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Pela defesa eficaz da probidade administrativa.

Algumas reflexões sobre a conclusão do julgamento da Reclamação nº 2138, que tramita no STF, sob o prisma da hermenêutica político-constitucional

Pela defesa eficaz da probidade administrativa. Algumas reflexões sobre a conclusão do julgamento da Reclamação nº 2138, que tramita no STF, sob o prisma da hermenêutica político-constitucional

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A menos que algum dos Ministros que já votaram mude de idéia, prevalecerá a tese de que a Lei de Improbidade Administrativa não se destina ao Presidente, Governadores, Prefeitos e demais agentes políticos.

Desde 1992, a Lei n° 8.429 (a chamada Lei de Improbidade Administrativa) vigora sob o manto constitucional. Jurisprudência e doutrina, de mais de dois lustros, predominantes e de intelecção com sonoridade quase unânime, garantiram-lhe eficácia com abrangência normativa bastante para aclamá-la como um dos mais relevantes instrumentos colocados à disposição do Ministério Público e da sociedade, desta de forma mediata, para, na defesa da probidade administrativa, combater a corrupção. Esta, a corrupção, não foi ferida de morte ainda, talvez nunca o seja (alguns desvios comportamentais parecem até imanentes da raça humana), mas devemos sempre lutar para que ela esteja sob controle e em níveis reduzidos. Para tanto, sob as ordens do Direito e da Justiça, havemos de buscar, com vigilância permanente, um aparato persecutório forte o suficiente para a vitória nos entraves constantes contra mandatários que se portem de forma ilegal e/ou imoral.

Existimos como Estado independente desde 1822, após o histórico Sete de Setembro, quando as margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heróico. As páginas da história registram, depois do episódio magnífico, momentos de grandes vitórias, mas, também, muitos contratempos políticos e jurídicos. Assistimos às evoluções político-sociais (abolição da escravatura) e às desventuras da época do Império. Contemplamos a revoada do positivismo (de Comte) sobre terra brasileira. Proclamação da República. A influência, em respingos, do iluminismo de John Locke, Montesquieu e Voltaire. Amarguramos uma época marcada pelo sistema de voto de cabresto, que ainda dá alguns teimosos suspiros em alguns rincões do Brasil (últimos, é o que se espera). Viu-se o emergir e a decadência da Era Vargas, com o seu Estado Novo; Estado que se pretendia constitucional, mas que findou maculado com o pecado da concentração exagerada de poder. Vimos o renascer da democracia. Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, com grande vitória nas urnas. Depois, sua morte (da democracia) com a implantação da ditadura militar com a Revolução de 30 de Março, 1964.

Aqui estamos, pós-Diretas Já, nos tempos da Constituição Cidadã, que consagrou um Estado Social e Democrático de Direito. Um Estado preocupado, pelo menos no papel, com o desenvolvimento de uma série de políticas públicas em prol da população, pleonasmo, garantindo-lhe uma série de direitos sociais. Além de se sujeitar o Estado ao ordenamento jurídico, impõem-se várias obrigações de fazer, positivas (enfatiza-se), no campo sócio-econômico, ao mesmo tempo em que a ele (ao Estado) também se fixam limites, quando traz a Constituição um extenso rol de direitos e garantias coletivas e individuais a serem respeitados (liberdades públicas negativas). Dos direitos sociais, artigos 6º a 11, da ordem social, artigos 193 a 232, princípio da função social da propriedade, teoria do risco social: venceu a sociabilidade, espírito com o qual entraram em vigor o Novo Código Civil de 2002 (função social do contrato, boa-fé objetiva etc.) e outras tantas leis.

