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Dois discursos de Jean-Jacques Rousseau

Dois discursos de Jean-Jacques Rousseau

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A doutrina do Contrato social constituiu o ponto de partida para toda uma época de direito político e para o lançamento das bases da democracia moderna.

Sumário: 1. Introdução. 2. A obra de Rousseau como produto de sua vida. 3. As duas fases. 4. O Discurso sobre as Ciências e as Artes. 5. O Discurso sobre a Origem e os fundamentos da Desigualdade entre os Homens. 6. Conteúdo e função do estado de natureza. Interfaces da desigualdade.


1. Introdução

A circunstância de ter vivido toda a sua vida no curso do século XVIII (1712/1778), aliada a alguns aspectos do seu pensamento, tem levado à crença de que Jean-Jacques Rousseau teria sido um filho típico e representante autêntico do iluminismo. Esta convicção é reforçada pelos fatos de ter ele convivido com os autores da Enciclopédia, veículo máximo de divulgação das idéias iluministas, dirigido por Diderot e D’Alembert – na qual até colaborou – e de ter concebido uma obra como o Contrato social, episódios que o inseriram no movimento de idéias que serviu de base à Revolução Francesa e o transformaram no grande apóstolo da democracia contratualista.

É inegável que a doutrina do Contrato social constituiu o ponto de partida para toda uma época de direito político e para o lançamento das bases da democracia moderna, dado que o fundamento nuclear das idéias ali lançadas é, assinaladamente, o princípio da soberania popular como sustentáculo dos sistemas democráticos. Este princípio da soberania localizada no povo – que dela é o único e real detentor – está hoje expresso em inúmeras constituições democráticas e a doutrina da vontade geral, embora um tanto confusa na sua construção, solidificou-se como princípio democrático de caráter irreversível.

É assim que, logo no início do Livro II do Contrato, Rousseau discorre sobre a inalienabilidade daquela soberania, assinalando, com ênfase, que "somente a vontade geral tem possibilidade de dirigir as forças do Estado, segundo o fim de sua instituição, isto é, o bem comum" 1, para afirmar, linhas adiante, que "outra coisa não sendo a soberania senão o exercício da vontade geral, jamais se pode alienar, e que o soberano, que nada mais é senão um ser coletivo, não pode ser representado a não ser por si mesmo, é perfeitamente possível transmitir o poder, não porém a vontade" 2.

Nasce, assim, no Livro II do Contrato, a teoria da vontade geral como expressão da soberania do povo.

É certo que o povo de 1762, data em que foi publicada a obra, não é o mesmo povo do conturbada sociedade contemporânea, resultado dos grandes processos de transformação econômico-social que ocorreram a partir daí, em uma trajetória que passa pela então nascente burguesia, atravessa a complexa tessitura gerada na era industrial, no século XIX, até alcançar os indefinidos contornos da modernidade e do mundo contemporâneo. Há entre os dois, é óbvio, uma enorme distância, seja do ponto de vista conceitual adotado na filosofia política, na esfera das ciências sociais, no âmbito das teorias do Estado e constitucional, seja quanto à natureza do estamento social em que, hoje, a classe encontra-se inserida. O povo dos setecentos era constituído, para os ideais liberais de então, de comerciantes, profissionais liberais e pessoas pertencentes do universo burguês. E foi exatamente como defensor das idéias liberais burguesas – que viriam a se tornar os ingredientes da democracia hoje tida como clássica – que Rousseau passou a figurar no elenco dos filósofos políticos.

Convém lembrar, entretanto, a interpretação que determinada vertente da filosofia política confere ao Contrato social. Para esta vertente a obra constitui, na verdade, fonte de idéias totalitárias, ditatoriais e pura exaltação da tirania. Daí as várias tendências atribuídas à teoria política defendida por Rousseau no Contrato: despotismo republicano, democracia totalitária, individualismo extremo, socialismo totalitário e outros. Para Bertrand Russell, por exemplo, Rousseau teria sido "o inventor da filosofia política das ditaduras pseudo democráticas, em oposição às monarquias absolutas tradicionais", de tal modo que, segundo ele, Hitler seria "uma conseqüência de Rousseau" 3.

Embora seja tida como uma democracia totalitária por essa corrente, a política de Rousseau retratada no Contrato social insiste no coletivo e na liberdade. Afasta-se das amarras de qualquer extremismo, sobretudo da concepção de um Estado dominador. Para Louis Dumont, é correto que "Rousseau e a Revolução [Francesa] pertencem a um mesmo desenvolvimento extremo do individualismo, o qual, retrospectivamente, se nos apresenta um pouco como um fato histórico necessário mas alguns podem preferir condenar. Entretanto, a onda revolucionária varreu, na realidade, vários pontos fundamentais do ensinamento de Rousseau, por maior que tenha sido a sua influência geral. Os aspectos totalitários dos movimentos democráticos resultam, não da teoria de Rousseau, mas do projeto artificialista do individualismo colocado em face da experiência" 4. Ainda segundo Dumont, é verdade "que esses aspectos estão prefigurados em Rousseau mas é justamente na medida em que ele estava profundamente consciente da insuficiência do individualismo puro e simples, e trabalhava no sentido de salvá-lo, transcendendo-o" 5.

