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Crime de furto

fatores preponderantes para a baixa resolutividade em Teresina

Crime de furto: fatores preponderantes para a baixa resolutividade em Teresina

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RESUMO

O presente trabalho visa a identificar quais as causas que potencializam a baixa eficiência da Polícia Civil do Estado do Piauí, especificamente no espaço territorial de sua capital e no tocante à elucidação do delito de furto - a conduta criminógena de maior incidência. O estudo não focou os fatores que geralmente, de forma simplista, são utilizados como justificadores de uma atuação inexpressiva do aparato policial: efetivo insuficiente e recursos materiais deficitários. Buscou-se correlacionar os resultados inexpressivos na elucidação e persecução desse delito a aspectos administrativos e operacionais internos da Instituição, como a jornada de trabalho, nível de capacitação e qualificação profissional, mecanismos de gerenciamento e avaliação das ações, e, ao final, pugnou-se por soluções de fácil implementação e de baixo custo.

Palavras-chaves: furto – fatores de resolutividade – cifras negras – Teresina.


SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. CONTEXTUALIZAÇÃO. 2.1. Polícia Civil: Uma Polícia Judiciária. 2.2. Sistema de Justiça Criminal: Os Elos da Ineficiência. 2.3. "Cifras Negras" e "Taxas de Atrito": Duas Faces da Mesma Moeda. 2.4. Delito de Furto em Teresina: Uma "Taxa de Atrito" Real. 3. FATORES IMPULSIONADORES DA BAIXA EFICIÊNCIA POLICIAL. 3.1. Qual o Impacto que a Polícia tem sobre o Crime? 3.2. Constatação das Hipóteses Levantadas. 3.2.1. Jornada de trabalho. 3.2.2 Capacitação e Qualificação Profissional. 3.2.3 Gerenciamento Administrativo e Operacional. 4. PROPOSTAS PARA MINIMIZAÇÃO DOS RESULTADOS INEXPRESSIVOS. 4.1 Concentração do efetivo policial numa jornada diária de oito horas. 4.2 Massificação dos Cursos de investigação policial. 4.3 Criação do núcleo de perda de documentos / objetos / títulos de crédito. 4.4 Implantação da rede de proteção social. 4.5 Reformulação das Áreas Circunscricionais na capital. 4.6 Implantação de Sistema de Avaliação de Performance. 5. CONCLUSÃO. BIBLIOGRAFIA.


1. INTRODUÇÃO

A impunidade apresenta-se hodiernamente como um dos principais fatores que contribuem para a escalada da violência e da criminalidade no país. O descrédito da grande maioria da população em relação às instituições que compõem o Sistema de Justiça Criminal é patente. Cada ente que compõe esse sistema procura colocar no outro ou nos outros a culpa pela ineficiência e ineficácia próprias. A Polícia Civil, a porta de entrada do poder de persecução criminal estatal, muitas das vezes procura transparecer à opinião pública que faz a sua parte – efetua prisões, desvenda crimes – mas que esse trabalho é prejudicado quando os magistrados concedem liberdades provisórias e relaxam prisões em flagrante. O Judiciário, por sua vez, defende-se, alegando que a culpa está na baixa qualidade dos inquéritos policiais, desprovidos de provas materiais contundentes ou, quando as têm, muitas das vezes foram obtidas através de meios ilícitos.

Foi nesse quadro de insegurança e instabilidade jurídicas que se propôs atuar o presente estudo, não no sentido de se demonstrar as mazelas e incoerências do Sistema, nem colocar um ente em conflito com outro, mas sim de buscar, a partir de constatação fática, identificar, no âmbito intrínseco de uma Instituição específica, delimitada territorial e temporalmente, que fatores contribuiriam de forma relevante para resultados tão pífios e insatisfatórios, que acabam redundando numa prestação de serviço à comunidade bem aquém das necessidades desta. E, a partir das constatações elencadas, pugnou-se por propostas que viessem, não a resolver todos os problemas, mas sim minimizá-los, de forma a proporcionar ao público-alvo dessa Instituição um serviço de melhor qualidade e mais eficiente.

Escolheu-se como foco de estudo a Polícia Civil do Estado do Piauí, restringindo-se aos distritos policiais do município de Teresina e sua atuação no tocante ao delito de furto, por se tratar da conduta delituosa de maior incidência na capital piauiense.

Com base em dados da própria Instituição, alusivos ao 2º semestre do ano de 2003, evidenciou-se, em se comparando o número de inquéritos policiais instaurados e o número de ocorrências registradas nos citados distritos para esse delito, o elevado grau de ineficiência e ineficácia.

A partir desse problema – o ínfimo índice de resolutividade da Polícia Civil na cidade de Teresina para os delitos de furto –, levantaram-se as hipóteses abaixo, no sentido de evidenciar se as mesmas teriam correlação com tais inexpressivos resultados:

a) a ausência de mecanismos de avaliação sistemática da performance dos distritos policiais e, por via indireta, dos profissionais que integram o efetivo dessas unidades proporciona um descompromisso na apuração e elucidação dos crimes de furto;

b) a jornada de trabalho – 24 x 72 h – desempenhada pela maior parte dos policiais civis gera descontinuidade na apuração dos delitos de furto;

c) a jornada de trabalho, sob a forma de plantão, com 24 horas ininterruptas, revela-se inadequada para o desempenho de uma atividade policial eminentemente investigativa;

d) a jornada de trabalho, sob a forma de plantão, com 24 horas ininterruptas, proporciona uma maior estafa física e mental, diminuindo a eficiência policial;

e) o fato de a maior parte do efetivo de cada distrito policial encontrar-se alocado no desempenho de atividades-meio contribui para os péssimos resultados na atividade-fim (investigação policial);

f) a distribuição desproporcional (população / incidência criminógena) do efetivo policial civil entre os diversos distritos da capital impacta negativamente no deslinde dos delitos de furto;

g) as áreas circunscricionais dos distritos policiais de Teresina, definidas há mais de vinte anos, contribuem para a ineficiência da atuação policial no tocante à apuração dos delitos de furto;

h) a incompatibilidade entre as circunscrições dos distritos policiais e as áreas geográficas de atuação dos Batalhões da Polícia Militar propicia uma menor integração entre as instituições, enfraquecendo-as e minimizando os resultados operacionais preventivos e repressivos;

i) o baixo nível de capacitação, em procedimentos investigatórios policiais, da maior parte do efetivo é preponderante para os resultados insatisfatórios no que concerne à elucidação dos delitos de furto.

Reitera-se que o objetivo geral proposto pelo estudo foi de propor melhorias para a atuação da Polícia Civil na capital piauiense, identificando-se pontos de ineficiência – administrativa e operacional - e postulando-se soluções racionais e que não demandassem elevado dispêndio de recursos financeiros. Como objetivos específicos, estipulou-se:

a) identificar as causas que direta ou indiretamente impactam negativamente a Instituição na elucidação do referido delito contra o patrimônio;

b) mensurar o impacto de cada uma dessas causas na consecução de resultados aquém do esperado pela comunidade teresinense;

c) propor soluções criativas, racionais e de baixo custo para implementação, visando a uma melhoria considerável dos resultados operacionais da Polícia Civil;

d) subsidiar os órgãos de cúpula da Secretaria de Segurança Pública e da Polícia Civil na implementação de mudanças internas de cunho administrativo, gerencial e operacional no sentido de, dentre outros benefícios, propiciar segurança e racionalidade ao fluxo de informações de interesse policial, elevar a auto-estima do profissional policial, profissionalizar o policial civil para a execução de seu mister, possibilitar a tomada de decisões fundamentada em critérios técnicos e objetivos etc.

Utilizou-se como metodologia de estudo levantamento documental e de dados estatísticos junto à Secretaria de Segurança Pública e aos diversos órgãos que compõem a Delegacia Geral da Polícia Civil, especialmente a UPJ – Unidade de Polícia Judiciária, além da aplicação de questionário e entrevistas tendo como público-alvo os policiais civis – delegados, agentes e escrivães - , bem como visita in locu a diversos distritos policiais da capital.

Não é despiciendo ressaltar a importância do presente estudo, justificando-o. Por um lado, contemplou a conduta criminal que mais aflige a população teresinense: o furto, conjuntamente com o roubo, representa aproximadamente 60% dos doze delitos mais graves praticados em Teresina; por outro lado, buscou-se identificar as principais causas que contribuem para o baixo índice de elucidação daquele delito, o que, sem sombra de dúvidas, contribui decisivamente para a impunidade e para o descrédito da população em geral relativamente à Instituição policial sob foco.

O resultado do estudo é objeto de detalhamento nos três capítulos que se seguem, onde no primeiro buscou-se uma contextualização do tema, revisão da literatura, além da abordagem de questões cruciais, tais como as "cifras negras" e as "taxas de atrito", além da delimitação do Sistema de Justiça Criminal; no segundo capítulo inicialmente discorreu-se sobre o impacto efetivo da atuação policial sobre a criminalidade e em seguida, passou-se à análise de cada uma das hipóteses levantadas no projeto de pesquisa como causas ensejadoras da baixa performance policial. No terceiro capítulo, e com base na constatação das hipóteses analisadas, elencou-se diversas proposições no intuito de se minorar as deficiências operacionais e administrativas da Polícia Civil.


2. CONTEXTUALIZAÇÃO

A análise da atuação da Polícia Civil do Estado do Piauí, sob as óticas da eficiência, eficácia e efetividade, no tocante, delimitadamente, ao delito de furto na área territorial do município de Teresina no 2º semestre do ano de 2003, com o intuito de formulação de propostas nos âmbitos administrativo, operacional e gerencial, que potencializem a atuação do efetivo policial civil no sentido de se minimizar os efeitos danosos que tal conduta ilícita ocasiona à coletividade envolvida, deve, inicialmente, ser precedida de algumas noções legais, jurídicas e técnicas, para uma melhor compreensão do tema.

2.1. Polícia Civil: uma Polícia Judiciária

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 144, estabelece que "a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio", identificando, na seqüência, através de incisos e parágrafos, as instituições policiais e respectivas atribuições para consecução de tal desiderato.

Reportando-se às atribuições e funções das Polícias Nacionais, assim se manifesta o jurista e deputado federal Luiz Antônio Fleury Filho:

... à Polícia cabem duas funções: a administrativa (ou de segurança) e a judiciária. Com a primeira, de caráter preventivo, ela garante a ordem pública e impede a prática de fatos que possam lesar ou pôr em perigo os bens individuais ou coletivos; com a segunda, de caráter repressivo, após a prática de uma infração penal recolhe elementos que o elucidem para que possa ser instaurada a competente ação penal contra os autores do fato. [1]

As Polícias Civis, como instituição componente do Sistema de Segurança Pública pátrio, estão previstas no inciso IV do mencionado artigo constitucional, com incumbências definidas no parágrafo 4º, verbis: "Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares".

Cabe, aqui, uma breve interpretação do aludido dispositivo constitucional. Por "delegados de polícia de carreira" entende-se aquele servidor público que foi submetido a concurso público, de provas e títulos, tendo como requisito de formação a graduação em Direito e que tenha sido submetido a Curso de Formação, este inserto no processo de seleção pública.

A Lei Complementar estadual nº 01, de 26.06.1990, que dispõe sobre o Estatuto dos Policiais Civis do Piauí e dá outras providências, estatui em seu art. 4º, litteris:

A Polícia Civil do Estado do Piauí, dirigida por Delegado de Polícia de Carreira, é uma instituição permanente do Poder Executivo, estruturada em carreiras, e auxiliar da função jurisdicional do Estado, com atribuições, entre outras fixadas em lei, de exercer, ressalvadas a competência da União, as funções de Polícia Judiciária e a apuração das infrações penais, exceto as militares.

No artigo seguinte – 5º - o referido dispositivo legal define quem são os Policiais Civis de Carreira, estando, obviamente, entre eles os delegados de polícia, verbis: "São Policiais Civis de Carreira, os investidos em cargos efetivos de natureza policial civil, da Secretaria de Segurança, definidos nesta Lei."

O aspecto relativo ao "delegado de polícia de carreira", exigência esta oriunda da Constituição Cidadã de 1988, tem sido objeto, ao longo do tempo, especialmente no âmbito da Polícia Civil do Piauí, de muita polêmica. A propósito, alguns dispositivos do Estatuto acima referido foram considerados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade, através da ADIN nº 1854-3. Dentre eles, o art. 18, revogado pela LC nº 25, de 15.08.2001, que preconizava: "São também considerados autoridades policiais civis os delegados de polícia nomeados em comissão ou designados para a função de delegado até o preenchimento das vagas por delegado de carreira."

Não obstante a inconstitucionalidade desse texto legal e a sua retirada do Estatuto Policial Civil do Piauí, a insuficiência de "delegados de polícia de carreira" nos quadros da Instituição tem perpetuado tal prática ilegal, fruto do descaso histórico governamental com a questão. Até a presente data, apenas dois concursos públicos foram realizados para o preenchimento de vagas no quadro de delegado de polícia, o primeiro em 1994, ocasião em que foram preenchidas 30 (trinta) vagas, sendo que, atualmente, apenas sete delegados egressos do referido concurso ainda permanecem na Instituição – os demais, em face das condições precárias de trabalho e da baixa remuneração, foram atraídos por outras carreiras jurídicas, tais como o Ministério Público e a Magistratura. O segundo e último concurso foi realizado no ano de 2000, no qual foram aprovados 90 (noventa) candidados e inicialmente nomeados 30 (trinta); desses, mais de dez já pediram demissão do cargo, pelos mesmos motivos de seus antecessores. Posteriormente, mais 30 (trinta) foram nomeados, repetindo-se com estes os mesmos problemas anteriores.

