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Dos princípios do Direito do Trabalho no mundo contemporâneo

Dos princípios do Direito do Trabalho no mundo contemporâneo

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A evolução do Direito do Trabalho ― de suas regras, institutos e jurisprudências ― reflete as transformações que a sua malha principiológica experimenta paulatinamente.

"... o universo, com suas formas efêmeras em perpétua transformação, deve ser necessariamente, para a mente do filósofo, não mais que um fogo-fátuo" (H. P. BLAVATSKY).

"... pois a letra mata, mas o espírito vivifica" (2 Coríntios 3:6).

"Law is experience developed by reason and applied continually to further experience" (ROSCOE POUND).


RESUMO: O Direito do Trabalho do mundo contemporâneo não é e nem poderia ser o mesmo Direito do Trabalho que emergiu da Primeira Revolução Industrial e foi instrumentalizado pelo corporativismo fascista. Nada obstante, ainda preserva a sua autonomia dogmática e científica. A evolução do Direito do Trabalho reflete as transformações graduais em sua malha principiológica, que desafia novos estudos à luz dos paradigmas e dos desafios da sociedade pós-industrial.

PALAVRAS-CHAVE: 1. Princípios do Direito do Trabalho. 2. Princípio da proteção. 3. Princípios gerais de direito. 4. Direito do Trabalho: autonomia dogmática. 5. Futuro do Direito do Trabalho.


I. INTRODUÇÃO

Quando se cogita do tema "princípios do Direito do Trabalho", a primeira lembrança de tantos quantos cultuam o Direito do Trabalho na América Latina remete à "summa opera" de AMÉRICO PLÁ RODRIGUEZ.

Com efeito, foi a sua monografia mais eminente ― “Los Principios del Derecho del Trabajo” ― que celebrizou, em plagas sul-americanas, princípios que até hoje são efusivamente invocados por doutrina e jurisprudência de vários países: o princípio da proteção (com a tríplice regra do "in dubio pro misero", da norma mais favorável e da condição mais benéfica), o princípio da irrenunciabilidade, o princípio da continuidade, o princípio da primazia da realidade, o princípio da razoabilidade e o princípio da boa-fé [01].

Mas PLÁ RODRIGUEZ escreveu no segundo lustro da década de setenta. A edição mais famosa da obra ― a segunda edição da Depalma, lançada em Buenos Aires ― data de 1978.

Essa circunstância, pensada nas primícias do século XXI, provoca a reflexão sobre a atualidade de tais princípios, em tempos de liberalismo econômico e progressiva globalização dos direitos humanos. Revive, ainda, a questão da autopoiese do sistema jurídico: há novos princípios do Direito do Trabalho, que por razões quaisquer não foram identificados pela "communis opinio doctorum" ao tempo de PLÁ RODRIGUEZ?

Semelhante temática mereceria uma robusta monografia; quiçá uma tese de Doutorado. Mas pedimos licença ao leitor para tentar abordá-la ― sem qualquer pretensão de exaurimento ― em um singelo artigo.

Voilà.


II. DOS PRINCÍPIOS NO DIREITO DO TRABALHO: "STATUS", APLICAÇÃO E TENDÊNCIA

Embora a "Constituição Cidadã" tenha se esmerado em esquadrinhar e tipificar direitos trabalhistas, não consagrou expressamente qualquer um dos princípios juslaborais universalmente reconhecidos. Essa aparente omissão sugere, ao hermeneuta, o problema do "status" positivo daqueles mesmos princípios. A merecer, aliás, a primeira releitura que pretendemos avalizar.

Conquanto não haja positividade expressa, não se pode ignorar que vários dos princípios em testilha consubstanciam o "leit motiv" de direitos expressos no artigo 7º da CRFB. Não se há de negar, por exemplo, que o princípio da proteção é a "ratio" ideológica de praticamente todos os direitos trabalhistas arrolados no artigo 7º, conquanto exsurja mais explicitamente em alguns preceitos (artigo 7º, IX, X, XIII, XIV, XXII, XXVII, etc.); o princípio da continuidade está na base do artigo 7º, I (proteção da relação de emprego contra despedidas arbitrárias ou sem justa causa), embora a denúncia vazia seja em regra admitida nos contratos civis, ressalvadas as cláusulas penais e o ressarcimento por perdas e danos; o princípio da irrenunciabilidade subjaz à irredutibilidade salarial (artigo 7º, VI) e à garantia de salário não inferior ao mínimo nos casos de remuneração variável (artigo 7º, VII); o princípio da razoabilidade — para além do princípio geral de igualdade (artigo 5º, caput, 1ª parte) — é que justifica a proibição de discriminações em matéria de salários, exercício de funções e critérios de admissão [02] (artigo 7º, XXX); e assim por diante.

Esse quadro semântico permite concluir que o constituinte de 1988 adotou os princípios específicos do Direito do Trabalho (notadamente os princípios da proteção, da irrenunciabilidade, da primazia da realidade e da continuidade, porque os da razoabilidade e da boa-fé são, a bem dizer, princípios gerais de direito) como princípios constitucionais implícitos, dada a sua função normogenética.

Explique-se.

Repetindo CANOTILHO, os princípios não proíbem, permitem ou exigem algo em termos de «tudo ou nada» (lógica do all-or-nothing, na expressão de DWORKIN [03]), mas impõem a otimização de um direito (e.g., os direitos sociais e econômicos dos trabalhadores) ou de um bem jurídico (e.g., a vida e a saúde dos trabalhadores), tendo em conta a "reserva do possível" [04]. Em relação às normas-regras, os princípios (= normas-princípios) distinguem-se pelo maior grau de abstração, pelo menor grau de determinabilidade na aplicação ao caso concreto (reclamando concretizações mediadores: a lei, o juiz), pelo caráter de fundamentalidade no sistema das fontes (têm posição hierárquica superior c/ou função estruturante), pela proximidade com a idéia de Direito (i.e., são "standards" radicados na idéia de Justiça) e pela natureza normogenética [05]. Esclarecendo a última, CANOTILHO observa que

os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante [06].

Essa é a condição dos princípios juslaborais, como demonstrado há pouco. Eles são a "ratio" dos direitos sociais inscritos no artigo 7º da CRFB, i.e., as idéias-valores que guiaram a "mens legislatoris" na positivação dos direitos trabalhistas consagrados em 1988 (vazados, todos, em normas-regras constitucionais). Eis a natureza (ou função) normogenética de tais princípios [07]. E daí a nossa conclusão: se estão na origem — ontológica e epistemológica — dos direitos sociais positivos, não podem ser princípios imanentes tão-só à legislação infraconstitucional (como seria, p. ex., o princípio da abstração ou o princípio da cartularidade em Direito cambiário). Se o fossem, não poderiam "gerar" regras de hierarquia constitucional. É inapelável, portanto, a sua imanência constitucional, o que os transforma em princípios constitucionais implícitos (a exemplo de outros tantos que, de longa data, vêm sendo reconhecidos pela doutrina autorizada, especialmente no imo do Direito Constitucional e Administrativo, como o princípio da proporcionalidade [08] e o princípio da motivação [09]).

Essas conclusões permite-nos antecipar que, em determinados contextos, a lei ou o ato normativo podem ser inconstitucionais, em tese, por violação flagrante dos princípios juslaborais universalmente reconhecidos. É o que ocorreria, se aprovado, com o Projeto de Lei n. 5.483/2001, do Ministério do Trabalho e Emprego (Governo Fernando Henrique Cardoso), que pretendia alterar o artigo 618 da CLT para privilegiar a negociação coletiva em detrimento dos direitos "legislados". Consoante a Exposição de Motivos (E.M.) do referido projeto, permitir-se-ia às categorias econômicas e profissionais disporem livremente sobre direitos que, sobre terem consagração constitucional (artigo 7º), dependessem da mediação concretizadora da lei: assim, p. ex., a proteção contra despedida arbitrária ou sem justa causa, o FGTS, o piso salarial, o décimo terceiro salário, a remuneração do trabalho noturno superior à do diurno, a proteção jurídica do salário, a participação nos lucros, o salário-família, a remuneração da hora extra superior a 50% do valor da hora normal, o abono de férias superior a um terço do valor do salário e a licença à gestante. Ora, dispor que — mesmo em instância coletiva — o trabalhador possa renunciar a esses direitos, objetiva ou tendencialmente (como se, p. ex., ajustassem horas extraordinárias remuneradas a 1%), é repudiar o princípio da irrenunciabilidade e o próprio princípio da proteção (norma mais benéfica). Como ambos compõem o substrato ético-normativo imanente ao subsistema constitucional dos direitos sociais mínimos, é indene de dúvidas que, ao contrariá-los, a lei ordinária estaria eivada de inconstitucionalidade, sujeita a controle difuso (artigo 102, III, "c", da CRFB) ou concentrado (artigo 102, I, da CRFB) [10].

À vista disso, engendra-se dedutivamente uma segunda ordem de ilações. Por influência da Escola Histórica do Direito, do Positivismo Jurídico e de outras tendências afins, tornou-se lugar-comum na Hermenêutica clássica a idéia de que os princípios somente se aplicariam ao caso concreto se a lei (i.e., o sistema jurídico legal-positivo) fosse omissa. E não foi outra a tese que ganhou expressão no artigo 4º da LICC (Decreto-lei 4.657/42):

Quando a lei for omissa

, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito (g.n.).

No mesmo rastro, menos de um ano depois, a própria Consolidação das Leis do Trabalho disporia sobre o caráter subsidiário dos "princípios e normas gerais de direito" (artigo 8º, caput), incluindo entre aqueles os princípios gerais do Direito do Trabalho (que teriam, a despeito da sua generalidade, uma nota de especificidade "ex ratione materiae" [11]). "In verbis":

As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público (g.n.).

Dir-se-ia, portanto, que os princípios juslaborais só atuam como princípios jurídicos — i.e., "na sua qualidade de verdadeiras normas", com função impositiva de otimização [12] diante das lacunas da legislação trabalhista. Ou, como outrora pontificou BEVILÁQUA,

a lei é a fórma por excellencia do direito; num segundo plano e subsidiariamente, acha-se o costume; o dominio da lei illumina-se e dilata-se pela interpretação; se o trabalho mental do intérprete não consegue arrancar da letra nem do espirito da lei a norma juridica applicavel ao caso, que tem deante de si, recorre ao processo da analogia; e quando este se mostra inadequado abre-se-lhe um espaço mais vasto, onde exercerá a sua livre investigação, á procura dos principios geraes do direito. É uma marcha ascensional, na qual a intelligencia vae, gradualmente, alargando o campo das suas operações [13].

