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A lei na filosofia, na teologia e no direito

A lei na filosofia, na teologia e no direito

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A lei, como regra jurídica, é todo ato normativo imposto coativamente pelo Estado aos particulares, regulando as relações entre ambos e dos particulares entre si.

Filosofando sobre a lei

            "– Bem sei, mas a lei?

            "– Ora a lei... o que é a lei, se o sr. major quiser?"

            Assim sintetizava Manuel Antônio de Almeida, no romance Memórias de um Sargento de Milícias, os costumes do tempo do rei D. João VI (1808-1821). O relato centra-se no confronto entre o "incorruptível" major Vidigal, agente principal da Ordem, e Leonardo, agente principal da Desordem, mostrando as tênues fronteiras entre o lícito e o ilícito, o certo e o errado, ao fixar usos e hábitos sociais de uma época.

            A justiça e a caridade, que estão na base de toda a convivência social, exprimem-se em leis. Devem aplicar concretamente a cada sociedade os valores que garantem a harmonia do conjunto e o bem de cada pessoa.

            Que é a lei? Tomás de Aquino (1221-1274), a define como "uma determinação da razão em vista do bem comum, promulgada por quem tem o encargo da comunidade" (Rationis ordinatio ad bonum commune ab eo, qui curam communitatis habet, promulgata – S.th. I-II 90, 4 ad 1).

            A determinação é uma ordem, e não um simples conselho... Da razão, isto é, deve proceder da inteligência capaz de conhecer os valores... Bem comum: a lei deve ter por objetivo o bem da comunidade à qual se destina... Por quem tem o encargo: só têm força de lei as ordens da autoridade legítima... Promulgada: ou seja, a lei foi criada com determinado conteúdo e deve ser publicada, para ciência dos seus destinatários, pois não se refere a uma pessoa ou a um caso isolado, mas a uma coletividade e a uma série de casos.

            Há várias espécies de leis, em que se pode dividir o seu conceito:

            A lei divina é aquela que o próprio Deus promulga diretamente. A lei humana é a que os homens promulgam no exercício da autoridade que Deus lhes transmite; deve ser o eco concreto da lei de Deus.

            Na epístola aos romanos, Paulo aborda a submissão aos poderes civis. "Cada um se submeta às autoridades constituídas, pois não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus" (Rm 13, 1-7).

            A lei divina eterna é o plano da sabedoria divina, concebido desde toda a eternidade, para levar as criaturas ao seu Fim Supremo. A lei divina eterna é a fonte primeira de todas as demais leis e o fundamento mais profundo de toda a autoridade moral.

            Salomão, filho de Davi, chama a sabedoria de sua esposa ideal. "Eu a quis, e a busquei desde a minha juventude, pretendi tomá-la como esposa, enamorado de sua formosura" (Sb 8,1). "Eu possuo o conselho e a prudência, são minhas a inteligência e a fortaleza. É por mim que reinam os reis, e que os príncipes decretam a justiça; por mim governam os governadores, e os nobres dão sentenças justas" (Pr. 8, 14-16).

            A lei divina natural é aquela que Deus promulga através da natureza das criaturas. Pode ser física, quando se identifica com as leis da natureza, que regem as criaturas sem que haja conhecimento e liberdade por parte destas (leis da gravidade, da atração da matéria, da flutuação...). Pode ser também moral, quando coincide com as normas morais que o homem pode conhecer mediante a luz da razão (não matar, não roubar, honrar pai e mãe...).

            A lei divina positiva é a que Deus se digna promulgar, tendo em vista levar os homens à visão de Deus face a face ou à ordem sobrenatural, para a fase que vai desde a criação do mundo até Moisés (séc. 13 a.C.); é a lei do Antigo Testamento, promulgada por meio de Moisés; é também a lei do Novo Testamento ou do Evangelho, apregoada pelo Senhor Jesus, pois "a Lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te libertou da lei do pecado e da morte" (Rm 8,2).

            A lei humana eclesiástica é aquela que a Igreja, como Mãe e Mestra, promulga para dar mais precisão à lei de Deus, seja natural, seja positiva; Jesus Cristo mesmo outorgou à autoridade eclesiástica a faculdade de legislar (Mt 16, 16-19; 28, 18-20; Jo 21, 15-17). A lei positiva civil é o direito que o Estado sanciona para assegurar a reta ordem entre os homens de cada país.


A ética na lei natural

            A existência da lei natural é de grande importância. Ela é que garante o valor objetivo das leis que regem o convívio entre os homens. Não havendo lei natural, anterior à vontade ou à veleidade dos legisladores, toda a sociedade cai sob a arbitrariedade dos seus chefes e partidos, precipitando-se no caos.

            Em todos os povos primitivos encontra-se a noção dos preceitos morais básicos, como: ‘é preciso fazer o bem...’ ‘honrar pai e mãe...’ ‘cultuar a divindade’; tais normas não são atribuídas a determinado chefe ou cacique, mas à própria natureza ou à divindade.

            Nas Sagradas Escrituras, São Paulo é o arauto mais explícito da lei natural existente em todos os homens:

            "Por isso Deus os entregou, segundo o desejo dos seus corações, à impureza em que eles mesmos desonraram seus corpos. Eles trocaram a verdade de Deus pela mentira e adoraram e serviram à criatura em lugar do Criador, que é bendito pelos séculos. Amém.

            "Por isso Deus os entregou a paixões aviltantes: suas mulheres mudaram as relações naturais pelas relações contra a natureza; igualmente os homens, deixando a relação natural com a mulher, arderam em desejo uns para com os outros, praticando torpezas homens com homens e recebendo em si mesmos a paga da sua aberração." (Rm 1,24-27).

            "Quando então os gentios, não tendo lei, fazem naturalmente o que é prescrito pela Lei, eles, não tendo lei, para si mesmos são Lei: eles mostram a obra da lei gravada em seus corações, dando disto testemunho sua consciência e seus pensamentos que alternadamente se acusam ou defendem... no dia em que Deus – segundo o meu evangelho – julgará, por Cristo Jesus, as ações ocultas dos homens." (Rm 2, 14 s).

            O Concílio Vaticano II reafirmou tal doutrina em termos muito claros:

            "Na intimidade da consciência, o homem descobre uma lei. Ele não a dá a si mesmo. Mas a ela deve obedecer. Chamando-o sempre a amar e praticar o bem e evitar o mal, no momento oportuno, a voz desta lei lhe faz ressoar nos ouvidos do coração: ‘Faze isto, evita aquilo’. De fato, o homem tem uma lei escrita por Deus em seu coração. Obedecer a ela é a própria dignidade do homem, que será julgado de acordo com essa lei. A consciência é o núcleo secretíssimo e o sacrário do homem, onde ele está a sós com Deus e onde ressoa a voz de Deus." (Const. Gaudium et Spes nº 16).

            A própria razão aponta a existência da lei natural.

            Quem admite a existência de Deus Criador admitirá que tenha infundido dentro das criaturas livres, feitas à sua imagem, algumas grandes normas que encaminham o homem à consecução da vida eterna. Essa orientação interior é precisamente o que se chama de "lei natural".

            Ademais, a negação da lei natural leva a dizer que os atos mais abjetos podem vir a ser considerados virtudes e vice-versa. Quem não reconhece a lei natural atribui ao Estado civil o poder de definir o bem e o mal éticos; a vontade do Estado torna-se a fonte da moralidade e do direito; deste princípio segue-se a legitimidade do totalitarismo, de que testemunhou o século XX.

            As funestíssimas conseqüências do totalitarismo moral do Estado levaram as Nações Unidas a promulgarem em 1948 a Declaração Universal dos Direitos do Homem (Universal Declaration of Human Rights), que não é senão a reafirmação, em grande parte, da lei natural.


A lei natural existe

            Só há leis positivas, isto é, leis cujo fundamento é tão-somente a vontade do legislador. Assim doutrinava Augusto Comte (1798-1857), no seu Cours de Philosophie Positive. Não haveria instância mais profunda para basear as leis humanas do que o próprio autor da lei. Não existiriam atos bons e maus por si, mas unicamente por decreto do legislador; apenas este é que definiria se determinado comportamento humano é ou não criminoso.

            Pensando assim, esse positivismo leva ao absolutismo e totalitarismo do Estado, negando a existência de Deus e de qualquer valor transcendental.

            O homem é, antes do mais, liberdade, de modo que ele define livremente, a partir das circunstâncias em que se acha, o que é bem e o que é mal. Desse modo, o existencialismo ateu também nega a lei natural, pois contesta todo o valor perene, essencial e universal.

            Negando a existência de Deus, tais pensadores só conhecem valores e desvalores passageiros e relativos.

            As normas vigentes em cada sociedade são o fruto contingente da cultura dessa sociedade. Para o socialismo jurídico elas são meramente convencionais. O bem e o mal seriam tais unicamente porque a sociedade assim os resolveu considerar.

            Pena que pensem dessa maneira. A sociedade consta de pessoas que têm todas a mesma estrutura física e psíquica, dotadas das mesmas aspirações fundamentais e movidas por certas normas vigentes em todo o homem, de qualquer época ou lugar. Assim, o direito à vida não é uma prerrogativa concedida pela sociedade aos seus membros, mas é algo que decorre do fato de que esses membros da sociedade são pessoas; à sociedade compete respeitar tal direito, em vez de o conceder "benignamente"; esse direito é anterior a qualquer estatuto da sociedade.

            A natureza humana foi totalmente determinada pelo pecado. Assim, o protestantismo recente impugna o direito fundado na natureza humana. Dessa forma, natureza e pecado estariam tão entrelaçados entre si que não se poderia ler na natureza e suas leis ou aspirações a manifestação da vontade do Criador. O Estado e o matrimônio teriam sido impostos ao gênero humano como resposta da ira divina ao pecado.

            Refletindo melhor, sabemos que o pecado dos primeiros pais não destruiu a obra da criação. Lei e evangelho não se opõem, mas se complementam mutuamente. Eliminando o conceito de lei natural, a moral cristã passa a carecer de base em muitos dos seus pontos.

            Para o tecnicismo contemporâneo, o homem não pode estar sujeito à natureza. Se, por sua inteligência, ele remove montanhas e aterra baías, como não tem o direito de alterar o curso mesmo da sua natureza corpórea?

            O homem não pode considerar o seu corpo como considera os demais corpos da natureza física. Se ele trata esses últimos a seu bel-prazer, desviando rios e removendo montanhas, não lhe é lícito tratar o seu corpo como bem lhe pareça, pois o corpo humano, à diferença dos demais corpos, faz parte integrante de um todo que é a pessoa humana; o homem não tem um corpo, mas é um corpo vivificado por uma alma espiritual. O corpo comunica à pessoa as suas características próprias; não é mero instrumento de uma pessoa espiritual.

            Assim como no plano fisiológico a corporeidade impõe ao homem certas leis (não posso comer pedras, não posso respirar gás carbônico, não posso deixar de dormir...), também no plano moral a corporeidade impõe ao ser humano certas normas (relativas à quantidade da comida, da bebida, do fumo, ao uso do sexo...); como a inobservância das leis fisiológicas leva a pessoa à morte, também o desprezo das leis morais naturais induz o ser humano à desintegração psíquica e quiçá física. As leis do corpo são leis da pessoa humana.

            A existência da lei natural não é invalidada pelas correntes do pensamento modernas. Negar a lei natural é negar a própria ordem moral. Como dizia J.-P. Sartre: "Se Deus não existe, tudo é permitido" (L’Existentialisme est un Humanisme, 1946, p. 114).


Uma definição de lei

            Em sua acepção mais geral, lei designa a norma ou causa exemplar, a que as coisas se devem conformar em todos os domínios: físico, da arte e dos costumes.

            Significa, portanto, uma ordenação da razão destinada a assegurar a realização da ordem. De uma parte, visa um procedimento a realizar; de outra, emite um mandado. Em ambos os sentidos, é obra da razão. O ato de vontade não é mais do que a exteriorização ou a manifestação de um imperium, é essencialmente um ato da razão, que define a ordem e os meios da ordem.

            Partindo dessa análise, chegamos à conclusão de que a lei, conforme diz Tomás de Aquino (1221-1274), é uma ordenação da razão, promulgada, em mira do bem comum, por aquele que tem o encargo da comunidade (Rationis ordinatio ad bonum commune ab eo, qui curam communitatis habet, promulgata – S.th. I-II 90, 4).