Por outro lado, e sob outro enfoque, em posição oposta aos que o consideraram Rousseau um representante das Luzes estão aqueles que o consideram o fundador ou precursor do movimento romântico em França, assentado em bases inteiramente distintas e contrárias daquelas sustentadas pela Ilustração. É da índole do romantismo, como se sabe, a atitude impulsiva e vital, ao mesmo tempo volátil, voltada para a subjetividade individual. Mas dela não se exclui a visão da natureza exterior, que penetra no âmago do espírito romântico pela via radiante da criação. Não se pode confundir, portanto, esta individualidade com o individualismo cego, aliado do egoísmo, porque o que se tem em vista, naquela, é o valor da individualidade humana. É por isso que, conquanto não se possa formular um conceito preciso da essência do romantismo, certamente suas características principais são a necessidade do novo, a busca da libertação da personalidade humana dos grilhões das convenções sociais e da moral convencional, a primazia do sentido, a revolta contra as normas éticas e estéticas estabelecidas, o enaltecimento da emoção e ao culto da sensibilité 6. Nesse sentido, o movimento romântico situa-se em posição exatamente contrária e antagônica ao iluminismo, na medida em que admite e exalta o primado do sentimento e da espontaneidade natural, adotados como fonte de todos os valores contra a razão, a cultura e a civilização, de que o movimento iluminista se vangloriava. Este último, com efeito, teve como fontes principais a filosofia do racionalismo e do empirismo, que se aproximam por suas características e tendências fenomenológica e subjetivista, mas se afastam do ponto de vista metodológico de pesquisa. O racionalismo fornece ao Iluminismo a atitude cartesiana, o método crítico, a fé no conhecimento apriorístico advindo de princípios irrecusáveis, como instrumento demolidor utilizado para instaurar a luz, a evidência, a clareza e o domínio da razão; o empirismo, método oposto ao primeiro, com sua identidade indutiva, contribui com a adoção do método científico de análise da realidade: nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu.

A verdade é que, tenha ou não Rousseau sentido a influência dessa curiosa simbiose, própria do iluminismo, já se tornou lugar-comum, nas análises e referências aos seus escritos de filosofia política, o estabelecimento de um vínculo entre a sua obra e os fundamentos que serviram de suporte ao movimento de idéias dominante no século XVIII, cujos postulados, fundados no ideário liberal individualista da época, resultaram na vitória da Revolução Francesa.

Entretanto, em meio a todo esse espiral de estudos e julgamentos, é imperioso ter em conta que são inúmeros os aspectos que, necessariamente, devem ser considerados na apreciação da obra de Rousseau. O caráter rico, variado, volúvel e inconstante de suas reflexões, tantas vezes apontadas como contraditórias, exige que delas seja extraído cada acontecimento, cada instante, cada manifestação particular, para o exame dos seus escritos. É assim com a própria vida do filósofo, a influência das condições do seu nascimento, as suas doenças, o seu temperamento, a sua angústia e características de ânimo, que, embora não tenham impedido a defesa que ele fez do otimismo, fizeram dele "este ermitão sisudo e melancólico, este desiludido cuja vida termina em total escuridão e isolamento"... 07 De igual sorte, não há como entender e interpretar Rousseau sem a perspectiva dos seus Discursos, obras anteriores ao Contrato social, que constituem fonte valiosa e significativa para reflexões e que podem conduzir talvez ao ponto máximo de revelar como desesperadas e desiludidas aquelas oferecidas no Contrato.


2. A obra de Rousseau como produto de sua vida

Talvez mais do que em relação a qualquer outro filósofo ou pensador, parece impossível compreender e interpretar a obra de Rousseau sem que sejam analisadas e avaliadas as circunstâncias que cercaram o seu nascimento, a sua infância, a sua juventude, toda a sua vida enfim. Ainda que de forma resumida e ligeira. Não se trata de propor uma visão psicológica de suas manifestações, tantas vezes utilizada e tantas condenada. O que se pretende dizer é que a própria leitura de Rousseau convida a esta perspectiva. Por isso, não se pode afastar este aspecto que, no caso, contribuiu de forma decisiva para a composição do seu pensamento.

A falta quase absoluta do lar – que ele não conheceu como tal –; a leitura de livros de natureza e conteúdo diversos, muitos deles lidos quando ainda criança, como as obras de Plutarco, com as quais manteve contato aos oito anos; as desventuras vividas ao longo de sua existência, nas quais estavam sempre presentes a miséria, a privação e a humilhação; o período histórico de transição e de inquietações ideológicas em que viveu, tudo isso influenciaria de forma decisiva a construção do pensamento de Jean-Jacques Rousseau.

Sua obra reflete, com efeito, a falta de equilíbrio em que transcorreu toda a sua vida, conquanto tenha se proposto obstinadamente a dedicar-se totalmente à verdade. De fato, praticamente toda a sua obra, inclusive epistolar, é permeada pela obsessiva afirmação da busca da verdade. Em Os devaneios do caminhante solitário (Les rêveries du promeneur solitaire), por exemplo, diz com eloqüência: "A verdade geral e abstrata é o mais preciosos de todos os bens. Sem ela o homem é cego; ela é a luz da razão. É por ela que o homem aprende a se conduzir, a ser o que deve ser, a fazer aquilo que deve fazer, a tender ao seu verdadeiro fim" 8.

