Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/77445
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

AS AÇÕES AFIRMATIVAS NO SERVIÇO PÚBLICO

AS AÇÕES AFIRMATIVAS NO SERVIÇO PÚBLICO

Publicado em . Elaborado em .

A possibilidade de conferir a determinados grupos sociais a possibilidade de concorrerem em iguais condições com os grupos privilegiados justificam as ações afirmativas, sendo um respeitável meio de igual distribuição de oportunidades em virtude do mérito individual.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho aborda os aspectos da Lei 12.990/2014, que reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.

Cumpre ressaltar que a abordagem se dá quanto ao conteúdo da lei, uma vez que, em inúmeros entes da federação, aludida norma foi ou vem sendo reproduzida em semelhante teor, o que ocasiona que quase a totalidade dos concursos realizados no território brasileiro, seja nacional, estadual ou municipal, seja abarcada pelas cotas raciais.

A principal temática não observa a constitucionalidade da lei, apesar de brevemente se mencionar, pois já foi proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil a Ação Declaratória de Constitucionalidade 41, a qual foi julgada procedente pelo Supremo Tribunal Federal, em 08 de junho de 2017, declarando a integral constitucionalidade da norma.

O ponto mais discutido é a adequação do critério para preenchimento da vaga reservada, qual seja, aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, o que, em tese, não atinge a finalidade da lei de dar “um avanço significativo na efetivação da igualdade de oportunidades entre as raças, garantindo que os quadros do Poder Executivo federal reflitam de forma mais realista a diversidade existente na população brasileira”.

Ao final, após toda a pesquisa, é sugerida a viabilidade de troca do critério objetivo de escolha do cotista, buscando algo que abarque todos os grupos discriminados no país, mantendo os negros com um especial destaque, em virtude de toda a discriminação histórica sofrida por este grupo social.

A abordagem proposta se justifica pelo impacto que a lei em comento gera nos certames públicos. Basta ter em mente um concurso público com 100 (cem) vagas, das quais, por força normativa, de 5 (cinco) a 20 (vinte) serão reservadas aos deficientes físicos e mais  20 (vinte) serão reservadas aos negros e pardos. Observando apenas a reserva mínima para deficientes, 25 (vinte e cinco) vagas não poderão ser disputadas por pessoas não abrangidas pelas cotas, podendo ainda alcançar 40 (quarenta) vagas.

Com a mudança do critério de seleção do candidato cotista aqui proposta, a lei poderá atingir sua finalidade de forma mais isonômica e eficiente, atingido a desigualdade social não só em caráter racial, mas também socioeconômico.


2 AS AÇÕES AFIRMATIVAS E SUA JUSTIFICATIVA

Desde quando os portugueses chegaram ao Brasil, a história tem mostrado que a desigualdade social e a discriminação racial fizeram parte do cotidiano dos que aqui viviam. A cada geração, uma nova camada da sociedade era marginalizada, sejam os índios, os negros, as mulheres, os pobres. Entretanto, referida desigualdade nunca foi exclusiva da nossa nação.

Escravidão, nazismo e apharteid, ainda são assuntos muito debatidos, isso apenas para exemplificar grandes movimentos discriminatórios de repercussão mundial, que confirmam a afirmativa acima. A oferta de oportunidades sempre foi restrita, sendo este fato de conhecimento público e notório. Assim, com o Estado Democrático de Direito, surge a obrigação estatal de mitigar as desigualdades, o que inicialmente se deu com a vedação à discriminação, pretendendo restaurar a igualdade que foi perdida, ou mesmo que jamais existiu.

Contudo, apenas políticas de repressão não foram suficientes, se fazendo necessária a atuação do Estado de forma positiva para efetivar direitos antes não resguardados, uma vez que a proibição da exclusão não resulta automaticamente na inclusão. Como aponta Gomes, “o Estado abandona a sua tradicional posição de neutralidade e de mero espectador dos embates que se travam no campo da convivência entre os homens e passa a atuar ativamente na busca da concretização da igualdade positivada nos textos constitucionais” (2000, p. 3).

