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Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo.

Ou de como o art. 3º da Lei nº 11.280/06 subverteu de forma atécnica e desnecessária a estrutura da prescrição no direito brasileiro

Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo. Ou de como o art. 3º da Lei nº 11.280/06 subverteu de forma atécnica e desnecessária a estrutura da prescrição no direito brasileiro

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A reforma na prescrição desconsiderou o aspecto técnico, subvertendo construções científicas há muito consolidadas, não levou em conta a tradição do sistema jurídico brasileiro e o dado do direito comparado.

SUMÁRIO: 1. À guisa de introdução; 2. Noções básicas sobre a prescrição; 3. O art. 3º da Lei 11.280/06 e suas impropriedades; 3.1 A prescrição e sua natureza jurídica de exceção; 3.2 Breve exame da constitucionalidade do art. 3º da Lei 11.280/03; 3.3 O efeito prático da reforma; 4. Considerações finais; Referências bibliográficas.

A prescripção deve sêr allegada pelo devedôr, não póde ser supprida pelo Juiz. Ha uma obrigação natural de pagar dividas prescriptas, e o devedôr póde querêr desonerar-se dessa obrigação.

(FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das leis civis. 3 ed. Rio de Janeiro: B. Garnier, 1876, p. 511, nota 1 ao art. 853)


1.À guisa de introdução

Reformas legislativas, quando bem empreendidas, são instrumentos relevantes para o aperfeiçoamento de um sistema jurídico predominantemente escrito. A renovação dos textos legais é salutar quando atende satisfatoriamente ao intuito de desenvolver a norma posta, fazendo-a acompanhar as necessidades do tecido social cada vez mais complexo e em freqüente mutação. [01]

Neste quadro, vale salientar que poucos são os ramos do direito em que a pressão por soluções legislativas mais eficientes se faz sentir com tanta contundência quanto o direito processual.

De fato, na seara processualista se reflete diretamente o anseio da sociedade por uma prestação jurisdicional mais ágil e confiável, que tem levado a diversos enxertos e revisões no texto do Código de Processo Civil de 1973, notadamente a partir da década de noventa. [02]

Recentemente tivemos o advento de um novo ciclo reformista a revisar as estruturas da codificação instrumental, representado pelas Leis 11.187, de 19 de outubro de 2005; 11.232, de 22 de dezembro de 2005; 11.276, de 07 de fevereiro de 2006; 11.277, também de 07 de fevereiro de 2006; e, por fim, 11.280, de 16 de fevereiro de 2006.

Em que pese a incompreensível e indefensável diretriz de política legislativa que conduziu a uma série de diplomas curtos e desconectados entre si, dados a lume em certos casos com poucos dias de intercessão, parece indiscutível que algumas inovações introduzidas no processo civil são positivas, como as alterações incorporadas à execução. [03] Há, porém, as que são meramente inócuas, [04] além daquelas que, sob um verniz de melhoramento, escondem inequívoca tendência à piora. [05]

Não é, contudo, a nenhum destes três tipos de aporte reformista que nos iremos referir. Não nos ocuparemos de inovações positivas, irrelevantes ou meramente depreciativas. Trataremos, na verdade, de uma quarta categoria presente na Lei 11.280/06, que transcende a simples negatividade: a alteração profundamente equivocada. E o faremos mirando o art. 3º da referida lei, o qual, subvertendo uma construção doutrinária cujo evolver remonta a quase dois milênios de história, veio estatuir a possibilidade de o magistrado, no processo civil, declarar de ofício a consumação da prescrição, sem ressalvas de qualquer natureza.

Procuraremos analisar o conteúdo do referido dispositivo legal, bem como cotejá-lo com a multissecular teoria da prescrição, com o fito de expender algumas considerações críticas sobre o conteúdo do dispositivo.

Alerte-se que não pretende esse pequeno artigo, por certo, exaurir o objeto proposto, mas apenas apresentar as primeiras impressões sobre o novo tratamento dado à prescrição e seu alcance, procurando situar o tema e suscitar questões de interesse para o debate, cuja instalação é absolutamente imprescindível.

O art. 3º da Lei 11.280 não pode ser ignorado ou visto fora de seu contexto, como se contivesse apenas mais uma norma de atualização do processo civil. Reclama, assim, posicionamentos claros por parte dos juristas, haja vista representar uma mudança de porte no seio da teoria geral do direito civil, com importantes reflexos práticos, razão pela qual se nos afigura oportuno o presente estudo.


2.Noções básicas sobre a prescrição

A prescrição, como é de conhecimento corrente, tem suas raízes solidamente fincadas em construção doutrinária lentamente amadurecida, que remonta ao direito romano.

No direito romano pré-clássico, inexistiam prazos fixados para o exercício das legis actiones. As mesmas eram perpétuas, não sofriam modificações por decurso de tempo. [06]

A transição para a fase do direito clássico revela ainda a ausência de limitação temporal da actio como regra geral; entretanto, algumas ações, como as ações pretórias de multas e as ações edilícias passaram a ser vinculadas a prazos, após os quais, se não exercidas, caducariam. [07]

Já no direito pós-clássico, o imperador Teodósio II, por uma lei datada do ano 424, veio instituir prazos gerais de prescrição. [08]

Tinha-se a prescrição, então, como uma exceção que cabia ao devedor demandado por dívida cujo prazo para cobrança já havia se esgotado – invocada a praescriptio, extinguia-se a ação. [09]

É importante observar que desde a consolidação do instituto no direito romano já tinha vigência o princípio segundo o qual a prescrição funciona como uma exceção, ou seja, tem de ser alegada por aquele a quem aproveita, não podendo consumar-se ipso jure, pelo simples decurso de tempo. [10]

Foi esta teoria romana da prescrição, aqui exposta em apertadíssima síntese, que forneceu as bases para a estruturação da mesma no direito moderno.