Nascido fraco e doente, perde a mãe alguns dias após o parto e depois de curto convívio com o pai é abandonado por este em companhia de um tio. Daí em diante, dá início a uma verdadeira peregrinação, amparado ora por um, ora por outro, inclusive por mulheres das quais se torna amante. Em meio a várias fugas e perseguições que o acompanham vida afora, desentende-se com os amigos, entre eles o filósofo Hume, que o acolhera amistosamente em uma de suas escapadas. Rousseau é tido como psicótico, misantropo e portador de espírito doentio, e não falta quem insista que ele tenha escrito por inveja a Montesquieu. Sua doença o teria levado a uma terrível mania de perseguição, causa de delírios e pânicos que foram atribuídos aos desentendimentos com os amigos e o perseguiram até quase o final de sua existência.

As desilusões que a vida lhe impôs – de nascimento, desventura, gênio e doença – certamente estão refletidas em sua obra sob a forma de inconformismo com a sociedade, de repulsa às normas de valor vigentes e de busca de um estágio humano perfeito. Por isso, a entrega à "volonté générale" no Contrato social pode significar, na verdade, a única e última salvação, como conseqüência do desespero de ver a impossibilidade do retorno ao homem natural. Daí a alienação da condição de homem de que fala na obra. Mas isso não implica estado de coerção ou arbítrio. Nem por parte da sociedade nem por instância do Estado, porque a entrega não se dá ao príncipe, mas à vontade geral, que é a única que "tem possibilidade de dirigir as forças do Estado" 9, já que é dela que provém a soberania. E é neste ponto, ou seja, quando ele admite a formação da sociedade e do próprio Estado, que se depara com uma das maiores polêmicas a respeito de Rousseau: a existência ou não de unidade em sua obra.


3. As duas fases

A questão da unidade da obra de Rousseau tem sido objeto de divergência entre os estudiosos da filosofia política e sobretudo, é evidente, entre aqueles que se dedicam de modo mais direto à sua produção intelectual.

Ernst Cassirer rechaça a tese de ruptura, assinalando que mesmo em idade avançada "Rousseau não se cansou de defender e afirmar a unidade de sua obra" 10. Nesse sentido, anota que, para Jean-Jacques, O Contrato social "não é uma dissidência daquelas idéias fundamentais que tinha defendido em seus dois escritos sobre as questões do concurso da academia de Dijon; ao contrário, é a continuação lógica e o aperfeiçoamento deles" 11. Cassirer, aliás, revela-se incansável defensor da unidade dos escritos de Rousseau, centrando sua exposição nas temáticas da liberdade e do imperativo ético, sempre presentes no pensamento do filósofo de Genebra. Segundo ele, "apesar de todos os antagonismos aparentes, o Discurso sobre a origem da desigualdade e o Contrato social coadunam-se e complementam-se. Ambos contradizem-se tão pouco que só se pode explicar um a partir do outro e um através do outro. Quem considera o Contrato social um corpo estranho na obra de Rousseau, não compreendeu o organicidade espiritual dessa obra. Todo interesse de Rousseau e toda a sua paixão fazem parte de um modo ou de outro da doutrina do homem, mas ele compreendeu agora que a questão ‘o que o homem é’ não pode ser separada da questão ‘o que ele deve ser’" 12. E é verdade que o próprio Rousseau defendeu esta unidade do seu sistema, como está nas suas Confissões.

Contudo, a despeito da posição segundo a qual em momento algum teria havido quebra ou rompimento de posição ao longo dos escritos de Rousseau, não há negar a procedência da discussão e a razão daqueles que distinguem os vários matizes contidos em seus trabalhos.

Admite-se ser razoável considerar que, vistos os Discursos e o Contrato social como um esboço do desenvolvimento humano, expressão antropológica e histórica, pode-se descobrir certa coerência e o perfil complementar do Contrato em relação aos Discursos. A propósito, segundo Claude Lévi-Strauss, em análise voltada principalmente para o Discurso sobre a desigualdade, Rousseau teria sido o fundador das ciências do homem, e "sem receio de ser desmentido, pode-se afirmar que ele havia concebido, querido e anunciado a etnologia um século inteiro antes que ela fizesse a sua aparição, colocando-a, de pronto, entre as ciências já constituídas" 13.

Sem prejuízo de tal enfoque, parece correto entender que a apreciação dos escritos de Rousseau deve ter em conta os diversos momentos de sua produção (até mesmo como manifestação de sua vida, já dito), uma vez que cada um deles representa, talvez, um painel definido e distinto dos demais, tamanho é o caráter multifário da sua obra. E, não obstante o entendimento de que a formação do pacto social preconizada no Contrato seja uma evolução das idéias anteriores a respeito da vida isolada na natureza, há marcante divisão situada na fronteira entre os seus primeiros discursos mais famosos – Discurso sobre as ciências e as artes e Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens – e O contrato social.

A ruptura é ideológica. E ocorre com o advento do Contrato, dada a distinção que se põe entre a atitude revolucionária e iconoclasta adotada nos Discursos e aquela que proclama a "volonté générale", decorrente do pacto, e da submissão à lei (como vontade geral) que esta provoca. Submissão desolada e sentida, como solução extrema.

