Capa da publicação Estupro culposo? Redes sociais e vitimização secundária
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A (im)possibilidade do estupro culposo, a volatilidade das informações nas redes sociais e o papel do Estado para coibir a vitimização secundária

05/11/2020 às 19:25
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Recentemente as redes sociais foram inundadas pelo termo "Estupro Culposo", surpreendendo a vários operadores do direito. Mas será que esse crime existe? Há prejuízos na viralização do senso comum? O Estado falhou em evitar a vitimização secundária? O presente artigo foi elaborado em virtude da repercussão do caso Mariana Ferrer em que foi possível observar diversas nuances sociais e jurídicas. Ele faz uma análise crítica ao comportamento social massivo, à forma como a mulher ainda é vista pela sociedade, bem como à aparente omissão estatal em não minimizar os efeitos da vitimização. Contém análises jurídicas, criminológicas, sociológicas e educativas.

Introdução: contextualização social

Muito frequentemente algumas notícias envolvendo a violência sexual contra mulheres tomam conta das mídias e das redes sociais. O assunto, que ainda necessita de muitos debates e conscientização, está recorrentemente sendo inserido em pauta na nossa sociedade.

Os debates, que em uma sociedade perfeita deveriam pairar no campo da prevenção e da conjectura, se permeiam no seio da sociedade atual no caráter repressivo, ou seja, após o delito ter sido praticado e ter tomado proporções avassaladoras em todo o país, seja pelo grau de notoriedade das pessoas envolvidas, seja pelo grau de barbaridade que a conduta e seus desdobramentos possuem.

Assim tem sido no Brasil, em uma breve prospecção pode-se pontuar alguns casos, considerados pela sociedade como lastimáveis, que trouxeram à tona as mazelas que o Brasil ainda possui referentes à cultura do estupro e, em alguns deles, à ausência de aparato estatal para enfrentar esses estereótipos.

Em 2016, uma adolescente de dezesseis anos se dirigiu à casa de um rapaz com quem se relacionava, há três anos, e lá foi dopada e estuprada por trinta e três homens que filmaram os atos sexuais e compartilharam o conteúdo na internet.

Na ocasião, o delegado de polícia que fez a oitiva da vítima foi acusado por ela de ter uma conduta não acolhedora e desrespeitosa, além de questioná-la se ela tinha o hábito de ter relações sexuais com vários homens ao mesmo tempo.

No final de 2018, um líder religioso de grande renome foi denunciado por ter abusado sexualmente de mais de duzentas mulheres durante seus atendimentos espirituais. A primeira vítima a denunciar relatou que escolheu manter a situação em sigilo por quatro anos, porque possuía medo de ser perseguida por relatar algo grave de um homem famoso e, até então, respeitado na sociedade.

Logo após sua denúncia, aproximadamente outras duzentas mulheres procuraram o Ministério Público relatando terem sofrido os mesmos abusos sexuais por parte do médium. Após a regular tramitação processual, o agressor foi condenado a 40 anos de prisão.

Em outubro de 2020, um jogador famoso de futebol foi condenado na Itália por ter praticado, juntamente com outros agentes, o crime de violência sexual contra uma mulher inconsciente. Na mesma época, ele foi anunciado como reforço de um grande time de futebol do Brasil.

A pressão popular e indignação da sociedade fizeram com que os patrocinadores do time ameaçassem retirar o patrocínio caso o jogador assinasse contrato com o clube, o que fez com que a contratação fosse cancelada.

Menos de um mês depois, infelizmente, outro assunto leva a pauta dos noticiários.

Em um processo cujo delito em voga era o estupro de vulnerável – a vítima narrou estar inconsciente no momento da relação sexual – foi prolatada sentença, absolvendo o réu por falta de provas acerca da vulnerabilidade da vítima no momento da conduta.

A notícia foi divulgada por um site que utilizou o termo “Estupro culposo” – não existente na sentença e nem nas alegações finais do Ministério Público – para relatar a decisão judicial.

Logo após a divulgação de trecho dos vídeos da audiência e de trechos da sentença, que estava resguardada pelo segredo de justiça, um novo clamor social se instala e frases como “Não existe estupro culposo” se misturam entre o sentimento de indignação e estarrecimento pela forma com a qual a audiência fora conduzida.