Tanto assim que o romanismo que caracterizou, por longo tempo, os estudos sobre prescrição, conduziu ao erro técnico de continuar-se definindo-a como um meio de extinção da ação por decurso de tempo (ao passo em que a decadência representaria a extinção do próprio direito em face do lapso temporal consumado).

Neste sentido, lecionava Antônio Luís da Câmara Leal, para quem a prescrição é a "extinção de uma ação ajuizável, em virtude da inércia de seu titular durante um certo lapso de tempo, na ausência de causas preclusivas de seu curso." [11]

Ora, é imprescindível ter em conta que o conceito romano de actio não se confunde com a ação do direito atual (remédio jurídico processual), enquanto direito público autônomo dirigido contra o Estado, para obter tutela jurisdicional. [12]

Em que pese incorrerem as legislações, vezes sem conta, em atecnias no trato da matéria, bem como insistirem alguns juristas no uso de concepções teóricas já superadas, óbices como esse foram sendo paulatinamente removidos conforme a evolução doutrinária, e atingiu-se, no direito contemporâneo, uma teoria estável da prescrição, fruto do amálgama entre a tradição consolidada e os reclamos de unidade com o sistema em vigor.

Assim, pode-se identificar a prescrição, com Pontes de Miranda, como a "exceção, que alguém tem, contra o que não exerceu, durante certo tempo, que alguma regra jurídica fixa, a sua pretensão ou ação." [13]

Seu efeito, uma vez oposta, e apenas se oposta, é o de encobrir a eficácia da pretensão, atuando pois no plano da eficácia e sustando a exigibilidade do direito que o credor pretendia fazer valer junto ao devedor. O direito, porém, remanesce, não se extingue (inclusive sujeitando-se à incidência do art. 882 do Código Civil), embora se torne inexigível. [14]

Diversamente se passa com a decadência, ou preclusão, na terminologia pontiana, cuja conseqüência é a extinção do direito em si – mais precisamente, de todos os efeitos irradiados do fato jurídico. [15] Por extinguir de plano o próprio direito, não opera como exceção, e por isso pode ser reconhecida ex officio pelo juiz, independentemente da vontade do suposto obrigado.

Não é difícil, pois, diferenciar prescrição e decadência, como institutos com características próprias que são. [16] O problema real, no entanto, é determinar, frente a um prazo previsto em um determinado texto legal, se o efeito cominado ao não-exercício do direito ao longo do tempo é a prescrição ou a decadência.

A este respeito, além das pioneiras investigações de Câmara Leal, cujo mérito histórico não pode ser olvidado, é fundamental o clássico texto de Agnelo Amorim Filho, [17] no qual este autor articula em precisa síntese: (a) sujeitam-se à prescrição as ações condenatórias (rectius, as pretensões a condenação); (b) sujeitam-se à decadência os direitos potestativos com prazo para exercício previsto em lei, instrumentalizados através de ações de eficácia constitutiva; (c) são perpétuas as ações declaratórias (rectius, pretensões a declaração) e os direitos potestativos sem prazo para exercício previsto em lei. [18]

Essas, pode-se dizer, são as informações básicas necessárias para se compreender o fenômeno jurídico da prescrição, de modo que já temos as premissas bastantes para assentar a análise da reforma empreendida pela Lei 11.280/06, o que faremos no tópico seguinte.


3.O art. 3º da Lei 11.280/06 e suas impropriedades

Assim dispõe o art. 3º da Lei 11.280/06, que ora ocupa nossas atenções:

Art. 3o O art. 219 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973, Código de Processo Civil, passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 219.. .................................................................

..................................................................

§ 5o O juiz pronunciará, de ofício, a prescrição.

A redação anterior do art. 219, §5º, do Código de Processo Civil, previa que "não se tratando de direitos patrimoniais, o juiz poderá, de ofício, conhecer da prescrição e decretá-la de imediato".

Complementando o disposto no art. 3º, a Lei 11.280/06 ainda estampou a seguinte previsão, em seu art. 11: "Fica revogado o art. 194 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, Código Civil."

Trata-se de norma complementar à prevista no art. 3º, certamente com a intenção de evitar que a continuidade no sistema do art. 194 do Código Civil ("Art. 194. O juiz não pode suprir de ofício a prescrição, salvo se favorecer a absolutamente incapaz") inviabilizasse o escopo do artigo anterior.

Fica claro que o legislador reformista julgou que, para se atingir a efetividade do processo, necessário se faria conceder ao juiz a faculdade de, em se deparando com o decurso do lapso temporal prescricional, declarar ipso facto a inexigibilidade do direito trazido à sua cognição.