            Como ordenação da razão, a norma implica percepção e definição de relações, coisa que é, por excelência, obra da razão. E essa razão não é mais do que emanação ou reflexo da Razão suprema.

            Seu fim é o bem comum e não o bem particular deste ou daquele. Sem dúvida, obriga cada indivíduo, mas dirige-se a todos, em vista do bem comum de todos. Assim, a lei deve ser promulgada, sem o que não poderia obrigar. É essencialmente uma regra que se dirige antes de tudo à razão e não pode ser obedecida senão enquanto é suficientemente conhecida.

            A lei assim não é uma realidade social (pela idéia do bem comum) nem mesmo uma realidade jurídica (pela idéia de promulgação). A referência ao bem comum nada mais é do que a ordenação necessária, direta ou indireta ao próprio Deus, fim último de todo o universo e, mais particularmente, dos seres racionais.

            O universo é uma comunidade que tem Deus por chefe, enquanto Criador e Legislador soberano. Dessa forma, consideramos a lei como realidade social, no pleno sentido da palavra, isto é, ao mesmo tempo como dada por Deus visando o bem comum e destinada ao uso de toda a comunidade dos seres racionais e irracionais.

            Só pode ser decretada por aquele a quem compete ordenar as coisas para o bem comum, que é o fim da lei; só aquele que exerce a autoridade legítima e que, por essa razão, tem o dever e a missão de assegurar o bem comum de todos.

            Ninguém pode obrigar a si mesmo, no sentido estrito da palavra. Quando alguém declara obrigar-se por um voto, por um contrato ou uma promessa, não faz senão reconhecer a autoridade da lei natural e, por conseguinte, a autoridade de Deus, legislador da ordem natural, que impõe a observância desses compromissos e o respeito da palavra dada.

            Desse tipo de lei derivam as suas propriedades de ser possível, justa, útil e estável.

            Possível, por ser uma ordenação da razão. Seria absurdo ordenar coisa impossível. Justa, como ato que é da razão. Injusta seria, do ponto de vista da razão, uma noção contraditória, pois significaria uma razão que se nega a si mesma, ao exigir algo contra a razão. Útil, sem dúvida, ao bem comum. Do contrário não teria razão de ser. Estável, ou seja, deve conservar o seu poder de obrigar por todo o tempo, enquanto não for revogada pelo legislador.

            O efeito remoto da lei natural é tornar virtuosos os seres racionais, pois é pela virtude que o homem se prepara para a obtenção do sumo bem. O imediato consiste em criar, no sujeito da lei, uma necessidade de agir de natureza moral, que recebe o nome de obrigação ou dever.


A universalidade da lei natural

            A lei natural é obrigatória, impondo uma necessidade moral, sem vulnerar o livre-arbítrio; absoluta, mandando sem condição facultativa; universal, fundada na natureza e válida para todos os homens, sem exceção; imutável como a natureza que lhe serve de fundamento.

            A não ser que só se reconheça como princípio primeiro o livre jogo dos instintos e da força, a gente tem de admitir uma norma superior, que haure seu vigor obrigatório numa ordem de direito fundada na natureza e, em última análise, na Razão divina.

            O que é uma lei universal? É aquela cuja base é a natureza humana e que se estende necessariamente a todos os homens e incide sobre tudo o que é essencial à integridade e à perfeição da natureza. Igualmente é universal em razão da sua promulgação.

            Mas uma promulgação natural, efetuada por meio da razão humana, fazendo-se sob a forma de princípios gerais evidentes por si, deduzindo conclusões que se apliquem aos casos concretos.

            Essa promulgação supõe que os princípios mais gerais da lei se possam manifestar em uma razão suficientemente desenvolvida. Ademais, a razão humana deve ter naturalmente o poder de deduzir dos princípios gerais as conclusões práticas essenciais, necessárias para ordenar moralmente a conduta. Isso equivale a dizer que a capacidade racional deve ser entendida com todas as suas condições internas e externas que encerra a natureza humana.

            Os dados da experiência estão confirmando tudo isso, pois o primeiro princípio da ordem prática é o senso moral, cujo objeto é constituído pelos preceitos fundamentais da ordem moral.

            Em compensação, pode haver eclipse da lei natural no domínio do concreto a realizar, ficando a razão impedida de aplicar o princípio geral ao caso particular.

            É o caso de certas tribos que consideram louvável matar os pais idosos ou enfermos. Trata-se de pôr fim aos males que, a seu ver, lhes tornam pesada a vida. Outros admitem a legitimidade da matança dos prisioneiros, por uma falsa interpretação do princípio da legítima defesa.

            Nesse caso é possível que os não civilizados não tenham atingido o nível de desenvolvimento requerido ou (no caso de regressão) tenham descido abaixo desse nível.

            Os preceitos secundários, no entanto, podem ser ignorados, mas não de maneira invencível. É o que a experiência mostra, sob a sua forma geral e abstrata.

            Mas a ignorância só se pode explicar, como diz Tomás de Aquino (1221-1274), por causas acidentais, "em razão de propagandas perversas, de costumes depravados e de hábitos de corrupção" (Quantum vero ad alia praecepta secundaria, potest lex naturalis deleri de cordibus hominum, vel propter malas persuasiones, eo modo quo etiam in speculativis errores contingunt circa conclusiones necessarias; vel etiam propter pravas consuetudines et habitus corruptos – S.th. I-II q. 94 a. 6 co).

            Assim, a influência das paixões e o exemplo dos vícios públicos são capazes de perverter o juízo do senso moral, assim como erros generalizados podem falsear o juízo especulativo.

            Quando se trata, porém, de conclusões particulares, relativas a casos complexos, pode haver ignorância invencível das exigências da lei natural. Aos casos particulares, as circunstâncias desempenham papel tão importante, que é inevitável se produzam muitos erros.

            É pois dever de todo o homem esforçar-se por esclarecer sua razão pela reflexão e pelo estudo, bem como recorrer às luzes daqueles cuja sabedoria e ciência os tornam competentes para ajuizar a respeito dos casos difíceis da conduta humana.


A imutabilidade da lei natural

            Quando dizemos que o homem é animal racional, estamos confirmando que as suas notas constitutivas não podem ser absolutamente distintas do que são. A essência "homem" é necessariamente a de um "animal racional". Por isso é imutável.

            É assim também com a lei natural, pois deriva do cenário natural e da própria essência dos seres, devendo ser fixa e estável.

            Intrinsecamente imutável, a lei natural impõe ou proíbe ações que são boas ou más, em razão da própria natureza. Essa lei exprime o que é bom e necessário naquilo que ela tem de essencial e, por conseguinte, de imutável.

            Dessa maneira, nenhuma vontade humana tem o poder de ab-rogar a lei natural, por não ter poder sobre o cenário natural, que é aquilo que é independentemente de toda a vontade finita. Seria até contraditório e absurdo Deus querer que uma natureza aja contra a lei que Ele mesmo lhe deu, ao criá-la.

            Pelas mesmas razões, nem Deus nem o homem podem dispensar da observância da lei natural ou modificar-lhe os preceitos essenciais. O que pode haver, conforme ensina Tomás de Aquino (1221-1274), é "dispensa aparente da observância de certos preceitos secundários, isto é, matéria de ações que só podem ser difundidas como boas ou más em razão das circunstâncias ou das modalidades" (lex naturalis inquantum continet praecepta communia, quae nunquam fallunt, dispensationem recipere non potest. In aliis vero praeceptis, quae sunt quasi conclusiones praeceptorum communium, quandoque per hominem dispensatur, puta quod mutuum non reddatur proditori patriae, vel aliquid huiusmodi – S.th. I-II q. 97, 4 ad 3). Assim é que o ato de levar à morte só se pode chamar de intrinsecamente mau quando é injusto, ao passo que o perjúrio é mau por si mesmo e sem condições.

            Neste caso, existe apenas dispensa material da lei, mas que formalmente permanece imutável. Distinção importante, porque nos permite ver quando ela é absolutamente imutável e quando pode haver dispensa material ou exceção.

            Os preceitos negativos não admitem exceção alguma, em nenhuma necessidade, mesmo em perigo ou mal maior que possa resultar da observância da lei. Em todos os casos de necessidade extrema, grave ou comum, a lei natural impõe-se absolutamente. Exemplos: "não matarás injustamente, não dirás falso testemunho, não blasfemarás". Esses atos proibidos são maus no seu objeto e no seu fim próprio, isto é, intrinsecamente. Jamais o perjúrio, a blasfêmia e o homicídio (injusto) poderão vir a ser atos desculpáveis. Infringir essas proibições é ir contra a ordem moral essencial e produzir uma desordem que nenhum bem material pode compensar.

            Já os preceitos positivos admitem exceções ou dispensas materiais. Só pode prestar socorro a alguém em perigo de morte, com perigo da própria vida, se a pessoa estiver ligada por dever profissional para com aquele que está em perigo.

            Esse preceito positivo pode facilmente converter-se em simples conselho, que só será escutado por homens de coração. O dever estrito só reapareceria quando a abstenção equivalesse à transgressão de um preceito negativo.

            Pelo próprio fato de implicarem a consideração das circunstâncias, os preceitos positivos pertencem sempre à lei natural secundária. Relativamente à obrigação, os preceitos positivos prescrevem atos de vontade, enquanto os negativos proíbem o pecado. Ora, é sempre um mal cometer pecado; mas nem sempre é necessário, nem mesmo bom, fazer atos de virtude.

            Deve-se praticar a virtude em tais circunstâncias de tal maneira determinada, sempre se abstendo do mal. Convém lembrar que os filósofos éticos assinalam esta diferença, dizendo que os preceitos negativos obrigam sempre e a cada vez (semper et pro semper), enquanto que os preceitos positivos obrigam sempre, mas não a cada vez (semper, sed non pro semper).


A plasticidade da lei natural

            Não se pode dizer que as regras morais sejam absolutamente imutáveis, partindo da imutabilidade essencial do direito natural. Ele próprio é suscetível de variar e evoluir.

            A natureza é ao mesmo tempo imutável e mutável. Imutável na sua essência abstrata, em função da qual se definem os preceitos primários do direito natural. Mas é mutável e diversa em suas formas concretas, históricas e individuais.

            Essa, a razão por que, conforme diz Tomás de Aquino (1221-1274), também o direito natural deverá diversificar-se constantemente, não para alterar sua substância, mas para assegurar a sua permanência essencial (illud quod est naturale habenti naturam immutabilem, oportet quod sit semper et ubique tale. Natura autem hominis est mutabilis. Et ideo id quod naturale est homini potest aliquando deficere – S. th. II-II 57, 2 ad 1). Assim o direito varia, adaptando-se às circunstâncias concretas da vida econômica e social, para assegurar a permanência do direito.

            Há, sem dúvida, um progresso geral da humanidade no conhecimento das exigências do direito natural. Aí está precisamente o progresso da civilização. É assim que se explica a evolução que se produziu ao longo dos tempos relativamente à escravidão, às regras da guerra e às diversas formas da justiça e da solidariedade sociais.

            Justamente este aspecto do direito natural é que Henri Bergson (1859-1941) definiu como uma "moral aberta", sempre suscetível de novos progressos, graças a um aprofundamento das exigências do direito e de uma ampliação do seu domínio (Les deux sources de la morale et de la religion, 1932, p. 117 e ss.).

            A diversificação do direito natural assemelha-se ao das ciências, em que as conseqüências se deduzem dos princípios por via de raciocínio. Desse modo, o preceito que proíbe matar é corolário do princípio de que não se deve fazer mal a ninguém.

            A sua determinação é semelhante ao que sucede nas artes, quando se trata de adaptar um modelo a uma destinação particular: casa, lugar de habitação, lugar de reunião, local de ensino etc. A lei natural quer que seja punido aquele que cometeu uma falta: mas que seja punido de tal ou tal maneira (prisão, colônia agrícola, industrial, casa do albergado, hospital de custódia, tratamento psiquiátrico etc.), o que exigirá uma determinação da lei natural.

            Por essa razão é que a única concepção possível do direito é a analógica. Não existe direito em si ou em estado puro, assim como não existe homem em si. Há um direito territorial, familiar, ambiental, profissional, diversificado conforme os países e os climas, os tempos e os lugares.