E é neste contexto que nascem as políticas das ações afirmativas, fazendo com que “a diferença não mais seria utilizada para a aniquilação de direitos, mas, ao revés, para a promoção de direitos” (PIOVESAN, 2008, p. 888).

A “ideia da necessidade de promover a representação de grupos inferiorizados na sociedade e conferir-lhes uma preferência a fim de assegurar seu acesso a determinados bens” (MOEHLECKE, 2002, p.200) sujeita os países a arranjarem uma forma justa de concorrência entre as pessoas, pautada no mérito individual e na igualdade de oportunidades.

E assim foi feito, cada país a sua maneira e atendendo às suas necessidades peculiares, aos poucos foram implantando referida política, disseminando as ações afirmativas mundo afora. Logo, o conceito de ação afirmativa é muito amplo “englobando uma variedade de políticas de desenhos e parâmetros diversos, muito dependentes de contextos institucionais e culturais de cada país onde essa política foi implantada” (CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2016, p.257).

Um desses conceitos sobre ações afirmativas pode ser visto em Gomes:

um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego (2000, p. 4).

A ação afirmativa destina-se àqueles que estão em condição de inferioridade na sociedade, abrangendo grupos como minorias étnicas, raciais, e mulheres. “As principais áreas contempladas são o mercado de trabalho, com a contratação, qualificação e promoção de funcionários; o sistema educacional, especialmente o ensino superior; e a representação política” (MOEHLECKE, 2002, p.199).

O objetivo central é conferir vantagens aos grupos discriminados, a fim de que possam concorrer em igualdade de condições com as pessoas que possuem melhores condições de vida, promovendo a inclusão social, bem como a diversidade e reparação das situações desiguais vividas anteriormente.

Esta política pode tomar diversas formas, a depender da sociedade em que se está inserida, podendo ser “ações voluntárias, de caráter obrigatório, ou uma estratégia mista; programas governamentais ou privados; leis e orientações a partir de decisões jurídicas ou agências de fomento e regulação” (idem, ibidem).

Pode, ainda, envolver diversas práticas, como o já bastante conhecido sistema de cotas, no qual é reservado um número ou percentual a certo grupo social determinado, há também as taxas e metas, que servem para a mensuração de progressos obtidos, e os cronogramas, como etapas a serem observadas em um planejamento a médio prazo (idem, ibidem). 

Cumpre destacar que esta política “não é um fim em si mesma, mas um meio, uma medida específica transitória que, no Brasil, é progressista, pois, entre outros motivos, tem o poder de proporcionar visibilidade” (DOMINGUES, 2005, p.168). Ou seja, as ações afirmativas devem ter um cunho temporário. O intuito é colocar as pessoas em condições de igualdade material, e após alcançado esse objetivo, ocorra a extinção da vantagem, pois não haverá mais camadas da sociedade marginalizadas.

Destaca-se que existem discussões acerca da defesa das ações afirmativas, se seriam elas estabelecedoras do multiculturalismo (Ana Maria D´Ávila Lopes), se seria uma política redistributiva (Flávia Piovesan), ou mesmo se seria uma justiça social (João Feres Júnior e Luiz Augusto Campos). Contudo, considerando suas diversas formas de implantação, as diferentes práticas desenvolvidas, bem como a cultura de cada povo, não é possível classificá-la de forma genérica, sendo necessária a análise de cada política ao seu contexto.


3 HISTÓRICO MUNDIAL

Sabrina Moehlecke (2012, p. 198) afirma que a expressão ação afirmativa surgiu nos Estados Unidos, nos anos 1960, onde, até os dias atuais, é uma importante referência no assunto. “Começam a ser eliminadas as leis segregacionistas vigentes no país, e o movimento negro surge como uma das principais forças atuantes, com lideranças de projeção nacional, apoiado por liberais e progressistas brancos, unidos numa ampla defesa de direitos” (idem, p.199). Assim, além de garantir a legislação antissegregacionista, o Estado inicia uma ação positiva a fim de melhorar as condições da população negra.