Pois bem. Uma constituição pode ser analisada sob várias concepções. Sociológica (Ferdinand Lassalle), política (Carl Schmitt) e jurídica (Hans Kelsen), e.g. Tais concepções representam formas diferentes de se enxergar uma mesma realidade. Interessa-nos aqui, em nossas reflexões, a Constituição no plano normativo hierárquico, como fonte de onde jorram os princípios estruturais de nossa ordem jurídica; portanto, tentamos enxergá-la quanto ao seu poder de definição da vontade política e jurídica comandantes. Mas como podemos conhecer de forma precisa a vontade política e jurídica da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988?

Thomas Hobbes, na sua afamada obra "O Leviatã – ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil", tratou o Estado como um personagem, por assim dizer. O Leviatã, o Estado, seria um quase-ser invisível, mas com vontade e com capacidade de articular tramas próprias. Pairando por trás de tudo e sobre todos, o Estado foi descrito representando uma realidade política e social (metajurídica) materializada num corpo homogêneo, com saber e agir autônomos. Imaginemos, então, na mesma linha, através de um exercício de abstração análogo, que a Constituição seja assim. Um ser invisível (bem-intencionado) e com ânimo próprio. Chamamo-lo, esse ser, de Cidadã, para reavivar apelido que lhe concederam, à Constituição de 1988.

Mas tal ser, a Cidadã, muitas vezes é, para alguns, ininteligível ao ditar suas vontades. Ora sua voz é clara e de compreensão pacífica, ora, obscura e reticente. A sua compreensão deve ser traduzida, então, por emissários. Na mitologia grega, o deus Hermes (filho de Zeus com a ninfa Maia), desempenhava um papel de grande relevância na relação dos deuses com a raça humana. Cabia-lhe, a Hermes, desvendar aos homens a vontade sobrenatural (daí a origem da palavra hermenêutica – interpretação, no sentido comum). Dizer-lhes o que é e o que não é (além de mensageiro dos deuses, também a Hermes cumpriam os papeis de proteger as estradas e viajantes e de conduzir almas ao Hades – apenas Hades ou morada do deus "Hades", irmão de Zeus e Poseidon, a quem coube, na partilha com os irmãos, o mundo subterrâneo, uma espécie de inferno mitológico para os gregos). Feitas essas digressões, entramos, então, na arena de especulação de como funciona a interpretação constitucional, de como é sua mecânica, a fim de se enaltecer a real vontade da Cidadã, nosso ser invisível, com recursos da hermenêutica, como se diz. Destacamos o aspecto da atitude do intérprete constitucional.

Abre-se novo parêntese. Na ciência do direito, "Hermenêutica Jurídica tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito (...). É tarefa primordial do executor a pesquisa da relação entre o texto abstrato e o caso concreto, entre a norma jurídica e o fato social, isto é, aplicar o direito. Para o conseguir, se faz mister um trabalho preliminar: descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; e, logo depois, o respectivo alcance, a sua extensão. Em resumo, o executor extrai da norma tudo o que na mesma se contém: é o que se chama interpretar, isto é, determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito" (palavras de Carlos Maximiliano, in "Hermenêutica e Aplicação do Direito", pág. 1, Ed. Forense, 2001). Aí, as diferenças entre hermenêutica e interpretação, sob o prisma da ciência do direito.

Mas entre nós, bem diferente do mundo mitológico da Grécia antiga, a capacidade e a autoridade para desvendar a vontade da Lei (ou Constituição) não é regalia exclusiva de um deus (Hermes). Não há qualquer monopólio no processo de definição ou redefinição da vontade Constitucional. Aliás, a própria Cidadã indicou os instrumentais básicos. A concorrência, na exclamação da sua vontade, cabe linhas gerais: a) ao Legislador Constituído, infraconstitucional – através da edição de leis complementares e leis ordinárias, consoantes as normas magnas; b) ao Judiciário, de forma difusa e concentrada, ao dizer a Constituição no caso concreto e na avaliação de normas em abstrato no controle de inconstitucionalidade concentrado; c) às lideranças do Poder Executivo, a quem cumpre implementar as políticas públicas enaltecidas no texto constitucional, participando ainda dos processos de controle político e judicial das normas inconstitucionais; d) e à sociedade organizada, com os seus mecanismos de controle, contenção e participação do poder, além de podermos contar ainda com o Ministério Público, advogados, jurisconsultos, entre outros personagens, no desempenho de papéis específicos.