Diante dessa insuficiência [2] os gestores da Secretaria de Segurança Pública, órgão ao qual a Polícia Civil do Piauí é vinculada hierárquica, operacional e financeiramente, vêm sistematicamente utilizando-se do artifício ilegal de nomear, mediante portaria administrativa, para o exercício das funções privativas de "delegado de polícia de carreira", policiais militares e bacharéis em Direito e em Segurança Pública, fato este restrito aos municípios do interior do Estado. As Unidades Policiais da capital são conduzidas exclusivamente por policiais do quadro da própria Polícia Civil.

Às Polícias Civis a CF/88 incumbiu o exercício das funções de Polícia Judiciária e a apuração de infrações penais, excepcionando a competência da União, realizada através da Polícia Federal e definida nos incisos I a IV do § 1º do art. 144, e a das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares para a apuração de crimes e transgressões militares.

Apesar de a Carta Magna ter explicitamente estabelecido atribuições privativas da Polícia Federal, como as funções de Polícia Judiciária da União, em outras atividades a própria Constituição previu a possibilidade de atuação concorrente de outros órgãos públicos, especificamente na prevenção e repressão ao tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho [3]. E isso é o que ocorre na prática. No Estado do Piauí, tanto a Polícia Federal como a Polícia Civil dispõem em suas estruturas de unidades especializadas na prevenção e repressão ao tráfico de substâncias psicotrópicas ilícitas.

A atividade de Polícia Judiciária no Brasil é exercida pelas Polícias Federal e Civis Estaduais, àquela reservada, em princípio, a apuração das "infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei" [4], ficando o remanescente na esfera de atribuição das Polícias Civis Estaduais.

A noção da atividade de Polícia Judiciária está prevista no caput do art. 4º, do Código de Processo Penal, verbis: "A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria." [5]

O trabalho de Polícia Judiciária, historicamente, está intimamente ligado à elaboração e execução do procedimento administrativo inquisitorial denominado de "inquérito policial".

Assim, ocorrido um crime, e desde que preenchidas algumas formalidades, conforme o caso (requisição, representação etc.), caberá à Polícia Judiciária instaurar o competente inquérito policial, através do qual buscar-se-á a materialização de provas e elucidação do delito, indicando o possível autor do fato criminógeno. O inquérito corresponde a uma fase pré-processual, administrativa, não se configurando, nesse momento, ainda, o processo penal. Corresponde a peça informativa que subsidiará a atuação do titular da ação penal. Se esta for pública, o Ministério Público; se privada, o ofendido ou seu representante legal, não sendo, entretanto, indispensável à propositura da ação penal. [6]

Acerca desse caráter administrativo e pré-processual do inquérito policial, assim se manifesta Eugênio Pacelli de Oliveira:

A fase de investigação, portanto, em regra promovida pela polícia judiciária, tem natureza administrativa, sendo realizada anteriormente à provocação da jurisdição penal. Exatamente por isso se fala em fase pré-processual, tratando-se de procedimento tendente ao cabal e completo esclarecimento do caso penal, destinado, pois à formação do convencimento (opinio delicti) do responsável pela acusação. O juiz, nesta fase, deve permanecer absolutamente alheio à qualidade da prova em curso, somente intervindo, para tutelar violações ou ameaça de lesões a direitos e garantias individuais das partes, ou para resguardar a efetividade da função jurisdicional, quando, então, exercerá atos de natureza jurisdicional. [7]

Muito se tem discutido acerca da imprescindibilidade do inquérito policial e de sua condução exclusiva pela autoridade policial. Por ocasião da reforma do Código de Processo Penal essas questões vieram à tona, e, mais recentemente, abriu-se uma discussão no STF – Supremo Tribunal Federal – acerca dos poderes investigatórios do Ministério Público. Não obstante os questionamentos em contrário o legislador processual pátrio optou pela manutenção desse procedimento inquisitorial, em detrimento de sua substituição pelo juízo de instrução, consoante justificativas transcritas in verbis abaixo e insertas na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal:

Foi mantido o inquérito policial como processo preliminar ou preparatório da ação penal, guardadas as suas características atuais. O ponderado exame da realidade brasileira, que não é apenas dos centros urbanos, senão também a dos remotos distritos das comarcas do interior, desaconselha o repúdio do sistema vigente.

O preconizado juízo de instrução, que importaria limitar a função da autoridade policial a prender criminosos, averiguar a materialidade dos crimes e indicar testemunhas, só é praticável sob a condição de que as distâncias dentro do seu território de jurisdição sejam fácil e rapidamente superáveis. Para atuar proficuamente em comarcas extensas, e posto que deva ser excluída a hipótese de criação de juizados de instrução em cada sede do distrito, seria preciso que o juiz instrutor possuísse o dom da ubiqüidade. De outro modo, não se compreende como poderia presidir a todos os processos nos pontos diversos da sua zona de jurisdição, a grande distância uns dos outros e da sede da comarca, demandando, muitas vezes, com os morosos meios de condução ainda praticados na maior parte do nosso hinterland ...

(omissis)

Mesmo, porém, abstraída essa consideração, há em favor do inquérito policial, como instrução provisória antecedendo a propositura da ação penal, um argumento dificilmente contestável: é ele uma garantia contra apressados e errôneos juízos, formados quando ainda persiste a trepidação moral causada pelo crime ou antes que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas. [8]

Por fim, cabe aqui realçar o último aspecto relativo às atribuições das Polícias Civis, preconizado na Carta Magna, que é exatamente o concernente à idéia de infrações penais. Segundo Fernando Capez, o crime pode ser conceituado sob os aspectos material e formal ou analítico. O aspecto material é aquele que busca estabelecer a essência do conceito, isto é, o porquê de determinado fato ser considerado criminoso e outro não. Sob esse enfoque, crime pode ser definido como todo fato humano que, propositada ou descuidadamente, lesa ou expõe a perigo bens jurídicos considerados fundamentais para a existência da coletividade e da paz social. O aspecto formal é aquele que busca, sob um prisma jurídico, estabelecer os elementos estruturais do crime. A finalidade este enfoque é propiciar a correta e mais justa decisão sobre a infração penal e seu autor, fazendo com que o julgador ou intérprete desenvolva o seu raciocínio em etapas. Sob esse ângulo, crime é todo fato típico e ilícito. Dessa maneira, em primeiro lugar deve ser observada a tipicidade da conduta. Em caso positivo, e só neste caso, verifica-se se a mesma é ilícita ou não. Sendo o fato típico e ilícito, já surge a infração penal. A partir daí, é só verificar se o autor foi ou não culpado pela sua prática, isto é, se deve ou não sofrer um juízo de reprovação pelo crime que cometeu. Para a existência da infração penal, portanto, é preciso que o fato seja típico e ilícito. [9]

Devidamente contextualizada a Polícia Civil no arcabouço do Sistema de Segurança Pública pátrio, faz-se necessário, para melhor compreensão do tema objeto deste estudo, considerações atinentes ao Sistema de Justiça Criminal, "cifras negras" e "taxas de atrito".

2.2. Sistema de Justiça Criminal: os elos da ineficiência

O Sistema de Justiça Criminal também se poderia intitular de Sistema Judiciário, analogamente à denominação dada à Polícia Civil como Polícia Judiciária, apesar de, como já mencionado, a atuação da Polícia Judiciária referir-se a uma fase pré-processual, bem como a atuação ministerial anterior ao recebimento da denúncia pelo magistrado. Esse sistema engloba, assim, as atuações da Polícia Civil, Ministério Público, Poder Judiciário e os órgãos penitenciários, estes, no Brasil, inseridos no âmbito do Poder Executivo – Administração Pública. Praticado um delito, caberá à Polícia Civil realizar as atividades investigatórias e ao Ministério Público, ou ao ofendido, conforme o crime seja de ação penal pública ou privada, promover a ação penal mediante denúncia ou queixa. À soma dessa atividade investigatória com a atuação ministerial ou privada chama-se persecutio criminis, que não tem outro objetivo senão tornar efetivo o jus puniendi a cargo do Estado-Juiz, pois como se sabe a atuação do Judiciário condiciona-se ao princípio da inércia, só atuando mediante demanda, e esta reside exatamente na propositura da competente denúncia ou queixa-crime. Deve-se salientar, entretanto, a restrita atuação do magistrado na fase pré-processual, especialmente na proteção e garantia dos direitos humanos fundamentais.

O sociólogo e antropólogo Cláudio C. Beato, da Universidade Federal de Minas Gerais, tem uma visão pessimista acerca da eficiência e eficácia do Sistema de Justiça Criminal brasileiro, verbis:

O fluxo de processamento da justiça criminal inicia-se com uma ocorrência realizado pela polícia militar, que o comunica à polícia civil, que a registra. Registrada a ocorrência, a PC dá início ao inquérito policial, em que será averiguada a materialidade dos crimes, a indicação de testemunhas, e a tomada de depoimentos. Terminado o inquérito policial, ele é remetido ao Ministério Público que avaliará se ele está pronto ou não, para preparar a denúncia que será remetido à vara criminal, onde tudo começa novamente. Conforme pode-se ver, é extremamente complexo e muitas vezes moroso o fluxo da justiça criminal no Brasil. Isto dá origem a uma série de acusações entre as organizações que compõem o sistema, e talvez explique um pouco do porque a justiça brasileira ser tardia, freqüentemente incerta, e às vezes injusta, pois termina selecionando discriminatoriamente sua clientela.

(omissis)

Não dispomos de análises mais detalhadas a respeito da integração funcional das diversas organizações do sistema de justiça criminal. O que parece ser uma constante é uma certa "desconfiança" em relação à integração das várias organizações do sistema de justiça criminal, sem que saibamos exatamente a causa desses conflitos de jurisdições. Alguns diagnósticos preliminares acerca do nosso sistema de justiça criminal destacam o "caráter frouxamente articulado" entre as organizações que compõem o sistema (Paixão, 1993. Coelho, 1986) que termina por operar uma disjunção entre o aparelho policial e a administração da polícia (Coelho, 1986). Na ponta inicial do sistema, as polícias operam de forma igualmente desarticulada (Paixão, 1993), o que terminou por ensejar as inúmeras propostas de integração entre elas, seja suprimindo simplesmente a força militar, seja unificando seus comandos. [10]

Outra não é a opinião da socióloga Vívian Ferreira Paes, verbis:

O Sistema de Justiça Criminal já foi analisado por outros autores como um locus onde impera um tipo de relação baseado na ausência de cooperação interinstitucional (Kant de Lima, 1995; Mandach, 2001; Nazareth Cerqueira, s.d.; Paes, 2002 e Paixão, 1982). Destacamos, dentre estes estudos, a análise levantada por Roberto Kant de Lima, que concebe a cultura jurídica brasileira baseada num sistema de produção de verdades que são complementares, hierarquizadas e que se desqualificam mutuamente. Entendemos, portanto, que os atores do Sistema de Justiça Criminal não atuam de forma coordenada, pois a produção da verdade neste sistema se dá na forma de uma concorrência, o que leva estes atores a inserir-se em uma disputa sobre qual versão será a mais legítima. [11]

Delimitado o campo de atuação do Sistema de Justiça Criminal, o qual se inicia no âmbito da Polícia Civil, flui através do Ministério Público e dependendo do livre convencimento dos magistrados poderá desaguar nos órgãos prisionais. Depreende-se, assim, que o êxito estatal para fazer valer efetivamente as leis penais dependerá da capacidade de atuação de cada ente integrante dessa cadeia.

2.3. "Cifras Negras" e "Taxas de Atrito": duas faces da mesma moeda

No entanto, tanto em âmbito nacional como em outros países, a maior parte das ocorrências criminais sequer ingressam no primeiro elo do Sistema de Justiça Criminal. São as chamadas "cifras negras" da criminalidade. Mas como mensurá-las ? Tal tarefa não se vislumbra facilmente. Os poucos estudos existentes, especialmente em termos de Brasil, não assumem uma amplitude nacional, restringindo-se, na maioria das vezes, a análises localizadas e regionalizadas, o que demonstra um certo descaso dos órgãos de segurança em buscar identificar os reais índices de criminalidade. As tentativas de se dimensionar o quantum das "cifras negras" são embasadas em projeções a partir de pesquisas de vitimização realizadas com a população de uma determinada área, onde as pessoas são indagadas se já foram vítimas de algum(ns) delito(s), qual(is) espécie(s) de delito, se procuraram a polícia para registrar a ocorrência etc.