Surge então o questionamento: Existe estupro culposo? Teria o juiz criado uma nova modalidade de crime? O estupro está sendo relativizado? Qual o papel das mídias sociais na divulgação das informações? O Estado tem conseguido fornecer meios de amenizar a revitimização das vítimas?

O presente artigo abordará brevemente as nuances do crime de estupro, a forma como ocorre a propagação de informações nas redes sociais e a atuação do Estado na averiguação desses delitos, sem adentrar ao mérito dos casos judiciais narrados em seu decorrer.


As nuances gerais do crime de estupro

A infração penal de estupro encontra-se inserida dentro do capítulo dos crimes contra a liberdade sexual, estando prevista, em sua forma simples, no artigo 213 do Código Penal, que dispõe:

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. (BRASIL, 1940).

A doutrina o classifica como sendo um crime pluriofensivo, pois tutela a dignidade sexual, a integridade corporal e a liberdade individual do ser humano. Por possuir pena de reclusão de seis a dez anos, é considerado pela doutrina como crime de elevado potencial ofensivo.

Extrai-se do teor do texto legal que para a caracterização do estupro é necessário que haja a conjunção carnal ou a prática de um ato libidinoso. Segundo MASSON (2018, p. 09), a conjunção carnal consiste na introdução total ou parcial do pênis na vagina, enquanto que os atos libidinosos são aqueles revestidos de conotação sexual, diferentes da conjunção carnal, tais como sexo oral, sexo anal e toques íntimos, desde que sejam praticados para objetivar o prazer sexual. O Superior Tribunal de Justiça (Resp. 1.611.920/MT) e o Supremo Tribunal Federal (HC 134.591/SP) entendem, inclusive, que o beijo lascivo caracteriza um ato libidinoso.

Avançando um pouco na legislação penal, há o delito de estupro de vulnerável, in verbis:

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. (BRASIL, 1940).

Apesar do teor do caput, há posicionamentos minoritários, como o do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no sentido de que o estupro de vulnerável somente ocorre quando há conjunção carnal. Para essa corrente, nos casos em que não há penetração, o ato libidinoso cometido contra menor de quatorze anos não é considerado como estupro de vulnerável, mas tão somente importunação sexual. (ANGELO, 2020, online).

O parágrafo primeiro do referido dispositivo legal traz outras situações em que há a vulnerabilidade, restando esta caracterizado inclusive quando praticado contra alguém que não possui o necessário discernimento para a prática do ato sexual ou que não conseguir oferecer resistência contra sua prática.

O conceito de vulnerável pode ser extraído dos brilhantes ensinamentos de MASSON:

São pessoas consideradas incapazes para compreender e aceitar validamente os atos de conotação sexual, razão pela qual não podem contra estes oferecer resistência. (2018, p. 58).

No estupro de vulnerável o objetivo da tutela penal é diferente do crime de estupro comum. Naquele não há mais a discussão acerca da necessidade de utilização de violência, esta passa a ser substituída pela situação de vulnerabilidade da vítima.

Assim, o dissenso da vítima é irrelevante. Pouco importa que ela tenha consentido para o ato sexual, pois sua situação de vulnerabilidade não lhe permite reunir condições para declarar seu dissenso ou outorgar seu livre e esclarecido consentimento, ou seja, sua vontade é penalmente irrelevante.

Mais especificamente no caso descrito na parte final do parágrafo primeiro, segundo MASSON (2018, p. 60), a expressão “qualquer outra causa” deve ser interpretada em sentido amplo com o intuito de abarcar o maior número possível de hipóteses aptas a retirar de uma pessoa a capacidade de resistir.

Esses casos se configuram, muitas vezes, quando a vítima está em estado inconsciente, seja dormindo, seja sob o efeito de substâncias entorpecentes, quer voluntariamente ou não. A vulnerabilidade presente na vítima nesses casos faz com que seu consentimento (se existir) seja considerado como inválido.


A impossibilidade de condenação por estupro culposo

Em quaisquer das modalidades do estupro, o dolo é o único elemento subjetivo do tipo. Ou seja, para a caracterização do crime de estupro, é necessário que o agente tenha a intenção ou, ainda, a finalidade específica de manter conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém.