Enfim, vivemos em um regime democrático de direito, num Estado Social e Democrático de Direito, como destacado, de acordo com a vontade inconfundível e indiscutível, neste aspecto, da Cidadã. A prevalecer a Teoria da Democracia, todos os aplicadores do Direito, diga-se Constituição, e os executores das programações magnas incluem-se no rol de intérpretes das normas fundamentais. Nesse sentido, a tese desenvolvida pelo jurista alemão Peter Häberle: "... no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com ‘numerus clausus’ de intérpretes da Constituição" ( Häberle, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1997, reimp. 2002 – pág. 13).

Todo cuidado é pouco no manuseio da ordem constitucional pela via interpretativa. Aqui fincamos nossa atenção maior na interpretação judicial da Constituição – feita pelos Juízes das variadas entrâncias, instâncias e cortes do país, em que se sobreleva sobremaneira o poder de aclamação da verdade pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, Colegiado que detém a missão de proteger a Constituição, colocando ponto final nas discussões sobre a Carta Magna. É sua a última voz, portanto, de ecos mais fortes e prevalentes.

Para uma melhor cogitação inaugural neste ponto: "Grande, enorme, imensa, gigantesca é a responsabilidade do juiz constitucional – ao atribuir corpo e alma aos princípios, ao dar vida à Constituição: cabe a ele libertar os princípios de sua sina escorpiônica – de sua tendência autodestrutiva, que ameaça a prática de injustiça em nome da justiça que eles (os princípios) pretendem realizar. Cabe ao juiz constitucional estar atento para que, em nome dos princípios constitucionais, mais injustiças não sejam perpetradas." - Germana de Oliveira Morais (in "O juiz constitucional no Brasil". Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais 2/541).

Pode-se interpretar as normas de várias maneiras, muitas vezes, sendo toleráveis compreensões diversas firmadas no mesmo solo constitucional. É dizer, não são raros os conflitos axiológicos. O processo de intelecção normativa se dá necessariamente através de exercícios de inteligência, mas com a influência, também, da vontade (política ou jurídica). Por essa senda, a interpretação de um mesmo dispositivo pode ser diversificada a depender dos paradigmas de interpretação eleitos ante a saraivada de princípios e valores constitucionais. No nosso caso, num certo sentido, o paradigma deve ser o do Estado Social e Democrático de Direito. Democrático, mas também Social, bisa-se para realçar.

Deve o intérprete, então, primar pela extração da maior eficácia e utilidade social da norma, sempre buscando a criação de um sistema mais livre e justo, garantido, como principal alvo, o bem estar do povo, assegurado o necessário prestígio da cidadania (vide os fundamentos da República Federativa do Brasil, art. 1º da CF, e objetivos fundamentais, art. 3º). O acima citado constitucionalista alemão, Peter Häberle, defende, a propósito, que a tarefa de interpretação da norma constitucional visa a alcançar: "justiça, equidade, equilíbrio de interesses, resultados satisfatórios, razoabilidade, praticabilidade, justiça material, segurança jurídica, previsibilidade, transparência, capacidade de consenso, clareza metodológica, abertura, formação de unidade, harmonização, força normativa da Constituição, correção funcional, proteção efetiva da liberdade, igualdade social, ordem pública voltada para o bem comum" (op. cit., pág. 11).