Corroborando o afirmado, discorre Julita Lemgruber, Diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes no Rio de Janeiro:

No Brasil sequer podemos fazer esse tipo de análise, porque aqui não se realizam pesquisas de vitimização. Melhor dizendo: não se realizam pesquisas periódicas, em nível nacional, com metodologias padronizadas, mas apenas surveys pontuais e descontínuos em duas regiões metropolitanas do país ... Os únicos dados nacionais disponíveis já completaram 13 anos de idade: são as informações da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) realizada anualmente pelo IBGE, que em 1988, e só nesse ano, incluiu no seu suplemento algumas perguntas sobre vitimização. Não foi propriamente uma pesquisa de vitimização, nem mesmo um survey-piloto seguido de levantamentos mais completos e acurados. Simplesmente nunca mais se investiu na tentativa de estimar o volume de crimes cometidos em todo o Brasil – o que, já por si, atesta o descaso com que essa área tem sido tratada e a falta de base para qualquer avaliação objetiva da eficácia do Sistema de Justiça Criminal neste país. [12]

Discorrendo acerca da carência de informações estatísticas no âmbito das Instituições Policiais brasileiras e reportando-se à questão nebulosa das "cifras negras", assim se manifesta o antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-Secretário Nacional de Segurança Pública, in verbis:

... alguns dados são impressionantes: desde 1988, sabe-se que, na região Sudeste, entre 75% e 82% dos crimes contra o patrimônio (roubo e furtos), excluídos veículos, não são denunciados às autoridades policiais, isto é, não são registrados nas delegacias – os roubos e furtos de veículos são reportados para que haja o ressarcimento dos seguros. As razões alegadas para a subnotificação são duas: falta de confiança na capacidade da polícia de recuperar os bens perdidos e prender os culpados, e medo de entrar numa delegacia. Portanto, os dados disponíveis na Polícia Civil sobre roubos e furtos constituem apenas uma pequena parcela dos fatos relevantes. [13]

Às ocorrências criminais que não afluem ao Sistema de Justiça Criminal, e que jamais serão objeto de persecução penal pelo Estado, somam-se aquelas que, apesar de adentrarem ao referido Sistema, se perdem em seus meandros. É o caso da queixa de um crime pela vítima na Polícia Civil, onde tal fato não terá maiores desdobramentos (diligências, investigações, instauração de inquérito, oitiva de testemunhas, indiciamento etc.), ficando, assim, impossibilitado, em se tratando de crime de ação penal pública, de atuar, o membro do parquet. Algumas vezes, há uma atuação policial, mas por motivos diversos, não se chega à autoria do delito, redundando, no âmbito ministerial, na devolução do inquérito para novas diligências ou no pedido de arquivamento ao Judiciário. Outras vezes, há o indiciamento, mas o material probatório carreado aos autos revela-se frágil, não imprimindo um grau mínimo de verossimilhança capaz de convencer o promotor público a propor a denúncia. Outras vezes, há a denúncia, mas o magistrado não a recebe, ou porque, por exemplo, os fatos narrados pelo Ministério Público na exordial não se configuram conduta típica ou o pelo fato do delito já se encontrar prescrito.

Essas ineficiência e ineficácia do Sistema de Justiça Criminal acabam por privilegiar a impunidade, tornando-se um óbice inconteste ao combate à criminalidade e à violência. Essas ocorrências criminais, intituladas de oficiais porque são do conhecimento do Sistema, mas que não são resolvidas pelo aparato estatal, quer através de um indiciamento, de uma denúncia, de uma condenação ou da prisão, acabam gerando "perdas" no fluxo normal do Sistema de Justiça Criminal, e o maior ou menor grau delas é que vai indicar quão é eficiente o Sistema como um todo. Esse percentual de "perda" é tecnicamente chamado de "taxa de atrito".

As "taxas de atrito" não são um fenômeno restrito aos países menos desenvolvidos ou àqueles com menores índices de criminalidade, trata-se, na verdade, de um fenômeno que assume amplitude mundial. O que diferencia os países mais ricos dos outros é que naqueles, pelo maior nível organizacional das Instituições que compõem o Sistema de Justiça Criminal, aliado ao alto grau de informatização e tecnologias aplicadas, têm-se uma noção mais fidedigna dessa taxa, inclusive no tocante aos pontos e causas de maior estrangulamento no Sistema.

A partir de dados do Home Office – Digest 4 / England and Walles (1999), Julita Lemgruber discorre sobre as "taxas de atrito" apuradas para a Inglaterra e País de Gales em 1997, litteris:

... de cada cem crimes cometidos naquele ano, 45,2 foram comunicados à Polícia, 24 foram registrados, 5,5 foram esclarecidos, 2,2 resultaram em condenação e 0,3 resultou em pena de prisão. Ou seja, na Inglaterra, com uma Polícia bem mais eficiente do que a nossa e um Judiciário muito mais ágil, só 2,2% dos delitos resultam em condenação dos criminosos e só a irrisória parcela de 0,3% chega a receber uma pena de prisão. [14]

Sobre estudo análogo realizado nos Estados Unidos em 1994, mas contemplando apenas os crimes mais violentos ( homicídio, agressão, estupro, roubo etc.), Julita Lemgruber assim apresenta os resultados, verbis: " ... para 3.900.000 casos de violência ocorridos naquele ano, só 143 mil (3,7%) resultaram em condenação dos autores, sendo 117 mil (3%) punidos com uma pena de prisão." [15]

Luiz Eduardo Soares nos traz uma pesquisa, não tão completa quanto as anteriores, pois não contempla as perdas na integralidade do Sistema e se restringe a um único crime, verbis:

Uma pesquisa concluída em 1994 sobre inquéritos de 1992, relativos a homicídios dolosos na cidade do Rio de Janeiro, revela que apenas 7,8% chegaram a ser aceitos pelo Ministério Público e considerados suficientemente instruídos, isto é, com informações suficientes para que se fundamentasse uma acusação, no prazo médio de dois anos. Destes, 64% referiam-se a crimes passionais, justamente aqueles de investigação mais fácil, que não envolvem carreira criminosa ou organização. [16]

2.4. Delito de furto em Teresina: uma "Taxa de Atrito" real

O escopo precípuo do presente estudo residiu, exatamente, em a partir de uma constatação fática – percentual ínfimo de inquéritos instaurados e concluídos para o delito de furto na capital piauiense relativamente às ocorrências registradas – buscar, através de pesquisa de campo – aplicação de questionários, entrevistas, visitas "in loco" e coleta de informações e dados estatísticos –, identificar fatores impeditivos a uma melhor performance da Polícia Civil piauiense, no tocante a essa figura delituosa, para, ao final, pugnar-se por proposições não definitivas e nem integrais, mas atenuantes e minorantes, contribuindo-se assim na reversão desse lastimável quadro de inoperância e descrédito junto à sociedade teresinense.

Ressalta-se que a escolha do delito de furto não foi por acaso. Essa conduta criminógena é a de maior incidência na capital piauiense. De um total de 52.690 ocorrências relativas a crimes, constantes na base de dados do Sistema de Boletim Eletrônico de Ocorrências da Polícia Civil na posição de 07.04.2005, 19.708 foram referentes a furto, o equivalente a 37,4%, sendo seguido pelos delitos de roubo e ameaça com, respectivamente, 14,5% e 10,5%.

A constatação referida e utilizada para a formulação do problema - Por que a "taxa de atrito" para o delito de furto é tão elevada na cidade de Teresina ? – foi embasada confrontando-se todas as ocorrências registradas nas delegacias distritais da capital e na POLINTER – Delegacia de Polícia Interestadual -, no 2º semestres de 2003 – meses de julho a dezembro -, com os inquéritos instaurados e encaminhados ao Poder Judiciário no mesmo período.

Salienta-se que as ocorrências registradas foram obtidas a partir de relatório oriundo da UPJ – Unidade de Polícia Judiciária – órgão integrante da estrutura hierárquica da Polícia Civil do Piauí e os quantitativos dos inquéritos instaurados e concluídos obteve-se a partir de Relatório Semestral da Corregedoria de Polícia Civil.

Foram registradas no período 7.636 ocorrências sob a natureza delituosa de furto, contra 198 inquéritos instaurados e concluídos para esse delito, dos quais 146 (74%) iniciaram-se a partir da lavratura de auto de prisão em flagrante delito e 52 (26%) por portaria da autoridade policial, indicando, com isso, que a relação inquéritos / ocorrências foi de 1 : 39, ou seja, uma "taxa de atrito" de aproximadamente 97,4%, com relação, exclusivamente, à Polícia Civil, desconsiderando-se os outros elos do Sistema de Justiça Criminal. Esses números por si só justificam a importância do presente trabalho. Imagine-se ao final da cadeia de Justiça Criminal quantos delinqüentes efetivamente foram condenados e se encontram cumprindo pena de prisão.

Mês

Inquéritos Instaurados

Total de Inquéritos

Autoria

Indefinida

Flagrante

Portaria

Julho/2003

28

05

33

00

Agosto/2003

21

10

31

01

Setembro/2003

20

10

30

00

Outubro/2003

24

09

33

01

Novembro/2003

27

08

35

00

Dezembro/2003

26

10

36

00

TOTAL

146

52

198

02

Abaixo, demonstrativo dos inquéritos instaurados e concluídos no 2º semestre/2003 [17]:


3. FATORES IMPULSIONADORES DA BAIXA EFICIÊNCIA POLICIAL

A proposta do presente estudo foi de, a partir das hipóteses levantadas, frutos de uma experiência profissional e vivencial no âmbito da Polícia Civil, buscar a constatação ou não do impacto que supostas causas poderiam ter no sentido de contribuir, negativamente, para que a Polícia Civil do Piauí fosse tão inoperante na persecução criminal do delito de furto na cidade de Teresina.

Em nenhum momento buscou-se focar questões intrinsecamente restritas ao âmbito da investigação policial, e sim, em aspectos mais ligados à administração do trabalho policial, ou seja, aos seus mecanismos de gerenciamento e de controle. Até porque, como se verá no próximo capítulo, por ocasião da apresentação de propostas e mudanças para melhoria da atuação policial, com base nas causas que aqui serão discutidas, constatar-se-á que as pretensas soluções não demandarão vultosos investimentos, uma preocupação norteadora deste trabalho. Soluções simples, racionais, de fácil implementação, que não dependam de recursos financeiros de grande monta, o que, se assim não fosse, tornariam inócuas tais propostas diante da baixa capacidade de investimentos do Estado do Piauí, principalmente no tocante à área de segurança pública, onde nos últimos dez anos os recursos para investimento foram, na quase totalidade, oriundos do Governo Federal através do Ministério da Justiça.

Antes de se analisar até que ponto as hipóteses levantadas inicialmente restaram ou não provadas, bem como a apresentação dos resultados dos questionários e entrevistas realizadas, que é o cerne do presente estudo, deve-se, inicialmente, abordar os impactos que a atuação policial proporciona frente à escalada criminosa. É o que se verá na seqüência.

3.1. Qual o impacto que a polícia tem sobre o crime ?

Revisando a literatura sobre a questão, tanto em âmbito nacional com em outros países, observa-se um certo pessimismo e um ceticismo acerca da capacidade de a policia efetivamente contribuir para a redução da criminalidade.

Retrata fielmente essa tendência a socióloga americana Mary Ann Wycoff. Funcionária da Police Foundation desde 1972, e que, desde então, vêm dirigindo pesquisas sobre mudança organizacional, eficácia policial contra o crime, o papel da polícia e a supervisão policial:

Depois de rever aproximadamente quarenta tentativas empíricas para determinar o relacionamento entre os dados fornecidos pelos relatórios e os resultados relacionados ao crime, forçosamente se conclui que, na maior parte das afirmativas a respeito do efeito da polícia sobre o crime, as evidências são, na melhor das hipóteses, que tal efeito é fraco e, freqüentemente, contraditório. [18]

Segundo referida socióloga, os estudos para se identificar os impactos da atuação policial ante o crime geralmente envolvem como parâmetros os gastos financeiros, efetivo policial, investigações, níveis de detenção e estratégias de ação das rondas policiais, rapidez e tempo de resposta às demandas da população.

Dentre os estudiosos que buscaram relacionar o nível de investimentos na área de segurança e os índices de criminalidade, Allison (1972), Jones (1974), Wellford (1974) e Pogue (1975), não encontraram nenhuma relação ou apenas uma relação muito fraca entre os gastos e a variável resultados. Ehrlich (1973), McPheters (1974), Stronge (1974) e Swimmer (1974), encontraram relações negativas. Carr-Hill (1973) e Stern (1973) detectaram relações positivas.

Assim como no caso do nível de gastos com a polícia, os resultados alusivos à comparação entre o incremento do efetivo policial e a criminalidade não foram conclusivo, alguns deles contraditórios.