O parágrafo único do artigo 18 do Código Penal considera que um fato cometido culposamente somente configurará crime se houver previsão legal expressa determinando essa criminalização. (BRASIL, 1940). Constata-se, no título dos crimes contra a dignidade sexual, que não há previsão legal de modalidade culposa para o crime de estupro, logo, ele ocorre apenas em sua forma dolosa, seja consumado, seja tentado.

Esse raciocínio coaduna perfeitamente com o principio da reserva legal, segundo o qual nenhum fato pode ser considerado como criminoso se não houver previsão legal nesse sentido, afastando, assim, qualquer possibilidade de condenação do agente delitivo ao inexistente crime de estupro culposo.

Verifica-se de trechos dos documentos do caso que gerou a repercussão que não há, nem na sentença, nem nas alegações finais do Ministério Público, a utilização da expressão “estupro culposo”.

Mas então, de onde surgiu essa interpretação?

Sem adentrar ao mérito do caso, em suas alegações finais, o Ministério Público reconheceu a incidência do erro de tipo, previsto no art. 20. do Código Penal que assim dispõe:

Art. 20. - O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei. (BRASIL, 1940).

Sobre essa modalidade, o doutrinador Rogério Sanches elucida:

Nesse caso, o agente ignora ou tem conhecimento equivocado da realidade. Cuida-se de ignorância ou erro que recai sobre as elementares, circunstâncias ou quaisquer dados que se agregam a determinada figura típica. (2015, p. 206).

Nesse delito, para ser punido a título de dolo o agente deve ter conhecimento de que está praticando o ato sexual contra uma pessoa vulnerável, caso contrário, estaria recaindo em erro de tipo, o qual exclui o dolo, mas permite a punição a título culposo. Como o Código Penal não prevê a modalidade culposa para o crime de estupro, o fato praticado é considerado atípico.

Para aferir a inevitabilidade do erro, segundo SANCHES (2015, p. 208), a corrente tradicional utiliza a figura do “homem médio”, de modo que se fosse possível que qualquer pessoa mediana incidisse no erro em análise, ele será inevitável. Entretanto, impende sobressaltar a existência de uma corrente moderna, segundo a qual, devem ser analisados o caso concreto, a idade do agente, seu grau de instrução, o momento e o local da conduta.

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Segundo MASSON (2018, p. 72), a vulnerabilidade possui natureza objetiva, ou seja, ou a vítima é vulnerável no momento do ato ou não é, entretanto, segundo alude o doutrinador, esse fato não impede a incidência do erro de tipo, presente quando houver um desconhecimento da elementar descrita no art. 217-A.

É aparentemente o que aconteceu no caso em análise, o magistrado entendeu que não havia provas suficientes para concluir que o agente possuía conhecimento da situação de vulnerabilidade da vítima e, por esse motivo, não possuía o dolo específico de praticar a conduta prevista no art. 217-A do Código Penal.

Entendendo não haver a comprovação da situação de vulnerabilidade da vítima e, consequentemente, do dolo de praticar o estupro de vulnerável, o julgador proferiu a sentença, com base no princípio in dubio pro reo, absolvendo o agente.

A notícia foi divulgada por um site que utilizou o termo “estupro culposo” para narrar o ocorrido.

Assim, ao que tudo indica, a expressão “estupro culposo” se sobressaiu de uma interpretação jornalística que inicialmente veiculou a matéria e chamou a atenção do público, fazendo com que o termo viralizasse nas redes sociais.


A volatilidade das informações nas redes sociais

Esse movimento gerou uma campanha, onde foi apregoado que as pessoas apenas praticam o crime de estupro porque querem, ou seja, que o estupro somente ocorre de forma dolosa, não sendo plausível a sua atribuição culposa.

Uma enxurrada de postagens e publicações tomou conta das redes sociais, com repercussão tamanha que foi possível detectar manifestações de atores e periódicos internacionais, guiados pela frase “não existe estupro culposo”.

Ocorre que, como já obtemperado, não foi constatado que houve a menção, na decisão judicial ou nas alegações finais do Ministério Público, de que o réu havia praticado o estupro culposo ou mesmo de que o estupro culposo existia. Frise-se que o processo tramita em segredo de justiça e, para essa constatação, foram analisados somente os trechos divulgados.