Não se descarta a visão de complementariedade assinalada por Cassirer. Do mesmo modo que não pode ser desprezada a óptica triádica a que se refere Norberto Bobbio, segundo a qual a concepção de Rousseau sobre o desenvolvimento histórico da humanidade passa por três estágios, a saber, estado de natureza, sociedade civil e república, esta última fundada no Contrato social, concepção esta em que "o momento negativo, que é o segundo, aparece colocado entre dois momentos positivos" 14. Mesmo porque, há certa semelhança entre a complementariedade e a referida visão triádica, que revelam um movimento de continuidade sem caráter antitético. Mas, se há evolução (ou complementariedade), há também diferenças. São distintas as formas de enfoque e compreensão do próprio homem adotadas nos Discursos e no Contrato. Não há como negar a presença da dicotomia representada pelo estado de natureza e estado de sociedade, em que se revelam situações contrapostas. No primeiro Discurso não existe o elemento político (como atuação do homem na polis); no segundo, este elemento só surge para apontar a corrupção do homem natural causada pela civilização e pela cultura; no Contrato, a presença deste elemento é patente, tanto que o livro leva o subtítulo de Princípios de direito político. Lembre-se, por exemplo, a questão da propriedade privada, que é totalmente repudiada no Discurso sobre a origem e a desigualdade, e, de certa forma, aceita no Contrato social.

Pode-se admitir, portanto, que o novo estado – o social –, objeto de busca do homem com o móvel único da conservação, à qual Rousseau faz diversas referências no Contrato exatamente para justificar a agregação (no que, aliás, aproxima-se de Hobbes), seja uma evolução do estado primitivo, que teria se tornado insuportável diante das dificuldades.

A propósito, diz ele, no item VI do Livro I do Contrato social:

"Eu imagino os homens chegados ao ponto em que os obstáculos prejudiciais à sua conservação no estado natural, os arrastam, por sua resistência, sobre as forças que podem ser empregadas por cada indivíduo a fim de se manter em tal estado. Então esse estado primitivo não tem mais condições de subsistir, e o gênero humano pereceria se não mudasse a sua maneira de ser.

Ora, como é impossível aos homens engendrar novas forças, mas apenas unir e dirigir as existentes, não lhes resta outro meio, para se conservarem, senão formando, por agregação, uma soma de forças que possa arrastá-los sobre a resistência, pô-los em movimento por um único móbil e fazê-los agir de comum acordo" 15.

Mas é justamente aí que está situado o corte entre o momento dos dois Discursos e o momento do Contrato, pois são patentes a distância e o caráter antitético (ou contraditório?) da concepção inicial do homem isolado e vagabundo, irresponsável, bom, vivendo em perfeito estado natural – único possível – e a agregação para a formação da sociedade civil e do próprio Estado. E nesse sentido cabe assinalar que naquela primeira situação (de estado natural) não se pode cogitar da idéia de barbárie, que alguém possa pretender, como ironizou Voltaire, com sua crítica mordaz, sobretudo porque o que ela sustenta é a original bondade da natureza humana.

Do exposto, já se percebe que, para além de revolucionários dentro da própria Ilustração, os Discursos contêm manifestações tipicamente anarquistas – autenticamente anarquistas, no verdadeiro sentido da palavra –, elemento que, definitivamente, não é encontrado no Contrato social.


4. Discurso sobre as ciências e as artes

O Discurso sobre as ciências e as artes data exatamente da metade do século XVIII (1750) e foi escrito, como se sabe, para concorrer ao prêmio oferecido pela Academia de Dijon ao melhor ensaio a respeito da questão por ela proposta sobre se o restabelecimento das ciências e das artes teria contribuído para o aprimoramento dos costumes. A indagação dirige-se nítida e diretamente aos resultados da atividade intelectual humanista e aos valores iluministas então imperantes, tendo, assim, cunho marcadamente setecentista.

A resposta, diante do quadro da época, haveria de ser, pois, positiva, mas Rousseau prefere a negativa que, segundo se conta, teria sido sugerida por Diderot, para que ele se diferenciasse dos demais concorrentes, que certamente fariam a apologia das luzes e da razão . As reflexões do Discurso tinham o propósito de obter o prêmio. E ele foi obtido. Não se pode afirmar com certeza o teor do conselho de Diderot, embora exista uma referência a este respeito em uma correspondência, não dele, Rousseau, mas de terceiro. Rousseau diz apenas, nas Confissões, que realmente mostrou o Discurso a Diderot quando foi visitá-lo na torre de Vincennes, em que o amigo se encontrava preso, expondo-lhe a causa e o conteúdo do trabalho, e que, nesta oportunidade, Diderot aconselhou-o "a dar largas às minhas idéias e a concorrer ao prêmio" 16. A narrativa deixa claro que a idéia e o conteúdo já existiam na mente de Rousseau.

Rousseau exalta no referido Discurso a ignorância inocente, que para ele é o estado em que está a fonte da virtude:

"O espírito tem as suas necessidades, bem como o corpo. Estas são os fundamentos da sociedade; aquelas constituem o seu deleite. Enquanto o governo e as leis provêm a segurança e o bem-estar dos homens reunidos, as ciências, as letras e as artes, menos despóticas e quiçá mais poderosas, estendem guirlandas de flores às cadeias de ferro a que os homens estão presos, neles sufocam o sentimento dessa liberdade original para a qual pareciam ter nascido, fazem-nos amar a própria escravidão, e criam o que se costuma chamar de povos policiados. A necessidade ergueu os tronos; as ciências e as artes os consolidaram. Poderosos da Terra, amai os talentos, e protegei os que os cultivam! Povos policiados, cultivai-os! Venturosos escravos, deveis a eles esse gosto delicado e fino com o qual vos picais, essa doçura de caráter e essa urbanidade de costumes que corrompem entre vós o comércio tão afável e tão fácil; numa palavra, as aparências de todas as virtudes, sem que haja alguma" 17.