A reforma processual, assim, alterou em profundidade a teoria geral do direito civil, ao modificar substancialmente o regime da prescrição, que é tema material, não processual, como já vimos. Afinal, se está assentado que a prescrição opera no plano da pretensão, encobrindo sua eficácia e tornando inexigível o direito, posto que superada a idéia de ataque à ação processual, sua discussão refoge à seara do direito instrumental.

A questão a ser debatida é: assiste razão ao legislador? Ou seja, é válida a mudança?

É o que veremos a seguir.

31.A prescrição e sua natureza jurídica de exceção

Afigura-se de patente evidência que a alteração legal sob exame atropelou o já sedimentado conceito doutrinário de que a prescrição é exceção, e que, como exceção, é uma faculdade que assiste a quem aproveita, podendo ser ou não exercida por ele.

Essa nota distintiva da prescrição, não presente na decadência, que pode ser livremente apreciada pelo magistrado (por ser causa de extinção do direito em si) decorre de sua natureza jurídica e do fundamento que lhe caracteriza.

Vimos anteriormente que, desde o direito romano, entende-se que a prescrição não opera ipso facto, mas sim ope exceptionis.

Assim, como toda exceção, [19] tem de ser exercida pela parte beneficiária, que pode escolher livremente se irá opô-la ou não. Não se trata aqui, como bem fez ver Pontes de Miranda, de necessidade de argüição porque há previsão no rol daquilo que se há de alegar em juízo, mas sim de que, para que a exceção produza efeitos, é preciso que haja a suscitação por parte de quem a detém. [20]

Toca-se aqui característica imemorial do instituto, que pode parecer estranha se se crê que o fundamento da prescrição é o de prover uma sanção, pelo ordenamento jurídico, com o intuito de reprovar aquele que, tendo um determinado direito, não foi suficientemente diligente ao exercê-lo.

Seria, desta forma, a aplicação direta da velha parêmia latina segundo a qual o direito não socorre aos que dormem (dormientibus non sucurrit jus), tão cara à matéria possessória. Assim pareceu a vários juristas. [21]

Nesta ordem de idéias, se a prescrição é vista como uma sanção destinada a punir aquele que não exerceu seu direito, pouco sentido haveria em fazer dela uma exceção, recusando-se-lhe eficácia se o devedor não a opuser.

Ocorre que a doutrina mais atual já identificou a incorreção de tal premissa. A prescrição tem fundamento na segurança jurídica e na paz social, como um meio de proteger o pretenso devedor das dificuldades progressivas que o tempo impõe à viabilidade de provar a inexistência ou a satisfação do débito. [22]

Conseqüentemente, entendido assim o seu fundamento e sua razão de ser, faz todo o sentido a sua caracterização como exceção e, por decorrência, impõe-se uma regra jurídica como a positivada no art. 194 do Código Civil de 2002, ora revogado pela Lei 11.280/06.

Trata-se do espelho positivo da construção teórica anteriormente esboçada, que qualifica a prescrição como exceção e, de conseguinte, dependente do exercício por aquele a quem beneficia. Na ausência de previsão legal explícita, seria norma pressuposta, em decorrência da natureza jurídica do instituto.

Vale lembrar que a caracterização da prescrição como exceção, nos termos anteriormente expostos, longe está de ser uma peculiaridade isolada do direito brasileiro atual. Não se tem sob análise – muito pelo contrário – alguma excentricidade do sistema pátrio vigente, argumento que poderia robustecer o pleito de sua modificação.

Em verdade, a natureza excepcional da prescrição é uma concepção doutrinária profundamente arraigada em nossa trajetória jurídica. Observe-se que o Código Civil de 1916 a trazia expressa, em seu artigo 166, ainda mais rígido que o dispositivo estampado no art.194 da codificação de 2002, porquanto não mencionava nenhum favor aos incapazes ("Art. 166. O juiz não pode conhecer da prescrição de direitos patrimoniais, se não for invocada pelas partes.").

Retroagindo-se mais na linha histórica, vemos que esta era também a direção seguida pelo antigo direito luso-brasileiro. [23]

Na realidade, a norma prevista no art. 194 é decorrente da longa construção histórica do instituto da prescrição, e encontra-se presente não apenas na tradição de nosso direito, mas também na generalidade dos ordenamentos pertencentes à família romano-germânica, tanto nos Códigos, quanto nas lições doutrinárias, como uma rápida incursão comparatista pode indicar sem dificuldades.

Sem quaisquer pretensões de exaustão, pode-se apontar a presença do princípio em tela nos direitos português, [24] italiano [25], alemão, [26] francês [27], argentino [28] e espanhol. [29]

É, pois, uma decorrência lógica da sedimentação e evolução dos preceitos que regem a matéria nos sistemas que herdaram a tradição romanística.

E, por esta razão, espanta sobremaneira a intenção de extirpá-lo sem maior substrato científico do direito positivo, em meio à busca irrazoável por uma panacéia para a agilização processual.

Esqueceu-se o legislador, a uma, da relevância histórica do princípio para o direito brasileiro, que comina a solução oferecida de inegável nota de artificialidade, e, a duas, de que sua permanência no direito germânico ou francês, por exemplo, não dá azo a nenhuma relevante obstrução na máquina judicial.

Posta a questão nestes termos, avulta, indiscutivelmente, a ausência de acerto teórico na mudança legislativa empreendida, uma vez que restou descurado, de forma patente, o aspecto técnico que deveria presidir qualquer alteração legal.