Na luta exaustiva contra a corrupção, estamos às portas do Hades. Em vias de termos que depositar algumas de nossas esperanças no Pórtico do Inferno, qual descrição de Dante Alighieri ("Depositai aqui, vós, que entreis, toda a esperança" – diz a placa na narrativa "A Divina Comédia", do italiano). Prestes a assistir ao sepultamento de um dos mais eficazes instrumentos legais postos à disposição do Ministério Público e da sociedade, de forma mediata, para o desmantelamento de práticas de corrupção. Avizinha-se a conclusão, no Supremo Tribunal Federal, do julgamento da Reclamação nº. 2138, em que se discute a extensão dos efeitos da Lei nº. 8.429/92 aos reputados atos de improbidade administrativa praticados por agentes políticos.

Essa Reclamação é um tipo de expediente processual-constitucional que visa a assegurar a competência daquele Tribunal, evitando usurpações. Busca-se, na espécie, como finalidade mediata, conseguir o cancelamento, forma de dizer, da condenação do ex-ministro Ronaldo Mota Sardemberg (Ciência e Tecnologia) por ter usado jatinhos da FAB em viagens de turismo e pela utilização de Hotel de Trânsito da Aeronáutica para fins particulares. Alega-se que as sanções previstas naquela Lei não podem ser aplicadas a agentes políticos, a quem a Constituição teria reservado procedimento específico e especial. Os seus pecados configurariam crime de responsabilidade (processo persecutório próprio, de competência restrita), e não, ato de improbidade na tipificação daquela Lei. Vale lembrar que com a aplicação extensiva dessa Lei se tem a possibilidade de persecução em juízo de forma difusa, portanto, com maior e mais volumoso combate à corrupção (sua maior eficiência é conseqüência natural).

A decisão do Plenário do STF pela procedência da Reclamação, como dizem, já conta com seis votos: Nelson Jobim, Relator, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Maurício Corrêa, Ilmar Galvão e César Peluso – Eros Grau e Carlos Britto, por sucederem os Ministros Maurício Corrêa e Ilmar Galvão, não participaram da última votação, que prosseguiu no dia 14 de dezembro de 2005. Apenas Carlos Velloso proferiu voto pela improcedência. Sendo a Magna Corte composta por onze ministros, a menos que algum dos que já votaram mude de idéia, será essa a compreensão prevalente: a Lei 8.429/92 não se destina ao Presidente da República, a Governadores, a Prefeitos, a Deputados Federais e Estaduais, a Ministros de Estado, a Secretários de Estado, enfim, aos consagrados agentes políticos. O processo encontra-se com o Ministro Joaquim Barbosa, ex-Procurador da República, com pedido de vista. A decisão final naquele sentido abrirá precedente a favor de milhares de agentes políticos atualmente processados por atos de improbidade administrativa e, de outros tantos que já foram condenados (a questão é de competência absoluta).

O Ministro Carlos Velloso posicionou-se, como visto, contra a tese que ganhou espaço na nossa Corte Constitucional e, pelo que parece, sairá vitoriosa a contragosto desse eminente Ministro. Consignou em seu voto que "abolir a ação de improbidade relativamente aos agentes políticos" funcionará como "um estímulo à corrupção". Destacou: "Precisamos nos esforçar, cada vez mais, para eliminar a corrupção na administração pública. Ora, o meio que me parece mais eficiente é justamente o de dar a máxima eficácia à Lei de Improbidade". Destacamos. É válido acrescentar que o Ministro Carlos Velloso se despediu da Suprema Corte por aposentadoria em janeiro do ano em curso, 2006 (aniversário de 70 anos, dia 19), antes do encerramento da votação, esperada ainda para este ano.

De outra banda, ao analisar detidamente o voto do Relator da Reclamação, Sua Excelência Ministro Nelson Jobim, atual presidente da Corte, não há como não se impressionar com o seu teor. Trata-se de exposição com raciocínios laboriosos. Não foi por acaso que outros Ministros acompanharam-no, de uma forma ou de outra, nas suas reflexões (Gilmar Mendes ressaltou, em seu voto, o argumento do relator de que os atos tipificados pela Lei de Improbidade são "autênticos crimes de responsabilidade"). É uma exposição de grande fôlego intelectual, à altura de sua bagagem, e que guarda em si uma coerência impar, consideradas as premissas jurídicas assentadas no voto. Mas, com o devido respeito, diverge de outros ideais.