Esse trecho, sobre traduzir verdadeiro ataque aos aludidos padrões iluministas de pensamento, permite mesmo a já assinalada identificação de conteúdo anarquista (como em outros pontos). Além do forte e transparente conteúdo rebelde que contém, verifica-se que é visível a aversão de Rousseau ao que ele chama de povos policiados, que faz derivar do progresso das ciências, das letras e das artes engendradas para sufocar a liberdade e estabelecer a escravidão. Na mesma passagem, Rousseau insurge-se, ainda, contra os tronos e seus detentores, mantidos e sustentados pelos cultores das ciências e das artes.

Na crítica à sociedade ornada com as sutilezas das ciências e das artes, Rousseau lembra a uniformidade de procedimento, lançando farpas a um estereótipo criado pela própria artificialidade social, que lhe parece tão vulgar e tão mesquinha na sua polidez. A sociedade, para ele, tal como se apresentava, não passa de um rebanho, que trilha às cegas os caminhos que lhe são mostrados:

"Não mais se ousa parecer o que se é; e, nesse perpétuo constrangimento, os homens, que formam esse rebanho a que se denomina sociedade, colocados nas mesmas circunstâncias, farão todos as mesmas coisas se motivos mais poderosos não os desviarem" 18.

Só a existência destituída dos adornos das ciências e das artes impostas de forma coativa ao homem pode levar à virtude, pois todo o resto é aparência. Só a ignorância pode levar o homem à virtude, sendo certo que as instituições trazidas pelo conhecimento (ciências e artes) são desnecessárias para alcançá-la e constituem o seu oposto, caracterizando-se como resultantes de más inclinações e vícios. O mito da ignorância inocente atinge a categoria de dogma e para Rousseau as ciências e as artes só trazem traição, falsidade, polidez enganosa e prisão. Segundo ele, o homem em seu estado de natureza é fundamentalmente bom. Quando impulsionado pela curiosidade, quer saber algo, vai perdendo a inocência na medida em que adquire conhecimentos. Por conseguinte, pureza e sabedoria resultam antagônicas. Antecipa-se, dessa forma, a sua tese sobre o homem natural em contraposição à sociedade, que irá desenvolver no Discurso seguinte.


5. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens

Analisar o conteúdo do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens implica, antes de mais nada, detectar e experimentar a contraposição posta por Rousseau entre o estado de natureza e a sociedade civil, pois é este o modelo do seu primeiro momento (antes do Contrato social). Nesse primeiro momento, os elementos constitutivos são os indivíduos singulares e isolados, não associados, que não atuam segundo e conforme a razão, mas consoante as paixões e os instintos; no segundo, o elemento constitutivo é a união dos indivíduos isolados e dispersos. Trata-se, aqui – no estado da sociedade civil –, de um de um estado artificial, corrompido e contrário à natureza do homem.

Revela-se, assim, a teoria do bom selvagem, que se propõe a apresentar o homem em seu estado natural, adverso à sociedade organizada. Já não se trata mais, portanto, da apologia da ignorância apresentada por rústicos exemplares de civilizações antigas, mas da exaltação do estado natural que teria existido antes de qualquer espécie de civilização e no qual o homem, nascido bom, ainda não havia sido depravado pela sociedade, que é a causa de todo o mal. O estado de natureza, puro e verdadeiro, é, pois, o estado selvagem no qual os homens foram criados e viveram durante milhares de anos; implica o isolamento vagabundo, a ausência de toda a linguagem, de toda a relação regular, o sono da razão e o desconhecimento da moralidade.

Antes, porém, de demonstrar as causas da desigualdade, identificá-las no progresso e em outros fatores, Rousseau distingue duas espécies de desigualdades:

"uma, que chamo natural ou física, porque foi estabelecida pela Natureza, e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças corporais e das qualidades do espírito ou da alma; outra, a que se pode chamar de desigualdade moral ou política, pois que depende de uma espécie de convenção e foi estabelecida, ou ao menos autorizada, pelo consentimento dos homens. Consiste esta nos diferentes privilégios desfrutados por alguns em prejuízo dos demais, como o de serem mais ricos, mais respeitados, mais poderosos que estes, ou mesmo mais obedecidos" 19.

A primeira espécie de desigualdade não requer qualquer tipo de indagação, pois é oriunda da própria natureza e nela encontra a sua resposta. Nem há ligação entre as duas.

Estabelecida a distinção, importa saber que a desigualdade política é fruto e resultado do progresso das coisas e é isto que Rousseau vai procurar demonstrar ao longo de todo o Discurso. Mas, para tanto, adverte desde logo que não irá perquirir a forma que possa ter adquirido o homem desde a sua origem nem preocupar-se com as transformações físicas e anatômicas que possa ter sofrido, pois, segundo ele, as observações dos naturalistas a este respeito ainda não permitiram a fixação de uma base correta.

Parece tratar-se, na verdade, de uma concepção inteiramente abstrata do homem natural, inteiramente desligada e desvinculada da sua existência física real e despida de base sensível ou experimental. Todavia, tal ser adquire logo familiaridade, quando o seu modo de agir é identificado com o de qualquer ser humano:

"Vejo-o saciando-se sob um carvalho, dessedentando-se num ribeiro, deitando-se ao pé da mesma árvore que lhe forneceu o alimento; e eis com isto suas necessidades satisfeitas" 20.

O homem em estado de natureza é robusto, são e ágil; acostumado às intempéries desde o nascimento, sabe reagir e adaptar-se à natureza e às suas exigências. É, assim, naturalmente bom e só por força das instituições é que se torna mau. O estado originário do homem era um estado feliz e pacífico, uma vez que ele, satisfeito na natureza e sem necessidades outras que não aquelas que nela encontra, não se via no dever de se unir a seus semelhantes nem combatê-los.