Importante destacar que logo em seguida “as Nações Unidas aprovam, em 1965, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, ratificada por 170 Estados, entre eles o Brasil, que a ratificou em 27 de março de 1968” (PIOVESAN, 2008, p. 889), documento este que incentiva:

as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contando que, tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sidos alcançados os seus objetivos. (Art. 1, §4º, da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial).

De tal modo, diversos países instituíram as ações afirmativas, conforme Dos Santos (2012, p. 403), sendo a seguinte lista de países, nos últimos anos: Bósnia (cargos políticos para mulheres); China – (cotas na Assembleia Nacional em Pequim e cotas nas universidades); Macedônia – (cotas para acesso a universidades do Estado e no serviço público para as minorias); Nova Zelândia – (acesso preferencial para cursos universitários e bolsas); Indonésia – (preferência a grupos nativos que migraram para o país); Eslováquia – (ação afirmativa para grupos raciais ou minorias); Irlanda do Norte – (recrutamento igual de católicos e não católicos no serviço policial); África do Sul – (cotas e metas para promover equidade no mercado de trabalho entre brancos e negros).

Destaca-se que a lista mencionada não tem o condão de esgotar todas as políticas de ações afirmativas aplicadas no mundo, pois são inúmeras, apenas demonstra que as ações afirmativas foram amplamente aprovadas por diversos países das mais variadas culturas, sendo largamente implantadas.


4 AS AÇÕES AFIRMATIVAS NO BRASIL

No Brasil, projetos de lei desde 1968 já pretendiam instituir as ações afirmativas, entretanto estes projetos não foram aprovados. Sendo assim, “com a redemocratização do país, alguns movimentos sociais começaram a exigir uma postura mais ativa do Poder Público diante das questões como raça, gênero, etnia, e a adoção de medidas específicas para sua solução” (MOEHLECKE, 2002, p.203).

Desta forma, após pressão social e de instituições internacionais, já foram instituídas no Brasil ações afirmativas obrigatórias para deficientes físicos, na representação política quanto ao gênero, na educação de diversas formas, e por último, no ingresso ao serviço público para negros, além de todos os incentivos na iniciativa privada.

Frisa-se que a Constituição Federal de 1988 foi receptiva às políticas de ações afirmativas, “destaca-se o artigo 7º, inciso XX, que trata da proteção do mercado de trabalho da mulher mediante incentivos específicos, bem como o artigo 37, inciso VII, que determina que a lei reservará percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência” (PIOVESAN, 2008, p. 888).

Na representação política foi criada a Lei 9.100/1995, que obrigou a participação das mulheres em 20% dos pleitos municipais, sendo posteriormente alterada pela Lei 9.504/97, a qual força cada partido ou coligação partidária a reservar o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo.

Quanto às cotas raciais no ensino superior tem-se que surgiram “por meio de leis estaduais ou de decisões dos conselhos das universidades a partir de 2003, as ações afirmativas (na educação) finalmente viraram Lei Federal em 2012, mesmo ano em que sua constitucionalidade foi ratificada pelo STF por unanimidade” (CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2016, p. 269). Destaca-se que, antes da Lei Federal, cada instituição de ensino tinha sua forma diferenciada de tratar da matéria, sendo as ações afirmativas das mais variadas formas.

Por fim, as ações afirmativas objeto do presente estudo, que são as destinadas aos negros, com a reserva de 20% das vagas em concursos públicos, instituídas pela Lei 12.990/2014, destacando que outros entes da federação também têm adotado mesmo posicionamento, antes mesmo desta Lei Federal.

Dessa forma, foi visto que nas últimas décadas o Brasil vem implantando progressivamente as políticas de ações afirmativas, beneficiando vários grupos sociais em diversas vertentes.


5 A LEI 12.990/2014 E SEUS OBJETIVOS

Como visto, a Lei 12.990/2014 inaugurou, em âmbito federal, as cotas raciais na investidura do serviço público, reservando aos que se declaram pretos ou pardos 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.