Como dito a princípio, a Lei nº. 8.429/92 vigora há 14 anos praticamente. Durante todo esse período, foram muito mais de dez mil ações civis públicas declaratórias de ato de improbidade administrativa contra os chamados "agentes políticos" – número propalado pela imprensa. Muitas das quais com trânsito em julgado da sentença condenatória há anos e anos e dia. Até a quase-vitória da proposição favorável aos agentes políticos na Reclamação acima referida, pode-se afirmar que tem prevalecido uma interpretação mais aberta dessa Lei, uma interpretação que a fortalece, tornando-a mais efetiva no desmantelamento de estruturas de corrupção arraigadas na máquina administrativa brasileira.

Mas somente agora se estaria chegando à sua melhor intelecção? Mesmo depois de tanto tempo, após tantos e tantos julgamentos que passaram pelo crivo de milhares de Juízes Estaduais e Federais, sob o visto de uma infinidade de Promotores de Justiça e de Procuradores da República? Condenações, no sentido extensivo da Lei, que foram confirmadas pela unanimidade dos Tribunais brasileiros. Sentenças e acórdãos que percorreram incólumes os corredores do Superior Tribunal de Justiça. Sendo que muitas delas, de uma forma ou de outra, aportaram no Supremo Tribunal Federal, sem reversão da matéria (segundo destaca o Min. Carlos Ayres Britto, em outra Reclamação, de nº. 3126, ao deferir liminar, "mesmo depois de mais de dez anos da data de publicação da Lei nº. 8.429/92, o tema relativo à natureza jurídica da ação de improbidade administrativa ainda não foi definitivamente enfrentado por esta excelsa Corte").

A se concluir daquela forma o julgamento, com a vitória da tesa da inaplicabilidade dos dispositivos da Lei de Improbidade aos agentes políticos, estar-se-á, não apenas aleijando o rol de instrumentos legais que o Ministério Público possui para combater a corrupção, mas declarando que durante mais de dez anos estivemos nas trevas, sob o ponto de vista jurídico dos Ministros. Não seria isso? Ora, representará a revisão de uma jurisprudência e doutrina que tem prevalecido há mais dez anos, sob a mesmíssima Constituição, a Cidadã. É sim como se dissesse que todo-mundo-estava-errado durante todos esses anos. Das trevas, viria então a verdadeira luz? O receio é que, ao invés de sair, estejamos por entrar, retornar às trevas. Principalmente nos Municípios, muitos tão distantes das altas Cortes.

Quem é Promotor de Justiça ou Juiz de Direito nos rincões desses nossos Brasis, sabe bem o que é se deparar com as mais absurdas ações de prefeitos, que vão desde laboriosos esquemas de burla a processos licitatórios, cada vez mais sofisticados e infiltrados na malha pública (há notícias de corrupção na ordem de R$ 30 milhões em alguns municípios de interior), aos mais crassos atos de corrupção: pagamento com cheque da prefeitura de festas privadas (não é em todo lugar que se emite ordem de pagamento bancário); garotas de programa financiadas com verba pública; reforma da própria residência e/ou fazenda com mão-de-obra da prefeitura; construção de todo um posto de gasolina às custas do erário; contratação de artista (que nunca apareceu) para animar reunião de correligionários; aquisição de R$ 20 mil em caldo de cana para merenda escolar ("bebido" antes de chegar às escolas); uso de ambulância para ir e vir pela cidade, até ao motel; contratação aleatória de mão-de-obra fantasma, que ainda assina o ponto de freqüência fatasmagoricamente; compra de remédios que nunca deram entrada no almoxarifado, mas a saída consta na surrada ficha anotada a lápis etc. Pois é.

