da comunidade.

A concepção privatista da propriedade tem levado, freqüentemente, autores e tribunais à desconsideração da verdadeira natureza constitucional da propriedade, que é sempre um direito-meio e não um direito-fim. A propriedade não é garantida sem si mesma, mas como instrumento de proteção de valores fundamentais. Desde a fundação do constitucionalismo moderno, com a afirmação de que há direitos anteriores e superiores às leis positivas, a propriedade foi concebida como um instrumento de garantia da liberdade individual, contra a intrusão dos Poderes Públicos. As transformações do Estado contemporâneo deram à propriedade, porém, além dessa função, também a de servir como instrumento de realização da igualdade social e da solidariedade coletiva, perante os fracos e desamparados.

Seria indesculpável anacronismo se a doutrina e a jurisprudência hodiernas não levassem em consideração essa transformação histórica, para adaptar o velho instituto às suas novas finalidades.


NOTAS

01 GOMES, Orlando. Direitos reais, p.109

02 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais, p.152.

03 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais, p.152-153.

04 CHAGAS, Marco Aurélio Bicalho de Abreu. A doutrina da função social da propriedade no Direito Agrário.

05 MEZZOMO, Marcelo Colombelli; COELHO, José Fernando Lutz. A função social da propriedade nos contratos agrários.

06 GOMES, Orlando. Direitos reais, p.125-126.

07 LYRA JÚNIOR, Eduardo Messias Gonçalves de; FIGUEIREDO, Henrique Monteiro et. al. A propriedade rural, sua função social e as invasões promovidas por movimentos sem-terra.

08 BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e Regras de interpretações dos contratos no Novo Código Civil, p.39.

09 BERNARDES, Juliano Taveira. Da função social da propriedade imóvel. Estudos do princípio constitucional e de sua regulamentação pelo novo Código Civil brasileiro.

10 Idem.

11 BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e Regras de interpretações dos contratos no Novo Código Civil, p.38.

12 MEZZOMO, Marcelo Colombelli; COELHO, José Fernando Lutz. A função social da propriedade nos contratos agrários.

13 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil: Contornos constitucionais da propriedade privada, p.306.

14 BERNARDES, Juliano Taveira. Da função social da propriedade imóvel. Estudos do princípio constitucional e de sua regulamentação pelo novo Código Civil brasileiro.

15 TEPEDINO, Gustavo.Temas de Direito Civil:Contornos constitucionais da propriedade privada,p.303-304.

16 LYRA JÚNIOR, Eduardo Messias Gonçalves de; FIGUEIREDO, Henrique Monteiro et. al. A propriedade rural, sua função social e as invasões promovidas por movimentos sem-terra.

17 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil: Contornos constitucionais da propriedade privada, p.305.

18 LEÃO, André Carneiro. A função social da propriedade e as ocupações de terra por movimentos sociais.

19 TEPEDINO,Gustavo. Temas de Direito Civil:Contornos constitucionais da propriedade privada,p.310-311.

20 BERNARDES, Juliano Taveira. Da função social da propriedade imóvel. Estudos do princípio constitucional e de sua regulamentação pelo novo Código Civil brasileiro.

21 TEPEDINO,Gustavo. Temas de Direito Civil:Contornos constitucionais da propriedade privada, p.311.

22 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, p.649-650.

23 AVILA. Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista Diálogo Jurídico, n.4, vol.1. Bahia, 2001. Disponível em: www.DP.DireitoPublico.com.br.

24 Idem.

25 AVILA. Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista Diálogo Jurídico, n.4, vol.1. Bahia, 2001. Disponível em: www.DP.DireitoPublico.com.br.

26 www.mst.gov.br

27 COLLETI, Claudinei. MST, Luta pela terra e o neoliberalismo.

28 COLLETI, Claudinei. MST, Luta pela terra e o neoliberalismo.

29 www.mst.gov.br

30 www.mst.gov.br

31 www.mst.gov.br

32 www.mst.gov.br


BIBLIOGRAFIA

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- VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais, 3ª ed., São Paulo. Editora Atlas. 2003("Coleção Direito Civil, Volume 5").

- Site do MST: www.mst.gov.br


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Simone Flores de. A função social da propriedade imóvel e o MST. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 880, 30 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7646. Acesso em: 20 abr. 2024.