O termo, que emanou de uma escrita estritamente jornalística, repercutiu no mundo inteiro e rapidamente se tornou uma verdade absoluta para boa parte da sociedade que, sem se aprofundar em maiores detalhes sobre o caso, acabou por repeti-lo por centenas de vezes e condenar os aludidos operadores do direito pela suposta utilização da expressão.

Verifica-se que, ao final das contas, todos estavam falando a mesma coisa: o parquet manifestou no sentido de que não seria possível condenar o réu por estupro a título de culpa, pois não existe tal modalidade penal, e a sociedade clamava pela mesma impossibilidade de condenação, pois todo estupro seria doloso.

Em verdade, a forma pela qual o assunto viralizou fez com que o termo empregado se tornasse uma fake news, pois não foi utilizado dentro do contexto entendido pela maioria dos internautas.

O momento vivenciado atualmente no mundo pode ser considerado como a era do imediatismo digital, uma era extremamente marcada pelo excesso de informações e sua volatilidade: em questão de minutos as pessoas recebem uma informação e, muitas vezes, sem conferir, acabam replicando para seus seguidores que replicam para outros e replicam para outros.

Esse mesmo imediatismo gera a necessidade de estar sempre buscando por informações novas, o que pode ensejar com que outras situações caiam no esquecimento. Essa narrativa se enquadra perfeitamente em uma das frases do renomado sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman, onde ele afirma que estamos vivendo a modernidade líquida, onde “as relações sociais são frágeis, fugazes e maleáveis como os líquidos”. (ISTOÉ, online):

Os tempos são ‘líquidos’ porque tudo muda tão rapidamente. Nada é feito para durar, para ser ‘sólido’. (ISTOÉ, online)

Se por um lado essa volatilidade e imediatismo contribuem para a propagação de notícias inverídicas, por outro pode contribuir muito para lograr a atenção da sociedade em temas importantes e fomentar os debates sociais.

A propagação das informações pode ser uma aliada para alavancar discussões e trazer à tona situações, até então, desconhecidas por muitas pessoas. Isso ocorreu no caso do líder espiritual mencionado na introdução deste artigo, onde após o primeiro ato de coragem para denunciar o abusador, surgiram aproximadamente outras duzentas denúncias.

Situação similar ocorreu nos Estados Unidos, poucos anos atrás, onde diversas mulheres utilizaram a hashtag #MeToo (versão em inglês de #EuTambém) para demonstrar a existência de agressão sexual e assédio nos locais de trabalho, situação que acabou gerando o movimento de mesmo nome, o Movimento Me Too.

A internet deu voz a essas mulheres e permitiu que elas contassem sua história, relatassem seus abusos e levassem ao conhecimento da sociedade a situação estarrecedora pela qual todas estavam passando silenciosamente.

É hipótese semelhante ao que ocorreu no caso do “Estupro Culposo”, apesar de o termo utilizado não condizer com aquilo que as pessoas interpretaram, a repercussão do assunto trouxe à lume uma tema deveras importante para a sociedade e que precisa da atenção de todos: a forma como a mulher – vítima de estupro – é tratada e vista pela sociedade.

Foi necessário que um termo inverídico se propagasse no país para que as pessoas pudessem repensar a forma com a qual milhares de vítimas mulheres são tratadas diariamente: como culpadas de serem estupradas pela forma como se vestem, pelas fotos que postam, pelo horário que saem na rua e por outros argumentos que demonstram os resquícios estereotipados de quais são as condutas esperadas para as mulheres.

Acerca da importância dos debates sociais na reconstrução dos paradigmas que envolvem as diferenças de gênero, Guacira Lopes Louro, Doutora em Educação, explica em seu livro intitulado como “Gênero, sexualidade e educação”:

Pretende-se, dessa forma, recolocar o debate no campo do social, pois é nele que se constroem e se reproduzem as relações (desiguais) entre os sujeitos. As justificativas para as desigualdades precisariam ser buscadas não nas diferenças biológicas (se é que mesmo essas podem ser compreendidas fora de sua constituição social), mas sim nos arranjos sociais, na história, nas condições de acesso aos recursos da sociedade, nas formas de representação. (1997, p.22).