            Um jurista alemão, Rudolf Stammler (1856-1938), falava de um direito natural de conteúdo variável, o que parecia aos seus pares uma contradição. Ele queria visar não o seu conteúdo formal, mas sim o material, isto é, as aplicações particulares e concretas da idéia de justiça à natureza social (Wirtschaft und Recht nach der materialistischer Gechichtauffassung, Leipzig, 1896).

            Por outro lado, o professor G. Renard (1894-1977) pôs em circulação a fórmula que fala de um direito natural de conteúdo progressivo. Graças ao trabalho da vontade humana esclarecida pela razão, o direito natural progride "primeiramente desenvolvendo as virtualidades inclusas no seu princípio" e depois "assimilando a si os meios históricos que ele deve reconduzir à ordem" (Le droit, l’ordre et la raison, 1927, p. 126).

            Lamentavelmente, não é o próprio direito natural que é variável e progressivo, e sim o conhecimento que o homem dele toma e as aplicações que dele faz, porque a noção do direito natural não deve ser obscurecida pela massa das aplicações múltiplas e aparentemente contraditórias que ele recebe.


O porquê da lei positiva

            A lei natural estende-se a todos os atos humanos. Mas em razão da forma genérica de seus preceitos, ela pode obscurecer-se sobre certos pontos e parecer incerta em múltiplas circunstâncias. Tal insuficiência faz-se sentir sobretudo no domínio social, que exige prescrições numerosas e precisas. Essa, a razão da necessidade das leis positivas, divinas e humanas.

            As leis divinas são decretadas pela autoridade de Deus e estão contidas na Revelação. São divinas pela forma, quando versam sobre atos já prescritos pela lei natural (Não matarás). As leis humanas são obra dos que exercem a autoridade, com o encargo de empregá-las para o bem comum dos que lhes estão submetidos.

            A lei natural limita-se a fixar os princípios gerais, deixando à lei positiva o cuidado de tirar as conclusões remotas, regular os casos concretos. Assim, a lei positiva procede por via de conclusões e de determinações.

            As conclusões promulgadas sob forma de leis e sanções tiram seu valor principal do rigor com que derivam dos princípios do direito natural.

            As leis positivas, na sua maioria, são determinações da lei natural: tais são as leis constitucionais ou as que regulam os direitos civis e políticos. A elas cabe dar todas as exatidões que a vida social reclama. As leis positivas recebem seu poder da simples vontade humana. Assim, pode acontecer que as determinações mais opostas sejam justas, por assentarem-se sobre algum fundamento natural. Dessa forma, o regime da liberdade civil e o da propriedade poderão diferir muito e sem nenhuma injustiça, conforme os tempos e lugares.

            As sociedades têm podido e poderão modificar-se pelo simples fato de surgirem novas legislações, sem que a lei natural seja violada. Como diz Tomás de Aquino (1221-1274), "vale isto, ao mesmo tempo, por dizer de que importância e de que eficâcia são as leis positivas que se aditam à lei natural" (Utraque igitur inveniuntur in lege humana posita. Sed ea quae sunt primi modi, continentur lege humana non tanquam sint solum lege posita, sed habent etiam aliquid vigoris ex lege naturali. Sed ea quae sunt secundi modi, ex sola lege humana vigorem habent. – S.th. I-II 95, 2).

            Uma de suas características é a justiça. Lei justa é a baseada na lei natural. Ela obriga como a própria lei natural. Não há necessidade de ser a melhor: basta que seja boa, isto é, justa.

            Outra é a sua utilidade. As leis positivas podem ordenar todos os atos necessários ou verdadeiramente úteis ao bem público, que é a sua finalidade.

            Não menos necessária é a estabilidade das boas leis. São estabelecidas para o bem público e determinam o emprego de certos meios gerais. Devem ser progressivas, nunca estando em desacordo com os costumes públicos. Sua validez será maior quanto mais se apoiarem nos costumes públicos, visando elevá-los.

            As leis justas obrigam sempre em consciência. No caso de certas leis penais, o seu aplicador consegue o seu cumprimento mediante coerção. O delinqüente é passível da pena e deve a ela se submeter em consciência, se contra ele a pena é decretada.

            A lei positiva pode, no entanto, ser ora precedida e preparada, ora modificada e ab-rogada pelos costumes.

            Certas leis e constituições escritas, antes de serem observadas, foram apenas regras escritas sobre o papel, por não estarem firmadas nos costumes, nas necessidades reais dos povos a que se endereçavam. Por isso, desapareceram com as circunstâncias que as haviam feito nascer. Essa, a razão de que os costumes são anteriores à lei positiva. São fundadas, preparadas, autorizadas e tornadas oportunas por eles, quando formalmente não a ditam.

            Assim como a lei é precedida pelo costume, ela é também por ele modificada. Segue a lei como a precede: pode modificá-la, interpretá-la e mesmo mudá-la ou ab-rogá-la no todo ou em parte.

            A razão disso é que as leis não convêm a todos os lugares e a todos os tempos, pois as sociedades transformam-se de maneira contínua e às vezes rápida, devendo o legislador permitir que se opere essa transformação, para que o novo costume modifique ou mude a lei existente.


A lei no mundo antigo

            "Olho por olho, dente por dente, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe" (Ex 21, 24, 25). Essa, a lei do talião (Lv 24, 17-20; Dt 19, 21), que se encontra no código de Hamurabi e nas leis assírias, de natureza social e não individual.

            Prevendo um castigo igual ao dano causado, visa a limitar os excessos da vingança.

            "Lamec disse às suas mulheres: Ada e Sela, ouvi a minha voz, mulheres de Lamec, escutai a minha palavra: Eu matei um homem por uma ferida, uma criança por uma contusão. É que Caim é vingado sete vezes, mas Lamec, setenta e sete vezes!" (Gn 4, 23-24).

            O caso mais claro é a execução de um assassino (Ex 21, 31-34; 21, 12-17+; Lv 24, 17). De fato, a aplicação dessa regra parece ter perdido desde muito cedo a sua brutalidade primitiva. As obrigações do "vingador do sangue" (Nm 35, 19+) foram se purificando até se limitarem ao resgate (Rt 2, 20+) e à proteção (Sl 19, 15+; Is 41, 14+). O enunciado do princípio continua em uso, mas sob formas mais brandas (Eclo 27, 25-29; Sb 11, 16+). O indulto era prescrito no interior do povo israelita (Lv 19, 17-18; Eclo 10, 6; 27, 30; 28, 7) e Cristo acentuará ainda mais o mandamento do perdão (Mt 5, 38-39+; 18, 21-22+).

            Encontrado em Susa, em 1902, o código de Hamurabi foi o primeiro paralelo extrabíblico com a lei bíblica do antigo Oriente Médio.

            A partir dessa data, foram descobertas a coleção sumérica de Lipit-Ishtar, as leis acadêmicas de Eshnunna, as leis assírias, as leis hititas e algumas leis neobabilônicas.

            A maioria é mais antiga do que as leis israelitas. As leis de Lipit-Ishtar remontam a 1900-1850 a.C.; as leis de Eshnunna, a mais ou menos o mesmo período; as leis de Hamurabi (1728-1686), pouquíssimo posteriores, as leis assírias em sua forma típica do século XII, as próprias leis do século XV, as leis hititas em sua forma peculiar ao século XIII e cuja origem pode ser situada no século XVII, as leis neobabilônicas provavelmente provêm do século VII.

            Essas coleções, quando comparadas com as israelitas e quando confrontadas entre si, levam os exegetas a concluírem em favor da existência de uma lei geral amplamente difundida no antigo Oriente Médio, que variava em pormenores, porém não em princípios, de uma compilação para outra.

            Pela comparação, evidencia-se que a lei israelita civil e criminal é um produto dessa lei geral. Mas o cotejo não é provável em todos os detalhes; nenhuma das coletâneas está completa, e todas, com exceção da peça danificada de Hamurabi, foram conservadas apenas em fragmentos.

            Hamurabi fez para as leis uma introdução que consta de um prólogo histórico e termina-as com um epílogo que inclui imprecações contra os que alteram as leis. Lipit-Ishtar possui um fragmento de um epílogo histórico. Pode-se concluir que o prólogo e o epílogo aparecem em todas as coleções.

            Lendo o prólogo e o epílogo, percebe-se que as leis não foram recebidas por meio de revelação divina. Hamurabi recebe dos deuses a delegação e a autoridade para escrever as leis e, ainda, a sabedoria necessária para escrevê-las bem, mas, apesar disso, as leis são uma composição dele.

            Tal composição é exagerada; o rei fala como se nunca tivesse havido outra lei antes da sua coleção. Lipit-Ishtar também fala do encargo que recebeu como rei.

            Além de alguns princípios e práticas em comum, todas essas leis apresentam a mesma formulação. O caso é descrito numa cláusula condicional, e a decisão, penalidade ou compromisso são afirmados na apódose. "Se a mulher de um senhor for acusada pelo seu esposo, mas não tiver sido apanhada em flagrante, enquanto mantinha relações sexuais com um outro homem, ela poderá fazer um juramento por deus e voltar para sua casa." (Hamurabi 131).

            Essa formulação é conservada mesmo quando a descrição do caso e uma coleção complexa tornam a sentença inflexível. Deve-se supor que isso fosse tradicional e comum até o princípio do II milênio.


A lei nos dez mandamentos

            As leis israelitas estão contidas principalmente em coleções (impropriamente chamadas de códigos), como o decálogo, o código da aliança, o "decálogo ritual javista", o código deuteronômico, o código da santidade e o código sacerdotal.

            Os dez mandamentos são encontrados em duas formulações ligeiramente diferentes, ou seja, no Êxodo 20 e no Deuteronômio 5.

            O fato de terem sido as dez palavras ou mandamentos entregues por Deus a Moisés no Monte Sinai está incorporado à antiga tradição hebraica (Ex 34,28; Dt 4,13; 10,4).

            Sua enumeração, no entanto, tem sido considerada de modos diversos nos tempos modernos.

            Para Filon (25 a.C.–50 d.C.), Josefo (37 a.C.–95 d.C.) e toda a patrística (século.I–século IX), elas são: 1) proibição de deuses falsos ou estrangeiros; 2) proibição de imagens; 3) uso do nome divino em vão; 4) sábado; 5) genitores; 6) homicídio; 7) adultério; 8) furto; 9) falso testemunho; 10) cobiça.

            Para Orígenes (185–254), Clemente de Alexandria (150–216), Agostinho (354–430) e a atual igreja latina, são: 1) proibição dos falsos deuses; 2) uso do nome divino em vão; 3) sábado; 4) genitores; 5) homicídio; 6) adultério; 7) furto; 8) falso testemunho; 9) cobiça da mulher; 10) concupiscência dos bens.

            Para os hebreus modernos, são: 1) Introdução: "Eu sou Iahweh teu Deus..."; 2) proibição dos falsos deuses e das imagens; 3) uso do nome divino em vão; 4) sábado; 5) genitores; 6) homicídio; 7) adultério; 8) furto; 9) falso testemunho; 10) cobiça.

            Os primeiros quatro mandamentos estabelecem deveres para com Deus, ao passo que os outros seis instituem obrigações para com os homens; os genitores, fontes da vida, são representantes de Deus.

            É provável que nenhuma das duas listas (Ex e Dt) apresente a forma primitiva do decálogo. Os intérpretes acham que originalmente os dez mandamentos fossem breves, como os do homicídio, do adultério, do furto e do falso testemunho. Os outros devem ter sido desenvolvidos com o acréscimo de razões religiosas para a sua observância. As motivações são ligeiramente diferentes nas duas redações.

            É assim que o mandamento do sábado se baseia numa referência à criação em seis dias, seguidos do repouso no sétimo dia, como está registrado em Gn 1, 1-2,3.

            A forma original da proibição da concupiscência foi expandida em dois sentidos. Em Ex, há um primeiro acréscimo com a menção à casa, que cobre todas as propriedades do próximo; depois o preceito foi aumentado ainda mais com a enumeração da mulher, dos escravos e dos animais domésticos. Em Dt, o primeiro adendo foi a menção explícita e especial da mulher; depois a norma foi estendida à casa, aos escravos e aos animais.

            No Novo Testamento, há alusão a mandamento em particular, mas não se encontra nenhuma referência aos mandamentos como grupo de dez.