3.2.Breve exame da constitucionalidade do art. 3º da Lei 11.280/03

De outra parte, cumpre observar que, no plano técnico, a reforma na sistemática prescricional ainda suscita interessante problema de ordem constitucional, que se faz oportuno enunciar, ainda que sem a possibilidade de uma incursão mais aprofundada.

Refere-se aqui à compatibilidade da normativa constitucional acerca da atividade econômica com a imposição [30] de declarar o juiz a prescrição de créditos patrimoniais disponíveis, subtraindo ao particular um direito subjetivo por cuja ineficácia a outra parte interessada não pugnou, embora pudesse fazê-lo.

Como se sabe, a Carta Magna de 1988 previu, logo em seu primeiro artigo, o valor social da livre iniciativa como um fundamento da República. Além disso, em seu art. 170, parágrafo único, garantiu a todos o exercício livre de qualquer atividade econômica, determinando, em seu artigo 174, que ao Estado compete intervir em tal seara como agente normativo e regulador.

Destes preceitos constitucionais decorre que existe uma garantia, em nosso ordenamento jurídico, ao livre exercício da atividade econômica, colocando-se o Estado não como um interventor direto na autonomia privada dos particulares, mas sim como um ente de regulação, para coibir abusos e evitar desequilíbrios; ao Poder Público incumbe "intervir nas relações interindividuais de forma a, pelo assegurar de valores mínimos de sã consciência, corrigir as conseqüências que a situação de desigualdade dos sujeitos acarreta". [31]

Em linha de conseqüência, existe uma diretriz programática do constituinte no que toca à atividade econômica, no sentido de reconhecer a liberdade dos particulares de livremente circular riquezas, escolhendo a forma de fazê-lo.

Essa liberdade é restringida pela intervenção estatal quando houver desequilíbrio entre as partes envolvidas na relação jurídica de direito privado, ou violação a regras ou princípios contidos no sistema; afora isso, têm os privados liberdade suficiente para juridicizar suas operações econômicas, sendo-lhes garantida a não-interferência estatal quando não estiverem presentes os pressupostos para autorizá-la (diferentemente do que se passa em um Estado de molde socialista, por exemplo, no qual existe um grau bem maior de penetração na esfera particular).

Desta forma, os critérios para valorar a legitimidade da intervenção nas relações patrimoniais privadas devem ser extraídos da Constituição Federal, a partir de seu art. 170. [32]

Não se trata de abraçar uma dogmática extremamente conservadora e advogar a já ultrapassada concepção da autonomia da vontade como um princípio ilimitado, mas sim de observar que não se admite, por parte do juiz, um "poder autoritário de modificação" de relações jurídicas de direito privado, dada a opção por meios legítimos para que essa intervenção se opere, como a boa-fé e a teoria da imprevisão. [33]

Resta claro, assim, que uma proposta de institucionalizar novas formas interventivas deve estar, antes de tudo, compatibilizada com a normativa constitucional acima mencionada, assim como estão compatibilizadas essas formas tradicionalmente admitidas.

Neste âmbito de observação, mostra-se de patente inconstitucionalidade a previsão legal no sentido de que o Estado possa, no exercício da função jurisdicional, negar ao particular a satisfação de um crédito patrimonial existente, válido e eficaz, exercendo e declarando uma exceção de direito material que o devedor escolheu por não opor e causando-lhe um prejuízo financeiro evidentemente imotivado.

Tem-se em situação como esta induvidosa quebra da imparcialidade da jurisdição, através de intervenção na atividade econômica que não se subsume às hipóteses de normatização e regulação.

Pelo contrário, o Poder Público aqui investe o seu agente judicante do dever de beneficiar uma das partes em detrimento da outra, desequilibrando a relação de direito material sem o pressuposto de uma efetiva nota de hipossuficiência, que poderia legitimar tal intervento. [34]

Trata-se, a nosso ver, de razão suficiente para viciar, por inconstitucionalidade, o dispositivo previsto no art. 3º, da Lei 11.280/06 – embora o tema ainda faça por reclamar uma análise mais detida.

3.3.O efeito prático da reforma

Indiscutivelmente, o fato de a alteração legislativa sob exame discrepar dos preceitos científicos que regem a matéria e ir de encontro à consolidada tradição de nosso direito e dos sistemas estrangeiros que têm a mesma origem dele, além de incidir em inconstitucionalidade, já seria motivo suficiente para se concluir pela inadequação do novo trato dispensado à prescrição pela Lei 11.280/06.

Ocorre, no entanto, que ainda é preciso indagar da efetividade prática da alteração proposta, e também aí a mesma não colhe melhores resultados.

Com efeito, não há motivos concretos para se considerar a impossibilidade de declaração ex officio da prescrição como uma causa de retardamento do andamento do processo civil.

Seria, por exemplo, se o crédito prescrito não pudesse ser executado após a sentença, o que significaria que toda a fase de cognição restaria inutilizada; no entanto, já vimos que, sem a alegação da prescrição, não há qualquer afetação na estrutura do direito de crédito, que remanesce existente, válido e eficaz, salvo a superveniência de outra causa modificativa ou extintiva.