Por muito tempo a sociedade sempre teve uma visão utilitarista da mulher, onde ela era vista apenas como um objeto, reinava uma coisificação da mulher para nichos específicos de utilidades. À guisa de exemplo, pode-se mencionar os famosos calendários que continham fotos de mulheres seminuas oferecendo algum produto ou as atuais propagandas de cerveja contendo mulheres em trajes sensuais para atrair o público masculino, como se apenas os homens ingerissem essa bebida alcoólica.

Esse contexto e os argumentos utilizados para “justificar” o estupro da mulher transparecem uma representação cruel e violenta dos valores e crenças que se encontram enrustidos na base de nossa sociedade.

Por esse motivo e, exatamente por ele, a discussão gerada em torno da expressão “Estupro Culposo” se tornou válida e extremamente necessária para que a sociedade debatesse um assunto tão importante que é a recepção da vítima do estupro pelo Estado e pela sociedade e a ausência de culpa da mulher enquanto sujeito passivo do referido delito.


A vitimização secundária causada pelos aparatos estatais

Analisando a fundo o contexto da frase viralizada, percebe-se que ela apresenta um pano de fundo ainda maior: a forma como a vítima fora tratada na audiência de instrução e julgamento pelo advogado do réu e a inércia do magistrado, presidente da audiência, e do Ministério Público em adotar providências que visassem minar as palavras desrespeitosas proferidas contra a vítima na sessão.

Nesse ponto, ressalta-se mais uma vez que o processo tramita em segredo de justiça e, por esse motivo, a análise feita neste artigo recai apenas sobre os trechos que foram divulgados.

Buscando estudar as nuances que envolvem a vítima em situações afins, surge a vitimologia, expressão primeiro utilizada por Benjamin Mendelsohn, considerado o fundador do movimento criminológico, que segundo MAYR:

é o estudo da vítima no que se refere à sua personalidade, quer do ponto de vista biológico, psicológico e social, quer o de sua proteção social e jurídica, bem como dos meios de vitimização, sua inter-relação com o vitimizador e aspectos interdisciplinares e comparativos”. (1990, p. 18).

Dentro desse campo, são elencadas as etapas da vitimização, entendida como o sofrimento suportado pela vítima em razão de ter sido submetida a um evento traumático. Dentre essas etapas é possível verificar a existência da vitimização primária, secundária, terciária e, segundo os doutrinadores mais modernos, quaternária.

A vitimização secundária, objeto deste tópico, é a que mais se sobressai no caso em comento. Essa vitimização é caracterizada pelo sofrimento suportado pela vítima em razão da atuação estatal nas fases do inquérito e do processo judicial. Nos dizeres de SHECARIA:

A vitimização secundária é um derivativo das relações existentes entre as vítimas primárias e o Estado em face do aparato repressivo (polícia, burocratização do sistema, falta de sensibilidade dos operadores do direito envolvidos com alguns processos bastante delicados etc.). (2004, p. 55).

Sabe-se que o crime de estupro é um delito que causa muito mais do que danos físicos. Os danos que se perpetuam, na maioria das vezes, são os danos psicológicos: o medo, o sentimento de impotência, de desrespeito, os pensamentos que relembram os momentos angustiantes vividos e a sensação de constrangimento e vergonha em ter sido violada sexualmente.

Muitas vezes, a vítima de estupro precisa relatar as cenas dolorosas que vivenciou para o delegado, para o escrivão de polícia, para o juiz, responder as perguntas formuladas pelo promotor de justiça, pelo advogado de acusação e precisa se submeter a um exame médico pericial – todos esses sujeitos, na maioria das vezes, homens.

Além disso, a vítima ainda precisa enfrentar estratégias de defesa que, muitas vezes, tentam culpá-la e banalizar a sua dor. No trecho vídeo da audiência divulgado, é possível ver que o advogado de defesa profere frases como “ter uma filha do teu nível”, “peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher como você”, “seu ganha pão é a desgraça dos outros”, “fotos em posições ginecológicas”, “manipular essa história de virgem”, “não adianta vir com teu choro simulado, falso, lágrima de crocodilo”.

Há um claro desvirtuamento da ampla defesa que ultrapassa a esfera razoável da utilização dos meios adequados para adentrar na esfera de ataques ardis e violação aos direitos da personalidade.