Para BEVILÁQUA, a função jurídica dos princípios jurídicos não apenas era subsidiária, como ocupava, na espiral legislativa de prelações, a última posição: omissa a lei, recorrer-se-ia aos costumes; em seguida, à analogia e, finalmente, aos princípios gerais de direito.

Esse convencimento, se um dia foi adequado, não resiste à concepção sistêmica e autopoiética do Direito contemporâneo. A obsolescência era já apontada por MIGUEL REALE em 1973:

Ora, o apelo à analogia não impede que recorramos, concomitantemente, aos costumes e aos princípios gerais, mesmo porque todo raciocínio analógico pressupõe a apontada correspondência entre duas modalidades do real postas em confronto (analogia entis) e conduz naturalmente ao plano dos princípios. Quando mais não seja, estes reforçam as aduzidas razões de similitude e dão objetividade à sempre delicada aplicação do processo analógico [14].

Mas a superação não se refere apenas à "marcha ascensional" das ditas fontes subsidiárias. Refere-se à própria subsidiariedade dessas fontes, eis que

os princípios gerais de direito [entre os quais os princípios gerais do Direito do Trabalho] não têm função apenas no caso particular de lacunas encontradas na legislação, como ainda se sustenta por anacrônico apego a uma concepção "legalista" do Direito. [...] Em verdade, toda a experiência jurídica e, por conseguinte, a legislação que a integra, repousa sobre princípios gerais de direito, que podem ser considerados os alicerces e as vigas mestras do edifício jurídico. [...] Assim sendo, é à luz dos princípios que devemos interpretar e aplicar modelos jurídicos, quer estes se ajustem ou não, total ou parcialmente à relação social sobre cuja juridicidade cabe ao juiz decidir. Antes do juiz, aliás, são os juristas e advogados que examinam as espécies ocorrentes, em confronto com as disposições legais, fixando diretrizes e formulando pretensões que orientam a função jurisdicional, pois, consoante já dissemos, são os modelos teóricos ou dogmáticos que dizem qual o significado pleno dos modelos jurídicos, sejam estes legais, costumeiros, jurisprudenciais ou negociais [15].

Noutras palavras, uma percepção genuinamente sistêmica do ordenamento jurídico conduz os princípios à condição de espinha dorsal do Direito positivo, rechaçando qualquer pretensão de subsidiariedade que ainda dimane da ciência jurídica oitocentista. Os princípios gerais não são meros recursos periféricos de colmatação de lacunas; antes, são eles — e não as regras — a "parte vital" do sistema jurídico [16].

Conseqüentemente, os artigos 4º da LICC e 8º, caput, da CLT devem ser interpretados restritivamente: dispõem sobre — e apenas sobre — os modos de colmatação das lacunas autênticas do sistema jurídico (que pode ser feita, no caso do Direito do Trabalho, por meio da jurisprudência, da analogia, da eqüidade, dos princípios gerais do Direito do Trabalho, dos princípios e normas gerais do Direito, dos usos e costumes e do próprio direito comparado [17], sem qualquer ordem necessária de prelação entre esses recursos sistêmicos). O que não significa que esses recursos tenham emprego restrito àquela circunstância. Podem ser aplicáveis noutros contextos, mesmo à falta de lacunas: é o que ocorre, p. ex., com a eqüidade (que, sendo um critério formal de decisão [18], admite aplicação imediata nos litígios de procedimento sumaríssimo, ut artigo 852-I, §1º, da CLT). E é o que se dá com os princípios gerais de Direito do Trabalho, que compõem o modelo dogmático sob cuja regência a legislação trabalhista adquire dinâmica própria como modelo jurídico-legal.

Conclui-se, entrementes, que os princípios juslaborais não subsidiam a legislação trabalhista mas, antes, conferem-lhe o espírito, dimensionando o seu sentido e o seu alcance (função hermenêutica). E, para além disso, tendo "status" constitucional, esses princípios também relevam para o controle de constitucionalidade da legislação em vigor, condicionando a sua validade sistêmica e a sua eficácia sintática a um juízo negativo de contrariedade. Caso haja contrariedade notória ao princípio, pode o juiz afastar, "incidenter tantum", a aplicabilidade da norma-regra, ainda que não se verifique qualquer contradição expressa com os dispositivos do texto constitucional. Eis aqui, aliás, uma das maiores contribuições — se não a maior — da teoria dos sistemas à ciência do Direito: reconhecer nos princípios e valores imanentes ao ordenamento o seu papel estruturante, conformador de sentido, sem o qual o Direito objetivo não seria um sistema aberto de regras e princípios, mas um conjunto acrítico de normas positivas mais ou menos coerentes entre si (ou, como já se ouviu, um "amontoado" de normas...).

Mas já não se admite, de outra banda, que os princípios jurídicos sejam uma expressão pura do Direito Natural (a não ser que se o compreenda conjecturalmente, sob contínua progressão e objetivação histórica [19]). Eles têm dimensão política, histórica e sociológica. Não é desarrazoado supor, dessarte, que os progressos socioeconômicos e tecnológicos, assim como as ideologias reinantes, induzam à condensação ou ao reconhecimento de novos princípios, desconhecidos ou subvalorizados nos estágios precedentes da doutrina. Esse fenômeno parece ter eco no Direito do Trabalho contemporâneo, notadamente na Europa.

Merecem menção, nesse particular, as construções dogmáticas mais atuais do Direito do Trabalho português. Em obra recente, PALMA RAMALHO aponta os "sintomas de crise" do Direito do Trabalho no início do século XXI, comungado pelos Estados europeus, e elege quatro grandes objetivos para a vindoura "reforma laboral":

(a) a melhor adequação do regime do contrato de trabalho aos novos modelos de gestão empresarial e aos desafios crescentes de competitividade e produtividade (o que implicaria regimes de flexibilização interna e novos modelos de contratação, com vistas à maior empregabilidade);

(b) a melhor adequação dos regimes laborais aos novos perfis de trabalhadores (trabalhadores atípicos, como os teletrabalhadores e os parassubordinados);

(c) a reposição do dinamismo da negociação coletiva;

(d) a manutenção dos direitos e garantias fundamentais dos trabalhadores no seu núcleo essencial, aliada à abertura a novas necessidades de tutela (como, e.g., nos contextos desfavoráveis relacionados ao meio ambiente do trabalho, à escravidão contemporânea e à automação) [20].

Pressupostos históricos diferentes reclamam construções dogmáticas diferentes. É o que se apreende, nas entrelinhas, quando a autora observa que os princípios do Direito do Trabalho não se reconduzem a arquétipos axiomáticos formais do sistema juslaboral, pois correspondem às valorações materiais, de conteúdo ético ou cultural, que estão subjacentes ao conjunto de normas laborais do seu tempo [21]. Nessa medida, procura (re)descobri-los numa perspectiva mais democrática e menos partidária, identificando, para além dos interesses visceralmente ligados à dignidade da pessoa trabalhadora e aos seus direitos sociais, os valores de empresa constitucionalmente garantidos. Nessa senda, ao lado do princípio da proteção do trabalhador (que reconhece como vertente de um princípio maior, atribuindo-lhe maior envergadura que a subentendida por PLÁ RODRIGUEZ), PALMA RAMALHO enuncia certos princípios juslaborais que jamais tiveram expressão na literatura latino-americana autorizada. Vejamos.

Como ponto de partida, descortinam-se três grandes "valorações materiais", a saber:

-O princípio da compensação da posição debitória complexa das partes no contrato de trabalho, que ora se manifesta como princípio da proteção (a primeira "vertente") e ora se manifesta como princípio da salvaguarda dos interesses de gestão;

-O princípio do coletivo (omnipresença do elemento coletivo na esfera juslaboral);

- O princípio da autotutela laboral (afirmada como princípio geral — não apenas como direito [22] e entendida como a independência sociojurídica da jurisdição exterior).

A partir desses grandes princípios retores, desenvolvem-se concreções setoriais discriminadas como subprincípios ou regras. Assim, por exemplo, o princípio da proteção do trabalhador engendraria, como princípios derivados (= subprincípios), o princípio da dignidade e da segurança no trabalho, o princípio da suficiência salarial, o princípio da conciliação da vida profissional com o lazer e a vida privada e familiar (desaguando no princípio da proteção da maternidade e da paternidade), o princípio da segurança no emprego (= proibição dos despedimentos sem justa causa), o princípio do respeito pelos direitos de personalidade do trabalhador, o princípio da assistência ao trabalhador nas situações de risco laboral e de desemprego involuntário e o princípio do "favor laboratoris" [23] (que implica o tratamento mais favorável aos trabalhadores em matéria de interpretação das fontes, de conjugação das fontes e de relação entre as fontes laborais e o contrato de trabalho [24]).

Já o princípio da salvaguarda dos interesses de gestão teria concreção no (sub)princípio da colaboração entre as partes no contrato de trabalho (ut artigo 119º do Código do Trabalho português, que é tributário da tese alemã da "Gemeinschaftsverhältnis" [25]), nas limitações ao princípio da segurança no emprego (como, e.g., nas hipóteses legais de admissão de contratos de trabalho precário, como o contrato de trabalho a termo, a comissão de serviço ou o contrato de trabalho temporário) e em certas emanações dos poderes diretivo e disciplinar do empregador (mobilidade funcional, adaptabilidade de horários e outras manifestações lícitas do "jus variandi") [26].

Em arremate, a autora fia-se nos elementos de informação coligidos (em grande parte hauridos do juslaboralismo alemão e do espólio normativo da União Européia) para pontificar que, por um lado,

confirma-se a importância actual do princípio da protecção do trabalhador no sistema jurídico laboral português, mas recusa-se a tradicional qualificação deste princípio como valoração material fundamentante única do Direito do Trabalho, em favor da sua colocação ao lado do princípio da salvaguarda dos interesses de gestão do empregador e da qualificação de ambos como vertentes paralelas do princípio da compensação [27].

Por outro, assere que

a perspectiva adoptada sobre o princípio da compensação tem implícita a recusa da visão clássica do Direito Laboral como uma área jurídica predestinada à protecção dos trabalhadores subordinados e, consequentemente, a negação da característica da sua unilateralidade, em favor da sua visão como um direito compromissório [28].