Assim, o resultado do processo, se a parte não alega a prescrição que lhe aproveita, é atingido da mesma forma, com o reconhecimento e satisfação de um direito a quem realmente o tem, posto que a prescrição não opera automaticamente e por isso o débito permanece com todos os seus elementos intocados.

Mesmo se argumentando que a possibilidade de vir a ser a prescrição alegada a qualquer tempo, sem que possa ser antes suprida pelo juiz, gere risco de desnecessário dispêndio de atividade jurisdicional (por exemplo, se a parte só o faz perante o tribunal de apelação), fato é que esse dispêndio ocorre apenas por desconhecimento ou desatenção do beneficiado, o qual, as mais das vezes, só não oporá imediatamente a exceção de prescrição se não perceber que dela dispõe, por uma razão muito simples: arcará com as despesas oriundas do retardamento se não a opuser na primeira oportunidade (CPC, 267, §3º).

Quer-se com isso dizer, em termos mais claros, que não há interesse concreto, para a parte demandada, em protelar o desfecho do processo que poderia obter imediatamente, através da suscitação da prescrição que lhe beneficia.

Verifica-se, portanto, sem muitas dificuldades, que a vedação à declaração de ofício da prescrição não é, em si, um fator impeditivo da celeridade processual.

Por outra parte, ainda que se fundamentasse o câmbio legislativo na intenção de proibir o locupletamento do credor da dívida prescrita (o que já desbordaria da finalidade precípua da reforma processual, por não ter como objeto uma melhora no plano do processo), certo é que se estaria seguindo em sentido contrário aos argumentos doutrinários que esteiam a prescrição.

Afinal, conforme visto anteriormente, não reside esta em sanção ao credor, mas sim em erigir faculdade protetiva do devedor, que como faculdade, a ele compete escolher se exercerá ou não, em seu próprio benefício. Logo, não há locupletamento, pelo contrário.

Enfim, quer do ponto de vista da melhor técnica jurídica, flagrantemente violada pela nova redação do art. 219, §5º, do Código de Processo Civil, quer sob uma ótica unicamente pragmática e sequiosa de resultados, resta claro que a alteração legal promovida é absolutamente infeliz e impertinente, merecendo as reprovações cabíveis.

Acresça-se, entretanto, uma observação curiosa a seu respeito. É que o Governo Federal, ao propor a reforma na matéria prescricional, através da Secretaria de Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça, parece ter efetuado, inconscientemente, um disparo contra a própria face.

Esta é a única conclusão possível quando se atenta a que a nova redação do art. 219, §5º, de par com a revogação do art. 194 do Código Civil, irá fornecer os instrumentos necessários para a declaração de ofício da prescrição nos feitos executivos fiscais, afetando diretamente a exação federal, estadual e municipal, mediante a extinção de plano de grande número de processos em que o prazo qüinqüenal já se esgotou, mas o contribuinte não pugnou pela decretação prescricional.

Isto porque, inobstante o Código Tributário Nacional afirmar que a prescrição extingue o crédito fiscal, em seu art. 156, V, pacificou-se a jurisprudência no sentido de que, por obra do art. 219, §5º, do diploma instrumental, conjugado com o art. 194, do Código Civil (e anteriormente com o art. 166 do Código de 1916), não poderia a prescrição ser acolhida sem provocação do interessado, por se tratar de crédito patrimonial. [35]

Sem essas garantias legais, nada mais há no sistema que impeça ao magistrado extinguir um processo de execução fiscal mesmo sem que o contribuinte o requeira, e pode-se imaginar o que isso representará em termos de créditos tributários evaporando-se a partir da vigência da Lei 11.280/06.

Será de resto deveras interessante observar como fará a Fazenda Pública para resguardar seus interesses neste particular.


4.Considerações Finais

Buscamos com o presente texto colher algumas impressões apriorísticas sobre as mudanças no instituto da prescrição, procurando demonstrar sua impertinência e desacerto.

Restou claro que não se carece de um exame de grande complexidade para perceber a inoportunidade da nova sistemática imposta à prescrição pela Lei 11.280/06.

Cabe ainda registrar a maneira de todo atabalhoada que a reforma escolheu para alterar de maneira tão significante um tema de direito civil, há menos de cinco anos da edição de um novo Código, no corpo de uma lei destinada a alterar a legislação processual e sem uma ampla discussão acerca da necessidade ou utilidade de se modificar a disciplina da prescrição.

Merece, pois, enérgica reprovação o procedimento reformista, no aguardo de que um tal modus operandi não se venha a repetir.

Vezes sem conta afirmou-se neste texto, e o faremos uma vez mais: a reforma na prescrição desconsiderou o aspecto técnico, subvertendo construções científicas há muito consolidadas, não levou em conta a tradição do sistema jurídico brasileiro e o dado do direito comparado, incidiu em clara inconstitucionalidade e sequer demonstra potencialidade real de vir a constituir um fator de agilização do processo ou mesmo de melhora na qualidade da prestação jurisdicional.

Um semelhante descompasso só pode conduzir a duas conclusões diametralmente opostas.

Conforme a primeira, a reforma processual cometeu um erro crasso ao inovar agressiva e inopinadamente a teoria da prescrição, inserindo-lhe um elemento estranho e injustificado.

