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Prisão domiciliar e a ausência de vaga em casas de albergado

posição jurídica do condenado

Prisão domiciliar e a ausência de vaga em casas de albergado: posição jurídica do condenado

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A casa de albergado é o estabelecimento penitenciário destinado à execução do regime aberto de cumprimento da pena privativa de liberdade.

A casa de albergado deve ser posta em centros urbanos e não pode ter obstáculos para a fuga [01], haja vista que o regime aberto é fundado no princípio da responsabilidade e da autodisciplina do condenado [02]. Deve, ainda, ser dotada de aposentos para acomodar os condenados, além de instalações para o pessoal do serviço de fiscalização e orientação [03].

A questão, razão do presente artigo, surge quando inexiste vaga na casa de albergado. Qual a medida a ser tomada com os condenados que têm direito ao regime aberto pela progressão ou pela fixação de regime inicial?

Nossos tribunais propõem duas possibilidades de solucionar o problema: a)- o condenado deve aguardar, no regime semi-aberto, fechado ou em cadeia pública, a vaga em casa de albergado, b)- o condenado poderá cumprir o regime albergue em prisão domiciliar.

A primeira corrente afirma que não há outra saída ao Poder Público senão sacrificar o condenado, determinando que fique em condições mais rigorosas do que o estabelecido em lei. Argumenta, ainda, que a prisão domiciliar somente pode substituir o regime albergue em situações específicas, explicitadas no art. 117 da Lei 7.210/84, quais sejam: doença grave, maior de 70 anos, condenada com filho menor ou gestante. As situações, elencadas no artigo 117 da LEP, são taxativas. Assim já dispuseram o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

TJMG: "HABEAS CORPUS - CONDENAÇÃO - REGIME ABERTO - INEXISTÊNCIA DE CASA DO ALBERGADO - INOCORRÊNCIA DAS HIPÓTESES TAXATIVAMENTE PREVISTAS NA LEP - PRISÃO ALBERGUE DOMICILIAR - INADMISSIBILIDADE. ORDEM DENEGADA" [04].

STF: "O plenário desta Corte, ao julgar o Habeas Corpus nº 68.012, decidiu que "nada justifica, fora das hipóteses taxativamente previstas na Lei de Execução Penal (art. 117), a concessão de prisão albergue domiciliar, sob o fundamento de inexistência, no local de execução da pena, de casa do albergado ou de estabelecimento similar." [05]

A segunda posição nega serem as condições, descritas no artigo 117 da LEP, taxativas. Afirma ser possível, em caso de inexistência de vaga na casa de albergado, impor a prisão domiciliar. Nesse sentido, segue o seguinte julgado:

STJ: "Inexistindo vaga em Casa de Albergado, o cumprimento da pena em estabelecimento destinado a condenados submetidos a regime mais rigoroso configura manifesto constrangimento ilegal. 2. Impõe-se a possibilidade de que o sentenciado a que foi determinado o regime aberto cumpra sua pena em prisão domiciliar, até que surja vaga em estabelecimento próprio. 3. Recurso provido" [06].

O Superior Tribunal de Justiça já chegou mesmo a reconhecer a possibilidade de concessão da prisão domiciliar quando inexistente a vaga no regime semi-aberto de cumprimento de pena. Senão vejamos:

STJ: "A inexistência de vaga no estabelecimento penal adequado ao cumprimento da pena permite ao condenado a possibilidade de ser encaminhado a outro regime mais brando, até que solvida a pendência. Se, por culpa do Estado, o condenado não vem cumprindo a pena no regime fixado na decisão judicial (semi-aberto), está caracterizado o constrangimento ilegal. Recurso especial DESPROVIDO" [07].

O choque entre as duas correntes, acima descritas, denuncia uma discussão bem mais profunda do que o caráter taxativo ou exemplificativo das condições dispostas no artigo 117 da LEP. A questão central acaba sendo reduzida à tensão entre a segurança pública e os direitos consagrados na lei de execução penal. O ponto nuclear da controvérsia tem raiz na posição jurídica do condenado: um sujeito de direito ou objeto da execução penal.

Os questionamentos, levantados no parágrafo anterior, na verdade, estão ocultos no tema do presente artigo. Quando um tribunal reconhece a inexistência de vaga em casas de albergado e determina que o condenado fique acautelado em situação mais gravosa do que lhe está garantido por força de lei, nos dá, como se pretende demonstrar, a uma clara mensagem: não concebo o recluso enquanto sujeito de direito.

