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Normas tecnicamente mal elaboradas e em conflito aparente

Normas tecnicamente mal elaboradas e em conflito aparente

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O texto evidencia a importância de um processo legislativo bem feito no âmbito do direito penal, bem como as consequências nocivas que podem ecoar de uma lei tecnicamente mal elaborada.

Resumo: Este artigo evidencia a importância de um processo legislativo bem feito no âmbito do direito penal, bem como as consequências nocivas que podem ecoar de uma lei tecnicamente mal elaborada. É traçado um paralelo entre o descompasso do legislador - que em alguns casos acaba por elaborar normas desajustadas e em conflito com outras -  com o instituto do conflito aparente de normas, que emerge como possível solução para uma correta tipificação de casos concretos. Nesse passo, este artigo emerge para demonstrar o um silencioso desajuste que habita no Poder Legislativo e que o faz notadamente se demonstrar inócuo quanto ao objetivo para o qual precipuamente foi criado, o de elaborar de forma eficaz as lei.

Palavras Chave: Direito Penal, O conflito aparente de normas, Processo Legislativo, Princípio da Consunção, Crimes contra a dignidade sexual.

Sumário: Introdução. 1. O panorama de normas mal elaboradas. 2. A questão da anomia jurídica. 3. A possível solução para o desajuste nos crimes contra a dignidade sexual. Considerações Finais. Referências


Introdução

Não é necessário se debruçar demasiadamente na legislação penal para se deparar com desajustes – e até mesmo confusões – no texto das leis elaboradas por nossos congressistas. Desapercebidamente ou não, muitas pérolas acabam por passar até mesmo pelo filtro do veto presidencial e ingressam em nosso ordenamento para reger os fatos da vida. Com efeito, algumas leis penais nascem tecnicamente mal elaboradas e de forma incoerente acabam reverberando lacunas em nosso ordenamento, gerando insegurança jurídica e esbarrando na inconstitucionalidade.

1. O panorama de normas mal elaboradas

Basta pinçar do Código Penal Brasileiro os preceitos que tutelam (ou deveriam) tutelar a dignidade sexual, para ver aflorar tal descompasso. Primeiramente, ao interpretar a inteligência dos artigos 217-A e 218-B de nosso diploma penal, depreende-se que, enquanto um objetiva punir o agente que tiver conjunção carnal ou praticar ato libidinoso com uma vítima menor de 14 anos, o outro, por conseguinte, cuida de punir o agente que vier a praticar a mesma conduta, porém com o maior de 14 anos, o que inicialmente faz parecer uma complementação legislativa sensata. Entretanto, o legislador, de forma inadmissível, esqueceu de conferir tal proteção à vítima que perfaz a idade de 14 anos – isso mesmo, a deixou de fora da proteção do manto do Código Penal. Parece inverdade, todavia, por mais bem intencionado que seja o magistrado, não poderá este interpretar a lacuna gerada pelo legislador de forma extensiva objetivando de tutelar a vítima que ficou de fora de proteção legislativa, isso porque é vedado constitucionalmente em nosso ordenamento jurídico a analogia “in malam partem”, não sendo permitido interpretar em desfavor do réu sob pena de estar em flagrante lesão ao princípio da legalidade. E o saldo disso acaba por se resumir no dissabor de assistir o direito penal sendo um fim de si mesmo. 

Nesse passo, vale refletir também acerca do artigo 218-C, ainda vinculado à temática dos crimes contra a dignidade sexual. Introduzido no Código Penal no ano de 2018, as pressas, e principalmente por conta de um episódio ocorrido com certo chefe de poder executivo da época, este veio com a finalidade de punir o agente que divulga cena de estupro, de sexo ou de pornografia seja com participação de pessoa vulnerável ou capaz, mas acabou na prática por criar um mal-estar com o exposto nos arts. 241 e 241-A do Estatuto da Criança e do Adolescente. O artigo introduzido pelo Código Penal, classificado como sendo do tipo misto alternativo, abrangeu também algumas condutas que já estavam tipificadas nos referidos artigos do ECA, e ainda, trouxe como preceito secundário uma punição de pena de reclusão de 1 a 5 anos, mais branda frente às penas de reclusão dos artigos do ECA, de respectivamente 3 a 6 anos e 4 a 8 anos. Com isso, consolidou-se mais uma lacuna no direito penal, que passava a possibilitar ser preenchida por teses jurídicas descabidas relacionadas ao princípio da “novatio legis in mellius” e que ao final de uma possível persecução penal ainda poderia contribuir para um abrandamento da punição do agente que cometera um delito desta monta. Cumpre aqui frisar também outra confusão do legislador, o Art. 218-C do CP foi inserido no capítulo II do Título VI, o qual trata de crimes sexuais contra vítima vulnerável. Todavia, essa norma não se trata apenas de crime praticado somente contra vulnerável, pode envolver também condutas praticadas contra adulto capaz, o que configura mais um caso de desatenção do legislador com a inclusão errônea quanto ao capítulo adequado no CP.