Essas reflexões representam ao mesmo tempo a antítese da doutrina do pecado original e da salvação por meio da Igreja e da teoria de Hobbes, segundo a qual o homem é o lobo do homem e vive em estado de guerra. Cabe atentar, contudo, para a observação de Bobbio, para quem "o que Rousseau critica em Hobbes não é ter formulado um estado de guerra total, mas de tê-lo atribuído ao homem de natureza e não ao homem civil" 21. Tanto que Rousseau diz que as usurpações dos ricos, o banditismo dos pobres, as paixões desenfreadas de todos geram um estado de guerra permanente. E neste ponto está em harmonia com Hobbes. A diferença é tópica e localizada na concepção, já que Rousseau não admite tal situação no homem da natureza, mas já no homem componente da sociedade civil (que é corrompida e cujas causas de corrupção ele aponta).

Alguns intérpretes das reflexões de Rousseau sobre o estado de natureza e a crítica à sociedade civil pretendiam vê-las como um desejo de retorno à animalidade. A tal propósito, narra-se curioso incidente sobre a mordaz resposta que lhe foi dada por Voltaire, após ter recebido o Discurso da desigualdade: "Recebi seu novo livro contra a raça humana" – diz Voltaire – "e agradeço-lhe por isso. Nunca se empregou tanta inteligência com o fim de nos tornar a todos estúpidos. Lendo-se seu livro, tem-se vontade de andar de quatro patas. Mas como já perdi esse hábito há mais de sessenta anos, vejo-me, infelizmente, na impossibilidade de readquiri-lo. Tampouco posso dedicar-me à busca dos selvagens no Canadá, porque as doenças a que estou condenado me tornam necessário um médico europeu; porque a guerra continua nessas regiões; e porque o exemplo de nossas ações tornou os selvagens quase tão maus quanto nós" 22. É claro que o comentário provocador há de ser creditado à ferina ironia de Voltaire.

Outros críticos aproximaram Rousseau dos cínicos gregos, especialmente Diógenes de Sínope (413/323 a. C.). Os cínicos, como se sabe, exaltavam a vida natural, procurando o seu modelo nos animais, e teriam acatado com honra o título de cães (Kynes), que é talvez a origem do nome da escola. Sabe-se também que, nessa linha, os cínicos propuseram um modelo de comportamento ético fundamental e a necessidade de afirmação individual contra uma sociedade alienante e coativa. A grande virtude era a liberdade – que muitos levaram ao exagero, como o próprio Diógenes, de quem se diz ter vivido como um cão – liberdade de pensar, de agir e de falar.

Rousseau inicia a segunda parte do Discurso apontando a causa da formação da sociedade civil, que é o resultado da evolução da convivência dos homens na terra. Esta convivência foi sendo preenchida com maus sentimentos na proporção em que aumentavam as necessidades e descobertas cada vez maiores de engenhos capazes satisfazer aquelas necessidades. E a propriedade é a grande causa por ele apontada como geradora da sociedade civil e da desigualdade.

Eis o trecho:

"O primeiro que, cercando um terreno, se lembrou de dizer: ‘Isto me pertence’, e encontrou criaturas suficientemente simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Que de crimes e guerras, de assassinatos, que de misérias e horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, desarraigando as estacas ou atulhando o fosso, tivesse gritado aos seus semelhantes: Guardai-vos de escutar este impostor! Estais perdidos se vos esqueceis de que os frutos a todos pertencem e que a terra não é de ninguém" 23.

O texto não parece de um homem ligado às idéias liberais burguesas que influenciaram uma revolução igualmente liberal. Aproxima-se mais – e muito mais – dos ideais socialistas e anarquistas do século XIX e do começo do século XX, brandindo a bandeira da abolição da propriedade privada. Está muito próximo, na verdade, da síntese prudhoniana de que a propriedade privada é um roubo. Eis aí a causa da formação da sociedade civil, o nefasto motivo do desmoronamento do mundo natural em que o homem selvagem vivia em estado pacífico e em sua bondade natural. Mas para alcançar o estágio em que esta causa aparece foi necessário "conseguir muitos progressos, adquirir muita indústria e muitas luzes, transmiti-los e aumentá-los de idade em idade, antes de se chegar ao derradeiro termo do estado natural" 24.

A formação da sociedade civil, portanto, desde a própria identificação do homem consigo mesmo, isto é, desde o sentimento de existência, deu-se de forma lenta, sendo certo que as associações só ocorriam, primitivamente, nas ocasiões em que eram necessárias. Passada a necessidade imediata e sensível, desmanchava-se o grupo. Eis como os homens puderam adquirir insensivelmente alguma idéia dos compromissos e da conveniência de cumpri-los.

É importante notar, como já foi assinalado, que já neste Discurso Rousseau refere-se à conservação como primeiro cuidado do homem, e é desta concepção que ele vai lançar mão para justificar a agregação decorrente da impossibilidade de subsistência do estado natural primitivo, como está no Contrato social. Encontra-se aí, para alguns estudiosos, o acabamento, o remate do pensamento da obra de Rousseau a respeito da formação da sociedade civil e, posteriormente, do Estado: estado de natureza, sociedade civil e Estado como três etapas sucessivas, sendo o último fundado no pacto social.

