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A discussão sobre o elemento subjetivo na ação de improbidade

A discussão sobre o elemento subjetivo na ação de improbidade

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O ARTIGO DISCUTE SOBRE O ELEMENTO SUBJETIVO NA AÇÃO DE IMPROBIDADE À LUZ DE DOUTRINA E DE JURISPRUDÊNCIA.

Por reconhecer violação direta a dispositivos da Lei de Improbidade Administrativa, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou procedente ação rescisória ajuizada pelo ex-prefeito de Presidente Prudente (SP) Mauro Bragato e, na sequência, julgou improcedente a ação de improbidade administrativa em que o político havia sido condenado por suposta participação em superfaturamento na compra de leite para o município.

Para o colegiado, as condutas culposas imputadas ao ex-prefeito – nomear a comissão que realizou a licitação ilegal e não promover a fiscalização adequada de suas atividades – não configuram, no caso concreto, atos puníveis pela Lei 8.492/1992, que também não admite a responsabilização objetiva por ato de improbidade (que independe da aferição de dolo ou culpa do agente público causador do dano).

A ação de improbidade ajuizada pelo Ministério Público de São Paulo apontava que, entre os anos de 1999 a 2000, quando Bragato exercia o mandato de prefeito, teria havido superfaturamento na compra de 110.697 litros de leite pela prefeitura, resultando em prejuízo de cerca de R$ 10 mil ao erário.

Consoante se lê do site do STJ, o relator do recurso especial do ex-prefeito, ministro Mauro Campbell Marques, apontou jurisprudência do STJ no sentido de que a procedência da ação rescisória por violação de literal disposição de lei exige que a interpretação dada pelo juízo que julgou a ação seja clara e evidente, e que viole o dispositivo legal em sua literalidade.

Além disso, o relator citou o entendimento da Corte Especial de que, nas hipóteses de ação rescisória, quando o mérito do recurso especial se confundir com os próprios fundamentos para a propositura da ação, o STJ está autorizado a examinar também a decisão rescindenda (que julgou o mérito do processo originário).

Ainda na linha da jurisprudência do STJ, Mauro Campbell Marques ressaltou que, para a configuração dos atos de improbidade que acarretam enriquecimento ilícito (artigo 9º da Lei 8.429/1992), causam prejuízo ao erário (artigo 10) e atentam contra os princípios da administração pública (artigo 11), é indispensável a presença do elemento subjetivo – em regra, conduta dolosa para todos os tipos e, excepcionalmente, culpa grave no caso do artigo 10. Assim, não é admitida a atribuição de responsabilidade objetiva na ação de improbidade.

No caso dos autos, o relator observou que o ex-prefeito foi condenado por ato de improbidade lesivo ao erário, "sem qualquer traço de conduta dolosa".

Para o ministro, as condutas descritas pelo TJSP como culposas não configuram o elemento subjetivo capaz de configurar ato de improbidade nos termos da legislação, não se aceitando a imputação objetiva.

"Entendimento diverso significaria dizer que eventual desvio praticado por comissão licitatória, de qualquer órgão público, exigiria a fiscalização direta do responsável pela nomeação, sob pena de responder por eventual ímprobo, sem a necessidade de qualquer elemento volitivo ou participação na prática da ilegalidade qualificada", concluiu o ministro.

O julgamento se deu no REsp 1.713.044.

Na matéria já escrevemos.

De início, lembre-se que o artigo 9º da Lei nº 8.429/92 concebe como elemento subjetivo central o dolo do agente, isto porque não se aceita a hipótese de ato de improbidade cometido por agente público ou ainda particular contra a Administração envolvendo enriquecimento ilícito por comportamento culposo.

Dos três dispositivos citados que definem os atos de improbidade, somente o artigo 10 fala em ação ou omissão, dolosa ou culposa. E a mesma ideia de que, nos atos de improbidade causadores de prejuízo ao erário, exige-se dolo ou culpa, repete-se no artigo 5º da chamada Lei de Improbidade Administrativa.  

Colocando um fim à inaceitável insegurança jurídica que plasmava o tema, a 2ª Turma, no REsp n. 765.212/AC, relatado pelo Min. Herman Benjamin, julgado em 02/03/2010, publicado no DJe de 23/06/2010,  alterou o seu entendimento, aderindo expressamente à posição que já era adotada pela 1ª Turma. Reconheceu-se, pois, a incompatibilidade entre a imputação de responsabilidade objetiva e o regime garantista que deve permear o Direito Punitivo. Além disso, o art. 37, §6º da CR/88 expressamente exige a presença de culpa ou dolo por parte do servidor público para que seja possível o manejo de ação regressiva pelo ente estatal. Assim sendo, uma vez consagrada a responsabilidade funcional subjetiva para a hipótese de simples ressarcimento ao erário, que não se confunde com a imposição de punição, “maiores e melhores razões existem para fundamentar a culpabilidade como princípio constitucional, limitando todo o Direito Punitivo do Estado”.