Quanto aos resultados das pesquisas que focaram o aspecto das investigações policiais, a socióloga assevera que:

Em função, principalmente, da quantidade insuficiente de pesquisas sobre o efeito das investigações, é preciso concluir que a questão não foi explorada de maneira adequada e que não se consegue estabelecer argumentos fortes sobre a eficácia das investigações policiais sobre o crime. [19]

Os outros aspectos – número de detenções, níveis de rondas policiais e tempo de resposta às demandas – também não tiveram conclusões diversas dos parâmetros anteriores, segundo o estudo de Mary Ann Wycoof, a qual ao final conclui:

Concluir – e isso é bem possível, depois de se ter examinado os estudos das pesquisas – que não houve base conceitual adequada dos modos pelos quais as forças policiais podem ter um efeito positivo sobre a criminalidade, seria fazer uma observação excessivamente fácil e um tanto injusta. De fato, pouquíssimos dos pesquisadores identificados como tendo abordado algum aspecto da eficácia contra o crime tinham qualquer motivação para conceitualizar o processo pelo qual a polícia poderia produzir um efeito sobre o crime. Até onde existe um conjunto de pesquisa que pode ser considerado a literatura sobre eficácia contra o crime, ele é, basicamente, uma coleção de estudos realizados por outras razões, que vai produzir informação a respeito dos efeitos da polícia sobre o crime quase como um subproduto. Quase nunca a pesquisa levantou questões como: A polícia pode ser eficaz contra a criminalidade ? Se a resposta for sim, quão efetiva ela pode ser? De que modo as forças policiais podem ter um efeito sobre o crime? [20]

Especificamente no caso da Polícia Civil do Piauí, pelos números apresentados, onde 74% dos inquéritos de furto foram instaurados a partir de prisões em flagrante delito, demonstra que o tempo de resposta às demandas, a partir da ocorrência de um crime, atua positivamente para a eficácia policial, entretanto, o fato de que apenas 26% decorreram de algum trabalho investigativo, demonstra quão precária é a atuação da Polícia Civil no cumprimento de seu desiderato constitucional – repressão – pois os números, por si sós, indicam que a maior parte dos indiciados por furto não o foram a partir de um trabalho da polícia investigativa e sim da polícia ostensiva, a Polícia Militar, restringindo-se a Polícia Civil, a partir da condução dos delinqüentes, seguir os trâmites legais inerentes à atividade de polícia judiciária. Deve-se salientar, aqui, a importância dos cidadãos na denúncia imediata dos crimes e na identificação dos transgressores, fator este que contribui decisivamente para a eficaz atuação da polícia ostensiva, e que representa a quase integralidade das prisões exitosas.

Tal fato relatado no âmbito da polícia piauiense no século XXI já havia sido detectado em estudo da década de 70, nos Estados Unidos, por Stanley Vanagunas:

O policiamento para controle do crime reduz-se a duas táticas principais, a reativa e a proativa. O policiamento reativo significa que o policial é encaminhado para a cena do crime por meio de uma reclamação de um cidadão, seja ele uma vítima, uma testemunha ou um segurança. Tendo obtido a evidência para tal queixa – do denunciante e de outras testemunhas – o policial começa então a ação que, espera-se, irá resultar no aprisionamento do culpado. O policiamento proativo, por outro lado, significa que os próprios policiais vão iniciar algum tipo de atividade destinada a deter o crime ou a identificar e aprisionar aqueles que violam as leis. Na medida em que as detenções são uma medida de produtividade, dessas duas táticas, relacionada ao controle do crime, os estudos demonstram que a tática reativa, aquela que depende em primeiro lugar dos cidadãos e não de uma iniciativa da polícia, é mais produtiva. Mais de 90% de todas as prisões efetuadas, por exemplo, ocorrem quando os policiais estão respondendo a denúncias de crimes feitas pelos cidadãos. [21]

Dessarte, evidencia-se que não se apresenta de fácil resposta a indagação constante no epíteto deste subcapítulo. A problemática agrava-se ainda mais quando se acrescenta aos problemas intrínsecos das instituições policiais (recursos financeiros, efetivo, atividade investigativa, tempo de resposta etc.) as causas sócio-econômicas que afetam a criminalidade, especialmente dos crimes contra o patrimônio, categoria esta em que se enquadra o delito de furto objeto do presente estudo.

Algumas correntes advogam que nunca a instituição policial, por mais equipada e preparada que esteja, será capaz de impactar positivamente, em níveis consideráveis, a criminalidade e a violência, pois as causas destas estão relacionadas, não ao despreparo ou à insuficiência de efetivo humano policial, mais sim aos fatores sociais e econômicos, geradores do desemprego, do subemprego, da falta de educação, das péssimas condições de moradia, da desagregação familiar etc., os quais escapam da atuação policial, e assim, acabam jogando a culpa da ineficiência e dos péssimos resultados policiais a outros órgãos estatais, principalmente aqueles envolvidos com a geração de empregos, com a educação e a construção de moradias.

Essa concepção, em princípio, poderia explicar o fato de o delito de furto ser o de maior incidência na capital piauiense – 37,4% do total dos crimes -, pois as questões sociais e econômicas afloram na cidade de Teresina, onde ao longo dos últimos 10 anos se viu a formação de um verdadeiro cinturão de pobreza ao redor da cidade, marcado de um lado pela falta de investimentos no campo e de outro, por políticas de incentivo às invasões de terrenos urbanos para posteriores desapropriações, cujos fins a serem alcançados são duvidosos e questionáveis. E essa política de atração não foi capaz de gerar emprego e renda em patamar mínimo para absorver essa mão-de-obra desqualificada ávida por trabalho.

Em contraposição veemente ao silogismo pobreza x criminalidade, vaticina o sociólogo Cláudio C. Beato do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais:

Uma das teses, bastante recorrente, aliás, é a de como o crime estaria "evidentemente" associado à pobreza e a miséria, a marginalidade dos centros urbanos e a processos migratórios. Este é o argumento da contaminação dos valores das pessoas pela necessidade mais premente da sobrevivência a qualquer custo. Felson, 1994, refere-se a esta perspectiva como a "falácia da pestilência": "...as coisas ruins provêm de outras coisas ruins. O crime é uma má coisa, portanto, ele deve emergir de outras maldades tais como o desemprego, pobreza, crueldade e assim por diante. Além disso, a prosperidade deveria conduzir-nos a taxas mais baixas de crime". Após identificada a suposta causa do crime, este seria rapidamente erradicado desde que houvesse vontade política. Assim, o messianismo que marca outros setores da vida brasileira não poderia estar ausente da formulação de políticas de segurança pública. Da mesma forma que a inflação deve ser abatida com um tiro apenas, o analfabetismo com uns trocados a mais nos bolsos dos professores, a distribuição de renda com alguns golpes de caneta, ou o problema da saúde com um pouco mais de recursos, a criminalidade seria combatida mediante políticas de combate à pobreza, miséria e de geração de empregos. Trata-se de um argumento moralmente ambíguo, pois procura combater a pobreza, desigualdade e miséria não pela sua própria existência (que em si mesma é injustificável), mas associando-a a uma espécie de ameaça à tranqüilidade das classes média e alta. Além disso, ele deveria prestar conta de alguns dados desconcertantes tais como o fato da criminalidade e violência não estarem associados ao crescimento do desemprego no Brasil durante a década de 80 (Coelho, 1988). Ou então, que o crescimento vertiginoso da criminalidade nos anos 60 nos Estados Unidos coincide justamente com um período de investimentos maciços em políticas assistenciais pelo governo americano (Wilson, 1983). Ou ainda, o resultado de uma pesquisa sobre população prisional no estado de São Paulo mostrando que mais da metade dos prisioneiros trabalhava na época de sua prisão, sendo em sua maioria nascidos e criados em São Paulo (Caldeira Brandt, 1986). [22]

3.2. Constatação das Hipóteses Levantadas

No projeto de pesquisa, ponto de partida do presente estudo, definiu-se dez hipóteses que seriam investigadas com o intuito de se identificar a participação e/ou contribuição negativa de cada uma delas para a concretização dos indicadores de ineficiência e ineficácia da Polícia Civil do Estado do Piauí no tocante à repressão aos delitos de furto na capital piauiense.

Para uma melhor compreensão de cada uma das hipóteses faz-se necessário distribuí-las em categorias específicas, reunidas pelos aspectos temáticos em comum. De tal arte, estarão, doravante, englobadas em três categorias, a saber: jornada de trabalho, capacitação e qualificação profissional, e gerenciamento administrativo e operacional.

3.2.1 Jornada de trabalho

Na primeira categoria previu-se as seguintes hipóteses:

a) a jornada de trabalho – 24 x 72 horas – desempenhada pela maior parte dos policiais civis gera descontinuidade na apuração dos delitos de furto;

b) a jornada de trabalho, sob a forma de plantão, com 24 (vinte e quatro) horas ininterruptas, revela-se inadequada para o desempenho de uma atividade policial meramente investigativa;

c) a jornada de trabalho, sob a forma de plantão, com 24 (vinte e quatro) horas ininterruptas, proporciona uma maior estafa física e mental, diminuindo a eficiência policial.

As três supracitadas hipóteses buscam verificar, basicamente, os aspectos da solução de continuidade na atividade investigativa e do desgaste biopsíquico da jornada de trabalho, e de que forma tais fatores podem contribuir para a ineficiência policial.

Como já abordado alhures, a função precípua da Polícia Civil é atuar repressivamente no combate à criminalidade, ou seja, ocorrido um fato criminógeno devem ser envidados esforços no sentido de se comprovar a sua materialidade e a respectiva autoria. Tal tarefa não é fácil, configura-se como árdua e muitas das vezes deve estar eivada de perspicácia, paciência e perseverança. As dificuldades aumentam ainda mais, principalmente no tocante à questão da elucidação da autoria do delito, quando o lapso temporal entre o fato típico e a sua persecução – início da investigação – não se dá de forma incontinenti, protraindo-se entre esses dois momentos um interstício considerável. Cada minuto, cada hora, cada dia que sucede o fato criminógeno atua como empecilho para uma atuação policial repressora eficiente. Os dados demonstram esse fenômeno perfeitamente.

In casu, como já mencionado em quadro anterior, do total de inquéritos instaurados no período sob comento, 74% se deu através da lavratura do auto de prisão em flagrante delito, patamar esse que se revela lógico, pois é nessa situação – flagare (queimar) e flagrans, flagrantis (ardente, brilhante, resplandecente) - em que se torna mais fácil a comprovação da autoria do delito. Segundo o festejado processualista penal Julio Fabrini Mirabete, o ato em situação de flagrante delito "é o ilícito patente, irrecusável, insofismável, que permite a prisão do seu autor, sem mandado, por ser considerado ‘a certeza visual do crime". [23] No flagrante, os dois requisitos básicos para o indiciamento estão bastante visíveis, palpáveis, de fácil constatação: materialidade e autoria do delito. Corroborando esse aspecto é que o legislador processual pátrio estabeleceu um prazo mais exíguo para a autoridade policial concluir o inquérito policial e encaminhá-lo à Justiça – 10 (dez) dias [24] - quando iniciado a partir de um flagrante.

Por outro lado, quando a instauração ocorrer através de Portaria, o prazo será mais elástico: 30 (trinta) dias. A justificativa é simples: nessa situação, diversamente da anterior, muitas das vezes nem a materialidade do delito estará tão explícita, imagine-se a sua autoria. Requerendo, de tal arte, um trabalho meticuloso, sério e contínuo do aparato policial, institucionalmente constituído para tal mister, objetivando a sua elucidação, respeitando, é claro, aos princípios constitucionais inerentes à dignidade da pessoa humana e da vedação às provas obtidas por meios ilícitos.

Assim, fica patente que o imediatismo na apuração do delito, pela facilidade na obtenção de indícios e de provas, está diretamente relacionado a uma maior probabilidade de êxito na investigação policial.

Na pesquisa realizada, tanto através da aplicação de questionários, como através de entrevistas e verificações in loco, identificou-se que a Polícia Civil do Piauí adota uma jornada de trabalho que se incompatibiliza com suas atribuições de polícia investigativa, o mesmo se aplicando ao contingente efetivamente dedicado às atividades afetas à elucidação dos delitos.

Nos distritos policiais da capital são adotadas, basicamente, duas jornadas de trabalho: uma de oito horas diárias e outra de vinte e quatro horas por setenta e duas horas de folga, dando-se a esta a denominação de "regime de plantão". A primeira das modalidades é exercida pelo delegado titular do distrito, escrivão de polícia e agentes de polícia que atuam especificamente na investigação policial. A outra modalidade é exercida pelos policiais dito "plantonistas" que, geralmente, são agentes de polícia, englobando, é claro, os integrantes do antigo cargo de "comissário de polícia".

O levantamento in loco constatou que a maior parte dos distritos adota a sistemática de "equipe de investigação", onde um grupo reduzido de policiais civis, de no máximo quatro, geralmente, é encarregado das atribuições de investigação, sendo auxiliados pelos policiais de plantão, os quais estão mais afetos às atividades burocráticas e administrativas – registro de ocorrências, entrega de intimações e de inquéritos policiais, vigilância do prédio e dos detentos etc.

No questionário aplicado identificou-se que menos de 15% do contingente total dos distritos da capital atua, direta e exclusivamente, na atividade de investigação criminal e que, aproximadamente, 80% do referido contingente cumpre jornada de trabalho em "regime de plantão".

Esses dois dados, por si sós, revelam o contra-senso reinante. O efetivo da Polícia Civil é insuficiente, tanto que no interior do Estado as atribuições de Polícia Judiciária são executadas, na quase totalidade, por policiais militares, inclusive no que concerne à função do "Delegado de Polícia", entretanto, o contingente existente, na quase integralidade não atua, precipuamente, no desiderato maior que é a apuração e elucidação de condutas tipicamente criminais, ficando tal tarefa sobre os ombros de um número restrito de agentes policiais, o que se revela inglório para não dizer impossível. Considerando os 7.636 (sete mil, seiscentos e trinta e seis) delitos de furto registrados no 2º semestre do ano de 2003 na cidade de Teresina, uma média de 1.273 (um mil duzentos e setenta e três) furtos por mês ou 42,4 furtos por dia, ter-se ia, aproximadamente, em se considerando "equipes de investigação" em cada distrito policial formada em média por três policiais num total de quinze unidades policiais, 0,94 delito de furto a ser apurado diariamente por cada investigador, ou seja, somente o delito de furto na cidade de Teresina seria suficiente, em muito, para extrapolar a capacidade operacional da Polícia Civil.