Como já mencionado, outros entes da federação também já vêm aplicando a política de cotas em concursos públicos, repetindo o mesmo teor da norma federal, pelo que a análise desta já é suficiente para dissecar as cotas raciais no serviço público em esfera nacional.

Dito isto, destaca-se que haverá a reserva sempre que o concurso público oferecer um número de vagas igual ou superior a três e, se o cálculo dos vinte por cento não for um número inteiro, este será aumentado para o primeiro número inteiro subsequente, em caso de fração igual ou maior que cinco décimos, ou diminuído para número inteiro imediatamente inferior, em caso de fração menor que cinco décimos, fazendo constar expressamente nos editais as vagas reservadas.

Para esta lei, a condição de ser abarcado pela cota racial é a autodeclaração de ser preto ou pardo no ato da inscrição do concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Contudo, a autodeclaração não é absoluta, podendo o candidato ser eliminado do concurso ou, caso já nomeado, ter a anulação desse ato se for constatada a declaração falsa, a ser apurada em processo administrativo, assegurado o contraditório e a ampla defesa.

Assim, feita a autodeclaração, o candidato passa a concorrer às vagas destinadas exclusivamente aos negros (pretos e pardos), como também as outras vagas denominadas de ampla concorrência, nas quais todos podem concorrer. Cumpre destacar que os candidatos negros aprovados dentro das vagas destinadas a ampla concorrência não entram no cálculo das vagas reservadas às cotas raciais.

Outro ponto a salientar é que, caso ocorra a desistência de algum candidato aprovado dentro das cotas raciais, essa vaga continua sendo destinada unicamente a candidatos negros, sendo convocado o próximo candidato da lista. Contudo, encerrado os candidatos negros aprovados no certame e havendo ainda vagas disponíveis destinadas às cotas, estas passarão a ser preenchidas pelos candidatos da ampla concorrência.

A Lei 12.990/2014 disciplina ainda as nomeações dos candidatos, a qual deve respeitar os critérios de alternância e proporcionalidade, que consideram a relação entre o número de vagas total e o número de vagas reservadas a candidatos com deficiência (disciplinado por outra lei) e a candidatos negros. Referida norma entrou em vigor desde sua publicação (09/06/2014), exceto aos concursos que já estavam com o edital aberto, tendo vigência pelo prazo de dez anos.

A motivação, conforme o Projeto de Lei 6738/2013, que foi transformada na norma em comento, é atender o Estatuto da Igualdade Racial, que determina a realização de ações capazes de proporcionar um tratamento mais isonômico entre a população negra e branca, também levando em consideração dados estatísticos que dizem que o percentual de servidores públicos negros é inferior ao seu percentual na população brasileira.

Acentua-se que o objetivo primordial da norma é de fomentar o resgate de dívida histórica que o Brasil mantém com a população negra, inserindo a diversidade no serviço público.


6 CONSTITUCIONALIDADE

No que tange à constitucionalidade da norma em questão, apesar de não ser o debate proposto, não posso deixar de trazer à baila, mesmo porque, com o advento da legislação das cotas raciais para ingresso em cargos públicos, destaco novamente que ocorreu em diversos entes da federação, o debate acerca da constitucionalidade dessas normas se mostrou bastante acalorado.

Não só os entendimentos doutrinários, mas também as decisões dos Tribunais eram conflitantes, gerando uma grande insegurança jurídica acerca da matéria. Basta mencionar que, em controle concentrado de constitucionalidade, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais entendeu que uma lei municipal que previa a cota racial era inconstitucional (ADI 1.0000.11.027006-3/000). Já o Tribunal de Justiça do Espírito Santo, também em controle concentrado, entendeu que uma norma municipal com a previsão em comento seria constitucional (ADI 100130004417).

Contudo, referida divergência, bem como discussão acerca da constitucionalidade da reserva racial para cargos públicos, já restou superada. Isto porque o Supremo Tribunal Federal, em 08/06/2017, no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade 41, fixou a tese de que é constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta.