Poder-se-ia contra-argumentar: mas há um controle político; comete-se crime de responsabilidade. Sim, mas existem Câmaras de Vereadores e câmaras de vereadores; estas, em minúsculo, quando a maioria dos vereadores vive sob as graças dos prefeitos e prefeitas ou em graves enfretamentos político-partidários e com pouco poder de reação. Há Deputados e deputados. E quando este controle político falhar? Comparemos: número de prefeitos processados por ato de improbidade administrativa, que perderam o cargo, tiveram os direitos políticos suspensos, bens indisponíveis e foram condenados a ressarcir o erário, sem reversão de julgamento pelos Tribunais "versus" número de prefeitos cassados politicamente.


Conclusão

Qual a vontade da Cidadã, da nossa Constituição? Sem dúvida instalou-se uma tensão dialética de princípios e de valores. É possível, e muito salutar, a mutação constitucional, feita através de novas e modernas interpretações a fim de acompanhar as evoluções políticas e sociais. Na hipótese, mais parece é que assistiremos a uma mutação legal (diferente de alteração legislativa), operada com a consagração de nova interpretação judicial que se pretende evolutiva. Estar-se-ia por promover uma redução teleológica do teor da norma constante do art. 2º da Lei nº. 8.429/92, a fim de compatibilizá-lo à Constituição Federal.

É claro que não podemos ficar estacionados sempre na mesma trilha interpretativa. Mas não se pode permitir que certos objetivos maiores da Constituição da República, que reservou partes relevantes do seu texto para enaltecer a necessidade de defesa da moralidade administrativa, sejam aniquilados num processo de autodestruição hermenêutica, escorpiônico, como transcrito acima.

De um lado, há a tese garantidora dos agentes políticos, que supõe-se privilegiadora de sua independência funcional (não há alarme de temor para uma atuação desimpedida por agentes políticos laboriosos e bem-intencionados). Do outro, a que define uma aplicação mais eficaz da Lei de Improbidade propiciando um combate à corrupção mais dinâmico, ágil e volumoso; também garantidora, mas do bem comum do povo, verdadeiro e originário titular do poder soberano e quem mais amargura os males da improbidade. Aquela prestigia alguns mal-intencionados (os agentes probos não têm por que temer). Esta, é de prestígio do cidadão, tão dignificado pela Cidadã (Constituição de 1988).

Proeminente Ministro já declarou: "Não sou eu que quero assim, é a Constituição". Acreditamos na sua franqueza e em sua altivez espírito. Mas coloquemos numa balança os valores acima destacados, com a mente focada na realidade político-social brasileira ("Não pode o Direito isolar-se do ambiente em que vigora" – Carlos Maxilimiano, op. cit.) e sem excessos jurídicos (como já assinalou ilustre Ministro do STF: "o excesso do direito polui o próprio direito" e o distancia da Justiça, acrescente-se). A conclusão é única, na mesma linha defendida pelo Ministro Carlos Velloso. Se há abusos na persecução dos agentes ímprobos por parte de alguns Promotores e Juízes que buscam, através de sua atuação nessa área, os holofotes e não a Justiça, puna-se-os então, e de forma exemplar! As Corregedorias e os respectivos Conselhos Nacionais, da Justiça e Ministério Público, estão aí para isso. Mas não retirem a melhor das poucas armas que tais agentes possuem para defender a sociedade brasileira de forma eficiente dos desmandos de certos agentes políticos, pois não se combate corrupção de mãos vazias.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTIAGO, Alexandre Jésus de Queiroz. Pela defesa eficaz da probidade administrativa. Algumas reflexões sobre a conclusão do julgamento da Reclamação nº 2138, que tramita no STF, sob o prisma da hermenêutica político-constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 941, 30 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7891. Acesso em: 19 abr. 2024.