Acrescenta-se ainda, que apesar de os policiais plantonistas poderem atuar na investigação, essa ação revela-se, pelo fato da descontinuidade, de pouca eficiência prática. Imagine-se se um desses policiais, ao iniciar um plantão numa segunda-feira, depara-se com uma ocorrência de furto registrada no dia anterior, onde em princípio não exista qualquer indício de autoria. Será que ele seria capaz de, exclusivamente nesse dia, o dia de seu plantão, elucidar tal crime ? Em caso negativo, e considerando que só retornaria ao trabalho na sexta-feira, a investigação não sofreria solução de continuidade ?

À primeira indagação responde-se: até que poderia ser possível tal policial elucida-lo num único expediente de plantão, mas em situações gerais isso não ocorre. Por outro lado, a não ser que a vítima fosse uma pessoa "importante", onde não só outros policiais plantonistas como aqueles integrantes da "equipe de investigação" poderiam atuar no caso, a tendência seria referida investigação sofrer solução de continuidade e cair no esquecimento, pois ao retornar na sexta-feira o policial deparar-se-ia com novos casos e novas incumbências.

Esse sistema do "regime de plantão" colide frontalmente com o imediatismo e continuidade necessários e imprescindíveis às atividades de polícia investigativa, além de não se revelar imperioso que o policial civil exerça uma jornada diária de 24 horas. Cite-se, por exemplo, a jornada dos policiais federais, os quais também atuam nos serviços de polícia judiciária, só que para a União, mas cumprem uma jornada padrão diária de oito horas.

Nessa esteira de raciocínio, algumas polícias civis do país já estão implementando flexibilização na jornada de trabalho. Em junho de 2004 a Polícia Civil do Distrito Federal reformulou a escala de plantões, mediante decreto governamental, consoante veiculação na mídia escrita, verbis:

Os policiais civis trabalham numa escala de 24 horas de plantão seguidas por 72 horas de folga. Com o decreto, o GDF dividiu a carga horária da categoria em dois turnos. No primeiro, o policial trabalha por dez horas e logo em seguida descansa 24. No segundo turno, o agente atua por 14 horas, ganhando 48 de descanso. Os policiais apostam numa melhor acomodação da escala, onde a categoria e o atendimento à população não sejam prejudicados. [25]

Pensamento diferente não foi exposado pelo Delegado Marco Aurélio Marcucci ao conceder entrevista ao portal de notícias na internet "AN CIDADES", por ocasião de sua nomeação para a Delegacia Regional de Joinville-SC:

Não são necessários dois ou três policiais à noite numa delegacia. Basta um vigia cuidar do prédio. Se houver uma Central de Plantão Policial (CPP) que funcione bem, está resolvido o problema. Porque hoje o policial civil trabalha 24 horas direto e folga 48 horas. Nossa idéia é acabar com esse regime. O policial trabalha segunda-feira o dia inteiro, folga terça e quarta para voltar quinta. E perde todo o ritmo da investigação. Se eu conseguir pôr um vigia à noite pra cuidar do prédio de uma delegacia, aí já pode liberar um policial para trabalhar durante o dia. [26]

Essa atuação descontínua no combate à criminalidade que se impõe às Polícias Civis em nosso país foi identificada, também, pela Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, ao expor Relatório sobre a tortura no Brasil:

Devido ao sistema de trabalho rotativo (turno de 24 horas seguido por 48 horas de folga) e à conseqüente falta de continuidade, não há um único policial ou delegado responsável por toda a investigação policial, o que, segundo foi informado por ONG’s e alguns promotores públicos, gera sérios problemas no que tange à qualidade da investigação ... [27]

Outro aspecto constatado pela pesquisa e que depõe contra a regra-geral imperante na Polícia Civil no tocante à jornada de trabalho refere-se aos nefastos efeitos biopsíquicos proporcionados por essa rigorosa forma de execução da atividade liberal.

O município de Teresina, em face de sua localização geográfica e situando-se entre dois rios – Parnaíba e Poti – é submetido a elevadas temperaturas durante todo o ano, geralmente não inferiores a 30º C, as quais se mantêm nas proximidades dos 40º C durante os meses de setembro a dezembro, período popularmente conhecido como "br-o-bró".

Se não bastasse o caráter de periculosidade que envolve a atuação policial, a atividade exercida sob essa condição térmica inóspita revela-se altamente insalubre e desgastante, contribuindo diretamente para os baixos níveis de eficácia policial. Geralmente, a jornada diária do "plantonista" inicia-se às 7:30 h de um dia e finda-se no mesmo horário do dia subseqüente, perfazendo, assim, 24 horas / plantão. No entanto, essa jornada não é cumprida integralmente na prática, não por desídia do policial mas sim pelos seus efeitos desgastantes. Constatou-se que a partir da meia-noite a maior parte dos policiais, quando não todos, recolhem-se aos alojamentos existentes nos próprios distritos e mantêm-se a partir de então um esquema de revezamento, definido pelos próprios policiais e sem nenhuma formalidade, denominado no meio como "quarto de hora", onde apesar da impropriedade terminológica, consiste em alternar-se a cada uma hora o policial que deverá, presume-se, ficar acordado para a guarda do prédio, vigilância de preso, registro de ocorrência e caso haja uma situação de flagrância diligenciar junto aos demais policiais para se deslocarem ao local do fato.

Evidencia-se, por conseguinte, que em não acontecendo nenhum fato "policialmente relevante", o revezamento citado estender-se-á até às 07:30 h da manhã, ocasião em que a equipe de policiais plantonistas estará repassando o "plantão" para um novo grupo de policiais que chega à delegacia objetivando o cumprimento de mais uma jornada de trabalho. Isso demonstra, portanto, na prática, a existência de vácuos, de períodos intrajornada onde o policial civil não exerce qualquer atividade. Salienta-se que o período entre meia-noite e o final do plantão corresponde a quase 1/3 da jornada de trabalho do plantonista.

Depreende-se, então, e sem margem de dúvidas que a jornada de trabalho desempenhada pela maior parte do contingente colabora incisivamente para os resultados negativos constatados, por um lado em face da descontinuidade na atividade investigativa e por outro pelo desgaste biopsíquico imposto aos policiais em decorrência da jornada longa, desgastante e que acaba gerando períodos de ócio involuntário.

3.2.2 Capacitação e qualificação profissional

Nesta categoria previu-se a seguinte hipótese: o baixo nível de capacitação, em procedimentos investigatórios policiais, da maior parte do efetivo é preponderante para os resultados insatisfatórios no que concerne à elucidação de delitos de furto.

Essa hipótese partiu de uma constatação, qual seja, de que o contingente, de uma forma ampla, não possui conhecimentos básicos e/ou suficientes para um desempenho eficiente e eficaz da atividade precípua da Polícia Civil, que reside, exatamente, no desvendamento de condutas criminógenas mediante a adoção de técnicas e mecanismos dotados de um certo rigor legal e científico.

Essa deficiência de qualificação profissional no seio da Instituição decorreu de dois fatores: primeiro, a forma de recrutação histórica dos policiais civis, onde não havia a exigência do concurso público, e os baixíssimos salários aliados à periculosidade e insalubridade da atividade não eram atrativos aos cidadãos com um maior ou certo grau de instrução, o que fez com que indivíduos analfabetos e/ou sem condições psicológicas/emocionais fossem alçados à nobre função policial investigativa, o que explica, em parte, as práticas truculentas e atentatórias à dignidade da pessoa humana, com alguns resquícios ainda sendo refletidos nos dias hodiernos; e segundo, pelo fato de ao longo do tempo não ter havido uma preocupação como os processos de capacitação e qualificação profissional.

Tais fatores vêm sendo mitigados ao longo do tempo mas em patamar ainda insuficiente. A exigibilidade do concurso para ingresso no serviço público e a formação acadêmica em Direito para os delegados de polícia, frutos da Carta Política de 1988, proporcionaram uma melhoria razoável no grau de instrução dos policiais civis, o que pôde ser percebido no último concurso público realizado no ano de 2.000, onde um número significativo de agentes e escrivães de polícia aprovados já eram detentores de graduação em ensino superior. Entretanto, apesar da percepção nesse sentido, o número de policiais que ingressou nesse concurso, que além das duas citadas carreiras contemplou o ingresso de delegados de polícia, representou menos de 20% contingente então existente.

Recentemente, através da Lei Complementar Estadual nº 37 [28], de 09.03.2004, que ainda se encontra com alguns dispositivos pendentes de efetiva aplicação na prática, principalmente no tocante à remuneração estipulada, passou-se a exigir como graduação mínima para ingresso na Polícia Civil do Estado do Piauí, no tocante aos demais cargos, exceto o de delegado de polícia, a formação superior em qualquer área. Vislumbra-se, com isso, para o futuro e desde que os concursos possam ocorrer de forma mais sistemática, uma possibilidade de melhoria gradual no nível de instrução do contingente policial.

Aliado a esses aspectos, a construção de um prédio próprio para a Academia de Polícia Civil, no ano de 2.000, representou um grande avanço para a Instituição, além dos repasses financeiros anuais efetivados pelo Ministério da Justiça, através da Secretaria Nacional de Segurança Pública, para implementação de projetos na área de capacitação e formação profissional., o que passou a ocorrer a partir do ano de 2002.

Não obstante esses avanços em prol de uma melhoria na formação e qualificação do servidor policial civil, e em face dos aspectos alhures abordados, a situação atual é crítica, tanto no que concerne à amplitude de alcance dos cursos de capacitação como a periodicidade em que os mesmos são realizados.

Na pesquisa realizada, computando-se um número significativo de policiais, constatou-se que 3% nunca haviam participado de qualquer curso e que 41% só haviam participado, até então, de até dois cursos ofertados pela Instituição. Comparando-se esses dados com o tempo médio de trabalho do contingente, que oscila entre quinze e vinte anos, evidencia-se quão ineficiente tem sido o processo de capacitação na Polícia Civil, fruto de um descaso histórico tanto dos gestores da pasta como da não priorização da Segurança Pública pelos governantes estaduais.

E a situação se torna ainda mais grave quando se particulariza a espécie de treinamento a que o policial já fora submetido. Presume-se, por ser a Polícia Civil a polícia judiciária estadual, que os cursos ofertados sejam priorizados para a área de investigação e inteligência, entretanto, não foi isso que se constatou. 26% dos policias pesquisados jamais fez algum curso nessa área, 33% fez somente um curso e 26% fez somente dois cursos, ou seja, 85% do universo representativo pesquisado participou de menos de três cursos durante toda a vida profissional na Instituição.

Outro ponto que chamou atenção na pesquisa e que decorre, evidentemente, do reduzido número de cursos a que foi submetida a grande maioria dos policiais, reside no grande lapso temporal entre os cursos, ou seja, inexiste uma periodicidade razoável entre a realização de um curso e outro, o que revela, mais uma vez, uma falta de planejamento institucional. 17% dos entrevistados afirmaram que há mais de quatro anos não participam de nenhum curso; 17%, entre três e quatro anos; 13% entre dois e três anos, ou seja, 47% dos policiais pesquisados, quase a metade, há mais de dois anos não participou de nenhum curso promovido pela Instituição.

E esse cenário onde reina a baixa qualificação, principalmente no tocante à própria atividade investigativa que é a seara de atuação precípua da polícia judiciária, e que pôde ser explicitado pelos números aqui apresentados, merece ser ilustrado com o relato de um delegado de polícia por ocasião de entrevista realizada durante a pesquisa científica. Segundo referido policial, egresso do último concurso para delegado, ao assumir pela primeira vez a titularidade de um distrito deparou-se com o quadro aqui abordado, ou seja, um grupinho restrito de policiais como "equipe de investigação" e a grande maioria restante como "plantonistas". Vislumbrando que apenas o pessoal afeto aos serviços investigatórios não seria capaz de atender a demanda de ocorrências registradas diariamente, resolver implementar a seguinte prática: no início de cada plantão, cada policial plantonista receberia um número "x" de ocorrências para serem investigadas dentro de certo período, ao findo do qual seriam apresentados os resultados, através de relatório circunstanciado acerca das providências adotadas e dos resultados obtidos. Para sua surpresa, a gritaria foi geral. Um dos policiais plantonistas, após receber as ocorrências que ficariam sob seu encargo, dirigiu-se na ocasião ao delegado e o indagou sobre por onde começaria a investigação. O delegado, em tom irônico, respondeu: "meu caro, você tem vinte anos de polícia e não sabe como iniciar uma investigação, imagine eu que só tenho quatro meses".

Diante do exposto, ficou patente que o baixo nível de instrução da maior parte do contingente, aliado ao ínfimo grau de qualificação em atividades de investigação e inteligência policial contribui decisivamente para os resultados ineficazes da Polícia Civil na elucidação dos delitos objeto deste estudo. Imagine-se para a apuração de crimes que envolvem o desvio de recursos públicos, lavagem de dinheiro e aqueles praticados no âmbito da internet, os quais, dentre outros conhecimentos e habilidades, requererão o domínio de legislações administrativas e fiscais, além de conhecimentos em linguagens de programação para computador.

