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A grama é verde e o transporte é obrigação de resultado

A grama é verde e o transporte é obrigação de resultado

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"Chegará o dia em que teremos que provar que a grama é verde" (GK Chesterton). Ironia que cabe perfeitamente para quem alega que transporte é obrigação de meio, e não de resultado.

Eugenio llamas Pombo, professor catedrático de Direito Civil da Universidade de Salamanca, em textos e aulas costuma utilizar bastante um ditado popular: ao pão, pão; ao vinho, vinho. Rememorando o aspecto central do Direito, o ditado nos ensina sobretudo a não misturar estações, orienta-nos sempre a dar a cada um o que é seu, definição, aliás, própria da ciência do Justo, conforme o antigo Código do Imperador Justiniano.

Outra sentença que se encaixa perfeitamente ao assunto de que falarei pertence a G.K. Chesterton, grande escritor inglês: "chegará o dia em que teremos que provar que a grama é verde".

Vivemos em um tempo tão confuso, tão marcado pelo relativismo, que em muitos campos este dia chegou. E noutros até já passou.

No Direito, a coisa toda caminha ora por uma via, ora por outra; no Direito dos Transportes, particularmente, em meio à névoa de certos assuntos, cada dia rebrilha ao menos uma certeza fundamental: a natureza jurídica do contrato de transporte.

Sabemos bem que o contrato de transporte se caracteriza por obrigação de resultado. A lei o diz, a doutrina o sustenta, a jurisprudência o referenda.

Em lides forenses, porém, encontra-se de tudo: de teses maravilhosas, cheias de vigor vanguardista e conscientes da tradição que as precede, a contestações injustificadas ao mais elementar conhecimento de contratos, sugerindo pontos dos quais praticamente ninguém duvida — nem mesmo os que os alegam. Um deles consiste em afirmar nas circunstâncias atuais que no contrato de transporte, em vez do fim que todos enxergam nele, reside na verdade uma obrigação de meio.

Ora, contratado, o transportador obriga-se fatalmente a levar pessoa ou coisa de um ponto a outro, oferecendo garantias de conservação da integridade física de uma e de outra, em respeito à cláusula de incolumidade e ao dever de cautela. Isto é, o compromisso, pela própria definição, nos parece ser com o resultado da operação.

Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Junior[1], ao comentar a natureza jurídica do contrato de transporte, chegam a reforçar o “caráter significativo de sua qualidade de “contrato de adesão””.

Os famosos doutrinadores explicam essa natureza jurídica repetindo as palavras de Fábio Konder Comparato: “Essa expressão, contrato de adesão, mais precisamente, alude a uma forma de classificar as obrigações, levando em conta o conteúdo da prestação, que, no caso da obrigação de resultado, tem como escopo o resultado econômico-social visado pelas partes, em que constitui o objeto pactuado”.[2]

A propósito, em decisão relatada pelo Ministro Luís Felipe Salomão, o Superior Tribunal de Justiça declarou no REsp 1.354.369-RJ (4ª Turma, j. 05.05.2015, v.u., DJUe 25.05.2015) que “Deflui do contrato de transporte uma obrigação de resultado que incumbe ao transportador levar o transportado incólume ao seu destino (CC 730), sendo certo que a cláusula de incolumidade se refere à garantia de que a concessionária de transporte irá empreender todos os esforços possíveis no sentido de isentar o consumidor de perigo e de dano à sua integridade física, mantendo-o em segurança durante todo o trajeto, até a chegada ao destino final”.

O que vale para o transporte de pessoas vale igualmente para o transporte de cargas.

Neste ainda se observam os deveres objetivos de guardar, conservar e restituir o bem, em perfeita simetria com a obrigação de depósito.

Salvo engano, não há decisão judicial monocrática ou colegiada, de Tribunais inferiores ou superiores, que declare que a obrigação de transporte seja de meio. A jurisprudência é uníssona, como raramente costuma ser, em afirmar no dever de transporte a obrigação de resultado. Eis três exemplos de decisões nesse sentido:

“Recurso especial. Direito do consumidor. Ação indenizatória. Companhia aérea. Contrato de transporte. Obrigação de resultado. Responsabilidade objetiva. Danos morais. Atraso de voo superior a quatro horas. Passageiro desamparado. Pernoite no aeroporto. Abalo psíquico. Configuração. Caos aéreo. Fortuito interno. Indenização devida. 1. Cuida-se de ação por danos morais proposta por consumidor desamparado pela companhia aérea transportadora que, ao atrasar PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO Apelação Cível nº 1021688-31.2019.8.26.0003 -Voto nº 4 desarrazoadamente o voo, submeteu o passageiro a toda a sorte de humilhações e angústias em aeroporto, no qual ficou sem assistência ou informação quanto às razões do atraso durante toda a noite. 2. O contrato de transporte consiste em obrigação de resultado, configurando o atraso manifesta prestação inadequada.” (REsp nº 1.280.372-SP, registro nº 2011/0193563-5, 3ª Turma, v.u., Rel. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, j. em 7.10.2014, V.U., DJe de 10.10.2014) (grifo não original)

APELAÇÃO - SEGURO AÇÃO REGRESSIVA CONTRATO DE TRANSPORTE AÉREO DE CARGA TRANSPORTE NACIONAL EXTRAVIO DE CARGA – SUB-ROGAÇÃO Pretensão de reforma da r.sentença que julgou procedente demanda com pedido de indenização em regresso Descabimento Hipótese em que ficaram comprovados o sinistro e o pagamento à segurada Extravio de carga verificado durante trecho aéreo doméstico do contrato de transporte Responsabilidade objetiva, decorrente da cláusula de incolumidade e da obrigação de resultado por ela estabelecida Indenização devida Inaplicabilidade da indenização tarifária à espécie Incidência dos juros moratórios a partir da citação, e não do desembolso da indenização, como postulado RECURSO DESPROVIDO. (Apelação nº 1054881-74.2018.8.26.0002, 13ª Câmara de Direito Privado do TJSP, Rel. Des. ANA DE LOURDES COUTINHO SILVA DA FONSECA, j. em 05.06.2020, DJe de 05.06.2020) (grifo não original)

AÇÃO DE COBRANÇA CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS CONTRATO DE TRANSPORTE DE MERCADORIAS ROUBO DE CARGA Responsabilidade objetiva da transportadora Obrigação de resultado Inteligência dos artigos 749 e 750 do Código Civil, e do artigo 7º da Lei 11.442/2007 Em regra, o roubo configura força maior que exclui a responsabilidade do transportador, consoante entendimento sedimentado no Colendo Superior Tribunal de Justiça In casu, todavia, houve descumprimento da Norma de Gerenciamento de Risco Configurado nexo causal entre a negligência da transportadora, agravando o risco da atividade, e o prejuízo sofrido Sentença mantida - Recurso desprovido, com majoração dos honorários advocatícios. (Apelação nº 0019384-50.2017.8.26.0002, 11ª Câmara de Direito Privado do TJSP, Rel. Des. MARCO FÁBIO MORSELLO, j. em 14.05.2020, DJe de 14.05.2020) (grifo não original)

Essa compreensão é até bastante tradicional e antiga no Direito brasileiro. Desde o tempo do Império, resiste, blindada na incontrovérsia da definição.

O Código Comercial de 1850, nos seus artigos 101, 102 e 103, já disciplinava o contrato de transporte como obrigação de resultado. O Código Civil em vigor desde 2003 manteve essa tradição, especialmente nos artigos 730 e seguintes. De certa forma, obrigação de resultado e contrato de transporte se confundem.

Vejamos como o Diccionário del Espanhol Jurídico, editado pela Real Academia Española e o Consejo General del Poder Judicial, define a obrigação de resultado: “Obligación que riquiere de um sujeito la consecución efetiva de um determinado objetivo”. E vejamos como o art. 730 do Código Civil Brasileiro disciplina o contrato de transporte: “Pelo contrato de transporte alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas.”

No transporte de cargas, o devedor da obrigação se compromete com um fim claro e objetivo: entregar no destino pactuado o que recebeu no mais perfeito estado em que o encontrou. A importância jurídica da obrigação de transporte vai muito além do dever de observar certa conduta, repousa no êxito de um resultado efetivo.

Ao tratar dos conceitos e diferenças entre as obrigações de resultado e de meio, a jurista espanhola Estrella Toral Lara[3], com muita propriedade, chega a dizer:

Esta distinción (aunque ha sido muy discutida) es de especial utilidad cuando la responsabilidad que se suscita es la responsabilidad civil como consecuencia del incumplimiento o de defectuoso cumplimiento del contrato.

En las obligaciones de resultado hay una búsqueda inmediata del resultado. El deudor ejecuta la prestación bajo su propio riesgo, ya que tan sólo hay cumplimiento si se produce el resultado. El cumplimiento de la obligación de resultado requiere la satisfacción del interés del acreedor consistente en la obtención del resultado.