Não há de se justificar a primeira corrente, aqui evidenciada, trabalhando com os conceitos de público e privado. Isso porque entraríamos em terreno falacioso. Não é possível sobrepor o direito à segurança às garantias reservadas ao condenado e consagradas na execução penal, justificando que o primeiro é de natureza pública e o segundo privada. O direito público subjetivo do condenado, no caso aqui estudado, tem também natureza pública porque se reduzi à legalidade da execução criminal. Todavia, o Ministro Nelson Jobim do STF, em voto proferido no HC 75.299-3, assim decidiu:

"O Supremo Tribunal já firmou entendimento de que a inexistência de estabelecimento adequado ao regime aberto não autoriza a aplicação da prisão domiciliar, em face da prevalência do interesse público na efetivação da sanção penal, em detrimento do interesse individual do condenado. Assim, a prisão domiciliar só tem cabimento nas hipóteses do art. 117 da LEP. Precedentes: HC 68118 e 72.997, entre outros. Denego a Ordem"

Se estamos tratando de dois direitos de natureza pública, dar primazia à segurança pública só teria sentido se considerássemos o condenado um objeto da execução penal. Um inimigo, como lamentavelmente já disse Jakobs [08], para o qual não se aplicaria o direito, mas a mera coação. O caminho para a segurança é o investimento no sistema penitenciário e não o sacrifício de garantias fundamentais.

Consideramos a legalidade da execução penal um corolário do princípio da legalidade da pena. Do contrário, chegaríamos ao absurdo de concluir que a pena não é algo certo.

Desconsiderar o condenado enquanto sujeito de direito é conseqüência de seu processo de demonização que nos remete às raízes mais autoritárias do direito. A segregação jurídica – despersonalização – acaba por acompanhar a física. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais já proferiu a seguinte decisão:

TJMG: "O paciente, cumprindo pena em regime aberto, não se enquadra em nenhuma das hipóteses taxativamente previstas na LEP (art. 117), como se infere dos elementos trazidos à colação. Ademais, conforme se vê da cópia da sentença condenatória (fls. 25/28), é ele reincidente e portador de péssimos antecedentes, pelo que não é de se lhe conceder prisão albergue domiciliar, a pretexto de inexistência, no momento, de vaga em Casa do Albergado" [09].

A desconsideração do condenado, enquanto um sujeito de direito, não é algo novo. Nilo Batista, estudando o direito penal antigo dos povos nórdicos, assim leciona:

"A perda da paz (Friedlosigkeit) significa que o culpado não merecia mais integrar o seu ou qualquer outro grupo associado ao Bund, e poderia (deveria) ser morto impunemente. A perda da paz poderia atingir também qualquer parente próximo do autor consabido da ofensa. O homem sem paz se convertia num estranho, e só lhe restava uma sobrevivência solitária e errante." [10]

Saulo Carvalho, ao tratar da herança autoritária do contratualismo penal, no mesmo sentido leciona:

"É que, ínsito à mais conhecida corrente do contratualismo penal, há uma perspectiva de demonização daquele que violou a norma e foi condenado à sanção penal. Todavia, o que mais chama a atenção é o fato de que, na atualidade, a realidade normativa e empírica em muito pouco rompeu com essa tradução autoritária" [11]

Diante do aqui exposto, fica o questionamento: será possível impor ao condenado o ônus pela inexistência de vaga na casa de albergado? Será possível atribuir a alguém ônus pela incompetência que a ele não pode ser reputada?

Cuidado ao responder estas questões. Podemos reproduzir, sem nem mesmo saber, um discurso que a muito já devia estar sepultado. Devemos pensar: não estamos reproduzindo – obviamente sem consciência –, no trato de questões jurídicas atinentes ao condenado, um modelo de sociedade colonial. A tradição tem uma vertente nefasta: pode vir a tornar o nosso olhar opaco.


Notas

01 "O prédio deverá situar-se em centros urbanos, separado dos demais estabelecimentos, e caracteriza-se pela ausência de obstáculos para a fuga" (art. 94 LEP)

02 "O regime aberto baseia-se na autodisciplina e senso de responsabilidade do condenado" (art. 36 do CPB)

03 "Em cada região haverá, pelo menos, uma Casa de Albergado, a qual deverá conter, além dos aposentos para acomodar os presos, local adequado para cursos e palestras. Parágrafo Único. O estabelecimento terá instalações para serviços de fiscalização e orientação dos condenados."(art. 95 LEP)

04 HC n. 160.808-2/000(1) Rel. Des. Edelberto Santiado, Data da Publicação 17/11/1999.

05 HC n. 70.058-6, Rel. Min. MOREIRA ALVES, DJ de 28.05.93, p. 10.385.

06 RHC n. 16649, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa. DJ 18.04.2005 p.394.

07 Resp 574511/SP. Rel. Min. Paulo Medina. Data da Publicação 10/10/2005 p.451

08 Ler JAKOBS, Gunther. CANCIO MELIÁ. Manuel. Derecho Penal del Enemigo. Madrid:Civitas Ediciones.2003

09 HC 160.808-2 de Relatoria do Desembargador Edelberto Santiago. Data da Publicação 17.11.1999.

10 BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro – I. 2a Ed. Rio de Janeiro: Revan. 2002 p.35.

11 CARVALHO, Saulo. Pena e Garantias. 2a ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2003. p.153


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDONÇA, Tarcísio Maciel Chaves de. Prisão domiciliar e a ausência de vaga em casas de albergado: posição jurídica do condenado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 893, 13 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7677. Acesso em: 25 abr. 2024.