            As proibições do homicídio (Mt 5,21) e do adultério (Mt 5,27) no Sermão da Montanha são citadas em paralelo com o Dt 24,1 (Mt 5,31); o mesmo ocorre com a fusão de Ex 20,7, Nm 30,3 e Dt 23,22 (Mt 5,33) e de Ex 21,24 (Mt 5,38) e Lv 19,18 (Mt 5,43).

            Essa, a lei que Jesus não veio para destruir, mas sim para aperfeiçoar. Todas as citações provêm da Torá, a suprema autoridade do judaísmo. Ex. 20,12 é citado em Mt 15,4 e Ef 6,2-3. Dt 5,17-21 é citado em Rm 13,9. Ex 20,13s (Dt 5,17s) é citado em Tg 2,11.

            Quando o jovem lhe perguntou quais eram os mandamentos, Jesus citou alguns dos dez, mas não todos e nem na ordem usual.


A lei no código da aliança

            Código da aliança: "Não fareis deuses de prata ao lado de mim, nem fareis deuses de ouro para vós" (Ex 20, 22). "Eles não habitarão na tua terra, para que não te façam pecar contra mim, pois se servires aos seus deuses, isso te será uma cilada" (Ex 23, 33). "Far-me-ás um altar de terra, e sobre ele sacrificarás os teus holocaustos e os teus sacrifícios de comunhão, as tuas ovelhas e os teus bois. Em todo o lugar onde eu fizer celebrar a memória do meu nome, virei a ti e te abençoarei. Se me edificares um altar de pedra não o farás de pedras lavradas, porque se levantares sobre ele o cinzel, profaná-lo-ás. Nem subirás o degrau do meu altar, para que não se descubra a tua nudez" (Ex 20, 22-26).

            O nome código da aliança provém da expressão o livro da aliança (Ex 24, 7). É possível que esta coleção tenha sido inserida fora do seu contexto adequado, e que o livro da aliança de Ex 24, 7 seja o decálogo. Mas a sua inserção pretendia incluir o código da aliança como parte da aliança do Sinai; eram essas as leis que Israel devia observar como obrigações decorrentes da aliança.

            Atribuído a Moisés, o código da aliança goza da suprema autoridade que Israel conferia a todas as suas leis. Certamente ele é o mais antigo dos códigos depois do decálogo. No entanto, alguns críticos o colocam antes dos dez mandamentos.

            A sua data só pode ser determinada de maneira relativa, e é deduzida do ambiente social e econômico que lhe servia de fundo. Não se trata de vida nômade; logo, o código pressupõe a posse de gado, cisternas, campos de trigo e plantações de vinha. Esta coletânea de leis e costumes pressupõe uma coletividade já sedentária e agrícola.

            Pensou-se que ela remonta, por seu fundo primitivo, aos primeiros séculos da instalação em Canaã, talvez antes da monarquia, pois o rei nunca é mencionado; mas a época de origem é difícil de determinar.

            As suas escassas referências a transações comerciais supõem um período anterior à monarquia. Sua data, portanto, deve situar-se mais provavelmente no período pré-monárquico.

            As leis civis e criminais (Ex 21, 1-22, 17), que mostram diversos pontos de contato com o código de Hamurabi, são a adaptação israelita da lei costumeira cananéia ao próprio povo de Israel. Seus contatos com o código de Hamurabi, o código hitita e o decreto de Horemheb não testemunham um empréstimo direto e sim uma fonte comum: um direito consuetudinário que se diferenciou conforme os ambientes e os povos.

            As prescrições do código, conforme seu conteúdo, podem ordenar-se sob três partes: direito civil e penal (Ex 21, 1-22, 20); regras para o culto (Ex 20, 22-26; 22, 28-31; 23, 10-19) e moral social (22, 21-27; 23, 1-9). Segundo a sua forma literária, essas prescrições dividem-se em duas categorias: "casuística" ou condicional, no gênero dos códigos mesopotâmicos; "apodítica" ou imperativa, no estilo do decálogo e nos textos da sabedoria egípcia.

            As leis de Ex 20, 22-26, 22, 18-23, 19 são humanitárias e religiosas, e têm uma formulação diferente das leis civis e criminais; estas são, com maior probabilidade, especificamente israelitas.

            O epílogo do código da aliança pode ser comparado ao desfecho de Hamurabi e a outras coleções israelitas. A sua inserção no seu contexto atual fez de toda a revelação do Sinai seu prólogo histórico.


A lei no código deuteronômico

            Ao contrário de outras coleções, esse compêndio de leis não se encontra num só lugar, mas espalhado em várias fontes. Exemplo: Lv 1-7, sacrifício; Lv 11-13, pureza e impureza; Nm 29, 29, festas.

            É característica sua colocar a lei dentro de um contexto histórico, isto é, relacionando a origem da instituição com algum acontecimento nem sempre histórico no seu sentido genuíno.

            Foi assim com a proibição de sangue depois do dilúvio (Gn 9, 1-7), a lei da circuncisão que se segue à aliança feita com Abraão (Gn 17, 9-14), o ritual da Páscoa por ocasião da saída do Egito (Ex 12), a lei do sacerdócio no Sinai (Ex 28, 1; 29, 37), a lei dos levitas na partida do Sinai (Nm 3-4; 8, 5-28) e outras leis referentes aos sacerdotes e levitas depois da rebelião de Coré (Nm 16).

            Há outras leis rituais e cultuais que não possuem um contexto particular nos acontecimentos e são atribuídas a Moisés. Com certeza, impossível fazer um julgamento geral sobre a antiguidade delas, cuja origem deve ser estabelecida individualmente para cada caso.

            Muito provável que esse código seja, em muitos casos, uma lei sacerdotal, pois algumas leis rituais e cultuais tinham em vista ninguém mais a não ser os sacerdotes.

            Os termos israelitas para a lei, no sentido original, referem-se a leis definidas de forma e conteúdo distintas.

            Tôrah é o vocábulo mais comum para designar a lei no judaísmo. A sua etimologia diz que ele deriva de yarah, jogar ou deitar sortes. Assim, o seu sentido original é o do oráculo divino, revelado pela sorte. Daí ele passa a significar uma resposta divina, de modo geral. Como as respostas divinas eram comunicadas pelos sacerdotes, ele chega a exprimir a instrução sacerdotal referente a preceitos cultuais e morais. É assim mencionada em Is 8, 20; Jr 2, 8; 18, 18; Am 2, 4. A palavra enfatiza a lei como revelação de Yahweh, transmitida pelos sacerdotes.

            ’Edôt, testemunhos. Expressão técnica usada para os termos da aliança de Yahweh com Israel, e que designa ou as promessas de Yahweh ou as obrigações que ele impõe a Israel. Por isso, o rei usava uma fórmula escrita do ’edôt na sua coroação (2Rs 11, 12). A dição ressalta a vontade revelada de Yahweh nas leis e também a concepção de lei como obrigação da aliança.

            Mishpat, juízo, indica uma decisão judicial. Palavra aplicada às leis civis e criminais (Ex 21, 1). Precedente judicial como fonte da lei, pode ser identificado com a formulação casuística de lei. Diversamente de tôrah,’edôt e dabar, exprime a origem humana da lei.

            Hôd, estatuto, literalmente, algo que ficou gravado. A sua fonte parece ser mais a autoridade pública do que um precedente judicial ou um costume.

            Dabar, palavra, quer dizer um pronunciamento divino e é usado para leis tão solenes como o decálogo (Ex 20, 1; 24, 3, "palavras e juízos"). Dá especial destaque à lei como sendo a vontade revelada de Yahweh e pode, mais provavelmente, ser identificada com a formulação apodítica da lei.

            Miçwah, mandamento, traduz a ordem emitida pela autoridade, tanto divina quanto humana, e é um termo geral que se aplica a outras ordens e não apenas à lei no sentido estrito.

            Na época antiga não havia ordenação propriamente dita. Era a própria função que fazia o sacerdote entrar no domínio do sagrado, iniciando o seu sacerdócio, oferecendo sacrifícios no altar, o que é a sua função essencial (Lv 1 5+), com a participação de toda a comunidade e prestando obediência ao seu código de leis.


A lei no código da santidade

            O código da santidade está reunido num só lugar, no livro do Levítico, nos capítulos 17-26, assim: 17, proibição de ingerir sangue; 18, incesto e vícios contra a natureza; 19, leis morais, cultuais e humanitárias; 20, 1-6, culto supersticioso e mágico; 20, 7-9, respeito filial; 21, 20-21, adultério, vício contra a natureza, incesto; 20, 22-26, puros e impuros; 20, 27, feitiçaria; 21, os sacerdotes; 22, 1-16, pureza dos sacerdotes e dos leigos; 22, 17-23, qualidades e defeitos dos animais sacrificais; 23, festas; 24, 1-4, a lâmpada do santuário; 24, 5-9, o pão da proposição; 24, 10-23, blasfêmia; 25, 1-7, o ano sabático; 25, 8-55, o ano jubilar, escravidão; 26, 1-2, idosos e sábado; 26, 3-46, epílogo de bênçãos e maldições.

            A base da lei de santidade (Lv 17-26) parece remontar ao fim da época monárquica e representar os usos do templo de Jerusalém. Encontram-se nela contatos evidentes com o pensamento de Ezequiel, que aparece assim como o desenvolvimento de um movimento pré-exílico.

            A santidade é um dos atributos essenciais do Deus de Israel (Lv 11, 44-45; 19, 2; 20, 26; 21, 8; 22, 32s). A idéia primeira é a de separação, de inacessibilidade, de transparência que inspira temor religioso (Ex 32, 20+).

            Essa santidade comunica-se àquele que se aproxima de Deus ou lhe é consagrado: os lugares (Ex 19, 12+), as épocas (Ex 16, 23; Lv 23, 4), a arca (2Sm 6, 7+), as pessoas (Ex 19, 6+), especialmente os sacerdotes (Lv 21, 6), os objetos (Ex 30, 29; Nm 18, 9) etc.

            Devido à sua relação com o culto, a noção de santidade liga-se à de pureza ritual: a lei de santidade é igualmente lei de pureza. Contudo, o caráter moral do Deus de Israel espiritualizou essa concepção primitiva: a separação do profano torna-se abstenção do pecado, e à pureza ritual une-se a pureza da consciência (Is 6, 3+).

            O código da santidade possui o epílogo, mas não o prólogo histórico; como o prefácio costuma ser encontrado com tanta freqüência, é provável que ele tenha sido destacado quando o código da santidade foi inserido em seu contexto presente, que, na opinião dos críticos, não é o original. Ele não contém a lei civil nem criminal, mas é inteiramente religioso e cultual. Os críticos acham que se trata de uma compilação exílica (cerca do ano 550 a.C. ou em época monárquica posterior) de material cuja antiguidade é indeterminada, existindo talvez nele elementos tão vetustos quanto o que há de mais antigo nas coleções israelitas.

            Essa coletânea de textos possui uma formulação característica. A natureza do material sugere que o código de santidade em suas origens esteja mais intimamente ligado aos sacerdotes do que o código da aliança ou o código deuteronômico.

            O código da santidade tem uma série notável de preceitos morais em Lv 19 e as leis mais extensas de todas as existentes a respeito do matrimônio e da moralidade sexual.


A lei no código sacerdotal

            Ao contrário de outras coleções, esse compêndio de leis não se encontra num só lugar, mas espalhado em várias fontes. Exemplo: Lv 1-7, sacrifício; Lv 11-13, pureza e impureza; Nm 29, 29, festas.

            É característica sua colocar a lei dentro de um contexto histórico, isto é, relacionando a origem da instituição com algum acontecimento nem sempre histórico no seu sentido genuíno.

            Foi assim com a proibição de sangue depois do dilúvio (Gn 9, 1-7), a lei da circuncisão que se segue à aliança feita com Abraão (Gn 17, 9-14), o ritual da Páscoa por ocasião da saída do Egito (Ex 12), a lei do sacerdócio no Sinai (Ex 28, 1; 29, 37), a lei dos levitas na partida do Sinai (Nm 3-4; 8, 5-28) e outras leis referentes aos sacerdotes e levitas depois da rebelião de Coré (Nm 16).