De acordo com a segunda, se os prognósticos ora aduzidos se mostrarem incorretos, os jurisconsultos lotados na Secretaria de Reforma do Judiciário revolucionaram completamente a matéria, marcando de forma indelével a história do direito civil na família romano-germânica e inaugurando sistemática que certamente haverá de ser recepcionada em outros ordenamentos jurídicos que hoje operam com conceitos totalmente opostos.

Algo nos diz, entretanto, que a segunda hipótese é bem mais implausível.

De qualquer sorte, o texto está posto, e por pior que seja, entrará em vigência noventa dias após a sua publicação (Lei 11.280/06, art. 10).

Compete, assim, aos juristas, e isto decerto inclui os civilistas, que não podem se alhear ao debate, a tomada de um posicionamento claro a seu respeito, bem como a exploração das possibilidades hermenêuticas que porventura contribuam para diminuir o potencial lesivo, em todos os sentidos, da referida norma legal – o que deveria também abranger ampla discussão acerca de sua efetiva constitucionalidade, a respeito da qual já tivemos o ensejo de lançar nossa descrença.

Resta, porém, uma esperança: a de que o Poder Público, com o pragmatismo legislativo que vezes sem conta o acomete (mesmo em detrimento da coerência), quando se aperceba da verdadeira armadilha que preparou para si próprio, ao retirar do sistema positivo as regras que inviabilizavam a declaração de ofício da prescrição em matéria tributária, decida rapidamente voltar atrás e revogar o art. 3º da Lei 11.280, bem como repristinar o art. 194 do Código Civil, quiçá fazendo-o, como de hábito, pelo expedito instrumento da medida provisória, permitindo a todos o esquecimento da infeliz "novidade" hoje inserida em nosso direito.


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ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil: Ley, Derechos, Justicia. 5 ed. Marid: Trotta, 2003, trad. Marina Gascón.


Notas

01 Naturalmente, hoje não teria qualquer sentido atrelar peremptoriamente a evolução dogmática do direito à atualização dos textos legais. Reconhece-se de há muito que "el centro de gravedad va desplazándose lentamente desde el sistema codificado a una casuistica judicial orientada según principios" (ESSER, Josef. Principio y norma em la elaboración jurisprudencial del derecho privado. Barcelona: Bosch, 1961, trad. Eduardo Valentí Fiol, p. 31), bem como que, no Estado constitucional, o direito, que em um Estado liberal se via reduzido à lei, dela ganha independência (ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil: Ley, Derechos, Justicia. 5 ed. Marid: Trotta, 2003, trad. Marina Gascón p. 34-41). Sem embargo de tais considerações fundamentais, é lícito concluir que a atualização legislativa ainda ocupa um espaço importante, que no processo civil se reflete, por exemplo, na necessidade de uma reforma legal para suprimir um recurso ou simplificar um procedimento.

02 A respeito, confira-se o ensaio de DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma do Código de Processo Civil. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 21-22 e 30-32.

03 Procurou-se, em linhas gerais, integrar o processo de execução ao processo de conhecimento, diminuindo os obstáculos para a satisfação do direito reconhecido na sentença.Cf., especialmente, o art. 4º da referida lei, que inseriu no Código de Processo Civil os arts. 475-I a 475-R. Para um exame detalhado e crítico das reformas no processo de execução, que não nos cabe empreender aqui, vale conferir o trabalho de ASSIS, Araken de. Cumprimento da Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

04 Adjetivo mais benevolente não merecem, por exemplo, os textos atuais do art. 504, na redação do art. 2º da Lei 11.276/06 ("Art. 504. Dos despachos não cabe recurso", disposição de conteúdo idêntico ao da anteriormente vigente: "Art. 504. Dos despachos de mero expediente não cabe recurso"), e do art. 489, na redação do art. 8º da Lei 11.280/06 ("Art. 489. O ajuizamento da ação rescisória não impede o cumprimento da sentença ou acórdão rescindendo, ressalvada a concessão, caso imprescindíveis e sob os pressupostos previstos em lei, de medidas de natureza cautelar ou antecipatória de tutela"), que consagrou acréscimo sobejamente supérfluo, porquanto o art. 273 do Código já provia os meios necessários para a suspensão da eficácia da decisão rescidenda, sendo obviamente incompatíveis com o mesmo e já superadas as leituras estritas que a doutrina tradicional emprestava ao art. 489 em sua redação anterior – vide, v.g., MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado da Ação Rescisória. Campinas: Bookseller, 1998, p. 484 e 492-493. Registrando a mudança do entendimento doutrinário, MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, vol. V, 2003, p. 184-185.