A opinião uníssona é no sentido de que é perturbante ver tais palavras serem proferidas a qualquer pessoa. Na ocasião, foi possível vislumbrar que a vítima chegou a implorar por respeito, por tratamento digno e clamou alegando que nem assassinos recebem o tratamento que foi conferido a ela.

A situação caracteriza verdadeira violência psicológica contra a vítima, desta vez praticada, de forma ativa e omissiva, por operadores do direito que deveriam exercer sua profissão dentro dos limites éticos ou, ainda, por aqueles que deveriam assegurar a proteção estatal e atuar com parcimônia, a fim de minimizar os impactos já sofridos com a situação.

Acerca da violência psicológica, a Lei nº 11.340/2006, em seu artigo 7º, inciso II, assim dispõe:

a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação. (BRASIL, 2006).

Resta límpida, portanto, a violência psicológica sofrida pela vítima durante a audiência. Entretanto, tal violência não se caracteriza como violência doméstica e familiar, tendo em vista que fora praticada por agentes que extrapolam os lindes do artigo 5º do dispositivo legal retromencionado.

Essa situação vai à contra mão de toda a atuação que se espera do Estado no sentido de acolher a vítima e evitar que ela passe pelo processo de revitimização. Visando coibir condutas como as tais, a Lei Maria da Penha prevê procedimentos que devem ser observados no atendimento à mulher:

Art. 10-A. É direito da mulher em situação de violência doméstica e familiar o atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado por servidores - preferencialmente do sexo feminino - previamente capacitados.

§ 1º A inquirição de mulher em situação de violência doméstica e familiar ou de testemunha de violência doméstica, quando se tratar de crime contra a mulher, obedecerá às seguintes diretrizes:

I - salvaguarda da integridade física, psíquica e emocional da depoente, considerada a sua condição peculiar de pessoa em situação de violência doméstica e familiar;

III - não revitimização da depoente, evitando sucessivas inquirições sobre o mesmo fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo, bem como questionamentos sobre a vida privada. (Sem grifos no original). (BRASIL, 2006).

As condutas verificadas na gravação da audiência vão de encontro ao que está previsto em lei: (i) a depoente, vítima de um homem, se encontra em um ambiente virtual sendo questionada por mais quatro homens, (ii) ocorre a desestabilização emocional da depoente e (iii) ocorre sua revitimização, contendo questionamentos específicos sobre sua vida privada que em nada justificariam o estupro ocorrido.

Neste ponto, impende destacar que, embora os artigos supramencionados estejam inseridos no capítulo do atendimento realizado pela autoridade policial, é possível aferir que a mens legis do texto é proteger a mulher pelo contexto em que ela está inserida. O fato de o capítulo se referir à autoridade policial, não permite que a autoridade judiciária pratique (ou permita que seja praticado) exatamente o oposto, pois o contexto e a situação da mulher vítima da violência não se alteraram.

E mesmo para os destinatários específicos dessa norma, verifica-se que ela, ainda assim, não é obedecida na íntegra. No caso mencionado no inicio desse artigo, da adolescente abusada por trinta e três homens, a vítima relatou situações que demonstram a não observância dos procedimentos retro mencionados.

Com efeito, ela relatou se sentir constrangida por estar com três homens dentro de uma sala, pelo fato de a sala ser de vidro (aparentemente todos que passavam viam seu interior), pelo fato de o delegado perguntar se ela já tinha o hábito de praticar ato sexual com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, entre outros pontos que destoam da atuação eficiente e zelosa esperada para o Estado.

Questionamentos acerca da vida pessoal da vítima, como pose nas fotografias, tamanho da roupa utilizada e o hábito de realizar sexo com mais de uma pessoa, apenas visam dissecar o comportamento da vítima e remanejar os holofotes para a moral da mulher, como se esses fatos fossem capazes de elidir a conduta praticada pelo agressor.

A sociedade e muitos operadores do direito têm grandes dificuldades de considerar a caracterização do delito de estupro quando a vítima não é aquela perfeita, isto é, aquela dentro dos padrões “esperados” para uma mulher.

O advogado israelense e professor alemão, Benjamin Mendelsohn, criou uma escala gradativa sobre as espécies de vítima, variando de acordo com seu grau de culpa pela ocorrência do evento criminoso, começando com a “Vítima ideal” e atingindo o grau máximo de culpa com a denominada “Vítima unicamente culpada”.