            Há outras leis rituais e cultuais que não possuem um contexto particular nos acontecimentos e são atribuídas a Moisés. Com certeza, impossível fazer um julgamento geral sobre a antiguidade delas, cuja origem deve ser estabelecida individualmente para cada caso.

            Muito provável que esse código seja, em muitos casos, uma lei sacerdotal, pois algumas leis rituais e cultuais tinham em vista ninguém mais a não ser os sacerdotes.

            Os termos israelitas para a lei, no sentido original, referem-se a leis definidas de forma e conteúdo distintas.

            Tôrah é o vocábulo mais comum para designar a lei no judaísmo. A sua etimologia diz que ele deriva de yarah, jogar ou deitar sortes. Assim, o seu sentido original é o do oráculo divino, revelado pela sorte. Daí ele passa a significar uma resposta divina, de modo geral. Como as respostas divinas eram comunicadas pelos sacerdotes, ele chega a exprimir a instrução sacerdotal referente a preceitos cultuais e morais. É assim mencionada em Is 8, 20; Jr 2, 8; 18, 18; Am 2,4. A palavra enfatiza a lei como revelação de Yahweh, transmitida pelos sacerdotes.

            ’Edôt, testemunhos. Expressão técnica usada para os termos da aliança de Yahweh com Israel, e que designa ou as promessas de Yahweh ou as obrigações que ele impõe a Israel. Por isso, o rei usava uma fórmula escrita do ’edôt na sua coroação (2Rs 11, 12). A dição ressalta a vontade revelada de Yahweh nas leis e também a concepção de lei como obrigação da aliança.

            Mishpat, juízo, indica uma decisão judicial. Palavra aplicada às leis civis e criminais (Ex 21, 1). Precedente judicial como fonte da lei, pode ser identificado com a formulação casuística de lei. Diversamente de tôrah,’edôt e dabar, exprime a origem humana da lei.

            Hôd, estatuto, literalmente, algo que ficou gravado. A sua fonte parece ser mais a autoridade pública do que um precedente judicial ou um costume.

            Dabar, palavra, quer dizer um pronunciamento divino e é usado para leis tão solenes como o decálogo (Ex 20, 1; 24, 3, "palavras e juízos"). Dá especial destaque à lei como sendo a vontade revelada de Yahweh e pode, mais provavelmente, ser identificada com a formulação apodítica da lei.

            Miçwah, mandamento, traduz a ordem emitida pela autoridade, tanto divina quanto humana, e é um termo geral que se aplica a outras ordens e não apenas à lei no sentido estrito.

            Na época antiga não havia ordenação propriamente dita. Era a própria função que fazia o sacerdote entrar no domínio do sagrado, iniciando o seu sacerdócio, oferecendo sacrifícios no altar, o que é a sua função essencial (Lv 1 5+), com a participação de toda a comunidade e prestando obediência ao seu código de leis.


A lei no judaísmo

            A formulação da lei israelita é encontrada nas leis civis e criminais do código da aliança. O mesmo existe no código deuteronômico, com certas variantes. Em vez da oração condicional, emprega-se ou o particípio ou a oração relativa.

            Exemplo da primeira está em Ex 21, 15: "Quem ferir seu pai ou sua mãe será morto." A segunda é ilustrada por Lv 20, 10: "O homem que cometer adultério com a mulher do seu próximo deverá morrer, tanto ele como a sua cúmplice."

            Na maioria dos outros códigos, aparece um simples imperativo ou proibição na segunda pessoa do singular e no imperfeito. Essa formulação não encontra paralelo em outras coleções do antigo Oriente Médio. É empregado nas leis morais, rituais e cultuais, e não em leis civis e criminais. Isso é uma criação da crença religiosa israelita. Essas leis exprimem a vontade revelada de Yahweh e os termos da aliança.

            O rei israelita era um juiz, e não um legislador. A fonte da lei consuetudinária era o próprio costume; muitas leis existiam simplesmente porque constituíam a maneira como as coisas sempre tinham sido feitas. O juiz decidia com base no costume conhecido e aceito. Geralmente, a fonte da lei israelita era a tradição determinada pelo juiz: o rei, o ancião e o sacerdote.

            As coleções israelitas são todas atribuídas à revelação que Yahweh fez a Moisés. A obrigação do cumprimento de sua lei decorria da aliança, de que a vida sob a submissão à lei constituía o dever que as promessas da aliança de Yahweh lhes impuseram.

            Em Israel não existia distinção entre a lei secular e a lei religiosa. Toda a lei é encarada como um dever religioso e impõe uma obrigação sagrada. Yahweh é quem recompensa e castiga sua observância ou a sua violação.

            A concepção da lei como a vontade revelada de Deus não encontra semelhança em outras coleções do antigo Oriente Médio. Tanto Hamurabi como Lipit-Ishtar recebem dos deuses a autoridade necessária para promulgar leis e a sabedoria requerida para formulá-las; mas as leis são resultantes de sua própria obra, de sua obra pessoal.

            Depois do exílio, a lei deixou de ser a regra que regia uma sociedade política independente; o judaísmo preservou-a, no entanto, fazendo dela um guia para a vida. O termo Torá (Tôrah) é usado para descrever toda a lei, uso que aparece também em textos pré-exílicos (Jr 8, 8; 9, 12; Os 4, 6; 5) e chega a exprimir o Pentateuco (2Mc 15, 9; Eclo 1, prólogo 1. 8. 24).

            Os escribas pós-exílicos identificam a lei com a sabedoria (Eclo 24; 39, 1-11) e nela encontram todo o conhecimento, humano e divino. A alegria dos judeus diante da lei reflete-se na Torá e nos salmos 19 e 119.

            Os rabinos incluíam a Torá entre os seres que existiam antes da criação. Por isso, a observância da lei era perfeição. Surgiu no judaísmo uma escola de fé que interpretava as obrigações da lei no sentido mais rigoroso.

            Para proteger o cumprimento da lei, seus adeptos "construíram um muro" em torno da lei; o muro consistia em pareceres ou normas legais que ampliavam as obrigações da lei muito além do sentido das palavras e, assim, tornavam-na mais difícil de ser violada.

            Essa, a "lei oral", à qual se atribuía o segundo lugar em autoridade somente em relação à própria Torá, e cuja origem, mediante uma construção artificial, remontava ao próprio Moisés. Ela estava preparada para incluir 613 "mandamentos" diferentes.


A lei no Novo Testamento

            No século II a.C., Ptolomeu II Filadelfo (238-246 a.C.) desejava ter, na grande biblioteca que fundara em Alexandria, uma versão do hebraico para o grego dos livros sagrados dos judeus. A seu pedido, 72 homens, seis de cada uma das 12 tribos, foram enviados a Jerusalém para fazer a tradução (LXX), que foi realizada para a grande comunidade judaica daquela cidade.

            A partir dessa época, foi introduzido o termo grego nomos (lei), para trasladar tôrah, significando a lei como tal, o pentateuco, o Antigo Testamento completo, o decálogo ou uma lei particular do pentateuco.

            Jesus observou a lei e nunca aceitou a acusação de que a houvesse violado; quando era incriminado disso, insistia que se tratava da lei oral, tradição humana (Mt 15, 3-6; Mc 7, 8s.13; Cl 2, 8), e não da torá, em que se baseava a censura (Mt 15; Mc 7).

            A atitude de Jesus em face da lei deve ser descrita como negativa. Os publicanos e os pecadores precedem os escribas e fariseus no reino dos céus (Mt 21, 28-32), e os pecadores arrependidos são melhores do que os justos que não têm arrependimento (escribas e fariseus, Lc 15, 1-10).

            As bem-aventuranças (Mt 5, 3-10) não contêm nenhum elogio à observância da lei. O reconhecimento por parte do Pai celeste depende da confissão de Jesus (Mt 10, 32s; Lc 12, 8s). Assim, Jesus declara-se o senhor do sábado (Mt 12, 8; Mc 2, 28; Lc 6,5). O publicano arrependido é perdoado, ao passo que o fariseu justo não o é (Lc 18, 9-14). Aqueles que obedecem a todas as ordens do seu senhor são servos inúteis que não fazem mais do que o seu dever (Lc 17, 7-10). Os escribas e fariseus apropriaram-se da chave do reino dos céus, de modo que nem eles entram nem permitem que outros entrem (Mt 23, 13: Lc 11, 52).

            A lei em relação às palavras de Jesus assemelha-se a um remendo de pano novo colocado numa roupa velha, ou ao vinho novo guardado em odres velhos (Mt 9, 16-17; Mc 2, 21-22) Lc 5, 36-37). Jesus, como filho do reino, está livre das obrigações impostas pela lei (Mt 17, 24-27). Ele não hesita em repetir e confirmar a lei (Mt 5, 21-48), e o tratamento que lhe dá aqui não tem nada da maneira rabínica; sua antítese é: "Dizia-se" e "Eu digo".

            Por outro lado, a atitude de Jesus não é a de uma rejeição puramente negativa. Sua missão não consiste em anular a lei, mas em levá-la ao seu cumprimento pleno, e entra-se no reino dos céus mediante a observância da lei (Mt 5, 17-20). Quando lhe perguntaram como se alcança a vida eterna, sua resposta foi: "observa os mandamentos" (Mt 19, 16-19; Mc 10, 17-19; Lc 18, 18-20). Ele reduz toda a lei ao mandamento do amor a Deus e ao próximo (Mt 22, 34-40; Mc 12, 28-34; Lc 10, 25-28). A justiça de seus discípulos deve superar a dos escribas e fariseus (Mt 5, 20). Os escribas e fariseus capricham nas minúcias da observância e omitem a virtude essencial; eles deveriam praticar as primeiras sem desprezar a segunda (Mt 23, 23s).

            Essa dupla atitude deve ser relacionada com a concepção mais larga da missão de Jesus. Ele rejeita a lei como um meio suficiente de chegar-se à justiça; além da lei, a pessoa deve aceitar Jesus como alguém cujas palavras não são apenas iguais à lei, mas como alguém que vem como um novo Moisés para revelar o Pai.

            A lei em si é um meio insuficiente para se atingir a Deus; ela precisa ser cumprida plenamente, alcançar sua plenitude nele, Jesus. A lei é fundamentalmente aquilo que Jesus insiste que ela é: a vontade revelada de Deus. Os que aceitam essa revelação não podem fazer dela um pretexto ou uma desculpa para rejeitar a plenitude da revelação de Deus para a qual a lei se orienta.


A lei nos escritos paulinos

            A atitude de Paulo diante da lei é universalmente atingida pelo problema da lei aplicada ou não aos gentios convertidos ao cristianismo.

            A primeira reação da comunidade cristã em face da aceitação dos gentios foi a de que esses deveriam primeiro tornar-se judeus para depois se fazerem cristãos; é lógico que os judeus os julgavam, colocando-se na situação de uma comunidade judaica.

            A Igreja primitiva, porém, rejeitou essa exigência; no Concílio de Jerusalém aceitou a declaração de Pedro, de que tanto os gentios quanto os judeus se salvavam pela graça de Jesus Cristo (At 15, 11), e a afirmação de Paulo, de que o homem se torna justo não pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo (Gl 2, 16).

            O problema especulativo do sentido e do valor da lei não ficou resolvido tão facilmente quanto o problema prático de sua observância. Porque a lei é para Paulo a vontade revelada de Deus e, por isso, seria impossível rejeitá-la.

            Para ele era evidente que a vida e a santidade vêm por meio de Jesus Cristo e não mediante a lei (Gl 2, 21). Se o batismo é uma morte para a vida que se vivia antes, a pessoa batizada é libertada do jugo da lei (Rm 7, 1-6). Jesus Cristo realizou o que seria impossível a lei fazer: libertar do pecado, que também é uma "lei" (Rm 8, 1-3).

            Paulo recorre à história de Israel para mostrar que a lei não constituía uma barreira efetiva ao pecado (Rm 2, 17-24); na verdade, a lei não é melhor do que a "lei" que os gentios trazem em seus corações e que os faz praticar as obras da lei mesmo sem conhecê-la (Rm 2, 14-16).

            O Espírito vem pela fé e não pela lei (Gl 3, 2). A lei "provoca a ira" no sentido de que revela o pecado, manifesta o que há de pecado no homem e a importância deste para superar o pecado (Rm 4, 15; 5, 20; 7, 9; 2Cor 3, 6; Gl 3, 19). Porque a lei como reveladora do pecado é um instrumento de condenação, e não de salvação.