05 Assim o terrível artigo 285-A, cujo ingresso no Código de Processo Civil se deu por obra do art. 2º da Lei 11.277/06, e que prevê o seguinte: "Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada". Muito poderia ser dito sobre o dispositivo em tela; o muito que há a se dizer, entretanto, merece por si próprio um artigo singular. Registre-se apenas nossa opinião no sentido de que se trata de um excesso evidente na busca do "processo de resultados", subtraindo ao processo seu caráter dialético e inspirando preocupação por estimular a padronização em escala industrial do trabalho jurisdicional, sendo certo que idênticas, para efeito de direito processual civil, são apenas as ações com mesmas partes, mesmo pedido e mesma causa de pedir (LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. Palmas: Intelectus, vol. I, 2003, p. 167-170); subestima-se as peculiaridades de cada caso concreto e a análise hermenêutica detida que deve presidir seu exame. Além disso, retira-se ao réu o direito inexorável que tem de transacionar ou reconhecer, parcial ou integralmente, a procedência do pedido, independentemente da posição do Juízo a respeito da matéria. Pode-se apontar sem dificuldades outra inovação francamente negativa: o parágrafo único do art. 527, na redação do art. 1º da Lei 11.187/2005, que não permite recurso da decisão liminar do relator que, salvo casos excepcionais, converterá o agravo de instrumento em agravo retido. Parece óbvio a qualquer um minimamente familiarizado com a prática cível (e ciente da história recente de nosso processo civil) que ao agravo regimental substituir-se-á o mandado de segurança contra a decisão em questão, com todas as suas conseqüências negativas para a efetividade do processo, além da banalização do uso da ação constitucional.

06 ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, vol. II, 2001, p. 103.

07 KASER, Max. Direito privado romano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, trad. Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle, p. 59.

08 IDEM, IBIDEM, loc. cit.

09 Neste sentido, a lição de ALVES, José Carlos Moreira. Op. e loc. cit.

10 PETIT, Eugène. Tratado elementar de direito romano. Campinas: Russell, 2003, trad. Jorge Luís Custódio Porto, p. 299.

11 LEAL, Antônio Luís da Câmara. Da prescrição e da decadência. São Paulo: Saraiva, 1939, p. 10.

12 A respeito, GOLDSCHMIDT, James. Direito processual civil. Campinas: Bookseller, tomo I, 2003, trad. Lisa Pary Scarpa, p. 131.

13 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, tomo VI, 2000, p. 135.

14 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 137-141; ALVES, Vilson Rodrigues. Da prescrição e da decadência no novo Código Civil. 2 ed. Campinas: Bookseller, 2004, p. 72.

15 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 173; ALVES, Vilson Rodrigues. Op. cit., p. 91.

16 Embora autores recentes tenham insistido na equiparação de à outra, vez que supostamente teriam os mesmos resultados (cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 435; MESSINEO, Francesco. Manual de Derecho Civil y Comercial, tomo II. Buenos Aires: EJEA, 1979, trad. Santiago Sentís-Melendo, pág. 60), resta claro que se trata de hipóteses bem diversas de afetação de situações jurídicas subjetivas por decurso de tempo. Vale lembrar a enérgica reação de Pontes de Miranda a tal corrente teórica (op. cit., p. 174): "A diferença de eficácia entre a prescrição e a preclusão é radical (...) Daí ser absurdo dizer-se que os efeitos são os mesmos".

17 AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dosTribunais, vol. 300. São Paulo: RT, out. 1961, p. 37.

18 No mesmo sentido, com maior precisão terminológica que a empregada por Agnelo Amorim Filho, ALVES, Vilson Rodrigues. Op. cit., p. 787-788.

19 Exemplos outros seriam a exceptio non adimpleti contractus, ou a exceção de retenção.

20 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 130.

21 Entre eles, MONTEIRO, Washington de Barros. 15 ed. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1977, vol. I p. 284-285; COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das obrigações. 8 ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 1037.

22 Neste sentido, entre outros: MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 135 -136; ALVES, Vilson Rodrigues. Op. cit., p. 89-90; JOSSERRAND, Louis. Cours de droit civil positif français. 2 ed. Paris: Librairie du Recueil Sirey, tomo II, 1933, p. 511-512; ENNECERUS, Ludwig. Derecho civil: Parte general. 3 ed. Barcelona: Bosch, tomo I, vol. II, 1981, trad. Blas Pérez, p. 1017; TRIMARCHI, Pietro. Istituzioni di diritto privato. 10 ed. Milano: Giuffrè, 1995, p. 624.

23 Indicações pertinentes, além da passagem de Teixeira de Freitas que serve de epígrafe a esse texto, podem ser colhidas em ROCHA, M. A. Coelho da. Instituições de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1984, tomo II, p. 497, e em PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das coisas. 6 ed. Rio de Janeiro: 1956, p. 166.

24 Código Civil português: "Art. 303. O tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público." Consulte-se, entre outros, na doutrina: ASCENÇÃO, José de Oliveira. Teoria geral do direito civil. Lisboa: s/e, vol. IV, 1993, p. 282; PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria geral do direito civil. 3 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1994, p. 375; LIMA, Pires de; VARELA, Antunes. Código Civil anotado. 4 ed. Coimbra: Coimbra Editora, vol. I, 1987, p. 275-276; com considerações um tanto ecléticas, mas reafirmando a impossibilidade de declaração ex officio, MONCADA, Luis Cabral de. 4 ed. Lições de direito civil: parte geral. Coimbra: Almedina, 1995, p. 734.

25 Código Civil italiano: "Art. 2938. Il giudice non può rilevare d´ufficio la prescrizione non opposta." Na doutrina, entre outros: TRIMARCHI, Pietro. Op. cit., p. 626; GAZZONI, Francesco. 7 ed. Manuale di diritto privato. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1998, 108-109; CIMMA, Maria Rosa. Prescrizione e decadenza. In SACCO, Rodolfo (coord). Digesto delle discipline privatistiche. Torino: Utet, vol. XIV, 1999, p. 245.