Com supedâneo nesses argumentos, desde então, a 1ª Seção do STJ (composta pela 1ª e 2ª Turmas) passou a firmar, solidamente, o entendimento de que a existência da improbidade prevista no art. 11 exige a presença de “dolo genérico”, seja na espécie “dolo direto” (representação e vontade de produção do resultado querido), seja na espécie “dolo eventual” (aceitação do risco de produção do resultado). Desta forma, por meio do “dolo genérico”, dispensou-se a comprovação da intenção específica do agente de violar princípios administrativos, bastando a constatação de que ele haja consentido em atuar em determinado sentido.

Destaque-se que não se pode falar em responsabilidade objetiva, que além de ser admissível somente quando prevista expressamente, destoa do sistema jurídico brasileiro, no que diz respeito à responsabilidade o agente público, do que se lê da norma contida no artigo 37, § 6º, da Constituição, que consagra a responsabilidade objetiva do Estado por danos causados por terceiros, mas preserva a responsabilidade subjetiva do agente causador do dano.

Esse entendimento está presente na obra Improbidade Administrativa(Aspectos Jurídicos da Defesa do Patrimônio Público, da autoria de Marino Pazzaglini Filho, Márcio Fernando Elias Rosa e Waldo Fazzio Júnior. As afirmações feitas pelos mesmos autores são: Ponto que merece atenção diz respeito ao elemento subjetivo necessário à caracterização das condutas elencadas naqueles dispositivos. Nenhuma das modalidades admite a forma culposa: todas são dolosas. É que todas as espécies da atuação suscetíveis de gerar enriquecimento ilícito pressupõem a consciência da antijuridicidade do resultado pretendido. Nenhum agente desconhece a proibição de enriquecer às expensas do exercício de atividade pública, ou de permitir que, por ilegalidade de sua conduta, outro o faça. Não há, pois, enriquecimento ilícito imprudente ou negligente. De culpa é que não se trata”.

De toda sorte, necessário aduzir que sem um mínimo de má-fé, não se pode cogitar da aplicação de penalidades tão severas previstas no ordenamento como a suspensão dos direitos políticos e a perda da função pública.

Leia-se que nos autos do AgRg no AREsp 270.857, o Superior Tribunal de Justiça manteve decisão pela improcedência da ação de improbidade administrativa, “por ausência dos elementos subjetivos e objetivos, porquanto não comprovada a má-fé dos agentes ou dano ao erário”.

Volto-me ao artigo 10 da Lei nº 8.429/92.

Lá estão previstos os atos de improbidade que causem prejuízo ao erário, independentemente de alguém ter obtido vantagem indevida.

Disse Pedro da Silva Dinamarco(Requisitos para a Procedência das Ações por Improbidade Administrativa): “Seu caput trata da ação ou omissão do agente que seja “dolosa ou culposa” ou seja, bastaria somente a ocorrência de imprudência, imperícia ou negligência. Entretanto, a intenção desse dispositivo provavelmente foi evitar que os atos causadores de danos ao erário ficassem impunes sob o escudo da dificuldade de se produzir a prova da intenção subjetiva do agente. Como já dito, a lei visa a alcançar o administrador desonesto, não o inábil”.

De fato, nas hipóteses dos artigos 9º e 11º é indispensável a demonstração de dolo.

Já na hipótese do artigo 10º, em que a culpa é suficiente para a caracterização do tipo, todos aqueles que participaram do ato com poder de decisão, como todos os seus beneficiários, devem estar sujeitos às sanções legais. Não será razoável imputar essa sanção àqueles que provem não ter agido com dolo ou culpa, dentro da leitura da lei.

Impressionam os argumentos lançados por Aristides Junqueira(Reflexões sobre Improbidade Administrativa no Direito Brasileiro) quando disse que pode-se conceituar a improbidade administrativa, como espécie do gênero imoralidade administrativa qualificada pela desonestidade de conduta do agente público, mediante a qual este se enriquece ilicitamente, obtém vantagem indevida, para si ou para outrem ou cause dano ao erário. E conclui: “E essa qualificadora da imoralidade administrativa que aproxima a improbidade administrativa do conceito de crime, não tanto pelo resultado, mas principalmente pela conduta, cuja índole de desonestidade manifesta a devassidão do agente”.

É de José Afonso da Silva(Direito Constitucional Positivo, 21ª edição, 2002, pág. 646) a opinião de que “todo ato lesivo ao patrimônio agride a moralidade administrativa”, mas sempre a lesão ao patrimônio público pode ser caracterizada como ato de improbidade administrativa, por não estar a conduta do agente, causador do lesão, marcada pela desonestidade.

Consideram Márcio Cammarosano e Flávio Unes(Improbidade e Esvaziamento do Dolo) que é inconstitucional a previsão da modalidade culposa do artigo 10 da Lei de Improbidade Administrativa. Dizem eles ao concluir: “Quanto à modalidade culposa, prevista no art. 10, caput, da Lei de Improbidade, verificou-se, a partir do tratamento constitucional autônomo entre legalidade, moralidade e probidade, violação à Constituição. Em outras palavras, a leitura sistemática do texto constitucional revela que a improbidade é forma qualificada de descumprimento da moralidade administrativa, vinculada ao desvio de finalidade, que, por sua vez, é incompatível com a culpa”.