No mesmo sentido, abandonando a visão do Direito do Trabalho "tutelar" e enfatizando o seu caráter compromissório, vejam-se ainda, na Europa, RÜTHERS [29], LYON-CAEN [30] e, menos explicitamente, JAVILLIER [31].

Nota-se, aqui, uma irrecusável evolução sistemática do Direito do Trabalho, mais coerente com o princípio democrático e com a vocação pluralista dos Estados Democráticos de Direito. Rompe-se com um paradigma ideológico que se justifica sob a lógica política do fascismo, na qual o papel do Estado era coordenar, "ex auctoritas", as corporações profissionais e econômicas. E, ao mesmo tempo, não se perde de vista o cerne maior da proteção jurídico-laboral, a saber, a especial vulnerabilidade dos trabalhadores subordinados, cuja dignidade humana ergue-se como anteparo instransponível diante do exercício voluntarioso do poder hierárquico do empregador.

Não nos prenderemos à análise do mérito de cada um desses novos princípios, nem tampouco sobre a verdade da sua imanência. É evidente, porém, que a "descoberta" desses novos princípios juslaborais (em especial aqueles relacionados ao livre exercício da atividade empresária) não elide os princípios clássicos do Direito do Trabalho, apontados já na introdução deste texto (supra). Convém, por isso, revisitá-los e ensaiar, em primeiras linhas, a sua inserção nesse novo modelo dogmático. Passemos a isto.


III. O REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE TRABALHO NO MUNDO CONTEMPORÂNEO. PRINCIPIOLOGIA: REDISCUTINDO A AUTONOMIA DOGMÁTICA DO DIREITO DO TRABALHO

Referíamos, na introdução, a obra de AMÉRICO PLÁ RODRIGUEZ (entre nós, o divisor de águas no seu tema). Mas o estudo sério dos princípios juslaborais obviamente não começa e nem termina com os escritos do jurista uruguaio. Não são poucos os autores que, na doutrina mundial, procuraram isolar e densificar os chamados princípios do Direito do Trabalho. Tal constatação já denota a importância capital desse estudo para a Ciência do Direito do Trabalho. Dentre tantos ilustrados, e à vista dos limites materiais deste artigo, ater-nos-emos a dois deles, cujas obras destacaram-se pela notoriedade e pela sistematicidade. Ambos fizeram escola em seus respectivos continentes: na Europa ocidental, o espanhol MIGUEL HERNAINZ MARQUES; na América Latina, o próprio AMÉRICO PLÁ RODRIGUEZ. A partir desses escólios, examinados em cotejo, discutiremos os possíveis caminhos de atualização da principiologia juslaboral. Focalizaremos, outrossim, os princípios que mais relevam para o Direito Individual do Trabalho, uma vez que os princípios inerentes ao Direito Coletivo do Trabalho [32] são de diversa inflexão e merecem abordagem apartada, noutra ocasião.

Na Espanha, para além dos princípios gerais de direito que se aplicam ao Direito do Trabalho, HERNAINZ MARQUES [33] já apontava, na década de cinqüenta, princípios específicos da disciplina, observando que a resposta à questão da sua existência autônoma dependeria do desenvolvimento alcançado pelo Direito do Trabalho em cada país, bem como da armação doutrinal conjunta e homogênea construída em torno da lei com o contributo dos aportes científicos dos doutos. Nessa linha, para o caso espanhol, indicava os seguintes: o princípio da irrenunciabilidade [34], o princípio «pro operario» [35], o princípio do rendimento [36] e o princípio da continuidade [37]. Para além desses, PLÁ RODRIGUEZ enunciou o princípio da primazia da realidade, o princípio da boa-fé e o princípio da razoabilidade.

Convém, agora, confrontar as versões das duas obras para buscar um sentido unívoco e, no que couber, reponderá-las.

O princípio da proteção, a que temos feito alusões, equivale ao "princípio pro operario" de HERNAINZ MARQUEZ, numa concepção mais atual e pedagógica. Reputa-se-o o mais importante entre os princípios específicos de Direito do Trabalho. Corresponde

ao critério fundamental que orienta o Direito do Trabalho pois este, ao invés de inspirar-se num propósito de igualdade, responde ao objetivo de estabelecer um amparo preferencial a uma das partes: o trabalhador [38].

Para PLÁ RODRIGUEZ, o princípio da proteção se expressa sob três formas distintas (subprincípios ou, na dicção do autor, "regras"), a saber: (a) a regra "in dubio pro operario", que consiste em um critério de interpretação pelo qual, entre os vários sentidos possíveis de uma norma, deve o juiz ou o intérprete optar por aquela que seja mais favorável ao trabalhador (com reflexos ponderáveis, p. ex., na distribuição do ônus da prova [39]); (b) a regra da norma mais favorável, que determina a chamada "hierarquia dinâmica" do Direito do Trabalho [40]: no caso de haver mais de uma norma aparentemente aplicável ao caso, deve-se optar por aquela que seja mais favorável, ainda que não corresponda aos critérios clássicos de hierarquia das normas (assim, e.g., o contrato individual de trabalho que preveja jornada de seis horas diárias e trinta horas semanais prevalece sobre a lei ordinária ou sobre a própria Constituição, caso prevejam duração maior [41]); (c) a regra da condição mais benéfica, que ajusta o princípio do direito adquirido à cambialidade e à profusão normativa do Direito do Trabalho: a aplicação de uma nova norma trabalhista não pode servir para diminuir as condições mais favoráveis já fruídas pelo trabalhador [42] (as condições antigas só podem ser alteradas pelas novas regulamentações ou por disposições subseqüentes de caráter geral, aplicáveis a todo um conjunto de situações trabalhistas, se, em relação às novas condições, não forem globalmente mais benéficas).

O princípio da irrenunciabilidade é enunciado como a impossibilidade jurídica de o empregado privar-se voluntariamente de uma ou mais vantagens concedidas pelo Direito do Trabalho (objetivo) em seu benefício. Mas, nesse aspecto, PLÁ RODRIGUEZ diverge nominalmente de HERNAINZ MARQUEZ, por entender que o princípio da irrenunciabilidade não se limita a obstar a privação voluntária de direitos em caráter amplo e abstrato (e.g., a renúncia geral ao direito de gozar férias), mas também a privação voluntária de direitos em caráter restrito e concreto (e.g., a renúncia às férias adquiridas entre os anos de 2003 e 2004), e previne "tanto a que se realize por antecipação como a que se efetue posteriormente" [43]. Esse princípio tem fundamento na indisponibilidade de certos bens e direitos (e.g., a saúde e a integridade física do trabalhador), no cunho imperativo de certas normas trabalhistas (e.g., as normas que garantem o direito ao repouso semanal remunerado [44]) e na própria necessidade de limitar a autonomia privada como forma de restabelecer a igualdade das partes no contrato de trabalho. Fora desses pressupostos, porém, é de se admitir a renúncia "a posteriori" de direitos trabalhistas, notadamente quando se consume no imo de uma transação, mediante concessões recíprocas.

Do princípio da continuidade tratamos há pouco, sob a ótica de HERNAINZ MARQUEZ (supra, nota n. 37). A mais do que já se disse, acresça-se, com PLÁ RODRIGUEZ, que esse princípio não se circunscreve à preferência pelos contratos de duração indefinida, desdobrando-se ainda no próprio dinamismo dos contratos de trabalho (que admitem amplo espectro de transformações durante a sua execução, sem prejuízo do prosseguimento da relação contratual), na viabilidade de manutenção do contrato apesar dos incumprimentos e das nulidades e, por fim, na resistência em se admitir a rescisão do contrato por exclusiva vontade patronal [45].

Segue-se o princípio da primazia da realidade, que não é referido por HERNAINZ MARQUEZ. Presta-se aos casos de desajuste entre a realidade e as formas, as formalidades ou as aparências: "em matéria de trabalho importa o que ocorre na prática, mais do que aquilo que as partes hajam pactuado de forma mais ou menos solene, ou expressa, ou aquilo que conste em documentos, formulários e instrumentos de controle" [46]. Ou seja: os fatos primam sobre as formas. Esse princípio relaciona-se à idéia do contrato de trabalho como contrato-realidade: à diferença dos contratos de direito civil, a produção de efeitos jurídicos e a aplicação do Direito dependeriam do cumprimento mesmo da obrigação contraída, não bastando o acordo de vontades; noutras palavras, "no direito civil o contrato não está ligado a seu cumprimento, enquanto no do trabalho não fica completo senão através da sua execução" [47]. PLÁ RODRIGUEZ sugeria, com isso, que o contrato de trabalho só teria relevância (ou mesmo existência) no plano juslaboral quando houvesse manifestação fenomenológica do fator trabalho, i.e., quando a obrigação de prestar trabalho fosse efetivamente cumprida; de fato, só então o contrato desafiaria a incidência de todo o arcabouço normativo juslaboral. Já no Direito Civil, as normas têm incidência útil desde o momento lógico/histórico do acordo de vontades, independentemente da execução contratual.

Pensamos que essa distinção, clássica no Direito do Trabalho, peca pelo excessivo maniqueísmo e não resiste à variedade dos instrumentos jurídicos de consenso que permeiam o tráfico socioeconômico contemporâneo. Se fosse assim, o pré-contrato de trabalho jamais atrairia a aplicação de normas trabalhistas tipicamente tuitivas (regras e princípios), o que fere a boa técnica e o senso de justiça, além de contradizer o princípio da equiparação, que rege universalmente o instituto do contrato preliminar (= contrato-promessa), conquanto seja meramente intuitivo na legislação brasileira (vide artigos 462 a 466 do NCC) [48]. Além disso, estariam alheios à regulação especial da Consolidação das Leis do Trabalho até mesmo os contratos de trabalho definitivos que, por culpa do empregador, caso fortuito ou força maior (e.g., moléstia súbita do contratado), deixassem de ter execução, mensurando-se eventual indenização sob os parâmetros imprecisos do Direito Civil. A jurisprudência demonstra não ser essa a percepção preponderante nos quadros da Justiça do Trabalho (como, p. ex., nos casos de admissão em sábado não trabalhado, seguida pela interrupção fortuita do contrato de trabalho e ulterior resilição por iniciativa do empregador, antevendo a incapacidade ulterior do contratado): mesmo antes da EC n. 45/2004, as declinações de competência eram incomuns, dando-se à hipótese tratamento celetário. É que os deveres comunitários de fidelidade, colaboração e assistência dimanam do próprio tipo contratual, independentemente de sua execução mais ou menos integral.