A metalurgia e a agricultura, por sua vez, também dão origem à propriedade e promovem completa revolução no desenvolvimento da sociedade civil. E cada novo progresso obtido leva o homem a novas descobertas, pois quanto mais o espírito for esclarecido "mais a indústria se aperfeiçoa" 25, tendo sido o fato de servir-se de cabanas, que só foi possível com o encontro de machados e pedras cortantes, "a primeira revolução que formou o estabelecimento e a distinção das famílias e introduziu uma classe de propriedade, de que, provavelmente, nasceram bastantes pendências e combates" 26.

A leitura atenta do texto faz crer que, se foram a metalurgia e agricultura as origens da propriedade, elas só surgiram da necessidade de agregação e é nesta agregação que repousa originariamente o esfacelamento da igualdade, junto com o aparecimento da propriedade privada e o desenvolvimento.

Eis a passagem que esclarece:

"...numa palavra, enquanto se dedicaram às obras que podiam ser feitas individualmente, às artes que não necessitavam de numerosas mão, viveram livres, sãos, bons e felizes, tanto quanto o podiam ser por sua natureza, e continuaram a desfrutar enter si de um comércio independente; mas desde o instante em que um homem teve precisão de ajuda de outrem, desde que percebeu ser conveniente para um só ter provisões para dois, a igualdade desapareceu, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas se mudaram em campos risonhos que passaram a ser regados com o suor dos homens, e nos quais logo se viu a escravidão e se viu a miséria germinar e crescer com as colheitas" 27.

De novo a repulsa à sociedade, que ele já tratara com tanto desdém no Discurso anterior, chamando-a rebanho e apontando-a como submissa a uma estúpida uniformidade de procedimento. Seria a revolta pessoal, a indignação contra o estrutura social que tanto o perseguiu, recalque e traumas contra as suas próprias condições?

Estabelecidos os pressupostos da formação da origem e da desigualdade, Rousseau lança, então, a sua conclusão no sentido de que, inexistente no estado natural, ela agiganta-se no aperfeiçoamento das faculdades e progressos humanos, para arrematar que a desigualdade moral é contrária àquele estado sempre que não coincida com a desigualdade provinda daquela própria condição.

Diante de tantas e tão diversas opiniões já manifestadas sobre Rousseau, não se pode negar que seus dois discursos mais famosos estão impregnados de anarquismo, mesmo sabendo-se que esta expressão tem conotação variada e muitas vezes ambígua, que transita nas áreas da filosofia, da política, das ciências sociais, alcançando mesmo a adoção de um estilo de vida. O termo é recheado de significados, que se alteram conforme a perspectiva em que é examinado. No sentido etimológico, como é sabido, implica falta de autoridade, ausência de governo. O uso do vocábulo tem indicado "uma sociedade livre de todo o domínio político autoritário, na qual o homem se afirmaria apenas através da própria ação exercida livremente num contexto sócio-político em que todos deverão ser livres" 28. Além disso, anarquismo significou e significa "a libertação de todo o poder superior, fosse ele de ordem ideológica (religião, doutrinas, políticas, etc.), fosse de ordem política (estrutura administrativa hierarquizada), de ordem econômica (propriedade dos meios de produção), de ordem social (integração numa classe ou num grupo determinado), ou até de ordem jurídica (a lei). A estes motivos se junta o impulso geral para a liberdade. Daí provém o rótulo de libertarismo, atribuído ao movimento e de libertário, empregado para designar o que adere ao libertarismo" 29. Trata-se, portanto, de movimento que confere ao homem e à coletividade a liberdade de agir sem se submeter a qualquer espécie de autoridade, exceto os obstáculos existentes na própria natureza.

Bernard Groethuysen, grande estudioso do filósofo, diz mesmo que Rousseau "pourrait être comparé à um révolutionnaire d’aujourd’hui, qui, conscient de ce que la société n’est pas ce qu’elle doit être, envisagerait à la fois une solution d’um caractère socialiste et une autre d’un caractère anarchiste " 30. E mais adiante, na mesma obra, acrescenta: "Il fut em quelque sort anarchiste par nature, et socialiste par amour" 31.

No Discurso sobre a ciência e as artes e no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens Rousseau vai além da repulsa ao Estado: insurge-se contra a sociedade – e, mais, a sociedade desigual – e contra todos os fatores que aprisionam o indivíduo nela inserido. É possível identificar, então, o Rousseau anarquista, como parece fazer Rafael Gumcio, para quem a partir de Rousseau "encontramos una crítica radical del Estado, que se desarrolla y radicaliza com los pensadores anarquistas, los cuales plantean su abolición o extinción". 32


6. Conteúdo e função do estado de natureza. Interfaces da desigualdade

O estado de natureza pode estar representado em Jean-Jacques Rousseau como estágio histórico no desenvolvimento humano; como revelação de um estado primitivo da vida do homem, em que não lhe afligia qualquer mal. Pode-se afirmar, de outra parte, que o estado de natureza seja uma história imaginária, que tem igualmente função ética, na medida em que é usada para demonstrar a degradação da humanidade a partir do momento em que deixou de viver aquele estado para formar a sociedade civil. E, ainda, que os dois Discursos são constituídos de abstração situada no plano do pensamento, pensamento, ou seja, dotados de tradição racional, que revelam o estado de natureza e o progresso cultural como fatos históricos e como uma idéia reguladora ao mesmo tempo, com propósito de afirmação ética. Fatos prováveis, mas impregnados de finalidade ética.