Realmente a Constituição atrelou a improbidade administrativa à imposição de sanções de extrema gravidade: no artigo 15, V, e artigo 37, § 4º, ao prever a suspensão ou perda dos direitos políticos; no artigo 37, § 4º, ao dispor sobre a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário; e, no artigo 85, ao disciplinar o crime de responsabilidade.

Repita-se: a improbidade administrativa é forma qualificada de ilegalidade ou imoralidade. Como tal, a forma qualificada está vinculada à noção de desvio de finalidade, a impossibilitar a modalidade culposa do agente.

Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça destaca a previsão expressa naquele artigo 10 da Lei nº 8.429 da modalidade culposa.

Realmente como falar em grave desvio ético sem que o agente ao qual se imputa ofensa à ordem jurídica tenha se conduzido sem propósito viciado, eivado de má-fé, sem consciência da antijuridicidade do resultado, a que tenha dado causa? Ora, só há grave desvio ético de conduta quando alguém atua, revelando móvel viciado, má intenção, desígnio moralmente reprovável. Esse é o ímprobo.

Não se duvida que na aplicação das sanções expostas no artigo 12 da Lei de Improbidade Administrativa o julgador terá que aplicar o princípio da proporcionalidade.

Juarez Freitas(Princípio Jurídico da Moralidade e a Lei de Improbidade Administrativa), na mesma linha de Gilmar Ferreira Mendes e Arnoldo Wald(Mandado de segurança e ações constitucionais), entende que a improbidade pode ser punida a título de dolo ou de culpa grave, restando impossível apenas a configuração dessa infração ético-funcional nas condutas pautadas por culpa leve e levíssima.

Alias, é Juarez Freitas, que ao defender a posição intermediária(improbidade administrativa caracterizada por dolo ou culpa grave), acaba por cair em insanável contradição, visto que ele expressamente arrola a “inequívoca intenção desonesta” como sendo o precípuo requisito à configuração da improbidade. Entenda-se que é cediço que o dolo é composto por representação e vontade(ou intenção), de modo que, sendo a grave intenção desonesta um requisito inarredável da improbidade, deve-se afastar, pelos fundamentos expostos pelo doutrinador, a possibilidade de improbidade culposa. Assim onde se verifica a inequívoca intenção desonesta há, de forma nítida, dolo, e não simples culpa na conduta funcional.

Na linha de Edilson Pereira Nobre Júnior(Improbidade Administrativa: alguns aspectos controvertidos), dir-se-á que a presença do dolo é um dos principais elementos configuradores do ato improbus. Repita-se que o conceito de improbidade está, de forma inexorável, atrelado à ideia de imoralidade administrativa qualificada, que pressupõe a presença do ânimo desonestidade.

A Corte Especial do STJ já havia se pronunciado no sentido de que a culpa configuradora da improbidade administrativa deveria ser a “culpa grave”. Nesse sentido,

“Conforme pacífico entendimento jurisprudencial desta Corte Superior, improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente, sendo "indispensável para a caracterização de improbidade que a conduta do agente seja dolosa para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/1992, ou, pelo menos, eivada de culpa grave nas do artigo 10". (AIA 30/AM, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Corte Especial, DJe 28/09/2011).

Entretanto, a jurisprudência das turmas do STJ, especialmente da 2ª Turma, tem se afastado dessa orientação e começou a se firmar no sentido de que a configuração da improbidade administrativa se basta na comprovação da culpa (simples). Veja-se, por todos:

O entendimento do STJ é no sentido de que, para que seja reconhecida a tipificação da conduta do réu como incurso nas previsões da Lei de Improbidade Administrativa, é necessária a demonstração do elemento subjetivo, consubstanciado pelo dolo para os tipos previstos nos artigos 9º e 11 e, ao menos, pela culpa, nas hipóteses do artigo 10. (AgRg no AREsp 654.406/SE, Rel. Ministro Herman Benjamim, Segunda Turma, julgado em 17/11/2015, DJe 04/02/2016.

Hoje são discutidas mudanças na chamada Lei de Improbidade Administrativa.

Conforme o Conteúdo Estadão, se aprovado, o projeto impedirá que atos considerados equívoco, erro ou omissão decorrente de negligência, imprudência e imperícia sejam classificados como improbidade administrativa. Essa denominação só será admitida para atos comprovadamente praticados com dolo. 

“A lei foi feita para punir desonestos, não pessoas despreparadas. Da forma como funciona hoje, serve para afastar pessoas de bem da vida pública e para precarizar a política”, disse, na comissão, o desembargador e ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo José Renato Nalini, um dos juristas que apoiam a revisão. Desde junho, ele, que também foi secretário estadual de Educação, é processado por improbidade. Segundo o MPE-SP, Nalini é corresponsável por desviar recursos da educação para pagar aposentadorias de servidores estaduais. Ele nega.


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