Com efeito, ao Direito do Trabalho contemporâneo interessa também o processo de formação do contrato de trabalho, o acordo de vontades e o próprio modo de se obtê-lo, independentemente da execução do contrato "a se". Eis o que justifica todas as construções em torno da teoria das nulidades no Direito do Trabalho e ― insista-se ― confere sentido à investigação do contrato-promessa no marco do Direito laboral; são, ambos, temas que têm recebido destacada atenção, tanto na doutrina juslaboral quanto no próprio Direito positivo (assim, e.g., em Portugal, onde o contrato-promessa de trabalho mereceu positividade no Código do Trabalho de 2003). Logo, ainda que se reconheça o sentido e a entidade do princípio da primazia da realidade ― como pessoalmente reconhecemos ―, é mister redimensioná-lo em face da nova fenomenologia à qual o Direito do Trabalho tem estado permeável desde os finais do século XX: negociações preliminares, contratos preliminares de trabalho, contextos de culpa "in contrahendo", vícios de formação, etc. Ao lado da realidade factual (= execução do objeto do contrato), há a realidade pactual (= acordo de vontades típico), que não pode ser ignorada.

O princípio da razoabilidade é provavelmente o mais elástico de todos os princípios juslaborais, carreando sempre boas doses de subjetividade. Corresponde à idéia de que o ser humano, em suas relações trabalhistas, procede e deve proceder conforme à sua razão. É certo não se tratar de princípio exclusivo do Direito do Trabalho; antes, é um princípio geral de Direito (sem nota de especificidade ― cfr., supra, a nota n. 11), imanente à ordem jurídica em sua globalidade. Não por outro motivo, é freqüentemente invocado por constitucionalistas, civilistas e penalistas. Nos lindes do Direito do Trabalho, presta-se à medição da verossimilhança de determinada explicação ou solução; assim, p.ex., não é razoável supor que os ex-empregados de uma dada empresa tenham espontaneamente se demitido e constituído uma cooperativa entre si para, a partir do mês seguinte, prestar serviços à mesma empresa, por preço unitário e sem os encargos sociais de praxe [49]. O princípio da razoabilidade induz, nesses casos, à presunção da fraude. Trata-se, porém, de uma incidência que não inspira qualquer originalidade em matéria trabalhista.

PLÁ RODRIGUEZ ainda identifica o princípio da boa-fé como um princípio específico do Direito do Trabalho, derivando-o do que é (ou foi) o princípio do rendimento. Para o autor,

se se acredita que há obrigação de ter rendimento no trabalho, é porque se parte da suposição de que o trabalhador deve cumprir seu contrato de boa-fé e entre as exigências da mesma se encontra a de colocar o empenho normal no cumprimento da tarefa determinada [50].

Com isso, pretendeu-se banir,do panteão axiológico a sistematizar, o princípio do rendimento ― provavelmente pela sua captação fascista. Mas a justificação de PLÁ RODRIGUEZ não foi, a esse propósito, explícita [51]. Para recusá-lo, ponderou que o princípio não é universal (não alcançaria relações de trabalho subordinado que não acrescem à produção nacional, como o trabalho doméstico), tem motivação político-patriótica (justificação mais próxima àquela que sugerimos), seu papel é meramente compensatório e secundário (não serviria para justificar o Direito do Trabalho como ramo autônomo), desprega-se a olhos vistos dos demais (falta-lhe a finalidade tuitiva) e é pragmaticamente unilateral ("tudo se reduz a uma série de obrigações a cargo do trabalhador" [52]). São todos argumentos verdadeiros. Numa perspectiva atualizadora, o princípio do rendimento pode ser apreendido, hoje, como princípio da prevalência dos interesses de gestão (supra, nota n. 36), reequilibrando-se o edifício dogmático e abandonando-se o viés paternalista. Mas, ainda assim, estará subordinado ao princípio da proteção (que prevalecerá, na maior parte dos conflitos), dada a primazia da dignidade humana como fundamento da República.

Ao mais, embora o princípio da boa-fé não seja tampouco um princípio exclusivo do Direito do Trabalho, sustentou-se que, no seu bojo, sobejasse em importância, porque a relação de emprego não se resume a um negócio circunstancial ou a uma fugaz transação mercantil, mas contém vínculos sociológicos pessoais e permanentes [53]. Assim,

a justificação e a aplicação deste princípio têm um significado, uma duração e uma necessidade muito superiores às que podem ter em contratos que se esgotam em um intercâmbio único de prestações ou em uma simples correspondência de prestações materiais [54].

De nossa parte, cremos que, se é inegável que o princípio da boa-fé ganha especial dimensão nos lindes do Direito laboral (especialmente em face do caráter ontológico do objeto da prestação contratual, que é emanação da própria personalidade da pessoa humana trabalhadora), também é certo que, tal como ocorre com a razoabilidade, um estudo apartado do instituto da boa-fé nos estritos limites do Direito do Trabalho não se justifica, senão como compêndio de casuísmos. Melhor será que, à mercê da sua universalidade e da sua plasticidade, a boa-fé inspire estudos de corte epistemológico transversal, que a desenvolvam em todas as suas manifestações disciplinares (inclusive nas searas do Direito público), com visão de conjunto [55].

Por derradeiro, interessa dirimir uma questão de fundo lógico-estrutural que, longe de ser cerebrina, tem repercussões ideológicas contundentes no manejo e na hermenêutica do Direito do Trabalho.

Enunciar princípios próprios do Direito do Trabalho significa reconhecer-lhe autonomia dogmática [56], para além da autonomia enciclopédica (há muito conquistada no universo acadêmico, mediante cadeiras independentes e especializações disciplinares), da autonomia judiciária (mais aguda em alguns países ― como no Brasil e na Alemanha, que mantêm ramos autônomos do Poder Judiciário para a resolução dos litígios oriundos das relações de emprego [57] ― e menos evidente em outros ― como, e.g., em Portugal ou Espanha, que possuem tão-só unidades judiciárias especializadas na matéria [58], sem autonomia corporativa) ou, como se verá, da própria autonomia sistêmica.

Objeta-se, porém, que os princípios em questão não são mais que princípios de Direito Civil refigurados (e.g., o princípio de tutela do contraente débil e o princípio da primazia da materialidade subjacente), de modo que o Direito do Trabalho não teria cariz principiológico autônomo. Diz-se, ainda, que a dogmática civil já basta à resolução das questões laborais e o Direito do Trabalho não seria mais que o Direito civil do contrato de trabalho e da relação jurídica que se segue (logo, sem autonomia dogmática).

No Brasil, são dilemas taxonômicos que já (ou ainda) não se põem e tampouco se renovam; em Portugal, porém, a discussão persiste em acesa polêmica [59]. Não há, neste artigo, espaço hábil para exaurir um debate de tais proporções. Por isso, cingimo-nos a expressar nosso entendimento.

O Direito do Trabalho tem três características que reclamam uma dogmática própria e o despregam do Direito Civil. A uma, é um Direito de (re)composição social e econômica: existe basicamente para mediar e (re)equilibrar o secular conflito entre capital e trabalho (cuja existência é insofismável, ainda que se refutem os demais pressupostos do pensamento marxista). A duas, é um Direito essencialmente tuitivo (ao contrário do Direito Civil, que é apenas acidentalmente tuitivo). A três, é um Direito de blindagem: resguarda a dignidade humana ao regular a mais visível das projeções da personalidade do "homo faber" ― o seu trabalho ―, antepondo a última barreira à mercantilização vil e cabal da mão-de-obra. Nesse particular, está mais próximo do Direito Penal, que blinda o "jus libertatis", que do Direito Civil, que regula a circulação de riquezas. Não se pode, portanto, reconduzi-lo pura e simplesmente, sob quaisquer pretextos, à dogmática juscivilista [60] ― o que não impede, porém, que a dogmática juslaboral empreste teorias e conceitos daquela primeira, ou a favoreça com elementos próprios (como se deu, e.g., com a "apropriação civilista" do princípio da proteção e das suas concretizações [61]). Deve-se ter em mente que os ramos do Direito não são compartimentos lógico-formais estanques, mas sim abstrações científico-pedagógicas que freqüentemente se comunicam.

Tampouco se pode afirmar que a autonomia do Direito do Trabalho seja meramente sistemática ou que não haja particularidades no direito do empregador à atividade do trabalhador [62]. À diferença de outras áreas suscetíveis às fórmulas gerais do Direito das Obrigações, o mundo do trabalho envolve um objeto útil que é, em termos absolutos, um bem "extra commercium", indissociável da própria personalidade humana: a força de trabalho do contraente-empregado. Admitir o contrário significaria supor a licitude do escravagismo sob o pálio da autonomia de vontades. Não se concebe, por outro prisma, que a força de trabalho subordinada possa ser "locada" à maneira de bens móveis ou imóveis, sem uma rigorosa especialidade tuitiva. Seria o mesmo que supor a licitude de servidões humanas "pro tempore" ou, na casuística recente de precarização das relações de trabalho, cogitar da validade e da eticidade das odiosas operações de "marchandage" de mão-de-obra humana [63].

Não há, a rigor, qualquer outro tipo contratual idôneo a regular e limitar, no nascedouro, um bem da vida com mesma dignidade constitucional. Assim, p. ex., não existem contratos que alienem ou disponibilizem, sob condições de sujeição hierárquica, a vida, a liberdade ou a integridade física do contraente [64]. Ou, se existem, não têm validade à luz do Direito [65].