Para Mendelsohn, a “Vítima ideal” é aquela que não tem qualquer culpa para a realização do delito, não provoca e não colabora com o agente. É exatamente a vítima mais aceita socialmente na atualidade, ainda que de forma camuflada.

Grande parte da aceitação social apenas considera efetivado o crime de estupro na situação perfeita: mulher conservadora e homem doentio. À medida que começa a existir gradações do padrão feminino e do padrão masculino, a sociedade passa a relativizar o delito de estupro e colocar em cheque a credibilidade da vítima.

Adiantando alguns passos na gradação das vítimas, Mendelsohn elenca a “Vítima mais culpada do que o infrator”, sendo considerada como aquela vítima provocadora, que incita o autor a cometer o crime, aquela vítima que não consegue se controlar, ainda que haja uma parcela de culpa do autor.

Esse parece ser o enquadramento que a sociedade tende a fazer das vítimas de estupro: a depender da roupa, da conduta provocativa, do lugar onde estava andando e do batom que estava usando, a mulher chega a ser mais culpada do que o agressor, pois se ela não tivesse agido de tal forma, possivelmente não teria sido violentada.

A cada distanciamento da mulher padrão há uma proximidade no grau de culpa da vítima. Interpretação equivocada e sexista.

Isso porque a lei não faz gradações. É estupro todo constrangimento, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou praticar ato libidinoso e só. Não importa se a vítima era garota de programa, não importa se a vítima consentiu com o início do ato sexual e depois mudou de ideia, não importa se não houve penetração sexual, não importa se a vítima é casada com o agressor. Qualquer situação que se enquadre no tipo legal é estupro.

Dessa forma, é possível verificar que, apesar das mudanças culturais e das inovações legislativas, infelizmente, a vitimização secundária ainda se faz muito presente na máquina estatal como um todo. E o motivo para isso é muito simples: a estrutura estatal está formada por seres humanos que vêm de uma origem histórica e secular de segregação feminina enraizada na cultura da sociedade (e isso não só por homens, mas também por mulheres).

E esse é papel do estado: minimizar os estigmas dentro de seu próprio aparato, descortinar os pensamentos que geram desigualdade de gênero e fomentar o apoio integral e humanitário às mulheres vítimas de crimes contra a dignidade sexual e a violência doméstica.


Conclusão

Pelo teor narrado nesse artigo, conclui-se que o atual ordenamento jurídico apenas admite o crime de estupro na modalidade dolosa, sendo fato atípico, por erro de tipo, o ato praticado em que o agressor não tem conhecimento da condição de vulnerabilidade da vítima.

Assim sendo, a expressão “Estupro Culposo” não foi fruto de uma decisão judicial, tampouco transparece ser uma nova modalidade de crime, mas tão somente uma frase utilizada por um jornalista que viralizou nos meios digitais, diante do baixo grau de plausibilidade de alguém abusar sexualmente de outra pessoa sem ter intenção.

Nessa mesma toada, conclui-se que a era digital, ao mesmo passo que dissemina informações inverídicas, tem contribuído para a pulverização de debates sociais e levantamento de questões importantes para quebrar os tabus oriundos da desigualdade de gênero.

Sabe-se que os casos de grande repercussão são apenas a ponta do iceberg, tendo em vista que no Brasil são registrados cerca de 180 estupros por dia, sem considerar as cifras negras da criminalidade, que sequer chegam a ser contabilizadas.

Entretanto, fomentar essa discussão faz com que as informações sejam divulgadas e cheguem cada vez mais ao conhecimento de pessoas que não tiveram oportunidade de ter acesso à educação acerca da igualdade de gênero.

Não está a se dizer que vale de tudo, inclusive a divulgação de fake news, para fomentar o debate, mas tão somente que cada situação, ainda que negativa, pode ser revertida para um lado positivo e de mudanças em nossa sociedade.

Notícia por notícia, debate por debate, semente por semente, até que seja fixado na mente de todos que a única culpa que a mulher possui no crime de estupro é a culpa de ser mulher. Como não escolhemos o gênero que vamos nascer, concluímos que não existe qualquer culpa!


REFERÊNCIAS

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