            O evento cristão equivale, pois, a uma nova criação (Gl 6, 15); os cristãos morreram para a lei (Rm 7, 4) com Cristo (Gl 2, 19), e, como Cristo é o novo Adão (Rm 5,15-19), a velha criação foi superada, tornou-se ultrapassada (Rm 10, 4).

            A lei, pela revelação que faz do pecado, trouxe uma condenação; ninguém está sujeito a ela (Gl 3, 13). Portanto, o destino da lei não era o de salvar o homem, mas de conduzi-lo a Jesus, o salvador; a lei era o pedagogo que levava as crianças à escola. Quando a criança atinge a maioridade, o trabalho do pedagogo termina. Aqui, a concepção que Paulo tem da lei atinge uma síntese.

            Paulo repete a palavra em que Jesus reduzia toda a lei ao mandamento do amor (Gl 5, 14). Da mesma forma, como um rabino experimentado, ele cita oportunamente a lei para ilustrar algum ponto, seguindo a maneira usada nas discussões rabínicas (1Cor 9, 8; 14, 21-34).

            A lei é freqüentemente mencionada em Hb, mas a ênfase recai sobre a lei natural e cultual, que explica a dignidade e a função do sacerdócio. O sacerdócio de Jesus é apresentado e explanado como um sacerdócio de Israel. Também aqui é aplicado o princípio da insuficiência da lei (Hb 7, 11.18s; 10, 1).


A lei em Tiago e em João

            A antítese bem conhecida de Tiago não é um contraste entre a fé e a lei, mas entre a fé e as obras (Tg 2, 14-26).

            A sua epístola é dirigida às "doze tribos da Diáspora" (Tg 1, 1), que são os cristãos de origem judaica, dispersos no mundo greco-romano. O corpo da carta confirma que esses destinatários sejam convertidos do judaísmo.

            Ele as inspira na literatura sapiencial, para dela extrair lições de moral prática. Mas depende profundamente dos ensinamentos do evangelho, e seu escrito não é puramente judaico.

            Na epístola encontram-se o pensamento e as expressões prediletas de Jesus. Tiago é um sábio judeu-cristão que repensa as máximas da sabedoria judaica em função do cumprimento que elas encontraram na boca do Mestre.

            Seu primeiro assunto exalta os pobres e adverte severamente os ricos (Tg 1, 9-11; 1, 27-2, 9; 4, 13 – 5, 6): esta atenção para com os humildes, os favorecidos de Deus, prende-se à antiga tradição bíblica e de modo todo especial às bem-aventuranças do Evangelho (Mt 5, 3+).

            O segundo tema insiste na execução das boas obras e acautela contra a fé estéril (Tg 1, 22-27; 2,14-26).

            Para Tiago, o Evangelho é uma nova lei, uma lei perfeita de liberdade (Tg 1, 25). Seria falsa uma concepção da liberdade cristã que admitisse não haver obrigações impostas pela lei aos cristãos; deve-se obedecer a toda a lei (Tg 2, 8-11; 4, 11s). Tiago evidentemente não quer dizer com isto a Torá inteira; segundo Jesus e Paulo, a "lei régia" está reduzida ao único preceito do amor (Tg 2, 8), e para os cristãos ela inclui todas as obras da lei que o amor requer.

            O evangelho de João distingue-se dos outros evangelhos por numerosos traços: milagres que eles ignoram, como o milagre da água transformada em vinho em Caná (Jo 2, 1-12) ou a ressurreição de Lázaro (Jo 11, 1-44), longos discursos, como o que vem depois da multiplicação dos pães (Jo 6, 26-58), cristologia muito mais evoluída, que insiste particularmente sobre a divindade de Cristo (Jo 1, 1; 20, 29).

            Importa a João mostrar o sentido de uma história, que é tanto divina quanto humana, história e também teologia, que se desenvolve no tempo, porém mergulha na eternidade.

            Ele quer contar fielmente e propor à fé dos homens o acontecimento espiritual que se realizou no mundo pela vinda de Jesus Cristo: a encarnação do Verbo para a salvação dos homens.

            Os milagres contados são "sinais" que revelam a glória de Cristo e simbolizam os dons que ele traz ao mundo (purificação nova, pão vivo, luz e vida).

            João relata duas discussões sobre o sábado, mas a questão da lei não é importante para ele; as divergências dão oportunidade às discussões que as seguem (Jo 5, 16ss; 9, 14). Para João, a lei é a revelação (Jo 1, 17). Ela é uma revelação que fala de Jesus e de seu testemunho (Jo 1, 45; 5, 39s). Jesus recorre à lei como um argumento em favor dele próprio (Jo 8, 17; 10, 34; 15, 25). Diante da breve alusão em 1, 17, vê-se claramente que João concebe Jesus como a nova lei que vem superar a antiga; e, para expressar isso, ele escolhe o termo legal hebraico que designa a mais solene promulgação da vontade revelada de Deus, a "palavra".


A lei no nosso direito

            Ela é a fonte principal do nosso ordenamento jurídico.

            Regra escrita, geral, abstrata, impessoal, que tem por conteúdo um direito objetivo, no seu sentido material.

            Dependendo de sua destinação, é chamada de lei constitucional, administrativa, civil, penal, processual, tributária, comercial, eleitoral, previdenciária, trabalhista etc.

            Como regra jurídica, é todo o ato normativo imposto coativamente pelo Estado aos particulares, regulando as relações entre ambos e dos particulares entre si.

            Tem generalidade, por dirigir-se a todos os cidadãos, indistintamente; imperatividade, ao impor um dever, uma conduta; autorização, ao determinar que o lesado pela violação exija o cumprimento ou a reparação pelo mal causado; permanência, pois deve perdurar até ser revogada por outra lei; emanação de autoridade competente, ao seguir as competências legislativas previstas constitucionalmente (CF, arts. 22-24).

            Não há qualquer hierarquia entre leis federais, estaduais, distritais e municipais. Cada ente federativo deve legislar sobre os assuntos que estejam incluídos entre suas atribuições constitucionais. Essa, a razão de não haver a possibilidade jurídica de normas contraditórias.

            É inconstitucional a publicada por um ente da Federação, fora de suas atribuições, não podendo prevalecer sobre qualquer outra.

            Se a União legislar sobre assunto de interesse local, estará invadindo a competência específica dos municípios (CF, art. 30, I), não podendo prevalecer sobre a norma municipal. Somente em se tratando de competência concorrente é que existe prevalência da União para a edição de normas gerais, em razão de expressa disposição constitucional (CF, art. 24, §1º).

            Igualmente, a legislação estadual não poderá contrariar a federal já promulgada. Inexistindo legislação federal, os estados poderão exercer a competência legislativa plena. Mas a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspenderá a eficácia de lei estadual no que lhe for contrário (CF, art. 24, §§ 2º a 4º).

            Por serem imperativas, proíbem determinadas condutas de forma absoluta, não podendo ser derrogadas pela vontade dos interessados. Não podem ser alterados, por exemplo, os impedimentos matrimoniais (CC, art. 1.521) nem dispensado um dos cônjuges dos deveres que a lei impõe a ambos (CC, art. 1.566).

            Se, no entanto, forem dispositivas, as partes poderão estipular, antes de celebrado o casamento, quanto aos bens, o que lhes aprouver (CC, art. 1.539).

            Serão perfeitas, quando impuserem a nulidade do ato como punição ao infrator. É assim nulo o negócio jurídico praticado por absolutamente incapaz (CC, art. 166, I).


O nosso bicameralismo

            A corrupção tem sido um dos temas de maior evidência na imprensa brasileira, nos últimos meses. É difícil pensar hoje nos nossos parlamentares sem que nos venha à mente a imagem do mensalão e dos crimes de colarinho-branco (white-collar crime).

            Apesar de tudo isso, não podemos esquecer que a organização institucional continua firme e sólida, pois os poderes da União são independentes e harmônicos (CF, art. 2º).

            Na Inglaterra existe o bicameralismo aristocrático, em que a Câmara Alta, dos lordes (The House of Lords), é integrada pelos nobres, e a Câmara Baixa, dos comuns (The House of Commons), é composta pelos mandatários do povo.

            É da tradição constitucional brasileira a organização do poder legislativo em dois ramos, sistema denominado bicameralismo, que vem desde o Império, sendo o Senado Federal o local representativo dos estados federados ao lado da Câmara dos Deputados, que representa o povo (CF, art. 44).

            As limitações contidas nas Constituições de 1934 e 1967, que tenderam para o unicameralismo, sistema segundo o qual o poder legislativo é exercido por uma única câmara, foram uma exceção política.

            A própria arquitetura de Brasília traz à memória a adoção desse sistema bicameral. O prédio do Congresso Nacional é formado por duas cúpulas distintas, uma voltada para baixo, local de reflexão da autonomia política dos estados-membros da Federação, na qual se reúnem os senadores, e a outra voltada para cima, aberta aos clamores populares, onde se reúnem os deputados federais.

            Na época do Império, apesar do caráter unitário do estado brasileiro, já era usado o bicameralismo. O poder legislativo era formado por duas casas legislativas: o Senado, integrado por membros vitalícios escolhidos pelo imperador dentro de lista tríplice formada em cada província, e a Câmara, composta por representantes eleitos.

            Nas demais esferas do poder, estaduais e municipais, no Brasil, é adotado o unicameralismo, com a existência de uma única casa legislativa. Nos estados, o poder legislativo é exercido pela Assembléia Legislativa (CF, art. 27); no Distrito Federal, pela Câmara Legislativa (CF, art. 32); e nos municípios, pela Câmara Municipal (CF, art. 29).

            Essa, a dogmática constitucional, desde a promulgação da constituição americana. No moderno sistema de partidos, não cabe mais falar em câmaras representativas dos estados, que é uma obsolescência.

            O objetivo principal dos fundadores dos Estados Unidos da América era construir uma república que promovesse a estabilidade e protegesse os direitos de propriedade privada contra as tendências niveladoras das maiorias. Por esse motivo, adotaram controles, criaram o colégio eleitoral para escolha do presidente, elaboraram um poderoso judiciário e confiaram a seleção de senadores aos legislativos dos vários estados. Com a eleição de Thomas Jefferson (1743-1826) para a presidência, esse acontecimento é, muitas vezes, chamado de revolução jeffersoniana. Nos Estados Unidos da América, essa câmara representativa dos estados resultou de um compromisso histórico, o que não existiu no Brasil.

            No sistema brasileiro não há predominância substancial de uma câmara sobre a outra. No entanto, a Câmara dos Deputados goza de certa primazia relativamente à iniciativa legislativa, pois é perante ela que é promovida a iniciativa do processo de elaboração das leis pelo presidente da República, pelo Supremo Tribunal Federal, pelo Superior Tribunal de Justiça e pelos cidadãos (CF, arts. 61, § 2º, e 64).


A Câmara dos Deputados

            É, sem dúvida, o ramo mais popular do Poder Legislativo, pois compõe-se de representantes do povo, eleitos em cada estado e no Distrito Federal pelo sistema proporcional (CF, art. 45) ao número de votos obtido nas eleições.

            A sua quantidade é fixada por lei complementar (LC 78/93) proporcionalmente à população, respeitando-se os números mínimo e máximo de representantes para cada unidade da Federação.

            O seu número máximo é 513. Mas o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), no ano anterior às eleições, deve fornecer a atualização estatístico-demográfica das unidades da Federação, para que o Tribunal Superior Eleitoral possa fixar o número de cargos postos em disputa.

            Os limites mínimo (oito) e máximo (setenta) têm gerado sérias, graves e injustas disparidades na representação dos estados mais populosos. Estados com uma população bem menor acabam com representação superior aos mais populosos. Dessa forma, o voto oriundo de um estado onde é assegurada a representação mínima possui valor bem superior ao do eleitor de estados mais desenvolvidos, que têm limite máximo de representação fixada pela Constituição.

            Nos Estados Unidos da América não existem esses limites mínimo e máximo de representação da vontade popular no órgão legislativo.

            Parece-me que a atual representação brasileira na Câmara dos Deputados fere o princípio do voto igual para todos os cidadãos (CF, art. 14), que é a aplicação particular do princípio democrático da igualdade em direitos de todos perante a lei.