Parece-nos, portanto, que o princípio da proteção e os seus consectários doutrinais concernem à própria natureza da relação de emprego, distinguindo-a ontológica e axiologicamente das demais relações contratuais ou obrigacionais (ainda que se admita, hodiernamente, o relativo "abandono" da idéia do "favor laboratoris" [66] em razão dos influxos ideológicos da filosofia liberal-econômica e do escamoteamento do conflito social pela lógica da exclusão [67]). Tal imanência confere à relação de emprego uma inarredável singularidade, de ordem científica e dogmática. E a especialidade não decorre apenas da intensidade com que os elementos personalíssimos se apresentam nas relações de emprego, mas também ― e sobretudo ― daquela condição ontológica de especial vulnerabilidade do contraente-empregado em seus atributos de personalidade, que é da essência mesma do contrato de trabalho (subordinação jurídica), não o sendo em quaisquer outros. Isso ainda é assim, como foi outrora e será amanhã, porque

O direito privado clássico considerava a autodeterminação individual, no sentido da liberdade negativa de fazer ou não fazer o que se deseja, garantida suficientemente através dos direitos da pessoa e da proteção jurídica contra delitos, através da liberdade de contratos (especialmente para a troca de bens e de serviços), através do direito à propriedade, que incluía o direito de utilizar e de dispor, inclusive no caso de herança, e através da garantia institucional do casamento e da família. No entanto, tal situação modificou-se radicalmente com o surgimento de novas áreas do direito (como é o caso do direito econômico, social e do trabalho) e com a materialização do direito penal, do direito de contrato e do trabalho. Houve uma mistura e uma união de princípios que antes estavam subordinados ao direito privado ou ao público. Tudo indicava que o objetivo do direito privado não podia limitar-se à autodeterminação individual, devendo colocar-se também a serviço da realização da justiça social […]. Sob este ângulo, considerações de ética social infiltram-se em regiões do direito privado que até então se limitavam a garantir a autonomia privada [como o Direito dos contratos]. O ponto de vista da justiça social exige uma interpretação diferenciadora de relações jurídicas formalmente iguais, porém diferentes, do ponto de vista material, sendo que os mesmos institutos jurídicos preenchem funções sociais distintas [68].

Nessa última peculiaridade ― a renovação funcional dos institutos jurídicos clássicos, baseada nos princípios e nas condições especiais necessárias ao desenvolvimento e ao exercício da personalidade e das capacidades individuais do trabalhador subordinado, como também ao desenvolvimento e ao exercício da cooperação coletiva no nível da empresa ("Gemeinschaftsverhältnis") ― reside, afinal, a identidade dogmática do Direito do Trabalho. A não ser desse modo, até o Direito Penal ― que envolve, em última instância, a liberdade pessoal dos cidadãos, a par do seu patrimônio ― também estaria circunscrito ao âmbito privatístico, visto como esses dois bens da vida são igualmente objetos históricos do Direito Civil [69].


IV. À GUISA DE CONCLUSÃO

Seguindo a natureza cambiante de tudo quanto existe no Universo (mundo das coisas, dos valores e das idéias), o Direito do Trabalho evolui ao longo das décadas. Admitir essa evolução é se render às evidências dos tempos; negá-la, tencionando reproduzir "ad eternum" um determinado modelo histórico, é render-se à cegueira ideológica.

A letra da lei jamais será porto seguro para a investigação dos princípios. Mesmo que não sofra variações evidentes, pode ser imantada com novos princípios, hauridos de uma nova Lei Fundamental (caso brasileiro) ou da própria experiência com a aplicação da lei (autopoiese do sistema jurídico). Há que buscar o seu espírito.

A evolução do Direito do Trabalho ― de suas regras, institutos e jurisprudências ― reflete as transformações que a sua malha principiológica experimenta paulatinamente.

Numa leitura atualizada, o princípio da proteção deixa de ser um borralho paternalista, afirmando-se como "ratio" axiológica que deita raízes na primazia da dignidade humana e se rivaliza com o princípio da salvaguarda dos interesses de gestão (conquanto esse se subordine àquele nos quadros mais agudos de colisão). Somente a existência desse último explica a possibilidade de dispensa de empregados estáveis por motivos técnicos ou econômico-financeiros (artigo 165, caput, da CLT), o exercício do "jus variandi" e a plácida constitucionalidade das sucessivas reformas trabalhistas que precarizam circunstancialmente os contratos de trabalho (p. ex., os contratos por prazo determinado, a tempo parcial, o trabalho temporário e ― fora do Brasil ― a comissão de serviços e o "job sharing"). Obtém-se, com isso, um edifício dogmático mais coerente e democrático, sem perder de vista a dignidade da pessoa trabalhadora e as suas concreções nos planos da interpretação, da hierarquia de fontes (dinâmica) e da estabilidade do patrimônio jurídico-laboral (condição mais benéfica).

No mesmo encalço, o princípio da primazia da realidade deve se imiscuir na dimensão do pactuado, independentemente da efetiva execução de certa atividade, contemporizando com a tipicidade dos contratos de trabalho (determinada pela sua função social) e com a profusão dos instrumentos de consenso no Direito das Obrigações da sociedade pós-industrial. Aplicar-se-á, portanto, aos pré-contratos de trabalho como aos contratos de trabalho de execução deficiente, atraindo, em ambos os casos, a capa tuitiva da legislação trabalhista (no que couber).

De outra parte, impende reconhecer um princípio bipolar de autotutela laboral e desenvolvê-lo em todas as suas manifestações (o que pressupõe, em relação ao empregador, justificar axiologicamente o exercício do poder disciplinar e investigar os seus limites).

Já os princípios da boa-fé e da razoabilidade não têm especificidade juslaboral, conquanto relevem para dirimir dissídios concretos (individuais e coletivos). Nem por isso requerem construção teórica circunscrita aos escaninhos da Ciência do Direito do Trabalho.

Saber assimilar as novas texturas dos princípios gerais do Direito do Trabalho ― e, para além disso, testemunhar com serenidade a gestação dos novos princípios ― é a pedra de toque para a interpretação e a aplicação competente e humanizadora do arcabouço legislativo em vigor. O Direito é, sim, para o Homem; mas, tal como ele, é também, a um tempo, autor e seguidor dos caminhos do Mundo.


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NOTAS

01 Cfr., no Brasil, Américo Plá Rodriguez, Princípios de Direito do Trabalho, trad. Wagner D. Giglio, 4ª tiragem, São Paulo, LTr, 1996, passim.

02 Cfr. Américo Plá Rodriguez, op.cit., p.258: "Em outros casos, o princípio da racionalidade atua como obstáculo, como limite, como freio de certas faculdades cuja amplitude pode prestar-se à arbitrariedade. [...] As faculdades patronais não são concedidas para a arbitrariedade nem para que se cometam injustiças ou discriminações pessoais. O poder diretivo da empresa se legitima, na medida em que cada empresa deve ser conduzida e orientada, com um sentido de unidade, para a obtenção de seu fim econômico, que é o que justificou sua existência. Mas não pode servir para vinganças nem perseguições pessoais, nem para a atuação caprichosa ou irracional" (g.n.).

03 Cfr. Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, Cambridge, Harvard University Press, 1978, p.24.

04 J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª ed., Coimbra, Almedina, 1999, p.1177.

05 Idem, pp.1086-1087. Para o mesmo binômio, cfr. ainda ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, 3. Aufl., Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1996, pp.72-73: "Hier sollen Regeln und Prinzipien unter dem Begriff der Norm zusammengefaβt warden. Sowohl Regeln als auch Prinzipien sind Normen, weil beide sagen, was gesollt ist. Beide lassen sich mit Hilfe der deontischen Grundausdrücke des Gebots, der Erlaubnisun des Verbots formulieren".

06 Idem, p.1087.

07 Apar da função sistêmica, também referida por CANOTILHO: "têm uma idoneidade irradiante que lhes permite «ligar» ou cimentar objectivamente todo o sistema constitucional" (idem, p.1089) — no caso, o subsistema constitucional dos direitos sociais.

08 Cfr., por todos, José Eduardo Martins Cardozo, "Princípios Constitucionais da Administração Pública (de Acordo com a Emenda Constitucional nº 19/98)", in Os 10 Anos da Constituição Federal: Temas Diversos, Alexandre de Moraes (coord.), São Paulo, Atlas, 1999, pp.149-183 (especialmente pp.178-180). O autor ainda refere, como princípios constitucionais implícitos, os princípios da especialidade, do controle administrativo ou tutela, da autotutela (Súmula 473/STF) e da continuidade, além dos princípios da razoabilidade/proporcionalidade.

09 Cfr., por todos, Robert Alexy, op.cit., pp.100-104 ("Prinzipientheorie und Verhältnismäβigkeitsgrundsatz"). No Brasil, cfr. Raquel Denize Stumm, Princípio da proporcionalidade no direito constitucional brasileiro, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1995, passim.

10 A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é rica em julgados que demonstram a possibilidade de se declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo por contrariedade a princípio constitucional (explícito ou implícito). Cfr., e.g., ADIn n. 1.458-MC, rel. Min. Celso de Mello, DJ 20/09/1996, e ADIn n. 1.439-MC, rel. Min. Celso de Mello, DJ 30/05/03. Na última, lê-se: "Desrespeito à Constituição — modalidades de comportamentos inconstitucionais do poder público. O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação" (g.n.). Já são vários os casos em que o STF reconheceu a inconstitucionalidade de lei por violar o princípio da proporcionalidade e/ou o princípio da razoabilidade (ambos princípios constitucionais implícitos); vejam-se, por todos, a MC-ADIn n. 1511/DF,Min. Carlos Velloso, 16/10/1996 (admissão "in tese" da inconstitucionalidade por ferimento ao princípio da proporcionalidade, malgrado não reconhecida na hipótese) e o REx n. 266994/SP, Min. Maurício Corrêa, 31/03/2004: "Princípio da razoabilidade. Restrição legislativa. A aprovação de norma municipal que estabelece a composição da Câmara de Vereadores sem observância da relação cogente de proporção com a respectiva população configura excesso do poder de legislar, não encontrando eco no sistema constitucional vigente".

11 Contradição aparente que hoje não causa qualquer espécie. Como pondera MIGUEL REALE, "cada «região jurídica» pressupõe [...] diretrizes ou conceitos básicos que asseguram a unidade lógica dos institutos e figuras que a compõem. É mister, por conseguinte, estudar os princípios gerais do Direito Civil, do Direito Processual, do Direito do Trabalho etc., e, mais particularmente, do Direito de Família, do Direito Cambial etc." (Lições Preliminares de Direito, 22ª ed., São Paulo, Saraiva, 1995, pp.312-313 – g.n.). Ou, na dicção de PALMA RAMALHO, os princípios fundamentais do Direito do Trabalho "são princípios gerais, embora a característica da generalidade seja aqui reportada ao domínio do subsistema laboral (ou seja, são princípios gerais autónomos do Direito do Trabalho)" (Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho: Dogmática Geral (Parte I), Coimbra, Almedina, 2005, p.486).

12 J. J. Gomes Canotilho, op.cit., p.1087. O autor distingue entre princípios jurídicos e princípios hermenêuticos; os últimos "desempenham uma função argumentativa, permitindo, por exemplo, denotar a ratio legis de uma disposição [...] ou revelar normas que não são expressas por qualquer enunciado legislativo, possibilitando aos juízes, o desenvolvimento, integração e complementação do direito (Richterrecht, analogia juris)". Para nós, os princípios específicos do Direito do Trabalho (proteção, irrenunciabilidade, primazia da realidade, continuidade) são, a rigor, as duas coisas: desempenham função hermenêutica, mas também têm função propriamente normativa (= impositiva de otimização de valores e abstenção de condutas).