Mas não há como omitir a marca de conteúdo anarquista dos Discursos, verdadeiros libelos contra o artificialismo da civilização, a sociedade civil e a desigualdade social.

Assim como está claro que Rousseau deixa emergir, com a procura do estado de natureza, a busca do paraíso perdido, distante no tempo e na possibilidade de realização, bem ao gosto dos desiludidos.


Referências bibliográficas

BOBBIO, Norberto e BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na filosofia política moderna, tradução de Carlos Nelson Coutinho, São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.

CASSIRER, Ernst. A questão Jean-Jacques Rousseau, tradução de Erlon José Paschoal , Jézio Gutierre, São Paulo: Editora UNESP, 1999.

DUMONT, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna, tradução de Álvaro Cabral., Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

MORETTO, Fúlvia Maria Luiza. Nota a Os devaneios do caminhante solitário. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986.

RUSSEL, Bertrand. História da Filosofia Moderna, tradução de Brenno Silveria, São Paulo: Companhia Editora Nacional, vol. IV, 1969.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato social, in O Contrato Social e outros escritos, tradução de Rolando Roque da Silva, São Paulo: Editora Cultrix, s/d.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. As confissões, tradução de Wilson Lousada, Editora Tecnoprint S. A (Ediouro), s/d.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes, in O contrato social e outros escritos, tradução de Rolando Roque da Silva, São Paulo: Editora Cultrix, s/d.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, in O contrato social e outros escritos, tradução de Rolando Roque da Silva, São Paulo: Editora Cultrix, s/d.


Notas

  1. ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato social, in O Contrato Social e outros escritos, tradução de Rolando Roque da Silva, São Paulo: Editora Cultrix, s/d, p. 38.

  2. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Op. e loc. cit.

  3. RUSSEL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental, tradução de Brenno Silveria, São Paulo: Companhia Editora Nacional, vol. IV, 1969, p. 230.

  4. DUMONT, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna, tradução de Álvaro Cabral., Rio de Janeiro: Rocco, 1995, p. 102.

  5. DUMONT, Louis. O Individualismo... cit., p. 102-103.

  6. RUSSEL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental cit., p. 219.

  7. CASSIRER, Ernst. A questão Jean-Jacques Rousseau, tradução de Erlon José Paschoal , Jézio Gutierre, São Paulo: Editora UNESP, 1999, p. 76.

  8. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os devaneios do caminhante solitário, tradução de Fúlvia Maria Luiza Moretto Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986, p. 56-57. No texto original: "La vérite générale et abstraite est le plus précieux de tous les biens. Sans elle l’homme est aveugle; elle est l’oeil de raison, C’est par elle que l’homme apprend à as conduire, à être ce qu’il doi être, à faire ce qu’il doit faire, à tendre à sa véritable fin".

  9. ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social cit., p. 38.

  10. CASSIRER, Ernst. A questão Jean-Jacques Rousseau cit., p. 54.

  11. CASSIRER, Ernst. Op. e loc. cit.

  12. CASSIRER, Ernst. A questão... cit., p. 64.

  13. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural Dois, Jean Jacques Rousseau Fundador das Ciências do Homem, tradução de Tânia Jatobá, Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1993, p. 41. Trata-se de um discurso proferido pelo autor em Genebra nas comemorações do 250º aniversário de nascimento de Jean Jacques Rousseau, em 1962.

  14. BOBBIO, Norberto e BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na filosofia política moderna, tradução de Carlos Nelson Coutinho, São Paulo: Editora Brasiliense, 1986, p. 55.

  15. ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social cit., p. 29-30.

  16. ROUSSEAU, Jean-Jacques. As confissões, tradução de Wilson Lousada, Editora Tecnoprint S. A (Ediouro), s/d., p. 232. A sugestão, na realidade, não parece ter vindo de Diderot. Salvo incompreensível equívoco de Rousseau, a idéia surgiu quando ele deu com a notícia do prêmio a caminho da prisão de Vincennes

  17. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes, in O contrato social e outros escritos, tradução de Rolando Roque da Silva, São Paulo: Editora Cultrix, s/d, p. 210/211.

  18. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências... cit., p. 212.

  19. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, in O contrato social e outros escritos, tradução de Rolando Roque da Silva, São Paulo: Editora Cultrix, s/d, p.143.

  20. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem... cit., p.146.

  21. BOBBIO, Norberto. Sociedade e Estado... cit., p.56.

  22. RUSSEL, Bertrand. História... cit., p. 234-235.

  23. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem... cit., p. 175.

  24. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem... cit., p. 175.

  25. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem... cit., p. 179.

  26. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem... cit., p. 179.

  27. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem... cit., p. 183.

  28. BOBBIO, Norberto, MATREUCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política, tradução Carmem C. Varriale [et al.]; corrdenação da tradução João Ferreira, revisão geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cascais, 7ª ed., Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1955, vol. I, p. 23 (verbete de Gian Mario Bravo).

  29. BOBBIO, Norberto, MATREUCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Op. e loc. cit.

  30. GROTHUYSEN, Bernard. J.-J. Rousseau, Paris: Éditions Gallimard, 1949, p.157 (grifo acrescido).

  31. GROTHUYSEN, Bernard, ob. cit., p. 164 (grifos acrescidos).

  32. GUMCIO, Rafael. Utopostas, anarquistas y rebeldes . Acesso em 28.11.2005.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIDIGAL, Márcio Flávio Salem. Dois discursos de Jean-Jacques Rousseau. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1033, 30 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8321. Acesso em: 24 abr. 2024.