Além disso, vale mencionar ainda acerca da miscelânea que se apresenta patente nas disposições gerais dos crimes contra a dignidade sexual. O art. 226, I já trazia uma causa de aumento de pena de quarta parte para caso qualquer um dos crimes fosse cometido em o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas, mas no ano de 2018, ao criar a figura do “estupro coletivo” foi introduzido um quarto inciso ao mesmo artigo com uma outra causa de aumento de pena, agora de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), caso o crime viesse a ser praticado mediante concurso de 2 (dois) ou mais agentes. Essa nova causa de aumento de pena acabou por gerar dúvida quanto a forma de tipificação diante de um caso concreto com a possibilidade do deste subsumir-se em dois incisos de um mesmo artigo. É possível até sustentar, que o termo “estupro coletivo” se refera apenas a nomes específicos de forma majorada, não fazendo menção exclusiva a tipos penais sobre os quais supostamente poderia incidir. Mas, diante também de mais essa lacuna jurídica, deve-se aguardar o desenrolar doutrinário e o enfrentamento jurisprudencial acerca do tema.

2. A questão da anomia jurídica

Por outro lado, e de encontro com esse descompasso escorregadio de nossos legisladores, é possível socorrer-se no instituto do conflito aparente de normas para sanar todo esse imbróglio. A temática deste princípio se traduz em uma suposta possibilidade de incidência de mais de uma norma a um mesmo fato concreto. Porém, esse conflito seria apenas aparente pois, após a solução do (imaginado) conflito, somente uma norma deverá ser efetivamente aplicada.

Tal instituto é desdobramento do conceito de antinomia jurídica, a qual foi denominada, segundo os ensinamentos de Noberto Bobbio (1982, p. 88), como sendo "a situação que se verifica entre duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento jurídico e tendo o mesmo âmbito de validade.". Nesse rumo, Bobbio, no seu empenho de solucionar tais conflitos, encetou no mundo jurídico critérios cronológicos, hierárquico, e da especialidade, os quais contribuíram para o que veio a ser posteriormente o instituto do conflito aparente de normas. Métodos de análise como este surgiram diante do crescente rol de relações humanas, com a constante aprovação de leis que cominou no fato de um mesmo comportamento passar a ser regido por mais de uma disposição legal, e que de igual modo tornou o trabalho do operador do direito cada vez mais complexo.

Para se configurar o conflito aparente de normas é necessário a unidade de fato, a pluralidade de normas, a aparente aplicação dessas normas (e não só de uma) ao caso em tela, e por fim a efetiva aplicação de uma só norma. Como forma de solução do suposto conflito, o Direito Penal se vale de quatro critérios ou princípios, quais sejam: da especialidade, o da subsidiariedade, o da consunção e o da alternatividade.

O princípio da especialidade significa que uma lei especial derroga uma lei geral, ou seja, havendo a aparente incidência de uma lei geral e de uma lei especial, esta última prevalecerá, por ser mais adequada ao caso concreto. Como exemplo tem-se as leis penais extravagantes, quando atuam de forma mais abrangentes quanto ao código penal.

O princípio da subsidiariedade determina que a norma primária deva prevalece sobre a norma chamada de subsidiária. Sendo uma lei é subsidiária em relação a outra quando descreve um grau menor de violação do bem jurídico, podendo o efeito ocorrer de forma expressa ou de forma tácita dependendo do explicitado no texto legal. Como amostra, tem-se o crime de perigo para a vida ou saúde de outrem (art. 132 do CP) que se constitui em uma norma subsidiária expressa.