13 Clóvis Beviláqua, Codigo Civil dos Estados Unidos do Brasil Commentado, 8ª ed., Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1949, v. I, p.115 (g.n.). Os comentários referem-se ao artigo 7º da LICC original (1916), que tinha a seguinte redação: "Applicam-se, nos casos omissos, as disposições concernentes aos casos analogos e, não as havendo, os principios geraes de direito".

14 Miguel Reale, op.cit., p.311.

15 Idem, pp.311-312 (g.n.).

16 A expressão é de MIGUEL REALE (op.cit., p.311).

17 Possibilidade jurídica que, sobre ter positividade em um diploma da primeira metade do século passado, tem raríssimo emprego entre os operadores do Direito do Trabalho, possivelmente pela ausência de referenciais: qual direito comparado? Dadas as limitações de espaço, escusamo-nos de desenvolver o palpitante tema neste trabalho, para reservar-lhe atenção mais cuidada em escritos futuros.

18 Diversamente da norma jurídica, que é um critério material de decisão. Cfr., por todos, José de Oliveira Ascensão, O Direito: Introdução e Teoria Geral, 13ª ed., Coimbra, Almedina, 2005, pp.243-236.

19 Cfr. Miguel Reale, op.cit., p.310. Para REALE, "a pessoa é o valor fonte", e as "constantes ou invariantes axiológicas [que lhe dizem respeito] formam o cerne do Direito Natural, delas se originando os princípios gerais de direito, comuns a todos os ordenamentos jurídicos" (pp.309-310).

20 Op.cit., pp.88-89. Os complementos dos itens "b" e "d", entre parênteses, são de nossa lavra.

21 Idem, p.489.

22 O que ocorre, por exemplo, no sistema jurídico brasileiro, em face do que dispõem o artigo 9º, caput, da CRFB e os artigos 1º e 2º da Lei 7.783/89, que asseguram o direito de greve (= suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador), mas não exprimem um princípio geral de autotutela laboral. Não por outra razão, a doutrina repele outras formas de protesto coletivo, como as "greves de zelo" — na qual os trabalhadores "continuam em serviço, porém esmeram-se na sua execução para provocar propositado atraso"—, e tem reservas quanto às greves que não girem em torno de reivindicações profissionais típicas, como as greves políticas e de solidariedade (cfr., por todos, Amauri Mascaro Nascimento, Direito Sindical, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1991, pp.443 e 447-448). Curiosamente, a Constituição do Estado de São Paulo caminhou em outro sentido, admitindo greve (na acepção do artigo 2º da Lei 7.783/89) em caso de risco grave ou iminente no local de trabalho (artigo 229, §2º, da CE), até a normalização das condições do meio ambiente de trabalho — ainda que não haja, aí, matéria passível de negociação propriamente dita, para os fins do artigo 3º, caput, da Lei 7.783/89, por envolver direitos indisponíveis a cujo respeito os trabalhadores não poderiam transigir (vida e integridade psicossomática). Observe-se, enfim, que o reconhecimento doutrinal de um princípio geral de autotutela laboral favorece um novo ângulo cognitivo, pelo qual se entrevê a legalidade da autotutela patronal para além do "lock-out" (que é proibido na maior parte dos países): "No que se refere à natureza do princípio da autotutela laboral, deve ficar claro que se trata de um princípio bipolar, no sentido de que emerge não só da função de tutela directa dos interesses dos trabalhadores, mas também da outra figura que permite ao empregador prosseguir os seus interesses sem recorrer aos mecanismos comuns de reintegração efectiva dos diretos e dos negócios jurídicos ― ou seja, o poder disciplinar laboral" (Palma Ramalho, op.cit., p.509 ― g.n.). A própria autora observa, em nota de rodapé (idem, ibidem, nota n. 356), que "o ponto merece uma referência porque classicamente a ideia de autotutela é reportada apenas ao direito de greve".

23 Palma Ramalho, op.cit., pp.492-493.

24 Cfr. Palma Ramalho, op.cit., p.253. Mal comparando, o princípio do "favor laboratoris" corresponde ao princípio da proteção tal como enunciado por PLÁ RODRIGUEZ (op.cit., pp.28-65), enquanto as suas três manifestações, no escólio de PALMA RAMALHO, correspondem às três "regras" de PLÁ RODRIGUEZ: respectivamente, o "in dubio pro misero", a norma mais favorável e a condição mais benéfica.

25 Nesse sentido, leia-se, por todos, ARTHUR NIKISCH, para quem o contrato de trabalho cria um vínculo pessoal estreito entre trabalhador e empregador, a ponto de se poder falar em uma comunidade de relações ("Gemeinschaftsverhältnis") estranha ao regime contratual do BGB (Código Civil alemão), que nasce da admissão do trabalhador na empresa ou no âmbito da vida privada do empregador (como, e.g., no trabalho doméstico) e engendra deveres comunitários de fidelidade, assistência e colaboração. Cfr. Arbeitsrecht: Allgemeine Lehren und Arbeitsvertragsrecht, 3. Aufl., Tübingen, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1961, I Band, p.162. Na mesma linha, PALMA RAMALHO refere-se à natureza comunitário-pessoal da relação laboral (Da autonomia dogmática do Direito do Trabalho, Coimbra, Almedina, 2000, pp.457-465). Em sentido contrário, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO aponta o abandono progressivo da idéia de "Gemeinschaftsverhältnis" no próprio Direito do Trabalho alemão (citando, e.g., HERBERT WIEDEMANN em 1966, ERNST WOLF em 1970 e PETER SCHWERDTNER em 1970); e, para mais, contesta que o contrato de trabalho seja "intuitu personae", porque "o moderno Direito do trabalho está massificado, havendo uma total substituibilidade entre os trabalhadores de iguais habilitações". Cfr., respectivamente, Tratado de Direito Civil Português, 3ª ed., Coimbra, Almedina, 2005, v. I, t. I, pp.196-197 e nota n. 612, e Manual de Direito do Trabalho, Coimbra, Almedina, 1999 (reimpressão), p.520. Para nós, se essas ilações são verdadeiras do ponto de vista técnico-sociológico, ainda não o são do ponto de vista estritamente relacional, ao menos no que diz com a posição do trabalhador: o empregado não pode se fazer substituir por quem quer que seja sem a anuência do empregador, o que denuncia a essencial pessoalidade; e, se clausularmente avençassem que o empregado pudesse a qualquer momento enviar terceiro para laborar em seu posto, mesmo sem a concordância prévia do tomador de serviços, já não se trataria de relação de emprego "stricto sensu". Ademais, os deveres de fidelidade, assistência e colaboração de trabalhadores e empregadores são implicações necessárias da função social do contrato de trabalho (mesmo nos contextos desintegradores da sociedade pós-industrial) e derivam do próprio princípio da boa-fé (infra), o que desautoriza quaisquer construções que reduzam o Direito Individual do Trabalho ao Direito dos Contratos e ignorem o seu feitio comunitário-pessoal.

26 Para a dimensão desse subprincípio no contexto legislativo português, como manifestação hodierna do "princípio do rendimento", cfr., infra, a nota n. 36.

27 Palma Ramalho, op.cit., p.499.

28 Idem, p.500.

29 Bernd Rüthers, "35 Jahre Arbeitsrecht in Deutschland", in Recht der Arbeit. Zeitschrift für die Wissenschaft und Praxis des gesamten Arbeitsreechts, München, C. H. Beck, 1995, p.328.

30 Gérard Lyon-Caen, "La crise du droit du travail", in In memorian Sir Otto Kahn-Freund, Munich, C.H. Beck, 1980, pp. 515-517.

31 Jean-Claude Javillier, Droit du Travail, 7e ed., Paris, L.G.D.J., 1999, pp.55-57.

32 Cite-se aqui, por todos os outros enunciáveis, o princípio do coletivo, que "reflecte a orientação geral do Direito Laboral para valorizar, na concepção e na disciplina dos fenómenos laborais (incluindo o contrato de trabalho), uma componente colectiva ou de grupo", o que "permite reconduzir o Direito do Trabalho a um direito de grupos (entendendo aqui o termo grupo não em moldes restritos, reportados a entidades colectivas, mas em termos amplos, ou seja, abrangendo realidades, conceitos e entidades colectivas) e reconhecer a dimensão colectiva como o traço mais original desta área jurídica" (Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, p.501).

33 Miguel Hernainz Marquez, Tratado Elemental de Derecho del Trabajo, 10ª ed., Madrid, Instituto de Estúdios Politicos, 1969, pp.88-91.

34 Para HERNAINZ MARQUEZ, consubstanciaria a impossibilidade de o empregado privar-se ampla, voluntária e antecipadamente dos direitos conferidos pela legislação laboral, conquanto pudesse, na ótica do mesmo autor, transigir com alguns deles em caráter individual, concreto e posterior ― o que remete à distinção entre direitos relativamente irrenunciáveis e direitos absolutamente irrenunciáveis. Os direitos absolutamente irrenunciáveis não são transigíveis em qualquer hipótese, sendo dessa ordem todos os direitos trabalhistas visceralmente ligados à dignidade da pessoa humana, no seu núcleo mais fundamental (vida, integridade física e liberdade espácio-corporal). O empregado não pode, e.g., transigir concretamente quanto ao fornecimento de determinado equipamento de proteção individual cuja concessão seja obrigatória "ex vi legis".

35 Descoberto no Direito do Trabalho, liga-se ao sentido histórico de proteção dos economicamente débeis que prestam serviço por conta alheia (hipossuficiência econômica), manifestando-se ora como princípio de interpretação favorável de uma norma única, ora como princípio de resolução de conflitos aparentes de normas trabalhistas (o que pressupõe a sua pluralidade), ora ainda como princípio de aquisição das condições mais benéficas.