            Um estado com 400 mil habitantes terá oito representantes, enquanto um de 30 milhões terá apenas 70. Isso significa um deputado para cada 50 mil habitantes (1:50.000) para o primeiro e um para 428.571 habitantes (1:428.571) para o segundo.

            Isso não é proporção, em qualquer linguagem aritmética ou algébrica, mas uma total desproporção,

            Miguel Reale (Parlamentarismo brasileiro, 1962, p. 31) diz que

            "[...] tal fato constitui verdadeiro atentado ao princípio da representação proporcional. A Câmara dos Deputados deve ser o espelho fiel das forças demográficas de um povo; nada justifica que, a pretexto de existirem grandes e pequenos estados, os grandes sejam tolhidos e sacrificados em direitos fundamentais de representação."

            Citando Sampaio Doria, Miguel Reale, na obra referida, diz que esse autor já profligava a desproporcionalidade no regime da Constituição de 1946, porque "a representação é do povo, sem distinção de estado"; a "lei não distingue o nascimento, ou o simples domicílio, para reconhecer, no direito de uns, mais valor que no direito de outros".


O Senado Federal

            S.P.Q.R. eram as iniciais da frase latina Senatus Populusque Romanus, cuja tradução em português é o senado e o povo romano. Era o lema dos estandartes das legiões romanas e o nome oficial da república romana. Figurava nas insígnias de guerra, nos edifícios públicos e nos ofícios.

            Diz a lenda que Rômulo, fundador da cidade de Roma, que fora amamentado por uma loba, é quem fundara o senado, o que havia feito com um grupo de 100 patrícios.

            O senado romano (Senatus) foi a mais remota assembléia política da Roma antiga, com origem nos Conselhos dos Anciãos da antiguidade oriental (4000 a.C.). Era a assembléia dos patrícios que constituía o Conselho Supremo de governo na antiga Roma. Um conselho assessor integrado por anciãos, donde vem o seu nome (senex, senectus, que quer dizer ancião, velhice, cabelos brancos).

            Durante a monarquia ou realeza, o senado ou conselho dos anciãos era o conselho dos reis, a quem estava subordinado. Sua competência era consultiva relativamente ao rei e confirmatória referentemente aos comícios, para cuja validade deveria obter o patrum auctoritas.

            Na fase republicana (de 510 a 27 a.C.), o senado tornou-se a mais alta autoridade do estado. Vitalícios, os senadores (senatores ou patres) fiscalizavam os cônsules, controlavam a justiça, as finanças públicas, as questões religiosas e dirigiam a política externa. Era o verdadeiro centro do povo, pois os magistrados tinham interesse em consultá-lo, antes de tomar deliberações mais importantes.

            Em 18 a.C., Augusto reduziu o número dos senadores a 600. Durante o principado, o senado manteve-se aparentemente em posição de destaque. Na realidade, porém, sua atividade era inspirada e orientada pelo príncipe (princeps), que detinha os poderes fundamentais da república, como a política externa.

            Essa, a origem histórica do nosso Senado.

            O dogma federalista brasileiro exigiu a necessidade do Senado como Câmara que representa os estados federados. Assim é que a Constituição de 1988 declara que o Senado Federal se compõe de representantes dos estados e do Distrito Federal, elegendo, cada um, três senadores (com dois suplentes cada), pelo princípio majoritário, para um mandato de oito anos, renovando-se a representação de quatro em quatro anos, alternadamente, por um e dois terços (art. 46).

            Quando postos dois cargos em disputa, os eleitores votam em dois candidatos para o Senado, sendo eleitos os dois que obtiverem o maior número de votos. Em razão de sua finalidade constitucional, todos os estados membros da Federação possuem igual número de representantes. Com 26 estados membros e um Distrito Federal, o Brasil tem 81 senadores.

            Não faz sentido o argumento da representação dos estados pelo Senado fundado na idéia, implantada inicialmente nos Estados Unidos da América, de que se formara de delegados próprios de cada estado, pelos quais participavam das decisões federais.

            Há muito não existe isso nos Estados Unidos e jamais existiu no Brasil, porque os senadores são eleitos diretamente pelo povo, tal como os deputados, por via de partidos políticos.

            A representação é partidária. Os senadores integram a representação dos partidos tanto quanto os deputados. Não raro se dá o caso de senadores de um estado, eleitos pelo povo, serem de partidos adversários do governador e defenderem, no Senado, programas diversos deste.

            Como conciliar tais situações com a tese da representação do estado?


As Casas do Congresso

            Ao ouvir diariamente noticiário sobre assuntos ligados aos deputados e senadores, pensa-se que eles têm poderes absolutos, com possibilidades de decisão incontrolável.

            A concepção, porém, não é bem assim. As Casas do Congresso Nacional, ou seja, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, possuem órgãos internos destinados a ordenar seus trabalhos.

            A cada uma delas cabe elaborar seu regimento interno, dispor sobre sua organização, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços e fixação da respectiva remuneração, observados apenas os parâmetros estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias (arts. 51, III e IV, e 52, XII e XIII).

            Apesar de discreta a respeito do tema, a nossa Constituição insere disposições sobre a formação e competência básica de seus principais órgãos internos (art. 57, § 3º, II): Mesa, Comissões, Polícia e Serviços Administrativos.

            É assim que existem a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa do Senado Federal e a Mesa do Congresso Nacional, seus órgãos diretores. Sua composição é matéria regimental, e cada Casa a disciplina como melhor lhe parecer, tendo presidente, dois vice-presidentes, quatro secretários e quatro suplentes de secretários. A representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares, que participam da respectiva Casa, é uma imposição constitucional (art. 58, § 1º).

            O princípio geral da organização do Poder Legislativo afirma a exigência de que a autonomia das Casas Legislativas imponha sejam seus órgãos diretores compostos de membros pertencentes a seus quadros eleitos pelos seus pares (art. 57, § 4º).

            Com o texto constitucional em vigor, está claro que o presidente não pode pleitear sua recondução ao mesmo cargo, embora possa para vice-presidente, enquanto este pode pretender eleger-se presidente ou secretário e este a qualquer dos cargos anteriores.

            Isso só vale dentro da mesma legislatura, ou se aplica também na passagem de uma para outra? O texto proíbe recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subseqüente, o que significa igualmente proibir a reeleição de membros da última Mesa de uma legislatura para a primeira da seguinte.

            A Mesa do Congresso Nacional não existe por si, porque se constitui de membros das Mesas do Senado e da Câmara. Ela é presidida pelo presidente do Senado Federal, e os demais cargos são alternadamente exercidos pelos ocupantes de cargos equivalentes na Câmara dos Deputados e no Senado (art. 57, § 5º).

            Sua função é dirigir os trabalhos do Congresso Nacional, quando suas Casas se reúnem em sessão conjunta. Tem, no entanto, importante atribuição (art.140): a de designar Comissão para acompanhar e fiscalizar a execução de medidas referentes ao estado de defesa e ao estado de sítio.

            Entre as atribuições das Mesas há algumas (arts. 50, 55, §§ 2º e 3º, 103, II e III, e 139, parágrafo único) referentes à convocação ou comparecimento de ministros, à perda de mandatos de congressistas, à propositura da ação direta de inconstitucionalidade, à liberação de pronunciamento de parlamentares durante o estado de sítio.


As Comissões do Congresso

            Permanentes, temporárias, temáticas, especiais ou técnicas, de inquérito, mistas e de recesso, as comissões são os organismos constituídos em cada Câmara encarregados de estudar e examinar as proposições legislativas e apresentar pareceres, conforme afirma Joseph-Barthélemy (Essai sur le travail parlementaire et les systèmes des comissions, Paris, 1934).

            A Constituição realçou o seu papel.

            As permanentes são organizadas em função da matéria de sua competência.

            Cabem-lhe (art. 58, § 2º): discutir e votar projetos de lei que dispensar... a competência do plenário... (inc. I); realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil (inc. II); convocar Ministros de Estado para prestar informações sobre assuntos inerentes a suas atribuições (inc. III); receber petições, reclamações, representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões de autoridades ou entidades públicas (inc. IV); solicitar depoimento de qualquer autoridade ou cidadão (inc. V); apreciar programas de obras, planos nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento e sobre elas emitir parecer (inc. VI).

            O ideal, às vezes, é inatingível, mas se as comissões usarem bem dessa última atribuição (inc. VI), já teremos aí relevante instrumento de controle da Administração.

            As temporárias extinguem-se com a terminação da legislatura ou, antes dela, quando constituídas para opinarem sobre determinada matéria, tenham preenchido os fins a que se destinam.

            As mistas, compostas de deputados e senadores, devem estudar assuntos expressamente fixados, especialmente os que devem ser decididos pelo Congresso Nacional, em sessão conjunta de suas Casas.

            À mais poderosa, a comissão mista permanente (art. 166, § 1º), cabe examinar e emitir parecer sobre os projetos de plano plurianual, de lei de diretrizes orçamentárias, de orçamento anual e de créditos adicionais; as contas apresentadas anualmente pelo presidente da República; os planos e programas nacionais, regionais e setoriais; solicitar às autoridades governamentais esclarecimentos necessários sobre despesas não autorizadas.

            Bingos, correios, mensalão etc. lembram-nos as comissões parlamentares de inquérito, CPIs. Bastante prestigiadas pela Constituição vigente, receberam poderes de investigação próprios das autoridades judiciárias (art. 58, § 3º). Sem limite para sua criação, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, em conjunto ou separadamente, poderão criar tantas comissões quantas julgarem necessárias.

            Seus requisitos constitucionais são: requerimento de pelo menos um terço de membros de cada Casa, para as respectivas comissões, ou de ambas, para as comissões em conjunto (comissões mistas); ter por objeto a apreciação de fato determinado e ter prazo certo de funcionamento.

            Um dos problemas mais sérios das CPIs consistiu sempre na ineficácia jurídica de suas conclusões, normalmente dependentes de apreciação de plenário da respectiva Casa ou do Congresso, que, não raro, as enterrava nos escaninhos das injunções políticas.

            O remédio constitucional para esse mal resolveu que "[...] suas conclusões, se for o caso, [sejam] encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores" (art. 58, § 3º).

            Resumindo, as conclusões das CPIs são decisões definitivas, cuja executoriedade independe de apreciação ou apuração de outro órgão.


Funcionamento do Congresso Nacional

            Legislaturas, sessões legislativas ordinárias e extraordinárias, sessões (reuniões) ordinárias e extraordinárias: é assim que o Congresso Nacional desenvolve suas atividades.

            A legislatura dura quatro anos. Vai do início do mandato dos membros da Câmara dos Deputados até o seu término (CF, art. 44, parágrafo único). Isso porque o Senado é contínuo por ser removível apenas parcialmente em cada período de quatro anos (art. 46, § 2º).

            Os trabalhos legislativos são realizados nas sessões legislativas ordinárias, cujos períodos vão de 15 de fevereiro a 30 de junho e de 1º de agosto a 15 de dezembro (art. 57), não se interrompendo sem a aprovação do projeto de lei de diretrizes orçamentárias (art. 57, § 2º).

            Os espaços de 16 de dezembro a 14 de fevereiro constituem o recesso parlamentar. Originariamente, os parlamentares se afastavam das reuniões durante certo tempo, para retornar aos seus distritos ou circunscrições eleitorais, a fim de confirmar seus mandatos, uma necessidade parlamentar.

            Para a sessão legislativa extraordinária, o Congresso Nacional é convocado pelo presidente do Senado Federal, em caso de decretação de estado de defesa ou de intervenção federal, e pelo presidente da República, em caso de urgência ou interesse público relevante (art. 57, § 6º, I e II).

            Nessa sessão legislativa extraordinária o Congresso Nacional só poderá deliberar sobre matéria para a qual foi convocado (art. 57, § 7º), vedado o pagamento de parcela indenizatória em valor superior ao subsídio mensal.

            Os regimentos internos das Casas do Congresso Nacional disciplinam as sessões ordinárias, divididas em pequeno expediente, grande expediente e ordem do dia, nas quais as Câmaras debatem, votam e deliberam.

            É nesse período que se realizam as sessões solenes de comemoração de datas históricas ou de recepções de personalidades estrangeiras em visita ao país.