Já o princípio da consunção, também chamado de absorção temos que o crime previsto por uma norma acaba por constituir um meio necessário ou fase normal de preparação para realização de outro crime . Neste caso, apenas a norma consuntiva será aplicada no caso concreto. E como espécie, tem-se o crime de homicídio absorvendo o crime de lesão corporal, situação na qual o agente almeja  a morte da vítima.

Por fim, temos o princípio da alternatividade, que ocorre quando há a previsão, pelo tipo penal, de várias condutas que consubstanciam um único crime, configurando os chamados tipos penais mistos alternativos, ou seja, aqueles que possuem mais de um núcleo do tipo, mais de um verbo que define a conduta configuradora da infração penal. Nesses casos, ainda que a conduta do agente seja praticada no mesmo contexto, e se amolde em mais de um dos núcleos, subsumindo-se a mais de um verbo nuclear, o sujeito ativo responderá apenas pela prática de um tipo único – É o que acontece, por exemplo, com o crime previsto como tráfico de drogas, no art. 33 do referido diploma.

3. A possível solução para o desajuste nos crimes contra a dignidade sexual

Para o caso explicitado acima acerca do mal-estar gerado com o ECA quando do surgimento do artigo 218-C do CP, prevalece na doutrina majoritária que as normas do estatuto se sobrepõem ao artigo do CP, pois neste caso estaríamos diante apenas de um conflito aparente, uma vez que os referidos artigos 241 e 241-A do estatuto estão amparados pelos princípios da especialidade e da subsidiariedade, dada a abrangência protetiva prevista em todo o ECA, inclusive punindo de forma mais severa o agente que comente um crime de tamanha repulsa social.

Já acerca do exposto anteriormente sobre introdução do artigo 218-B no Código Penal, prevalece na doutrina que este revogou tacitamente o artigo 244-A do ECA, uma vez que comparados, ambos punem com a mesma calibragem de pena o sujeito ativo, porém, o artigo 218-B além de ser norma posterior, especificamente trata o caso com maior completude e consequentemente maior proteção. Agora, quanto a lacuna deixada pelo legislador ao não cobrir com o manto protetivo do direito penal a vítima que esteja perfazendo seus 14 anos de idade, somente resta aguardar uma alteração legislativa ou uma outra robusta tese jurídica que a proteja.

Por fim, quanto à antinomia gerada com a questão da introdução da majorante para o termo “estupro corretivo”, vislumbra-se ser mais plausível seguir a posição de Cleber Masson, o qual  defende em sua obra que pelo fato do artigo se denominar estupro coletivo, a majorante do inciso IV somente se aplicaria ao estupro, sendo que para os demais crimes se aplicaria o inciso I.

Considerações Finais

Em síntese, evidencia-se aqui a importância do papel que é exercido por nossos congressistas, bem como as consequências nocivas que podem ecoar de uma lei tecnicamente (ou intencionalmente) mal elaborada. É fundamental cobrar sintonia entre as comissões parlamentares, sejam as de controle, justiça, cidadania e a de redação, presentes nas casas legislativas de nosso parlamento.  Por fim, cabe salientar que a mera justificativa de que não cabe ao Poder Judiciário interferir nas opções feitas pelo Poder Legislativo quando este estiver no exercício de sua função típica, por estar supostamente ferindo a separação dos poderes, é um argumento raso. Esse pretexto cai por terra quando patente é a ofensa do legislador a princípios constitucionais e notadamente se mostra inócuo quanto ao objetivo para o qual precipuamente foi criado, o de elaborar de forma eficaz as leis.


Referências

BOBBIO, Noberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Editora UnB, 1982.

_______. Decreto-Lei n 2.848, de 7 de dezembro de 1940. . Dispõe sobre o Código Penal Brasileiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ decreto-lei / del 2848 compilado.htm. Acesso em: 01 dez. 2020.

MASSON, Cleber. Direito penal: parte especial, volume III. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Método, 2019, p. 103.

PROCOPIO, Michel. Apostila de Direito Penal. Curso Preparatório para Carreiras de Delegado de Polícia. 2020. Estratégia Concursos.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Gustavo Braga de. Normas tecnicamente mal elaboradas e em conflito aparente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6415, 23 jan. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87491. Acesso em: 19 abr. 2024.