E, por tudo o que já foi dito aqui acerca das ações afirmativas, me parece este o entendimento mais acertado. Quando se trata de camadas da sociedade que são menosprezadas, “para assegurar a igualdade não basta apenas proibir a discriminação, mediante legislação repressiva. São essenciais as estratégias promocionais capazes de estimular a inserção e inclusão de grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais” (PIOVESAN, 2005, p. 49).

No entendimento de Dias (2005), a forma de dar efetividade ao preceito isonômico consagrado na Constituição é observando à igualdade mediante a eliminação das desigualdades e não meramente atentar à igualdade perante a lei. Ademais, é fundamento da nossa República a promoção do bem de todos, sem nenhuma forma de discriminação.

Nas palavras de Gomes (2000, p.2)

em lugar da concepção estática da igualdade extraída das revoluções francesa e americana, cuida-se nos dias atuais de se consolidar a noção de igualdade material ou substancial, que, longe de se apegar ao formalismo e à abstração da concepção igualitária do pensamento liberal oitocentista, recomenda, inversamente, uma noção dinâmica, militante de igualdade, na qual necessariamente são devidamente pesadas e avaliadas as desigualdades concretas existentes na sociedade.

Não obstante entender que a norma como está hoje não atende sua eficácia e finalidade das ações afirmativas, o que será discorrido adiante, a tentativa de mitigar a desigualdade não afronta o princípio da isonomia, muito pelo contrário, o atende em seu grau mais aristotélico. Portanto, correto o posicionamento da nossa mais alta corte.


7 A INEFICÁCIA DA LEI E SUGESTÃO DE MUDANÇA

Conforme amplamente demonstrado, as ações afirmativas são um ótimo instrumento para a busca da igualdade material nos dias atuais, sendo certo que a população negra deve ser objeto destes programas, em virtude de todo o contexto histórico de discriminação. Contudo, se as ações afirmativas não forem aplicadas de maneira correta estarão fadadas ao insucesso.

Tendo isso em mente, deve ser levado em consideração que não apenas os negros, mas outros grupos da sociedade também são vítimas de discriminação e exclusão social, a exemplo dos índios, pobres, mulheres, imigrantes e comunidade LGBT, sendo que o fator renda pode ser determinante. “Em um país com tanta desigualdade como o Brasil, não são apenas os negros os excluídos, portanto há a necessidade de incluir outros segmentos da população” (DA SILVA, 2006, p. 145).

Instituir cotas apenas para um grupo desfavorecido, não tem a capacidade de mitigar a desigualdade, estabelecer o multiculturalismo, redistribuir renda e estabelecer uma justiça social, mas tende apenas a disseminar as diferenças entre as classes sociais. Por sua vez, determinar um percentual para cada grupo, considerando a alíquota dessas pessoas na sociedade, como é justificado no projeto que resultou na lei em análise, irá engessar e dificultar demasiadamente os certames públicos. Deve, portanto, ser estabelecido um fator comum.

Associado a isso se tem que, segundo Seekings e Natrass, Van den Bergue e Louw (apud DA SILVA, 2006, p. 150) num estudo realizado fora do Brasil, ficou constatado que após o fim do regime de apartheid, com a instituição de ações afirmativas que beneficiasse os negros, mas sem distinguir sua classe social, houve a diminuição da desigualdade social, entretanto, aumentou a desigualdade dentro do próprio grupo beneficiado.

Isso ocorre já que não se pode equiparar o negro da classe média alta, que sempre teve bons estudos, com o negro da classe baixa, que em alguns casos, vive a beira da miséria. A Lei 12.990/2014 beneficia justamente o negro da classe média alta, que, em regra, não está inserido na exclusão social. Em uma disputa dentro de um concurso é notório que o candidato negro que sempre estudou nas melhores instituições de ensino e fez cursos preparatórios caros para o certame tem uma larga vantagem em relação ao candidato negro oriundo do sistema público de ensino, pois sua renda é baixa.