26 BGB: "§222. Después de la consumación de la prescripción, el obligado está facultado a negar la prestación." (tradução de INFANTE, Carlos Melón. Código Civil alemán (BGB). Barcelona: Bosch, 1994, p. 46). Na doutrina, entre outros: LARENZ, Karl. Derecho civil: parte general. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1978, trad. Izquierdo y Macías-Picaeva, p. 339-340; ENNECERUS, Ludwig. Op. cit., p. 1018; TUHR, Andreas Von. Tratado de las obligaciones. Madrid: Reus, tomo II, 1934, trad. W. Roces, p. 190.

27 Código Civil francês: "Art. 2.223. Les juges ne peuvent pas suppléer d´office le moyen résultant de la prescription." Na doutrina, entre outros: JOSSERRAND, Louis. Op. cit., p. 523; PLANIOL; RIPERT, Georges; BOULANGER, Jean. Traité élémentaire de droit civil. Paris: Librairie Génerále de Droit et de Jurisprudence, tomo II, 1952, p. 680.

28 Código Civil argentino: "Art.3.964. El juez no puede suplir de oficio la prescripción." Na doutrina, entre outros: LLAMBÍAS, Jorge Joaquín. Tratado de derecho civil: parte general. 18 ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, tomo II, 1999, p. 593.

29 Não há norma expressa a respeito no Código Civil espanhol. Sem embargo, a doutrina entende que a impossibilidade de o juiz vir a conhecer de ofício da prescrição não alegada é inerente ao sistema em vigor, defluindo da própria natureza do instituto. Neste sentido: DÍEZ-PICAZO, Luis; GULLÓN, Antonio. Sistema de derecho civil. 10 ed. Madrid: Tecnos, vol. I, 2001, p. 438.

30 Fala-se de imposição porquanto o novo texto do art. 219, §5º, expressamente vincula o juiz a pronunciar a prescrição, inviabilizando a recusa de cognição a seu respeito, sejam quais forem as circunstâncias do caso.

31 PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra: Almedina, 1982, p. 39.

32 No mesmo sentido, aludindo ao art. 41 da Constituição Italiana, BARCELLONA, Pietro. Diritto privato e società moderna. Napoli: Jovene, 1996, p. 388-389.

33 JALUZOT, Béatrice. La bonne foi dans les contrats: étude comparative des droits français, allemand et japonais. Paris: Dalloz, 2001, p. 450.

34 Não faz sentido, como pretensa base da mudança promovida, a idéia de que a parte beneficiária pode ter deixado de opor a exceção de prescrição por não se ter apercebido da consumação dos elementos de seu suporte fático. Se a intenção da reforma foi atacar tal problema, a única forma de solucioná-lo sem violação dos princípios que regem a matéria seria apor um artigo ao Código de Processo Civil que exigisse ao juiz, quando do decurso do lapso temporal bastante à prescrição, exarar uma decisão interlocutória informando o fato à parte e intimando-a para exercer, se lhe aprouver, a exceção então nascida (o que não inviabilizaria a possibilidade de fazê-lo a posteriori, eis que não se opera qualquer preclusão).

35 Observe-se, exemplificativamente, o recente julgado do Superior Tribunal de Justiça: "PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO EXECUTIVA FISCAL. COBRANÇA DE IPTU. NULIDADE DA CDA AFASTADA. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO À DEFESA DO EXECUTADO. PRESCRIÇÃO. DECRETAÇÃO DE OFÍCIO. IMPOSSIBILIDADE.

PRECEDENTES.1. Execução fiscal ajuizada pela Fazenda Municipal de Porto Alegre/RS em face de TANIA MARIA BECKER DO SACRAMENTO objetivando satisfazer débito tributário de IPTU. Sentença decretando a nulidade da CDA e reconhecendo de ofício a prescrição quanto aos exercícios de 1994-1996. Interposta apelação pelo Município, o TJRS negou-lhe provimento, mantendo integralmente a decisão recorrida em razão dos vícios constantes da Certidão da Dívida Ativa e da possibilidade de reconhecimento ex officio da ocorrência de prescrição. Recurso especial do ente público alegando violação dos arts. 219 do CPC, 194 do CC e 2º da Lei nº 6.830/80, em razão da não-concessão de prazo para a substituição da CDA. Afirma, ainda, que ao juiz é defeso declarar de ofício a prescrição. 2. "(...) a nulidade da CDA não deve ser declarada por eventuais falhas que não geram prejuízos para o executado promover a sua defesa," (REsp nº 660.623/RS, Min. Luiz Fux, DJ de 16.05.2005, p. 252) 3. É pacífico o posicionamento desta Corte no sentido de que, em se tratando de direito patrimonial (disponível), a prescrição não pode ser declarada de ofício, sob pena de subjugar o prescrito no art. 219, § 5º, do CPC. 4. Recurso especial provido." (STJ, 1ª Turma, RESP 798.869-RS, pub. DJ 20/02/06, pág. 244)


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Informações sobre o texto

Texto originalmente publicado na Revista de Direito Privado, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 25, jan./mar. 2006, pp. 280-296.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo. Ou de como o art. 3º da Lei nº 11.280/06 subverteu de forma atécnica e desnecessária a estrutura da prescrição no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1059, 26 maio 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8455. Acesso em: 20 abr. 2024.