36 Por esse princípio, a interpretação da lei laboral deveria ter em conta uma visão conjunta da produção, inspirada por valores de tipo nacional e coletivo, que sobrepassam os valores puramente particulares dos componentes da relação de emprego. Ambos os pólos, empregados e empregadores, deveriam realizar o máximo esforço para incrementar e impulsionar a produção nacional, a ponto de o desempenho laboral abaixo de certo minimum configurar violação contratual (cfr. Américo Plá Rodriguez, op.cit., pp.266-267), reputando-se ilícitas as estratégias de luta operária que implicassem diminuição do rendimento normal (como, e.g., as greves típicas, as "operações-padrão" e as greves de "braços cruzados"). O princípio do rendimento atuaria, para alguns, como um "princípio compensatório" de todos os anteriores (o que é veementemente negado por HERNAINZ MARQUEZ ― op.cit., p.89). Na verdade, tal princípio associa-se à idéia de prevalência do interesse público-estatal sobre os interesses de classe, que tinha um sentido muito particular nos regimes políticos autoritários de inspiração fascista, em que se concebia o Estado como elemento mediador/neutralizador da luta de classes. Fora invocado por copiosa doutrina até a década de setenta: PÉREZ BOTIJA, CABANELLAS, MENÉNDEZ PINDAL, ALMANSA PASTOR, TISSEMBAUM, etc. (para um relação completa, com indicações bibliográficas, cfr. Plá Rodriguez, op.cit., p.265, nota n. 468) ― coincidentemente ou não, quase todos autores espanhóis cujas obras são contemporâneas ao governo de FRANCISCO FRANCO (1939-1975). No Brasil, a idéia (não o princípio) foi vazada no artigo 8º, caput, in fine, da CLT, sob a égide do governo ditatorial de GETÚLIO VARGAS. Hodiernamente, a se admitir a existência de um princípio do rendimento, cumprirá fazer-lhe a releitura à luz das finalidades e dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, escapando à esfera restrita da produção e acumulação nacional de riquezas e assentando-se num conceito prudencial de interesse público primário, que corresponde ao interesse geral do povo tal como se apresenta ao intérprete, segundo o foco da realização objetiva do bem comum. Contrapõe-se à noção de interesse público secundário, que é o interesse geral do povo visto pelas lentes dos aparelhos de Estado (governo), tal como revelado nas políticas públicas dos órgãos da Administração (cfr., para a distinção, Renato Alessi, Sistema istituzionale del diritto amministrativo italiano, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1960, pp.197-198). Convergindo para esse "conceito novo", merece particular menção a obra de PALMA RAMANHO, referida no tópico anterior (II), que enuncia, entre os princípios gerais do Direito do Trabalho, o princípio da compensação da posição debitória complexa das partes no contrato de trabalho, e logo depois o desdobra no princípio da proteção do trabalhador e no princípio da prevalência dos interesses de gestão (supra). Esse último corresponderia à necessidade de "assegurar ao empregador as condições necessárias ao cumprimento dos deveres amplos que lhe incumbem e, indiretamente, viabilizar este mesmo vínculo [laboral]", fazendo-o por meio da prevalência, dentro de certos limites, dos interesses do empregador sobre o acordo negocial. Como visto alhures, a autora ilustra um tal princípio referindo o regime de adaptabilidade dos horários dos empregados (artigos 164º e ss. do Código do Trabalho), o regime de mobilidade funcional (artigo 314º do Código do Trabalho), os poderes modificativos do contrato de trabalho por iniciativa do empregador ("jus variandi") e as próprias "limitações ao princípio da segurança no emprego" (como nos casos de admissibilidade de contratos de trabalho precário ― a termo, temporário, a comissão de serviço, etc. ― ou de cessação do contrato de trabalho por iniciativa do empregador com fundamento em causas objetivas ou na inadaptação do trabalhador). Tudo, enfim, justificando-se em prol da subsistência global dos vínculos empregatícios (interesse público primário), contemporizando com as limitações factuais da empresa. Cfr. Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, pp. 489-492 e 498-501. De nossa parte, cremos que a enunciação dessa idéia como princípio geral é razoável, mas desafia maiores cuidados (a precarização contratual, por exemplo, não pode derivar de princípio, mas de exceção).

37 Corresponde à inclinação ostensiva e manifesta do Direito do Trabalho para os vínculos com caráter de permanência, tendendo à continuidade indefinida (contratos de trabalho por prazo indeterminado) e relegando à excepcionalidade os contratos de trabalho temporários ou por prazo determinado. Assim, na dúvida, impõe-se a "praesumptio hominis" da contratação por prazo indeterminado.

38 Hernainz Marquez, op.cit., p.28. Entre os alemães, cfr. Walter Kaskel, Herman Dersch, Derecho del Trabajo, trad. Ernesto Krotoschin, Buenos Aires, De Palma, 1961, p.32 ("princípio protetor").

39 No Brasil, confira-se, e.g., a Súmula 338/TST: "É ônus do empregador que conta com mais de 10 (dez) empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º, da CLT. A não apresentação injustificada dos controles de freqüência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário". Em Portugal, MOTA PINTO denuncia a carência de positividade da regra "in dubio pro operario", mas parece considerá-la necessária ou pelo menos útil, uma vez que propõe a aplicação, aos contratos individuais de trabalho, das normas interpretativas do Decreto-lei n. 446/85 (que disciplina as chamadas cláusulas contratuais gerais), como forma de engendrar uma prática de interpretações mais favoráveis ao hipossuficiente econômico no que se refere às cláusulas contratuais gerais que o empregador agrega ao pacto (i.e., cláusulas que têm foros de generalidade na estrutura da empresa e não são negociadas com os empregados). Cfr. Alexandre Mota Pinto, "O contrato de trabalho de adesão no Código do Trabalho: notas sobre a aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais ao contrato de trabalho", in Estudos de Direito do Consumidor, Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Centro de Direito do Consumo, 2003, n. 5, p.261).

40 Quanto a essa regra, a vetusta lei brasileira prossegue silente. Já o Código do Trabalho português consagrou expressamente o princípio de hierarquia dinâmica em seu artigo 4º ("princípio do tratamento mais favorável"), notadamente no n. 3: "As normas deste Código só podem ser afastadas por contrato de trabalho quando este estabeleça condições mais favoráveis para o trabalhador e se delas não resultar o contrário". Diga-se, porém, que o Tribunal Constitucional português decidiu, em sede de fiscalização preventiva de constitucionalidade do artigo 4º, 1, que "ao prever que as normas não absolutamente imperativas nem supletivas […] do Código (que é um acto legislativo) possam ser afastadas por regulamentos de condições mínimas (que são actos de natureza não legislativa), o questionado art. 4º, nº 1, viola irremissivelmente o disposto no art. 112º, nº 6, da CRP" (acórdão n. 306/2004, rel. Mário José de Araújo Torres, in Diário da República, I-A, 18.07.2003 ― g.n.), o que levou à alteração desse artigo, com o acréscimo do n. 2. O Tribunal baseou-se na regra de "congelamento do grau hierárquico" do artigo 112º, 6, da CRP. Mas seria de se indagar se a proibição do n. 2 do artigo 4º ("As normas deste Código não podem ser afastadas por regulamento de condições mínimas") aplicar-se-ia até mesmo aos casos em que o regulamento de condições mínimas concedesse tratamento mais favorável ao trabalhador. Pela "ratio decidendi" do acórdão, supõe-se (equivocadamente) que sim.

41 Como no caso brasileiro, em que o artigo 7º, XIII, da CRFB prevê duração normal de trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais. Note-se, porém, que "a comparação das normas deve levar em consideração a situação da coletividade trabalhadora interessada e não de um trabalhador tomado isoladamente" e que "a questão de saber se uma norma é ou não favorável aos trabalhadores não depende da apreciação subjetiva dos interessados", devendo ser resolvida objetivamente, em função dos motivos que inspiraram as normas (Plá Rodriguez, op.cit., p.57, recorrendo a PAUL DURAND).

42 ANDRADE MESQUITA identifica esse princípio no artigo 560º do Código do Trabalho português, denominando-o princípio do tratamento mais favorável no tempo e derivando-o "do princípio do não retrocesso social, assentando no pressuposto de que o contínuo progresso permite sempre melhorar as condições de vida dos trabalhadores" (José Andrade Mesquita, Direito do Trabalho, 2ª ed., Lisboa, AAFDL, 2004, p.309 ― g.n.).

43 Plá Rodriguez, op.cit., pp.66-67.

44 Vide, e.g., o artigo 7º, XV, da Constituição brasileira e o artigo 205º do Código do Trabalho português.

45 Aspecto que é mais verdadeiro em Portugal, que ratificou a Convenção n. 158 da Organização Internacional do Trabalho ("Cessação do trabalho por iniciativa do empregador") pela Resolução AR n. 55/94, de 27.08.1994, e menos verdadeiro no Brasil, que chegou a ratificar a referida convenção no plano internacional, mas jamais a transpôs efetivamente para a ordem interna; ao depois, acabou por denunciá-la (prosseguindo, agora como antes, o direito potestativo do empregador à denúncia vazia do contrato de trabalho, condicionada à obrigação de indenizar).

46 Plá Rodriguez, op.cit., pp.227-228.

47 Mario de la Cueva, Derecho Mexicano del Trabajo, 2ª ed., México, Porrúa, 1943, t. I, p.381.

48 Não, porém, em Portugal: dispõe o artigo 410º, 1, do Código Civil português (1966) que "à convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa" (g.n.). O estudo minucioso dos contratos-promessa de trabalho e de suas conseqüências jurídicas, no Brasil e em Portugal, ocupou-nos em monografia própria (a ser oportunamente publicada).

49 O exemplo, aqui adaptado, está em PLÁ RODRIGUEZ (op.cit., p.261). Trata-se de fraude recorrente no cenário brasileiro de meados da década de noventa, a ponto de haver doutrina juslaboral séria a cunhar e empregar expressões como "fraudoperativas" e "coopergatos" («gato» é a expressão popular para designar o "marchand" de mão-de-obra, i.e., o intermediário que mercancia a força de trabalho alheia).

50 Plá Rodriguez, op.cit., p.269.

51 Op.cit., pp.267-269.

52 Idem, p.268.

53 Eugenio Pérez Botija, Curso de Derecho del Trabajo, Madrid, TECNOS, 1948, p.176.

54 Plá Rodriguez, op.cit., p.272.

55 Dessa ordem, se bem que restrita ao Direito privado (mas, ainda assim, com inclinação globalizante), é a tese "Da Boa Fé no Direito Civil", que valeu a ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO seu Doutoramento pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Cfr. António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Coimbra, Almedina, 2001 (2ª reimpressão), passim.