“A exclusão de negros normalmente aparece como um problema socioeconômico, e se apoia na vinculação de raça e classe. (Logo) negros devem ser beneficiados pela sua exclusão aos recursos socioeconômicos: renda, educação e empregos” (DA SILVA, 2006, p. 145). Portanto, o negro de classe alta não deve ser tratado da mesma forma do negro de classe mais baixa, o qual realmente deve ser abrangido por ações afirmativas.

A tudo que já foi dito se soma o fato de que, é certo que o país tem uma dívida histórica com os negros devido ao período escravocata, entretanto, devido a miscigenação, bem como a todos os anos em que já se passaram, hoje não apenas os negros sofrem com a herança desse período triste da história brasileira. Deve ser observado que, conforme Telles e Bailey (apud DA SILVA, 2006, p. 150)

os altos índices de miscigenação e as fronteiras raciais imprecisas dificultam a determinação de quem é descendente de escravos: de acordo com uma pesquisa no estado do Rio de Janeiro, 37% dos brancos declararam ter ascendentes negros, enquanto 80% dos pardos e 59% dos pretos declararam ter descendentes brancos.

Desse modo, é totalmente possível afirmar que existem negros que hoje não sofrem com nenhum reflexo do período da escravidão, e que existem brancos que são abarcados por esses reflexos negativos. Logo, não parece adequada uma ação afirmativa em concursos públicos, os quais são demasiadamente disputados, destinada apenas à comunidade negra.

Destarte, tendo em vista os diversos grupos sociais discriminados, a irregular distribuição de renda, inclusive dentro da própria comunidade negra, bem como que o legado da escravidão hoje alcança várias raças devido à miscigenação. Desta forma, a Lei 12.990/2014 deve ser modificada, pois pode não atingir suas finalidades.

Uma boa solução seria associar a cota racial à cota social, ou seja, estipular o critério raça concomitantemente com o critério renda, a exemplo do que é feito na Lei 12.711/2012, que disciplina o sistema de cota nas Universidades e Instituições de Ensino Federais.

Isso porque

o Brasil tem uma das mais perversas distribuições de renda, as desigualdades sociais se dão tanto pelo aumento dos pobres como pela manutenção ou ampliação dos privilégios dos ricos. Segundo estudiosos de políticas públicas, grande parte dos programas com dotação orçamentária não necessariamente beneficiam os mais pobres. (CASTRO, 2004, p. 4). 

Diante disto, um sistema que seria mais equânime e diminuiria tanto a exclusão social como a discriminação racial traria um misto de cotas raciais com cotas sociais. O percentual de 20% das vagas dos concursos pode ser mantido, mas destinados às pessoas de baixa renda, por exemplo, até 1,5 salários mínimos por pessoa na família, como já é mensurado em outros programas do governo. Dentro destas vagas já reservadas, poderia haver uma nova reserva de 50% para negros, atendendo ao multiculturalismo.

Na prática, 10% de todas as vagas do concurso seriam destinadas às pessoas mais pobres, nelas estando incluídos diversos grupos que hoje vivem às margens da sociedade, inclusive os negros, e outros 10% seriam exclusivos dos negros, mas que também preencham ao requisito socioeconômico.

Nestes termos, acredita-se que a lei se enquadraria melhor na realidade brasileira, atendendo diversos grupos discriminados, com uma chance muito maior de atender seus objetivos, mitigando a desigualdade, estimulando a diversidade e redistribuindo renda.

O fato de que “a meta da ação afirmativa não seria apenas melhorar os índices socioeconômicos da população negra, mas também reforçar a identidade negra e aumentar a consciência da discriminação e da desigualdade raciais” (DA SILVA, 2006, p. 147-148), poderia ter totalmente atingido se reservada uma cota racial dentro da cota social, como foi sugerido, já que a cota unicamente racial tem o condão de aumentar ainda mais a desigualdade, inclusive, entre a própria comunidade negra, e a cota racial não foi excluída, mas reformulada, dando a devida visibilidade e reconhecimento à comunidade negra.