            O princípio do bicameralismo é que as Câmaras do Congresso Nacional funcionam e deliberam cada qual para si, separadamente. Mas a Constituição prevê hipóteses em que se reunirão em sessão conjunta (art. 57, § 3º). Isso se dará para a inauguração da sessão legislativa, elaborar o regimento comum e regular a criação de serviços comuns, receber o compromisso do presidente e do vice-presidente da República (art. 78), conhecer do veto e sobre ele deliberar (art. 66, § 4º).

            A Constituição em vigor afastou a sistemática anterior de discussão e votação de projetos de leis orçamentárias em sessão conjunta do Congresso Nacional.

            O próprio art. 66 estabelece que tais leis serão apreciadas pelas duas Casas do Congresso Nacional. Igualmente, as emendas a elas oferecidas serão apreciadas pelo plenário das duas Casas do Congresso Nacional. Assim, a legislação de urgência é discutida e votada pelas duas Casas separadamente (arts. 62 e 64, §§ 1º e 4º), bem como as emendas constitucionais (art. 60, § 2º).

            Quorum é o número mínimo exigido para reunião e votação em órgãos colegiados. Sem ele não há sequer a possibilidade de instalação da reunião. As deliberações de cada Casa ou do Congresso serão tomadas por maioria de votos, presente a maioria de seus membros (art. 47). E a Constituição contempla hipóteses de deliberação por maioria absoluta (arts. 55, § 2º, 66, § 4º, e 69), por três quintos (art. 60, § 2º) e por dois terços (arts. 51, I, e 52, parágrafo único) dos membros da Casa.


Atribuições do Congresso Nacional

            A função típica do Congresso Nacional é legislar, elaborar, discutir e aprovar projetos de leis, sujeitas à sanção ou veto do presidente da República, em todas as matérias de competência legislativa da União (CF, art. 48).

            Há outras, não sujeitas à sanção ou veto do presidente da República (arts. 49, 51 e 52), deliberativas, de caráter concreto, feitas por resoluções ou decreto legislativo.

            Merecem destaque a fiscalização e controle dos atos do Poder Executivo (art. 49, X), incluídos os da administração indireta. São eles: a) pedidos de informação aos ministros, importando em crime de responsabilidade a recusa (art. 50, § 2º); b) instalação de CPI, com poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, para apuração de fato certo por prazo determinado (art. 58, § 3º); c) controle externo dos recursos públicos, com o auxílio do Tribunal de Contas da União (art. 71) e de uma comissão mista permanente de orçamento (arts. 166, § 1º, e 72); d) tomada de contas pela Câmara dos Deputados, quando o presidente não as apresentar no prazo assinalado (arts. 51, II, e 84, XXIV).

            No julgamento de crime de responsabilidade, a Câmara dos Deputados funciona como órgão de admissibilidade do processo e o Senado Federal, como tribunal político, sob a presidência do presidente do Supremo Tribunal Federal (arts. 51, I, 52, I, e 86).

            Mediante a elaboração de emendas constitucionais (art. 60), o Congresso Nacional assume o poder constituinte de reforma que lhe foi atribuído pelo poder constituinte originário.

            Exclusivas são certas atribuições de cada Casa Legislativa do Congresso Nacional, não precisando ser aprovadas pela outra, para que se tornem válidas. É o caso da autorização da instauração de processo contra o presidente, o vice-presidente, os ministros de Estado (art. 51, I); o julgamento no processo de impeachment de altas autoridades federais pela prática de crimes de responsabilidade (art. 52, I e II); a aprovação prévia, por voto secreto, de ministros dos Tribunais Superiores e do Tribunal de Contas e de outras autoridades (art. 52, III e IV).

            As atribuições da Câmara dos Deputados são exclusivas porque insuscetíveis de delegação, e ela as exerce sozinha. É assim que elabora seu regimento interno, dispõe sobre sua organização, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção de cargos e, nos termos do art. 89, VII, elege dois dos membros (cidadãos) do Conselho da República (art. 51).

            O Senado Federal tem atribuições privativas mais numerosas, como processar e julgar o presidente e o vice-presidente da República nos crimes de responsabilidade; processar e julgar os ministros do STF, os membros do Conselho Nacional de Justiça e os do Conselho Nacional do Ministério Público, o procurador-geral da República e o advogado-geral da União, também nos crimes de responsabilidade (art. 52, I e II).

            Como nem tudo é perfeito, foi incluído no art. 52, XV, a avaliação periódica do funcionamento do sistema tributário nacional em sua estrutura e componentes e o desempenho das administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios. Trata-se de uma interferência inconstitucional na autonomia das entidades federativas por via de emenda constitucional. Avaliar com que finalidade? Para quê? Certamente não é avaliar apenas pela avaliação em si.

            Desde 1934, os ministros de Estado poderão ser convocados para prestarem, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado, perante órgãos legislativos.

            Agora, podem ser convocados quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República (art. 50). Providência muito pertinente, pois muitos de seus titulares ficavam imunes àquela convocação congressional.


O processo legislativo

            Seu objeto é a elaboração de emendas constitucionais, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções (CF, art. 59) É, pois, o conjunto de atos preordenados, visando a criação de normas jurídicas.

            Faculdade que se atribui a alguém ou a algum órgão, para apresentar projetos de lei ao Legislativo, é a iniciativa legislativa.

            O Presidente da República tem a iniciativa das leis que fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas, criação de cargos, organização administrativa e judiciária, matéria tributária, servidores públicos, criação, estruturação dos Ministérios e muitas outras questões (art. 61).

            O Supremo Tribunal Federal tem a da lei complementar, que dispõe sobre o estatuto da magistratura (art. 93), a criação e extinção de cargos e fixação da remuneração de seus serviços auxiliares e a sua proposta orçamentária (art. 99, § 2º, I).

            Instrumento de participação direta do cidadão nos atos do governo é a iniciativa popular (art. 61, § 2º), por meio de projeto de lei por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.

            O regime constitucional anterior havia retirado dos congressistas boa parte do poder de emendas, o que lhe foi restituído no ordenamento atual. É assim que se admitem emendas, mesmo que importem em aumento de despesas, ao projeto de lei do orçamento anual ou a propostas que o modifiquem (art. 63, I e 166, §§ 3º e 4º).

            Ato coletivo das Casas do Congresso é a votação da matéria legislativa. Precedida de estudos e pareceres de comissões técnicas e de debates em plenário, é ato de decisão (arts. 65 e 66), que se toma por maioria de votos: maioria simples (art. 47), maioria absoluta (art. 69) e maioria de três quintos (art. 60, § 2º), para aprovação de projetos de lei ordinária, de lei complementar e de emendas constitucionais.

            O Presidente da República pode sancionar ou vetar projetos de lei (art. 48). São atos legislativos de sua competência exclusiva. A lei nasce com a sanção, que é pressuposto de sua existência, a menos que seja vetada e o veto rejeitado.

            Quando o Chefe do Poder Executivo adere ao projeto de lei aprovado pelo Poder Legislativo, existe a sanção. Ocorre se o Presidente assina o projeto ou se, recebido o projeto, ele silencia, não o assina durante os 15 dias subseqüentes (art. 66, §§ 1º e 3º).

            Mas se o Chefe do Executivo exprimir a sua discordância com o projeto aprovado, há o veto, por entendê-lo inconstitucional ou contrário a interesse público. Total ou parcial, abrangendo texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea (art. 66, § 2º).

            O veto não tranca, de modo absoluto, o andamento do projeto. Ele é relativo, sendo feito, por mensagem fundamentada, comunicação ao Presidente do Senado Federal no prazo de 48 horas e a fim de ser apreciado pelo Congresso, em sessão conjunta.

            Não integram o processo legislativo a promulgação e a publicação da lei.

            Mera comunicação aos destinatários da lei de que ela foi criada com determinado conteúdo. Isto é promulgação. Ela não faz a lei, mas os efeitos dela somente se produzem depois daquela. Seu conteúdo é a presunção de que a lei promulgada é válida, executória e potencialmente obrigatória.

            A promulgação é obrigatória (art. 66, § 5º). Se o Presidente da República não o fizer dentro de 48 horas, o Presidente do Senado o fará ou, não o fazendo, ao Vice-Presidente do Senado caberá fazê-lo (art. 66, § 7º).

            Para a lei entrar em vigor e tornar-se eficaz, é necessária a publicação, que constitui o instrumento pelo qual se transmite a promulgação aos destinatários da lei.

            A elaboração de leis delegadas e de medidas provisórias é mera edição que se realiza pela publicação autenticada. Mero procedimento elaborativo.


Estatuto dos congressistas

            A atuação independente do Poder Legislativo pressupõe a não sujeição de seus membros em relação aos integrantes dos demais Poderes e das forças econômicas na sociedade.

            O conjunto das normas constitucionais que estatui o regime jurídico dos membros do Congresso Nacional é o estatuto dos congressistas (arts. 53 a 56).

            As prerrogativas são uma garantia da sua independência perante outros poderes constitucionais; não foram, de modo algum, estabelecidas em favor do congressista, como uma deferência pessoal.

            Representantes da vontade popular no Poder Legislativo, devem exercer o mandato com absoluta independência e tranqüilidade, sem temer futuras represálias contra as denúncias que formularem. A inviolabilidade exclui o crime nos casos admitidos; o fato típico deixa de constituir crime, porque a norma constitucional afasta, para a hipótese, a incidência da norma penal.

            A imunidade, ao contrário da inviolabilidade, não exclui o crime, antes o pressupões, mas impede o processo. É uma prerrogativa processual, pois envolve a disciplina da prisão e do processo dos congressistas (art. 53, §§ 3º a 5º). Trata-se de hipótese de imunidade penal relativa, abrangendo todos os crimes, com exceção dos delitos contra a honra, em que prevalece a imunidade material, de caráter absoluto.

            Salvo em flagrante de crime inafiançável, (art. 53, § 2º), os congressistas não podem ser presos dentro do período que vai desde a sua diplomação até o encerramento definitivo de seu mandato por qualquer motivo, incluindo a não reeleição.

            O privilégio de foro dos deputados e senadores continua, pois o art. 53, § 1º indiretamente reconhece, ao dispor que serão submetidos a julgamento em processo penal perante o Supremo Tribunal Federal.

            Existe limitação ao poder de testemunhar sobre as informações recebidas e sobre as fontes (art. 53, § 6º). Deputados e senadores não podem ser obrigados a depor sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato. Possuem direito ao sigilo da fonte sobre as pessoas.

            Ainda que em tempo de guerra, só poderão ser incorporados às Forças Armadas após prévia licença da Casa Legislativa em que atuam (art. 53, § 7º).

            Os congressistas têm direitos genéricos decorrentes de sua própria condição parlamentar, como os de debater matérias submetidas à sua Câmara e às comissões, pedir informações, participar dos trabalhos legislativos, votando projetos de leis.

            Entre os seus direitos está o recebimento de um subsídio, ou seja, sua remuneração, que deve ser fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, verbas de representação ou outra espécie remuneratória (art. 39, § 4º)

            Para assegurar absoluta independência aos membros do Poder Legislativo, a Constituição impõe também alguns impedimentos. Assim é que parlamentares não podem aproveitar-se do cargo, ao qual foram eleitos, para a obtenção de vantagens particulares.

            Há impedimentos funcionais, que proíbem exercer ou aceitar cargo, função ou emprego remunerado em entidades da Administração Pública (art. 54, II, b e II, b), negociais, não podendo firmar ou manter contrato com órgãos da administração pública (art. 54, I, a) e políticos, não sendo possível ser titular de mais de um cargo ou mandato público eletivo (art. 54, II, d).

            Não se mostrando digno das relevantes funções para o qual foi eleito, o congressista poderá perder o cargo. Por tratar-se de norma restritiva de direitos, são taxativamente previstos no texto constitucional (art. 55, I a VI): falta de decoro parlamentar, condenação criminal transitada em julgado, deixar de comparecer à terça parte das sessões ordinárias da Casa, perder ou ter suspensos os direitos políticos e quando o decretar a Justiça Eleitoral.


Autor


Informações sobre o texto

Texto baseado em série originalmente publicada no "Jornal da Cidade", de Caxias (MA), entre 15/05/2005 e 20/11/2005.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Máriton Silva. A lei na filosofia, na teologia e no direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 989, 17 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8107. Acesso em: 23 abr. 2024.