56 Em sentido inverso, PALMA RAMALHO considera que a existência de princípios próprios é uma decorrência da autonomia dogmática do Direito do Trabalho, pendendo para uma argumentação autonomizante que privilegia os institutos, não os princípios propriamente ditos (Direito do Trabalho, pp. 466 e 485). Cremos, porém, que são os princípios que conferem aos institutos as suas singularidades (propiciando, na leitura de HABERMAS, a sua renovação funcionalinfra) e não o contrário. Os institutos mesmos, se mais ou menos presentes na casuística juslaboral, são normalmente reconhecidos pelo Direito Civil. Assim, as convenções coletivas de trabalho (op.cit., pp.468-472) têm correspondência nas convenções coletivas de consumo (veja-se, e.g., o artigo 107 do CDC brasileiro, que as admite entre entidades civis de consumidores e associações de fornecedores, para "estabelecer condições relativas ao preço, à qualidade, à quantidade, à garantia e características de produtos e serviços, bem como à reclamação e composição do conflito de consumo", com força obrigatória sobre os filiados à época do registro do instrumento); da mesma forma, o direito de greve, como direito de resistência ou de autotutela coletiva dos trabalhadores, tem correspondência, para o indivíduo, no desforço pessoal do Direito brasileiro (artigo 1210, §1º, do NCC) e português (artigo 1277º do CC), bem como, em geral, nas ações diretas do Direito português (artigo 336º do CC ― de que é espécie o desforço para defesa da posse) e, ainda, nos institutos universais da legítima defesa e do estado de necessidade, que transcedem o plano juscivilístico e relevam inclusive para o Direito Penal.

57 Havendo, em ambos os países, cortes superiores de jurisdição extraordinária para a matéria trabalhista (respectivamente, o Tribunal Superior do Trabalho e o Bundesarbeitsgericht).

58 Respectivamente, os tribunais do trabalho (cfr. artigos 85º, 86º e 87º da Lei 3/99) e os juzgados de lo social (cfr. artigos 2º e 6º do Real Decreto Legislativo 2/1995, de 07.04).

59 A ponto de justificar, há poucos anos, a (re)afirmação da autonomia dogmática do Direito do Trabalho em sólida e extensa dissertação de Doutoramento de PALMA RAMALHO na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Da autonomia dogmática do Direito do Trabalho, cit., passim). Cfr. ainda, da mesma autora, Direito do Trabalho, pp. 463-483 e 487-488. Em contrapartida, na mais recente edição de seu Tratado de Direito Civil Português (a terceira), MENEZES CORDEIRO obtempera ― após fazer menção à tese de PALMA RAMALHO, de quem foi orientador ― que "dentro do universo patrimonial privado, o Direito do trabalho lida com elementos que, embora regulados pelo Direito civil, se apresentam, aí, como mais intensos. Pense-se na especial tutela que os direitos de personalidade do trabalhador podem merecer e, ainda, nas disposições que asseguram elevado nível de protecção. A grande questão laboral reside, todavia, na atribuição, ao empregador, de um direito à actuação do trabalhador. Ora, essa atribuição ocorre, em geral, no Direito das obrigações. Não há uma particularidade dogmática" (Tratado de Direito Civil Português, 3ª ed., v. I, t. I, pp.195-196 ― g.n.). Isso significa que o Direito do Trabalho teria uma autonomia meramente sistemática (dada pela especificidade de suas fontes, pela existência de um desenvolvido nível coletivo e pela proliferação de regras imperativas), mas não uma autonomia dogmática, porque seria, ao cabo e ao fim, "uma relevante disciplina que integra a grande família unitária do Direito privado ou do ius civile: o Direito dos cidadãos" (Menezes Cordeiro, idem, p.199). Divergimos desse pensamento, como se fará constar a seguir, no texto principal.

60 Em acréscimo, endosse-se tudo quanto demonstrado por PALMA RAMALHO ao tratar da "improcedência da construção dogmática de recondução do direito laboral ao direito civil em razão das suas deficiências metodológicas": improcedente por prescindir da "pesquisa de valorações materiais específicas alternativas, a partir da análise do conjunto dos institutos laborais e do sistema laboral positivo, que o problema da autonomia da área jurídica e que a sua unidade interna possibilita" (Da autonomia dogmática…, pp.528-532).

61 Idem, pp.499-516.

62 Tratado de Direito Civil Português, 2ª ed., v. I, t. I, p.197. Cfr., supra, nota n. 25.

63 Vê-se, com efeito, intermediação lucrativa nas cooperativas de mão-de-obra que ocultam relações subordinadas de trabalho (Brasil), no tráfico de pessoas para fins de prostituição ou trabalho precário (Bolívia/Brasil) e até mesmo no "dumping" social como estratégia de competitividade nos mercados globais (China).

64 Não se deve confundir, nessa linha, o objeto jurídico da prestação contratual com o objeto físico da atividade material. Num contrato de prestação de serviços médicos de reparação e cirurgia estéticas, o objeto da prestação é o serviço médico em si mesmo (incluindo a intervenção cirúrgica e os cuidados pré/pós-operatórios) ― ou o seu resultado útil, em se admitindo tratar-se de obrigação de fim. O corpo do paciente é tão-só o objeto físico da atividade material do esculápio (ou, se quisermos, o objeto material da prestação contratual, tal como é a mercadoria na prestação do vendedor em contratos de compra e venda, sobretudo nos sistemas de inspiração germânica). Já no contrato de trabalho, o objeto jurídico da prestação contratual ― a força de trabalho ― é inseparável do corpo e da própria personalidade do contraente (como o é, também, no caso dos serviços médicos), com um elemento diferenciador: a subordinação jurídica, que permite, pela instância contratual, a interferência lícita e consentida de terceiros na esfera da dignidade humana (assim, e.g., nas revistas pessoais, na modulação do trabalho humano e, em geral, em todos os supostos lícitos de exercício dos poderes de fiscalização e de punição do empregador).

65 Pense-se, aqui, nas aberrações do sensualismo de "fin de siècle", como as práticas consensuais de sadomasoquismo (que podem ser "pagas", à maneira de serviços, ou graciosas, e chegam ao limite da disposição voluntária da vida e/ou da saúde, como nos casos de contaminação sexual espontânea com o vírus HIV ― o "gift” ― ou de mutilação e morte consentidas, como se deu recentemente na Alemanha, com o "canibal de Rotemburgo"). Ainda que se admita ou se comprove algum consenso lúcido, é indiscutível que, nos extremos, tais "contratos" não têm qualquer amparo jurídico, servindo, quando muito, como atenuantes genéricas da pena criminal (e, não raro, sequer a isso).

66 Referido por MENEZES CORDEIRO (Tratado de Direito Civil Português, 3ª ed., v. I, t. I, p.199), in verbis: "O actual Direito do trabalho deixou de ser o mero instrumento de tutela dos pobres e desprotegidos. […] Vectores tradicionais como o favor laboratoris ou princípio da tutela do trabalhador, que fizeram a sua época no Direito do trabalho, são hoje abandonados a favor de um levantamento mais preciso e desinibido dos valores civis concretamente ameaçados por eventuais lógicas mecanizadoras do mundo empresarial. Postas as coisas nestes termos, consegue-se uma protecção menos vocabular e ideológica, mas mais eficaz". Reconhecendo, porém, as implicações notáveis do Direito do Trabalho na realização da plena cidadania, confira-se, do mesmo autor, "Direito do Trabalho e cidadania", in III Congresso Nacional de Direito do Trabalho: memórias, António Moreira (coord.), Coimbra, Almedina, 2000, passim.

67 Num sistema social meritório e patrimonialista, inerente às sociedades de consumo, as pessoas realizam-se pelo que têm, pelo que aparentam ter e pelo que podem ter. A incapacidade de ter induz à falsa percepção da impotência do ser ― daí porque o desemprego involuntário torna-se, para o homem comum, fonte de humilhação e discriminação. O sucesso dos comuns mede-se pela visibilidade e pelo poder aquisitivo e os que necessitam de tutela do Estado assumem-se como desvalidos ou desfavorecidos, em espontânea "capitis deminutio". Isso se reproduz no plano das relações contratuais empregatícias, forjando a idéia de que a proteção do Estado não é essencial e o emprego reflete o mérito pessoal do trabalhador: os que não têm "mérito" são excluídos do sistema liberal-capitalista (das contrapartidas econômicas, do poder de consumo, da dignidade pessoal e, por último, das próprias estatísticas de desemprego ― que não computam aqueles que já não mais procuram trabalho). A bem dizer, esse sistema tende a ser ainda mais nefasto para as pessoas que os sistemas anteriores ― da servidão medieval e da escravidão antiga e moderna ―, porque os servos e escravos ainda eram, em alguma medida, parte dos respectivos sistemas socioeconômicos, o que lhes permitia conservar alguma dignidade (ainda se como coisa, qual nos regimes de escravidão). Já quem está excluído não vale como nada, em parte alguma. Para um exercício mental, pense-se, "ad argumentandum tantum", na condição social de um escravo grego ou romano, comparando-se-a à condição de um mendicante sem-teto latino-americano.

68 Jürgen Habermas, Direito e Democracia: entre facticidade e validade, trad. Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997, v. II, p.134 (g.n.).

69 Os direitos de personalidade dizem fundamentalmente com a vida, a integridade (física, mental, moral) e a liberdade (corporal, intelectual, de expressão, etc.). Esses bens também são intensamente afetados pelo Direito Civil dos incapazes (interdições e inabilitações, disciplina familiar e pública das condutas infanto-juvenis ― notadamente na esfera dos atos infracionais ―, internações, etc.) e por certas medidas do Direito de Família (e.g., a separação de corpos, a prisão do alimentante inadimplente e as ordens de restrição pessoal). Já o Direito das Obrigações cuida precisamente do patrimônio, seja em face da "exigência de que a prestação debitória revista necessariamente natureza económica, quer dizer, susceptibilidade de avaliação pecuniária", seja ainda porque "no direito moderno, ao contrário dos sistemas antigos, o inadimplemento confere unicamente ao credor a possibilidade de agir contra o património do devedor e não contra a sua pessoa" (Mário Júlio de Almeida Costa, Noções Fundamentais de Direito Civil, 4ª ed., Coimbra, Almedina, 2001, pp.25-26).


Autor

  • Guilherme Guimarães Feliciano

    Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Doutor pela Universidade de São Paulo e pela Universidade de Lisboa. Vice-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELICIANO, Guilherme Guimarães. Dos princípios do Direito do Trabalho no mundo contemporâneo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 918, 5 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7795. Acesso em: 25 abr. 2024.