3.2.3. Gerenciamento administrativo e operacional

Nesta categoria foram apresentadas as seguintes hipóteses no projeto de pesquisa:

a) o fato de a maior parte do efetivo de cada distrito policial encontrar-se alocado no desempenho de atividades-meio contribui para os péssimos resultados na atividade-fim (investigação policial);

b) a distribuição desproporcional (população / incidência criminógena) do efetivo policial civil entre os diversos distritos da capital impacta negativamente no deslinde dos delitos de furto;

c) a ausência de mecanismo de avaliação sistemática da performance dos distritos policiais e, por via indireta, dos profissionais que integram o efetivo dessas unidades, proporciona um descompromisso na apuração e elucidação dos crimes de furto.

Como já abordado anteriormente, constatou-se que a quase integralidade do efetivo policial civil cumpre jornada de trabalho em regime de plantão e ficou patente que esta sistemática de trabalho mostra-se incompatível com uma eficiente e eficaz atividade investigativa. Procurou-se, então, identificar que atividades, efetivamente, os policias plantonistas desempenham num período de 24 horas.

No questionário aplicado, arrolou-se diversas supostas atividades e solicitou-se aos policiais pesquisados que escolhessem dentre as opções aquela que os policiais plantonistas desempenhavam prioritariamente. 50% do universo pesquisado indicou o registro de ocorrências como a principal atividade exercida; 35% assinalou a vigilância do prédio onde funciona a unidade policial; 12% indicou o atendimento de questões não-criminais e apenas 4% escolheu a opção investigação de ocorrências registradas.

O resultado dessa pesquisa, sem sombra de dúvidas, demonstra como o policial civil no estado do Piauí, em sua maioria, encontra-se em desvio de função. As atividades administrativas, meramente burocráticas, consomem a quase totalidade do tempo das jornadas diárias, prejudicando, dessarte, a realização de investigações e ações relacionadas à elucidação de crimes.

Consoante relatório extraído do Sistema Eletrônico de Ocorrências da Polícia Civil, desde a sua implantação até a data de 07.04.2005, haviam sido registradas 82.672 ocorrências, dessas 29.813, ou seja, 36,06%, referiam-se exclusivamente às naturezas do fato classificadas como "Perda de Documento" (33,70%), "Perda de Objeto ou Coisa" (1,34%) e Perda de Título de Crédito (1,02%).

Levantamento realizado no 1º semestre do ano de 2004 – janeiro a junho – em quatro distritos policiais da capital – 1º DP, 4º DP, 7º DP, 8º DP e 12º DP – no que concerne às citadas naturezas de fato, foi estimado e extrapolado para todos os quinze distritos policiais da capital para o período de um ano e chegou-se à conclusão que o registro de tais ocorrências, considerando-se uma média de 15 minutos para o registro individual, consumiria anualmente 6.469 horas ou aproximadamente 270 dias por ano.

Ressalta-se que ocorrências da espécie não vão gerar nenhum desdobramento no âmbito policial e a única finalidade é a obtenção por parte dos queixosos do boletim de ocorrências para que possam, por exemplo, tirar a 2ª via de um documento ou apresentar contra-ordem junto à instituição bancária.

Trata-se, assim, de uma atividade sem nenhum interesse do ponto de vista policial e que só faz consumir, de forma intensa, o tempo em serviço do já escasso efetivo policial.

Segundo a citada pesquisa, cujos resultados foram apresentados anteriormente, a atividade de vigilância do prédio da delegacia, e conseqüentemente dos presos ali detidos, ficou em 2º lugar, refletindo um dos maiores, se não o maior problema enfrentado pela Polícia Civil na capital, sob a óptica do gerenciamento administrativo. De há muito existe um colapso no sistema prisional de custódia no estado do Piauí. Há alguns meses o Secretário de Justiça e dos Direitos Humanos, diante da superlotação na Casa de Custódia, vedou a recepção de novos detentos até que a lotação carcerária se adequasse a níveis administráveis. Isso gerou, desde então, um gravíssimo problema nos distritos policiais, onde os presos começaram a se amontoar. De lá para cá, mesmo com constantes disponibilizações de vagas pelo citado estabelecimento prisional, a situação dos distritos policiais só fez piorar. Em 19.04.2005, segundo levantamento realizado pela Delegacia Geral da Polícia Civil, existiam duzentos presos nos distritos da capital, alguns deles com 16, 17, 19 e até 20 presos. [29]

Esse aspecto, representa, assim, mais um desvirtuamento de função do policial civil, o qual fica impossibilidade de exercer a atividade-fim para ficar vigiando preso, o que, entretanto, ainda assim, não tem impedido sistemáticas fugas.

Outra atividade indicada na pesquisa e que pôde ser constatada in locu é a utilização dos policiais para atendimento de demandas da comunidade que não estão diretamente afetas a uma conduta criminosa, enquadram-se nesse aspecto, principalmente, consoante denominação no meio, as famosas "brigas de vizinho" ou "brigas de família". Trata-se de situações fáticas ocasionadas geralmente em face da precariedade da infra-estrutura básica e de saneamento das habitações, principalmente aquelas localizadas em favelas e grotões, ou divergências no seio das próprias famílias e que teriam como foro adequado a Prefeitura Municipal, concessionárias de serviços públicos, órgãos de assistência social etc., mas em face da proximidade com o órgão policial e do imediatismo na solução dos problemas, conduta inerente à própria essência do ser humano, acabam por desaguar num distrito policial, desvirtuando, mais uma vez, o foco de sua atuação.

Pôde-se constatar ocasiões em que enquanto o delegado realizava uma audiência para supostamente solucionar um conflito da espécie acima referida, na sala ao lado, o escrivão, sozinho, colhia o depoimento de uma testemunha alusivo a um bárbaro crime de homicídio duplamente qualificado.

Esses aspectos, por si sós, convalidam a primeira hipótese levantada. A utilização de policiais em atividades administrativas, ou burocráticas, e o desempenho de ações afetas a questões não-criminais contribui, decisivamente, para consumir o tempo do policial civil à disposição da Instituição, colocando a atividade investigativa num plano secundário de atuação.

Quanto à segunda hipótese – distribuição desproporcional do efetivo policial entre os diversos distritos policiais desconsiderando-se os aspectos população e incidência criminógena – inicialmente buscou-se identificar o instrumento legal em que se funda a atual divisão das áreas circunscricionais afetas a cada um dos quinze distritos policiais da capital. Apesar de inquirições a delegados mais antigos, não se conseguiu identificar tal documento, havendo, inclusive, contradição no que concerne à sua espécie: se lei, decreto governamental ou simples portaria do Secretário de Segurança Pública. O único ponto pacífico acerca dessa questão foi que o atual modelo de divisão das áreas territoriais de cada unidade policial civil na capital remonta há mais de vinte anos ou até mais do que isso.

Se se pensar que em 1970 a população de Teresina era, segundo dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –, de 220.487 habitante e em 2.000 já atingira o patamar de 715.360 habitantes, e que em 1980 89,8% da população concentrava-se na zona urbana da capital, percentual que passou para 94,7% em 2000, também segundo o IBGE, aliada à proliferação de uma centena de vilas e favelas no entorno do município, evidencia-se, só por estes aspectos como a distribuição atual se encontra totalmente incompatível diante das profundas alterações, territoriais e humanas, ocorridas ao longo das últimas duas décadas.

Utilizando-se os quantitativos populacionais divulgados pelo IBGE para o ano de 2.000 no tocante à cidade de Teresina, no qual estão consignados os números de cada bairro da capital, calculou-se, de forma aproximada, a população residente de cada circunscrição policial.

Ressalta-se a impossibilidade de mensuração fidedigna, em face de o citado instituto ter indicado o quantitativo populacional por bairro, pois há casos de um mesmo bairro ter áreas em mais de uma unidade policial, nesses casos, identificou-se qual o distrito que contemplava a maior parte e incluiu-se a população daquele bairro integralmente na circunscrição do mesmo.

Eis, então, na seqüência, gráfico indicando, de forma decrescente, a população residente em cada circunscrição policial, da capital:

Analisando-se o gráfico acima se evidencia que os 05 (cinco) DP’s com maior população residente nas respectivas áreas circunscricionais – 8º, 4º, 7º, 11º e 9º - correspondem a aproximadamente 55% da população total, apesar de representarem apenas 33% do número total de distritos.

Esses 05 (cinco) DP’s, conjuntamente, apresentam uma população residente 3,58 vezes superior àqueles 05 (cinco) com menor população residente.

O 8º DP, o de maior população residente em sua área circunscricional, englobaria, sozinho, em termos populacionais, o 1º, 5º, 21º, 22º e 6º DP’s.

Esses dados, evidenciam a desproporcionalidade reinante hodiernamente, a qual poderia ser minimizada se a estrutura em termos de recursos humanos e materiais fosse disponibilizada proporcionalmente à demanda populacional, entretanto, não é o que ocorre.

Com base na população residente em cada circunscrição e nas escalas de plantão quantificou-se o número de servidores lotados em cada distrital para cada 10.000 habitantes. Eis o resultado:

A média de servidores nos distritos da capital para cada 10.000 habitantes é de 8 (oito), no entanto, alguns apresentam quantitativo inferior ou igual à metade da média, é o caso do 4º, 7º, 8º, 9º e 11º DP’s.

O 1º DP apresenta-se como o 2º melhor contingente de servidores quando considerada a população residente, porém, se comparássemos com a população flutuante, que desconhecemos, o número seria bem inferior aos 19 (dezenove) lá consignados.

Os outros dois melhores estruturados, 5º e 6º DP’s, com respectivamente 20 e 10 servidores para cada 10 mil hab., não conseguem transformar esses dados em resultados favoráveis no que concerne ao nível de eficiência, pois se encontram entre aqueles com pior desempenho no tocante ao número de inquéritos instaurados comparativamente às ocorrências registradas.

Um estudo interno da Polícia Civil, datado de outubro de 2002 e intitulado de "Perfil dos Distritos Policiais da Capital do Piauí" [30], realizado pelo então Diretor do Departamento de Polícia Judiciária da Polícia Civil, atual Unidade de Polícia Judiciária, procurou comparar as unidades circunscricionais no tocante à incidência criminógena, calculando, para tanto, a chamada "Taxa de Risco" a qual consiste, basicamente, em dividir o número de crimes, em um determinado período, pela população de determinada área e multiplicar o resultado pelo fator 10.000 ou 100.000 de acordo com o interesse do estudo. A importância da citada taxa é que permite, por utilizar valores relativos – crime / população -, comparar áreas distintas populacionalmente.

No referido estudo utilizou-se os dados do 1º semestre/2002 e seis crimes – homicídio, tentativa de homicídio, lesão corporal de natureza grave, estupro, furto e roubo -, tendo-se chegado ao seguinte gráfico indicativo da criminalidade por distrito policial:

Observa-se pelo gráfico acima, e é plenamente justificável, que a área do 1º DP seja aquela com maior Taxa de Risco, pelo fato de para ela confluírem diariamente pessoas de todos os bairros da capital, logo, em face da grande população flutuante, maior é a incidência de crimes. Por outro lado, a sua população residente é inferior a 18.000 pessoas, o que torna ainda mais elevada a taxa de risco.

O que significa uma Taxa de Risco de 904 / 10.000 hab, como a obtida para o 1º DP ? Representa que num universo de 10.000 habitantes que transitam pela área central da cidade 904 (novecentos e quatro) estão sujeitos a serem vítimas de um dos delitos acima discriminados.

Por outro lado, e diversamente do pensamento da maioria, o 5º DP não é o menos violento da capital. Abstraindo-se o 1º DP, em face de suas peculiaridades já discutidas, aquele se apresenta como o de maior Taxa de Risco, na faixa de 278 por 10.000 hab.

Já o 8º DP, em face do grande contingente populacional em sua área circunscricional, apresenta as menores Taxas de Risco, equiparando-se ao 9º DP com 84 crimes / 10 mil hab., só sendo suplantado, respectivamente, pelo 7º DP, 21º DP e 22º DP.

Pelo exposto, evidencia-se afirmativamente a ocorrência e validade da hipótese levantada. A distribuição do efetivo policial sem levar em conta os critérios populacional e da escalada criminosa potencializa os insatisfatórios resultados da Polícia Civil para a apuração dos delitos de furto.

Por fim, passa-se à análise da terceira hipótese levantada no âmbito da categoria concernente ao gerenciamento administrativo e operacional, e que diz respeito, especificamente, aos mecanismos de avaliação sistemática da performance dos distritos policiais e dos policiais que nelas atuam.

Uma das mais modernas ferramentas de gestão da atualidade são os mecanismos de avaliação de performance quanto à eficiência, eficácia e efetividade dos processos. Prática já internalizada de há muito tempo por grandes empresas, tanto públicas como privadas, em âmbito mundial. Esses mecanismos de avaliação retiram o caráter personalíssimo e subjetivo dos arcaicos métodos outrora utilizados para mensurar desempenhos de atividades e dos recursos humanos envolvidos, inserindo técnicas científicas e cálculos estatísticos com caráter eminentemente objetivo.

Um desses mecanismos corresponde aos "Indicadores de Desempenho" que são medidas para avaliar o desempenho dos processos de forma a poder melhorar os resultados ao longo do tempo, bem como aquilatar o grau de satisfação dos beneficiários de determinado processo. Podem servir de exemplos desses indicadores na seara policial: números de armas apreendidas / mês, quantidade de drogas apreendidas / mês, números de pessoas presas em flagrante delito / semana etc.

Acerca da importância da utilização dos citados indicadores para as instituições policiais, assim se manifesta Mary Ann Wycoff:

Dadas as limitações da habilidade policial em lidar com o crime e a falta de credibilidade das medidas de crimes denunciados, torna-se particularmente importante desenvolver indicadores do que as forças policiais estão fazendo em relação ao esforço de lidar com o crime. Como foi sugerido anteriormente, despender mais dinheiro ou contratar mais gente não significa "estar agindo": a questão crítica é como o dinheiro e as pessoas estão sendo usados. [31]

Luiz Eduardo Soares também defende a importância de mecanismos de avaliação, ressaltando, entretanto, que defini-los não é uma tarefa fácil, verbis:

A avaliação do desempenho policial talvez seja uma das funções mais desafiadoras e complexa de todas as que existem na segurança pública. Pode parecer que estou exagerando. Não estou. Basta examinar um exemplo banal para que se compreenda meu argumento. Digamos que haja uma queda no número de crimes cometidos, que é aquilo que se deseja e que sintetiza a finalidade do trabalho da polícia. Não seria um indicador claro do êxito policial ? Não necessariamente. A queda pode ter sido o resultado de um declínio pronunciado na qualidade dos serviços policiais em alguma região vizinha, que ofereça os mesmos atrativos aos criminosos e que, em função da decadência da performance da polícia, seriam levados a optar por agir nesse outro bairro ou nessa cidade vizinha, onde ocorreriam menos riscos de serem presos. [32]

Apesar da notória imprescindibilidade de mecanismos de avaliação de desempenho institucional e profissional de cada policial, a Polícia Civil do Estado do Piauí ainda não internalizou, dentre suas ferramentas de gestão administrativa e operacional, a utilização sistemática desses mecanismos.

E isso fica bem patente por ocasião da transferência ex officio de policiais entre os distritos policiais, por determinação do Delegado Geral ou do Secretário de Segurança Pública. É uma prática histórica no âmbito da Polícia Civil do Piauí um remanejamento geral entre os delegados de polícia da capital como primeiro ato administrativo de um Delegado Geral logo após a sua assunção nesse cargo. Essa espécie de "rodízio" não se fundamenta em nenhum sistema de avaliação objetiva, visa a somente produzir efeitos midiáticos, mudar por mudar, sendo recheado de interesses de cunho meramente pessoal ou político.

Ao praticar atos dessa estirpe, sem nenhum embasamento em critérios avaliatórios objetivos acaba-se por gerar injustiças e contribuir, ainda mais, para a baixa estima que envolve a grande maioria do efetivo policial. Gera injustiça quando, muitas das vezes, o gestor do sistema de segurança diante de uma simples denúncia contra policial, como forma de dar uma resposta pronta e rápida à sociedade, o transfere de um distrito para outro, utilizando-se da chamada prática da "verdade sabida", a qual foi extirpada do ordenamento jurídico pátrio com o advento da Carta Magna de 1988 por colidir frontalmente como os princípios constitucionais pertinentes ao contraditório e à ampla defesa. Contribui para a baixa estima porque o policial sabe que independentemente de sua atuação, mesmo por mais eficiente e eficaz que possa ser, qualquer mudança na cúpula da Instituição ou do Sistema de Segurança Pública do Estado, ou mesmo prescindindo dessa mudança, a qualquer momento poderá ser transferido para outra unidade, caindo por terra todo um trabalho desenvolvido e que já começava a frutificar.

Só para ilustrar essa questão veja-se matéria jornalística publicada na imprensa local:

O delegado geral da Polícia Civil (...) confirmou ontem que na próxima semana será feito um remanejamento entre todos os chefes de investigação das delegacias especializadas e distritais de Teresina (...) a decisão foi tomada na noite de anteontem durante uma reunião com o secretário (...) e teve como causa algumas denúncias recebidas pela cúpula da Polícia Civil, mas também terá como objetivo motivar os policiais (...) afirmou que mudanças sempre são bem-vindas, em qualquer campo de atividade, até porque os policiais que serão remanejados terão oportunidades em outras áreas da cidade, atuar (sic) com novos companheiros e conhecer novas atividades. [33]

Analisando o texto noticioso, evidencia-se que o remanejamento propalado está embasado exclusivamente em denúncias – causa subjetiva e não objetiva. Merece indagar se todos os chefes de investigação foram denunciados, se não, estar-se-á diante de uma flagrante injustiça perante os não-denunciados, além da aparente aplicação em relação os outros da acusação sob a forma de "verdade sabida". Outro aspecto interessante que deixa transparecer a intelecção do noticioso é que a decisão pelo rodízio foi proveniente de uma reunião exclusiva entre o Delegado Geral e o Secretário de Segurança, num aparente descumprimento aos princípios norteadores da Polícia Civil: hierarquia e disciplina, a partir do momento em que as demais autoridades policiais foram excluídas de tal processo decisório, o que é corroborado no final da reportagem quando o Delegado Geral explicita que os delegados titulares não terão o direito de opinar ou apontar qualquer nome. Imagine-se os graves conflitos que podem ser gerados por tal decisão. Por exemplo, se determinado chefe de investigação for escolhido para atuar num distrito cujo delegado seja um desafeto seu, a situação será realmente constrangedora e dificilmente tal escolha poderá gerar efeitos positivos no combate à criminalidade.

E o mais intrigante de tudo o que foi exposto é tentar deixar transparecer para a opinião pública que tal remanejamento poderá trazer efeitos benéficos concretos, inclusive para os próprios policiais, como se um simples chefe de investigação pudesse reverter a realidade fática criminal de uma área circunscricional, abstraindo-se toda a problemática já minudentemente abordada neste estudo.

Fica patente, assim, a importância da existência de mecanismos de avaliação de caráter objetivo para que se possa mensurar a atuação policial, tanto sob a óptica individual como do ponto de vista de uma determinada unidade ou distrito.

No entanto a implementação e eficiência desses sistemas avaliatórios está diretamente relacionada à existência de informações fidedignas, completas e que sejam sistematicamente atualizadas, aspectos esses não presentes na atual realidade da Polícia Civil do Piauí. Os processos internos, tanto administrativos como operacionais, são extremamente arcaicos, com ínfimo nível de informatização, isso se deve, em parte, acredita-se, em dois aspectos: de um lado, a dependência financeira da Instituição em relação à Secretaria de Segurança Pública, o que de certa forma tolhe eventuais intenções de se implementar mecanismos e sistema informatizados específicos para a Polícia Civil, cujos integrantes, por estarem vivenciando o dia-a-dia da corporação seriam mais qualificados para tal mister, de outro lado, pode-se atribuir à falta de visão em acompanhar as tendências modernas e tecnológicas a que foram submetidas as principais Polícias Civis do país. Só para ilustrar esse último aspecto, um ex-Secretário de Segurança, ao substituir as máquinas de escrever por computadores e impressoras em alguns distritos policiais da capital, afirmou categoricamente que havia informatizado a Polícia Civil do Piauí. Quão ingênuo e de horizonte limitado demonstrou ser esse gestor público.

Só para corroborar o baixo nível de informatização institucional e a precarização dos processos administrativos e operacionais no que concerne à produção de informações, cite-se o exemplo atinente à obtenção dos números da criminalidade.

Até bem pouco tempo, antes da implantação do sistema de Boletim Eletrônico de Ocorrências na quase totalidade dos distritos policiais e delegacias especializadas da capital era assim que eram colhidos os dados estatísticos da capital: no início da manhã um servidor da Delegacia Geral ligava para todas as unidades policiais e preenchia manualmente uma planilha com as ocorrências registradas no dia anterior, posteriormente, essa planilha era encaminhada para o DPM – Departamento de Polícia Metropolitana – para que este órgão passasse para uma planilha digitada a ser entregue ao DPJ – Departamento de Polícia Judiciária – os números alusivos aos distritos policiais, sendo o mesmo procedimento adotado para o DPE – Departamento de Polícia Especializada, órgão hierarquicamente superior às delegacias especializadas ( Polinter, Homicídios, Mulher, Menor, Entorpecentes etc.). Ao receber as planilhas digitadas do DPM e DPE o DPJ passava as informações para outra planilha no computador, que congregaria novamente as ocorrências dos distritos e delegacias especializadas.

A deficiência dessa sistemática salta aos olhos. Veja-se alguns pontos de estrangulamento. Quem garante que o policial lotado no distrito irá ser criterioso no repasse das informações, considerando que já está saindo de um plantão de 24 horas. Quem garante que o seu interlocutor, na Delegacia Geral, ouvirá de forma correta a ocorrência e o seu respectivo quantitativo. Quem garante que o servidor lotado no DPM ou DPE repassará para a planilha digitada o número correto de determinado crime, pela falibilidade humana ou por não entender a planilha preenchida a mão. Quem garante que o servidor do DPJ também não poderá incidir em erro quando do preenchimento da planilha nesse órgão. Se não bastasse tudo isso, questiona-se qual a utilidade efetiva de tais precários dados que se restringem exclusivamente a consignar em planilhas os dados absolutos da criminalidade, sem discrimina-los qualitativamente. Evidencia-se, assim, que tais informações não apresentam nenhum critério de fidedignidade e por se restringirem aos "dados brutos" desprovidos, por exemplo, de informações acerca das pessoas envolvidas – autor e vítima -, hora e local do crime, causa motivadora, não se prestam para qualquer desdobramento no tocante à análise criminal e na produção de conhecimento útil à atuação preventiva dos órgãos de segurança.

De tal arte, pelo exposto, resta indubitavelmente provada a hipótese de que a inexistência de mecanismos objetivos de avaliação sistemática do policial civil e das unidades policiais contribui decisivamente para a ineficiência e ineficácia dos delitos de furto, deixando-se transparecer que a Polícia Civil no Piauí equipara-se a um barco a deriva, incapaz de traçar metas e objetivos e de avaliar o nível de consecução dos mesmos.


4. PROPOSTAS PARA MINIMIZAÇÃO DOS RESULTADOS INEXPRESSIVOS

Considerando-se que todas as hipóteses levantadas contribuem, de alguma forma, para os ínfimos resultados de eficiência, eficácia e efetividade da Polícia Civil do Piauí no que se refere à elucidação dos delitos de furto no município de Teresina, conforme minudentemente abordado e provado no presente estudo, passa-se, neste capítulo a apresentar sugestões no sentido de se reduzir o abismo existente entre o delito praticado e o delito elucidado, indicando-se para cada uma das causas da ineficiência, aqui levantadas, uma ou algumas propostas, dotadas de possibilidade prática de implementação e que não ensejarão maiores custos operacionais e administrativos.

4.1 Concentração do efetivo policial numa jornada diária de oito horas

Como foi identificado alhures, a maior parte do efetivo policial civil da capital desempenha a atividade em jornada de trabalho em regime de plantão, laborando 24 horas e folgando 72 horas, o que gera descontinuidade das investigações e desvio de função, além da fadiga e estresse físico e mental. A idéia seria restringir ao mínimo os policiais em regime de plantão, cuja jornada ficaria adstrita, exclusivamente, aos que desempenham funções na "Central de Flagrantes", pois esta funciona no período das 18 horas às 7 horas nos dias úteis e durante 24 horas nos finais de semana e nos feriados. Cumpririam, também, o regime de plantão, nas unidades policiais – distritos e delegacias especializadas – os policiais encarregados da vigilância dos presos e do prédio público, no máximo dois policiais por unidade.

O restante do contingente – agentes de polícia, principalmente - seria alocado integralmente na atividade-fim, ou seja, na realização de diligências objetivando a produção de provas materiais e elucidação dos delitos perpetrados, laborando em jornadas diárias de 8 horas, não necessariamente no mesmo horário, podendo-se ter, por exemplo, equipes de trabalho atuando da meia-noite às 8 horas da manhã, outras das 8 horas da manhã às 16 horas e outras das 16 horas à meia-noite, até porque existe o fator limitativo dos recursos materiais – viaturas descaracterizadas, armamento, munição, algemas, equipamentos de áudio e vídeo etc. – que inviabilizaria a atuação simultânea de todas as equipes. Ressaltando-se a possibilidade de variação dessas escalas de trabalho de um mês para outro, de forma a não prejudicar um grupo específico, o que ocorreria, por exemplo, com relação aos que laborariam durante o período da meia-noite às 8 horas da manhã, o qual sem sombra de dúvidas traria um maior desgaste físico.

4.2 Massificação dos cursos de investigação policial

Deve-se focar a capacitação do efetivo policial em cursos na área de investigação e inteligência policial, sistemáticos, com conteúdos predominantemente práticos, envolvendo análise de casos reais exitosos do cotidiano policial, de forma a disseminar as boas e legais práticas de elucidação de delitos, separando-se o corpo discente de acordo com o grau de instrução e experiência profissional.

4.3 Criação do núcleo de perda de documentos / objetos / títulos de crédito

Considerando, como abordado anteriormente, que tais ocorrências, conjuntamente, representam mais de 36% do registrado nos distritos da capital e que, do ponto de vista policial, em tese, não geram qualquer desdobramento – investigação ou procedimento inquisitorial -, sugere-se a criação de um núcleo no centro da cidade, vinculado ao Instituto de Identificação, o qual centralizaria o registro de tais ocorrências, cujo serviço ficaria a cargo de quatro ou cinco servidores não-policiais e de um escrivão de polícia, aqueles para digitação das ocorrências e este para subscrever os respectivos B.O.’s, retirando-se assim o peso do registro dessas ocorrências das unidades policiais e, conseqüentemente, liberando o policial para a atividade-fim.

Além do registro dessas ocorrências, tal núcleo centralizaria também documentos perdidos, os quais representam, segundo informações de servidores do Instituto de Identificação "João de Deus Martins", especificamente no tocante aos documentos de identificação civil – carteira de identidade – quase que 40% das carteiras emitidas, ou seja, de cada 100 carteiras de identidade emitidas 40 referem-se à 2ª via.

Esse último aspecto a ser desempenhado pelo núcleo estaria eivado de um forte conteúdo social, pois iria proporcionar uma expressiva redução dos transtornos dos cidadãos que evitariam a burocracia vigente para a expedição de segundas vias de documentos, além dos custos envolvidos, pois antes de postular a expedição de um novo documento em face de sua perda haveria grande probabilidade de o mesmo se encontrar no acervo do núcleo.

Além do núcleo, tais ocorrências poderiam ser registradas através de site da Polícia Civil do Piauí na internet nos moldes já utilizados por Instituições da espécie de outros estados da Federação, citando-se, por exemplo, a Polícia Civil do Pará que desenvolveu uma delegacia virtual que contempla tal serviço, conforme tela abaixo [34]:

E com o intuito de se ampliar esse serviço utilizando-se a rede mundial de computadores, poder-se-ia instalar em locais de grande fluxo de pessoas, como por exemplo shopping centers, terminais de acesso, possibilitando-se, assim, atingir os mais diversos estratos sociais, e não somente aqueles que possuem acesso direto a computadores conectados à citada rede.

4.4 Implantação da rede de proteção social

Constatou-se que afluem diariamente às unidades policiais inúmeros casos que não se tratam, em princípio, de questão criminal, muitas vezes envolvendo atritos no âmbito familiar ou em relações de vizinhança, por causas das mais diversas, tais como desajuste social, precariedade das condições de infra-estrutura urbana etc., o que acaba por estrangular, ainda mais, o sistema policial.

Sugere-se para tais casos, a implantação de uma "Rede de Proteção Social" que consistiria na utilização dos diversos "Centros Integrados de Segurança Pública", os quais foram construídos com recursos do governo federal, através do FNSP – Fundo Nacional de Segurança Pública – para servirem de base aos programas de policiamento comunitário, mas que na realidade encontram-se subutilizados ou utilizados em fins diversos, como por exemplo o localizado no bairro Santa Maria da Codipi, onde funciona atualmente o 22º Distrito Policial e o localizado na Vila Irmã Dulce, utilizado para abrigar um P.P.O. – Posto de Policiamento Ostensivo da Polícia Militar.

A cada um desses Centros seria atribuída uma área de atuação, a qual corresponderia à área circunscricional de dois ou mais distritos. Cada Centro seria composto por equipe multidisciplinar nas áreas de Assistência Social, Psicologia e Direito, cujos profissionais seriam recrutados junto às diversas universidades públicas e privadas existentes na capital mediante convênio, sob a forma de estágio curricular obrigatório e não-remunerado.

Assim, chegando ao distrito determinado caso enquadrado como um problema eminentemente "social" e não-criminoso, conduzir-se-ia as partes para o Centro Integrado respectivo, podendo-se utilizar no mesmo idêntica sistemática de marcação de audiências adotada pelos Juizados Especiais Criminais.

Ao estagiário da área de Direito, além de orientações às partes na solução de conflitos poder-se-ia atribuir a elaboração de T.C.O.’s – Termos Circunstanciados de Ocorrência - para aqueles delitos de menor potencial ofensivo, no âmbito da Lei nº 9.099/95, os quais seriam assinados por este e pelo delegado distrital competente.

4.5 Reformulação das áreas circunscricionais na capital

Evidenciou-se que a atual distribuição das áreas circunscricionais, prevista há várias décadas, está fora da realidade hodierna da capital, tanto no que se refere aos aspectos territoriais, como populacionais e de incidência criminógena.

Dessa forma, propõe-se uma remodelação das áreas circunscricionais inerentes a cada um dos distritos policiais, levando-se em consideração, dentro do possível, a compatibilização da população residente, a área territorial envolvida e as estatísticas criminais, além de se buscar adequá-las às áreas de atuação dos Batalhões da Polícia Militar.

Posteriormente, definidas as novas áreas circunscricionais, distribuir-se-á o efetivo policial civil de forma proporcional e eqüitativa.

4.6 Implantação de sistema de avaliação de performance

Referido sistema teria por escopo mensurar através de critérios objetivos os níveis de eficiência, eficácia e efetividade de cada unidade policial, reduzindo o subjetivismo hoje reinante na tomada de decisões por parte da cúpula da Polícia Civil e da Secretaria de Segurança, imprimindo imparcialidade e segurança às decisões administrativas e operacionais.

Ressalta-se que à medida que se avalia determinado distrito policial estar-se-á, indiretamente, avaliando toda a equipe de policiais que lá labuta. O citado sistema, além de uma importante ferramenta para subsidiar decisões gerenciais poderá também ser utilizado para fins de promoção e ascensão profissional, bem como para concessão de premiações e comendas.

Ele deverá ser concebido a partir de informações oriundas do Sistema de Boletim Eletrônico de Ocorrências – já instalado em quase todos os distritos da capital – e de um Sistema de Inquérito Digital – ainda inexistente na Polícia Civil mas cujo desenvolvimento foi previsto em convênio firmado com o governo federal, através do Ministério da Justiça / Secretaria Nacional de Segurança Pública no ano de 2004.

O Sistema de Performance contemplará diversos indicadores, tais como os abaixo referidos:

a) nº de inquéritos instaurados para o delito de furto / nº de ocorrências de furto registradas;

b) nº de inquéritos de furto com autoria definida / nº de inquéritos de furto encaminhados à Justiça;

c) nº de policiais denunciados à Corregedoria / nº total de policiais denunciados àquele órgão;

d) nº de inquéritos policiais concluídos no prazo / nº total de inquéritos concluídos

A partir do resultado dos indicadores estabelecer-se-á uma pontuação para cada unidade e no início de cada mês ter-se-á o ranking dos distritos em ordem decrescente de eficiência e eficácia. De posse dessas informações, obtidas de forma criteriosa e objetiva, as cúpulas da Polícia Civil e da Secretaria de Segurança, aí sim, terão condições de tomar decisões que possam impactar positivamente na correção de distorções administrativas e operacionais, desprovidas de quaisquer vícios de subjetivismo.


5. CONCLUSÃO

Diante de tudo o que aqui foi exposto, ficou patente que a deficiência da Polícia Civil na apuração e elucidação dos delitos de furto na cidade de Teresina não se subsume aos fatores que geralmente são explicitados tanto pelos gestores do Sistema de Segurança Pública, como pela mídia e pela população em geral: efetivo insuficiente e precariedade das condições físicas e operacionais.

É verdade que tais aspectos têm importância e contribuem negativamente, mas, por outro lado, não se pode esperar que o efetivo seja suficiente e que as condições estruturais sejam as ideais, até porque em se falando de atividade policial parece uma utopia.

Existem sim, outros aspectos, os quais se apresentam mais palpáveis e de fácil solução, e como aqui constatado assumem um grau de relevância tamanha, muitas das vezes desapercebido por aqueles que labutam rotineiramente no tecnicismo da atividade policial.

A jornada de trabalho - gerando descontinuidade e incompatibilidade com a atividade investigativa, submetendo o profissional policial a uma carga inóspita e desumana de trabalho, propiciando lapsos temporais de ócio e de vícios -, o desvio de função da maior parte do contingente policial civil – alocado principalmente em atividades-meio -, a inexistência de programas sistemáticos de capacitação e valorização profissional direcionados à atividade-fim e a ausência de mecanismos de avaliação objetiva de performance tanto das unidades policiais como dos próprios policiais, são fatores que indubitavelmente obstacularizam uma atuação eficiente, eficaz e efetiva do aparato policial judiciário.

Resta-se, outrossim, esperar que os condutores do Sistema de Segurança Pública busquem, para a melhoria da atuação policial, soluções criativas, racionais e de baixo custo, as quais muitas das vezes passam por uma análise de seus processos e procedimentos administrativos e operacionais, e que se mostram capazes de modificar a realidade caótica atual.


NOTAS

  1. FILHO, Luiz Antônio Fleury. Maior eficiência no combate ao crime. O Estado de São Paulo. São Paulo. 21 de dezembro, 1990, p. 14.
  2. A demanda por delegados de polícia de carreira no Estado, sem considerar as funções administrativas e gerenciais na Delegacia Geral da Polícia Civil, engloba 15 delegacias distritais na capital, 8 delegacias especializadas na capital, 7 delegacias metropolitanas, 13 delegacias regionais no interior e pelo menos 224 delegacias distritais e especializadas no interior.
  3. BRASIL, Constituição (1998). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1998. Art. 144, § 1º, II.
  4. Op. cit., Art. 144, § 1º, I.
  5. Redação determinada pela Lei nº 9.043, de 09.05.1995.
  6. Art. 39, § 5º, do Código de Processo Penal.
  7. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, 4ª edição, p. 27 .
  8. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 03.out.1941
  9. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal - Parte Geral.São Paulo: Saraiva, 2001, 2ª edição, p. 95 e 96 .
  10. BEATO, Cláudio C. .Políticas Públicas de Segurança: Eqüidade, Eficiência e Accountability. Disponível em: < http://www.crisp.ufmg.br/polpub.pdf>. Acesso em: 15.ago.2004
  11. PAES, Vivian Ferreira. Os Desafios da Reforma: Uma Análise de Novas e Velhas Práticas da Polícia Judiciária do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.necvu.ifcs.ufrj.br/arquivos/monografia_vivianferreirapaes.pdf. Acesso em: 20.set.2004
  12. LEMGRUBER, Julita. Verdades e Mentiras sobre o Sistema de Justiça Criminal. Disponível em: < http://www.cjf.gov.br/revista/numero15/mesaredonda13.pdf>. Acesso em: 10.jul.2004.
  13. SOARES, Luiz Eduardo. Meu Casaco de General. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 84.
  14. LEMGRUBER, Julita. Verdades e Mentiras sobre o Sistema de Justiça Criminal. Disponível em: < http://www.cjf.gov.br/revista/numero15/mesaredonda13.pdf>. Acesso em: 10.jul.2004.
  15. LEMGRUBER, Julita. Verdades e Mentiras sobre o Sistema de Justiça Criminal. Disponível em: < http://www.cjf.gov.br/revista/numero15/mesaredonda13.pdf>. Acesso em: 10.jul.2004.
  16. Op. cit., p. 84-85.
  17. Fonte: Corregedoria da Polícia Civil do Piauí
  18. WYCOFF, Mary Ann. Polícia Municipal: Avaliando sua Eficácia Contra o Crime. In: GREENE, Jack R.. Administração do Trabalho Policial. São Paulo: Edusp, 1982. cap. 1, p. 19-41.
  19. Op. cit., p. 21.
  20. Op. cit., p. 23.
  21. VANAGUNAS, Stanley. Planejamento dos Serviços Policiais Urbanos. In: GREENE, Jack R.. Administração do Trabalho Policial. São Paulo: Edusp, 1982. cap. 2, p. 43-59.
  22. BEATO, Cláudio C. .Políticas Públicas de Segurança: Eqüidade, Eficiência e Accountability. Disponível em: < http://www.crisp.ufmg.br/polpub.pdf>. Acesso em: 15.ago.2004.
  23. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 1997, pág. 366.
  24. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 03.out.1941, art. 10, caput.
  25. ANJOS, Miguel dos. Policiais Civis perto de acordo com GDF. Tribuna do Brasil. Brasília. 24 de junho, 2004. Caderno Cidade & Entorno. P. B2.
  26. Portal de Notícias AN CIDADES. Posse do Novo Delegado Regional. Disponível em:<http://www.an.com.br>. Acesso em: 20.nov.2004.
  27. Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas. Relatório sobre a Tortura no Brasil. Genebra, 11.abr.2001. Disponível em: <www.global.org.br/portuguese/arquivos/tortura1.pdf> Acesso em: 15.out.2004.
  28. A referida lei é conhecida como o Estatuto dos Policiais Civis do Estado do Piauí e foi publicada no D.O.E. nº 45, de 10.03.2004., tendo sido prevista a sua entrada em vigor, consoante art. 90, na data da publicação.
  29. Ofício nº 183-GDG/05, de 19.04.2005, subscrito pelo Delegado Geral da Polícia Civil e encaminhado ao Superintendente da Divisão de Presídios da Secretaria da Justiça e dos Direitos Humanos
  30. NETO, Heitor Araripe de Sousa. Perfil dos Distritos Policiais da Capital do Piauí. [s.l.], out.2002.
  31. Op. cit., p.33.
  32. Op. cit., p. 367.
  33. NETO, Sousa. Delegado irá remanejar chefes de investigação. Diário do Povo. Teresina. 4 de junho, 2005. Ano XVIII. P.7.
  34. In http://www.delegaciavirtual.pa.gov.br

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Autor


Informações sobre o texto

Monografia elaborada para fins de avaliação final do Curso de Especialização em Ciências Criminais, modalidade <i>lato sensu</i>, promovido pela Universidade Federal do Piauí conjuntamente com o Instituto de Estudos Jurídicos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA NETO, Heitor Araripe de. Crime de furto: fatores preponderantes para a baixa resolutividade em Teresina. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 998, 26 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8165. Acesso em: 18 abr. 2024.