En las obligaciones de medios el deudor se compromete al desarrollo de una determinada actividad orientada a la consecución del resultado que satisface el interés del acreedor. Si bien, en estas obligaciones sólo hay una búsqueda mediata del resultado.

Segundo a prestigiada acadêmica, nas obrigações de resultado existe uma busca imediata, objetivamente verificável, em virtude da qual o devedor abraça integralmente o risco da atividade que exerce, a cumprir-se apenas quando houver a plena satisfação de quem o contratou.  

É exato dizer que ninguém contrata um transportador para tentar levar a carga do ponto A até o ponto B, e sim, para, efetivamente, fazê-lo, tomando todos os cuidados para não avariar o bem que lhe chegou íntegro.

Afirmar o contrário soa até esquisito. Mesmo os pouquíssimos, que em litígios relacionados ao assunto defendem a obrigação de meio, e os há, assim procedem com vista a um único e preciso propósito: fugir do rigor que o sistema legal brasileiro trata a responsabilidade civil do transportador.

Salvo para gastar tinta e papel, isso de nada serve, pois o rigor de tratamento não se dá pelo fato de ser a obrigação de resultado ou não, mas por todos os elementos que circundam a responsabilidade civil do transportador.

É bem verdade que, no comentário de Toral Lara, esta “distinción (aunque ha sido muy discutida) es de especial utilidad cuando la responsabilidad que se suscita es la responsabilidad civil como consecuencia del incumplimiento o de defectuoso cumplimiento del contrato”, mas não é menos verdade que existem, no caso do transportador, outros elementos fundamentais para ditar as consequências do descumprimento ou cumprimento defeituoso do serviço de transporte.

A lei mesma determina ao contrato de transporte a estampa da responsabilidade objetiva. O transportador responde pelos danos independentemente da valoração de sua culpa, e mesmo que não se tratasse de obrigação de resultado, assim responderia por ser manejador de fonte de risco.

Dentro da concepção do Direito das Obrigações, intimamente ligado ao Direito de Danos, todo aquele que exerce atividade de risco há de responder objetivamente pelos danos causados. Em termos de danos contratuais, faz-se ainda mais presente e com mais força o conceito de manejo de fonte de risco. É o que inferimos do parágrafo único do art. 927 do Código Civil:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Isso se aplica maravilhosamente ao transportador, eis que sua atividade é circundada pelo risco, senão essencialmente de risco. Manejador de fonte de riscos nos danos extracontratuais e ambientais, responde sempre objetivamente.

Assim, os danos contratuais, assim como os extracontratuais, são disciplinados pela teoria objetiva da responsabilidade civil, implicando presunção legal de culpa em caso de dano e inversão do ônus da prova em seu desfavor. Compete-lhe, podendo e sendo o caso, provar eventual causa legal excludente de responsabilidade, a exemplo de caso fortuito ou força maior.

Outro aspecto a ser considerado, no caso específico do dano contratual, é que o credor da obrigação de transporte assume, às vezes, aquilo que se convencionou chamar de parte débil, devendo, portanto, em razão de polo verdadeiramente mais fraco da relação, se ver armada de benefícios legais e ferramentas de proteção, incluindo ao devedor a imputação objetiva de responsabilidade pelo descumprimento do pactuado.

À parte os surtos de criatividade que produz, a bem dizer, a rediscussão acerca da natureza jurídica da obrigação do transportador, na prática mesmo é irrelevante. É terraplanismo jurídico.

Esse comentário se destina justamente a relembrá-lo, evitando que a deformação das evidências, nesta crise das ciências humanas que vivemos, se imponha ao jeito de uma hipótese normal, aceitável como qualquer outra.

Dificilmente a base desta aparecerá na lei, na jurisprudência e na doutrina, pois vive mais na imaginação ávida de uns quantos inadimplentes, capazes de enxergar na verdura da grama até um azul que não está lá; e tal como as cores do gramado que verdeja ao olho comum, refulge, na obrigação consciente, o resultado que promete, sem mediações duvidosas à solidez do Direito, sem questionamentos gratuitos à sabedoria da Criação.


Notas

[1] Direito de Transportes, Thomson Reuters selo Revista dos Tribunais, São Paulo: 2020, p. 23

[2] Idem, ibidem.

[3] Curso on line, ADD20, de Especialización en Derecho de Daños, da Universidade de Salamanca. Artigo para leitura obrigatória.


Autor

  • Paulo Henrique Cremoneze

    Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

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CREMONEZE, Paulo Henrique. A grama é verde e o transporte é obrigação de resultado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6199, 21 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83209. Acesso em: 23 abr. 2024.