8 CONCLUSÃO

Como visto, as ações afirmativas são um instrumento de grande importância na mitigação da desigualdade, tanto social como racial, sendo amplamente utilizadas por diversos países das mais variadas formas. Por mais que seja polêmica, tal política, quando corretamente aplicada, não malfere o direito de igualdade, mas pelo contrário, o prestigia em seu grau material.

A possibilidade de conferir a determinados grupos sociais a possibilidade de concorrerem em iguais condições com os grupos privilegiados justificam as ações afirmativas, sendo um respeitável meio de igual distribuição de oportunidades em virtude do mérito individual.

O Brasil vem se utilizando dessa prática gradualmente, sendo a cota racial no serviço público sua última implantação até os dias de hoje. Contudo, não se nota uma uniformidade nas variadas formas de incrementação das ações afirmativas, podendo esse fato ser contrário aos próprios objetivos do programa.

Conforme sugerido, seria mais viável a Lei 12.990/2014 (cotas em concursos públicos) se aproximar do teor da Lei 12.711/2012 (cotas na educação), mesclando as cotas raciais às sociais, até mesmo por coerência normativa. Ademais, como mencionado, as cotas se enquadrariam melhor na realidade brasileira, atendendo a uma pluralidade de grupos discriminados.

Logo, os objetivos da lei em comento poderiam ser alcançados de forma mais eficiente, haja vista que mitigaria a desigualdade, estimularia a diversidade e redistribuiria renda. Portanto, atingiria tanto a desigualdade racial como a social.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade1.0000.11.027006-3/000, Relator:Alberto Deodato Neto, Órgão Especial, julgamento em 24/04/2013, publicação em 17/05/2013.

______. Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade100130004417, Relator: Ronaldo Gonçalves de Sousa, Tribunal Pleno, julgamento em 21/11/2013, publicação em 04/12/2013.

______. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade41, Relator: Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgamento em 08/06/2017, publicação em 19/06/2017.

CAMPOS, Luiz Augusto; FERES JÚNIOR, João. Ação afirmativa no Brasil:multiculturalismo ou justiça social?. Lua Nova, São Paulo, 99,p.257-293, 2016.

CASTRO, Mary Garcia. Políticas Públicas por Identidades e de Ações Afirmativas. Acessando gênero e raça, na classe, focalizando juventudes. Disponível em <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/28334-28345-1-PB.pdf>, acesso em 12/09/2017.

DA SILVA, Graziella Moraes Dias. Ações afirmativas no Brasil e na África do Sul. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 18, n. 2, p. 131-165, novembro/2006.

DIAS, Maria Berenice. Ações afirmativas: uma solução para a desigualdade. Portal Jurídico Investidura, Florianópolis/SC, 18 Dez. 2005. Disponível em , acesso em 12/07/2017.

DOMINGUES, Petrônio. Ações afirmativas para negros no Brasil: o início de uma reparação histórica. Revista Brasileira de Educação, n. 29, p. 164-176, maio-ago 2005.

DOS SANTOS, Jocélio Teles. Ações afirmativas e educação superior no Brasil: um balanço crítico da produção. RBEP, Brasília, v. 93, n. 234, p. 401-422, maio/ago 2012.

GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Instrumentos e métodos de mitigação da desigualdade em direito constitucional e internacional. Disponível em <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/31989-37507-1-PB.pdf>, acesso em 20/08/2019.

LOPES, Ana Maria D´Ávila. Multiculturalismo, minorias e ações afirmativas: promovendo a participação política das mulheres. Pensar, Fortaleza, v. 11, p. 54-59, fev. 2006.

MOEHLECKE, Sabrina. Ação afirmativa: história e debates no Brasil. Cadernos de Pesquisa, n. 117, p. 197-217, novembro/2002.

PIOVESAN, Flávia. Ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos. Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 124, p. 43-55, jan./abr. 2005.

______. Ações afirmativas no Brasil: desafios e perspectivas. Estudos Feministas, v. 16, n.3, p. 887-896,setembro-dezembro/2008.



Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelo autor. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi.