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Colisão entre direitos fundamentais

Colisão entre direitos fundamentais

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Uma das formas em que se evidencia a limitação ao exercício dos direitos fundamentais é quando ocorre colisão entre eles, ou seja, quando um direito fundamental, em uma mesma situação, entra em choque com outro direito fundamental.

1. Introdução

Os direitos fundamentais, enquanto construções normativas constitucionais fundamentadas, em última análise, no princípio da dignidade da pessoa humana, têm sua concretização assegurada pelo Estado, que deve executar as devidas medidas para que o indivíduo, no exercício de tais direitos, não sofra restrições ilegítimas.

A noção de restrições ilegítimas pressupõe a existência de limitação legítima, admitida pela ordem constitucional. De fato, ao classificar os direitos fundamentais como cláusulas pétreas, a Constituição brasileira vedou a abolição, direta ou oblíqua, dos direitos fundamentais, mas silenciou quanto à sua restrição.

Com efeito, a abrangência dos direitos fundamentais pode ser determinada tanto por via interpretativa, no exercício da jurisdição constitucional das liberdades, quanto via legislativa. Em ambos os casos pode haver restrição de um direito fundamental, mas com a cautela de não esvaziar seu conteúdo.

Uma das formas em que se evidencia a limitação ao exercício dos direitos fundamentais é quando ocorre colisão entre eles, ou seja, quando um direito fundamental, em uma mesma situação, entra em choque com outro direito fundamental.

Contudo, a jurisprudência pátria não tem desenvolvido técnica jurídica satisfatória, tanto para a caracterização do problema, quanto para a busca de solução.

Sem a pretensão de esgotar o tema, que é denso e amplo, o presente trabalho se propõe a fornecer embasamento teórico, proveniente sobretudo do direito comparado, para então apresentar as técnicas de soluções de colisão entre direitos fundamentais, enfatizando a aplicação do princípio da razoabilidade no âmbito da jurisdição constitucional das liberdades.


2. Jurisdição Constitucional das Liberdades

2.1 Uma Nova Concepção de Jurisdição Constitucional

A jurisdição, enquanto manifestação da soberania do Estado, cujo escopo principal é promover o bem comum, segundo o direito objetivo, através da aplicação da lei ao caso concreto (GOMES, 2000, p.74), é instrumento essencial para a realização dos fins colimados pelo Estado Democrático de Direito.

Com efeito, a teoria da tripartição dos poderes estatais proposta por Montesquieu, associada à doutrina norte americana dos freios e contrapesos (checks and balances), confere tipicamente ao Poder Jurisdicional a atribuição substitutiva de tutelar os interesses públicos e privados, assegurando o respeito ao ordenamento jurídico em vigor. A atividade jurisdicional é, assim, uma garantia do Estado para fazer prevalecer os valores consagrados em normas jurídicas, de modo que a legislação restaria inócua se inexistisse poder coercitivo suficiente para assegurar seu cumprimento.

Neste diapasão, tão importante quanto a própria Constituição é a existência de uma jurisdição constitucional, que possua a função bivalente de fiscalizar sua aplicação e de protegê-la de eventuais atos normativos que atentem ao seu conteúdo formal e material. Significa afirmar que sendo a Constituição o fundamento de validade do ordenamento e da própria atividade político-estatal, a jurisdição constitucional passa a ser a "condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito" (STRECK, 2002, p.27).

A discussão acerca da jurisdição constitucional surge com o famoso caso Marbury x Madison, que inaugurou o judicial review nos Estados Unidos, fornecendo o modelo de controle difuso de constitucionalidade utilizado em vários países do mundo.

Mais adiante, com o advento da Constituição Austríaca de 1920 (Oktoberverfassung) e as exposições doutrinárias de Hans Kelsen sobre a posição hierárquica suprema da Constituição em relação às demais normas jurídicas, foi idealizado o controle concentrado de constitucionalidade e a jurisdição constitucional ganhou contornos mais definidos, sendo implementados em diversos países, Tribunais Constitucionais com o intuito de combater a incompatibilidade vertical das normas infraconstitucionais com a Constituição.

Após a Segunda Guerra Mundial (1937-1945), o modelo austríaco de jurisdição constitucional, isto é, a instituição do controle concentrado de constitucionalidade efetivado através de um Tribunal Constitucional, se propagou pela Europa, sendo o sistema mais utilizado nos países de tradição romano-germânica.

A evolução de tais modelos, quais sejam, o norte americano e o austríaco, conduziram à tendência atual de interpenetração dos mesmos, ou seja, a garantia de uma jurisdição constitucional que realize tanto o controle difuso quanto o concentrado, a exemplo de que ocorre no Brasil e demais países da América Latina.

Todavia, urge observar que o controle de constitucionalidade, muito embora primordial para a preservação da Constituição e conseqüente equilíbrio do ordenamento jurídico, não é suficiente, per si, para assegurar a eficácia dos princípios do Estado Democrático de Direito – este, para atingir a finalidade da promoção do bem comum, deve proporcionar e garantir a plena realização dos direitos fundamentais constitucionalmente protegidos.

O debate acerca dos modelos de controle de constitucionalidade acabou por desviar a atenção à tutela dos direitos fundamentais na Carta Magna. Desse modo, por muito tempo vigorou o entendimento de que a jurisdição constitucional, também denominada de Garantias da Constituição, tinha por função única o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos emanados pelo Estado, podendo ser realizada de maneira difusa ou concentrada. Nesse sentido, Kelsen (2003, p. 126), com sua preocupação de resguardar valores democráticos através do Direito, elucidou:

Garantias da Constituição significam, portanto, garantias da regularidade das regras imediatamente subordinadas à Constituição, isto é, essencialmente, garantias da constitucionalidade das leis.

Indubitavelmente, a contribuição fundamental para uma nova concepção de jurisdição constitucional se deu com a reinstauração do recurso de amparo, estabelecido na Constituição Espanhola de 1931 e em diversas outras, como a alemã e a italiana. Tal remédio pode ser manejado diretamente à Corte Constitucional pelo indivíduo que for lesado em seus direitos fundamentais ou outro direito substantivo assegurado pela Constituição por atos de autoridade pública, desde que esgotada previamente a via jurídica.

Foi retomada com maior ênfase a idéia de que a garantia ao máximo respeito aos direitos e liberdades fundamentais constitui a essência do regime constitucional e é primordial para a concretização substancial dos princípios democráticos. Dessa maneira, surgem os delineamentos do que a doutrina atual denomina de jurisdição constitucional das liberdades, que será melhor abordada adiante.

Interessante é a observação de Jorge Miranda (apud STRECK, 2002, p. 31), que afirma que o Direito Público foi alvo de uma revolução copernicana. É dizer, houve a passagem de uma fase em que às normas constitucionais era imprescindível a interposição legislativa a uma fase em que são aplicáveis às situações do dia-a-dia, resultando em uma justiça constitucional estruturada e legitimada. A justiça constitucional figura, assim, como uma nova concepção do Estado e do direito, em suas relações com os órgãos do Estado e nas relações do Estado com os cidadãos. Canotilho (2003, p. 886) afirma ser a justiça constitucional um "complexo de atividades jurídicas desenvolvidas por um ou vários órgãos jurisdicionais, destinadas à fiscalização da observância e cumprimento das normas e princípios constitucionais vigentes".

Diante dessas circunstâncias, a jurisdição constitucional pode ser definida como a atividade judicial de defesa da Constituição, mormente pelo desempenho do controle de constitucionalidade e pela proteção processual dos direitos fundamentais, pressupondo consequentemente a rigidez constitucional e a existência de uma Corte criada para tal fim (MORAES, 2000, p. 47).

Em suma, falar de jurisdição constitucional implica necessariamente em abordar não apenas a questão do controle de constitucionalidade, mas também a tutela dos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente protegidos, seja, em ambos os casos, ou através de um Tribunal Constitucional, ou por via difusa, em que os demais órgãos do Poder Judiciário têm legitimidade para promover a composição de lides nas quais incidam tais matérias.

2.2 Jurisdição Constitucional das Liberdades

Vários são os critérios de classificação da jurisdição constitucional. A divisão tradicional é feita com base nos sistemas de controle de constitucionalidade, havendo, desse modo, duas espécies, a saber, o sistema político (modelo francês), que, fundamentado no princípio da soberania do parlamento, realiza preventivamente o controle de constitucionalidade por órgão não jurisdicional, de cunho político, e o sistema jurisdicional (modelo americano-austríaco), que atribui competência para os órgãos do Poder Judiciário exercerem o controle de constitucionalidade em momento posterior à entrada da norma no ordenamento jurídico.

Essa classificação, contudo, é falha na medida em que limita a jurisdição constitucional ao controle de constitucionalidade, que, como foi visto, é somente uma das atribuições da atividade jurisdicional em sede constitucional.

Importa aqui enfatizar a classificação fundamentada no âmbito da jurisdição e no rol de competências (SAMPAIO, 2002, p. 53), havendo, pois, a jurisdição constitucional de caráter interno e a jurisdição constitucional de caráter internacional e comunitário.

Concerne à jurisdição constitucional de caráter internacional e comunitário as questões alusivas ao controle de conformidade dos atos internos com as normas externas e o controle dos atos externos em face da Constituição.

A jurisdição constitucional de caráter interno, por seu turno, abrange o controle de constitucionalidade, a jurisdição constitucional penal, a jurisdição constitucional eleitoral, a jurisdição constitucional de conflitos entre os entes da federação ou entre órgãos constitucionais e a jurisdição constitucional das liberdades, referente à tutela dos direitos fundamentais.

Assume, assim, a jurisdição constitucional das liberdades, relevante papel de amparo para a defesa dos direitos fundamentais, conferindo aos jurisdicionados o direito de recorrer aos tribunais constitucionais com o intuito de defenderem, de maneira autônoma, os direitos fundamentais violados ou ameaçados (CANOTILHO, 2002, p. 888) através de instrumentos processuais constitucionalmente previstos.

A noção de Estado Democrático de Direito é indissociável da idéia de proteção aos direitos e garantias fundamentais, sobretudo após o desenvolvimento da teoria francesa de respeito às liberdades e aos direitos constitucionais.

O constitucionalismo francês da propiciou o surgimento da teoria geral das liberdades, consolidada com o advento da Constituição da V República (Constituição Francesa de 1958), que incluiu em seu corpo a Declaração dos Direitos do Homem de 1789, bem como os princípios gerais utilizados pela jurisprudência para a concepção dos direitos fundamentais, com destaque ao princípio da razoabilidade.

O desenvolvimento da doutrina jusnaturalista também foi de fundamental destaque para a consagração da teoria geral das liberdades, refletindo na criação de uma concepção de jurisdição constitucional das liberdades.

Luigi Ferrajoli (2002, p. 13) aponta que, em respeito à tradição juspositivista clássica, a razão jurídica atual, influenciada pelos progressos do constitucionalismo do século passado, permite configurar e construir o Direito atualmente como um sistema artificial de garantias constitucionalmente preordenado à tutela dos direitos fundamentais.

O constitucionalismo norte-americano propõe, através da Bill of Rights, garantias processuais que visam assegurar os direitos fundamentais, com limites à atuação do Poder Público, conferindo ao Judiciário o papel de concretizar as liberdades individuais.

Cumpre asseverar que a influência do constitucionalismo norte-americano é observada não apenas no modelo garantista, mas também na forma difusa com que é exercida a jurisdição constitucional das liberdades.

Com efeito, a proteção aos direitos fundamentais parte da compreensão de suas fontes, seja no plano internacional (Carta da ONU de 1945) [01] ou no plano nacional. No direito interno, a proteção provém dos direitos consagrados na Constituição, competindo à justiça constitucional, exercida tanto pelo Tribunal Constitucional quanto pelo juiz ordinário, a extração, através de métodos interpretativos próprios, do conteúdo dos direitos fundamentais.

A atividade jurisdicional constitucional das liberdades no Brasil, a exemplo do modelo norte-americano, não está concentrada no Supremo Tribunal Federal, muito embora possua tal órgão competência exclusiva em determinadas situações previstas na Constituição. Muito mais abrangente, a concreta proteção aos direitos fundamentais é realizada de forma difusa por todo o Poder Judiciário.

A jurisdição constitucional das liberdades, enquanto atividade jursidicional destinada à tutela das normas constitucionais que consagram os direitos fundamentais da pessoa humana, adquire ainda mais amplitude com relevo para o princípio da igualdade, haja vista assumir preponderante função de equilíbrio no reconhecimento dos interesses constitucionais.

2.3 Hermenêutica Constitucional e a Jurisdição Constitucional das Liberdades

No tocante à jurisdição constitucional das liberdades, a hermenêutica constitucional desempenha relevante função, uma vez que, por intermédio dos princípios de interpretação constitucional, é extraído o conteúdo dos direitos fundamentais e realizada a ponderação de interesses diante de colisão entre os mesmos.

A compreensão do conteúdo dos direitos fundamentais, bem como da preponderância de um sobre outro na situação subjetiva configurada só pode ser efetivamente consagrada através do domínio dos princípios fornecidos pela hermenêutica constitucional.

Importa de plano assinalar que regras e princípios são espécies do gênero norma jurídica, havendo diferenças substanciais entre os dois. Canotilho (2002, p. 1246) sistematiza essa diferenciação em critérios, a saber, quanto ao grau de abstração, quanto ao grau de determinabilidade na aplicação, quanto à fundamentalidade, quanto à proximidade da idéia de direito e quanto à natureza normogenética.

Destarte, os princípios, por possuírem um elevado grau de abstração e indeterminabildade, não estão suscetíveis à aplicação imediata, necessitando de atividades concretizadoras. Outrossim, desempenham papel estrutural de acentuada importância, pois conferem a coesão ao ordenamento jurídico, assumindo posição hierárquica superior às regras. Revelam em seu conteúdo o ideal de justiça e servem, por sua natureza normogenética, de substrato às regras.

A distinção feita entre regras e princípios é particularmente relevante em sede de direitos fundamentais.

O estágio atual de compreensão dos princípios constitucionais converge para a teoria da normatividade dos princípios, em que estes são dotados de imperatividade e concebidos como fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico, devendo as demais normas estarem em consonância com os mesmos. Luis Roberto Barroso (1999, p. 147) assevera que

Os princípios constitucionais são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui.

A doutrina italiana, no desenvolvimento da teoria da normatividade dos princípios, preconiza a idéia de que o princípio, seja expresso na ordem jurídica ou nela implícito, é norma aplicável como regra de determinados comportamentos públicos ou privados. (CRISAFULLI apud BONAVIDES, 2003, p. 273).

Os princípios conferem a harmonia necessária ao ordenamento jurídico, constituindo a síntese dos valores constitucionais mais relevantes. Podem ser fundamentais, quando concernentes à estrutura política do Estado, gerais, quando irradiados por toda a ordem jurídica, e setoriais ou especiais, quando referem-se a um determinado tema.

O esforço interpretativo dos princípios é superior ao das regras, haja vista a indeterminação de seus efeitos e multiplicidade de meios para atingi-los. (BARCELLOS, 2002, p. 65). Há que se destacar a reconhecida eficácia dos princípios constitucionais no que diz respeito à função interpretativa, negativa e vedativa de retrocesso.

Eficácia negativa é aquela que veda que atos normativos de hierarquia inferior se oponham ao conteúdo do princípio, autorizando sejam invalidados tais atos pelo Poder Público.

A eficácia vedativa de retrocesso é característica dos direitos fundamentais, partindo da premissa de que tais direitos, de sede constitucional, se concretizam através de normas infraconstitucionais. Isto implica que não é permitido ao Poder Público revogar normas que, regulamentando permissivos constitucionais, viabilizam ou ampliam direitos fundamentais, a menos que a revogação seja acompanhada medida substitutiva equivalente.

Em relação à função interpretativa, esta concede aos princípios constitucionais a qualidade de orientadores na interpretação das demais normas, de modo que todo o efeito pretendido pelo princípio esteja presente na solução tomada pelo intérprete.

No que concerne à atividade hermenêutica, são aplicáveis à jurisdição constitucional das liberdades os seguintes princípios interpretativos: a) supremacia da Constituição, b) presunção de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público, c) interpretação conforme a Constituição, d) unidade da Constituição e e) razoabilidade.

A supremacia da Constituição é o assente de toda a interpretação constitucional e fundamento do controle de constitucionalidade. Consiste na idéia de que a Constituição é a norma de máxima hierarquia, devendo todo ato normativo conformar-se com seus preceitos, não podendo qualquer ato jurídico ou mesmo manifestação de vontade contrapor-se à Lei Fundamental.

A ordem jurídica pátria, no tocante ao direito internacional público, adota a teoria dualista. É dizer, as normas jurídicas emanadas de fontes internacionais, uma vez introduzidas no Brasil por intermédio da ratificação de tratados, incorporam o ordenamento jurídico infraconstitucional, em resguardo à supremacia da Constituição.

Em relação aos direitos humanos, vem sendo calorosa a discussão no sentido de, com fulcro no art. 5º, § 2º, CF/88, permitir que os tratados internacionais que versem sobre direitos humanos, uma vez ratificados pelo Brasil, assumam status constitucional, elevando tais direitos ao patamar de direitos fundamentais, e, por via de conseqüência, cláusulas pétreas.

Flávia Piovesan (2002, p. 105) escreve que, relativamente aos impactos jurídicos dos tratados internacionais de direitos humanos no direito pátrio, estes são, por expressa determinação constitucional, recepcionados de maneira diferente dos demais tratados internacionais, afirmando que "a Carta de 1988 confere aos tratados de direitos humanos o status de norma constitucional, por força do art. 5º, parágrafo 1º".

Não obstante a proposta ser coerente com o atual estágio de desenvolvimento global do direito, mormente considerando a existência do recente direito internacional dos direitos humanos, a doutrina nacional vem oferecendo resistência em admiti-la, eis que a supremacia da Constituição repousa em um conceito clássico de soberania já ultrapassado face às transformações do mundo contemporâneo.

Ainda com relação à supremacia constitucional, é de notar-se que este princípio guarda estreita relação com a idéia de rigidez da Constituição. Com efeito, não há que se falar em hierarquia da Lei Fundamental se ela mesma permite ser alterada através de normas infraconstitucionais sem qualquer procedimento especial e mais dificultoso. Nesse diapasão, a supremacia da Constituição traduz noção de "superioridade do poder constituinte sobre as instituições jurídicas vigentes" (BARROSO, 1999, p. 158-159).

O princípio da presunção de constitucionalidade das leis e atos do Poder Público é indispensável à harmonia da ordem jurídica e ao equilíbrio dos três poderes. De acordo com este princípio uma norma jurídica só pode ter sua aplicação declinada quando o órgão jurisdicional competente, através das medidas cabíveis, declarar sua invalidade. Assim, a presunção em apreço é iuris tantum, podendo ser a constitucionalidade questionada via difusa ou através de ação própria.

A interpretação conforme a Constituição é uma projeção do princípio da presunção de constitucionalidade, eis que procura imprimir à norma sub examen interpretação que afirme compatibilidade com a Constituição, ainda que existam outras hipóteses incompatíveis, que são automaticamente excluídas do processo interpretativo.

Este princípio coaduna-se com o princípio da razoabilidade na medida em que determina que diante de interpretações plausíveis e alternativas para um mesmo preceito, o intérprete selecione aquela que harmoniza-se com a Constituição, buscando um sentido possível que não decorre da simples leitura do texto legal, de modo a evitar a declaração de invalidade por inconstitucionalidade de ato do Poder Público.

O princípio da razoabilidade, que, em sua amplitude está contido o princípio da proporcionalidade, será objeto de análise em tópico específico, cabendo neste momento somente a afirmação que através da razoabilidade, é perseguida a "ponderação existente entre os meios e os fins" (QUEIROZ, 2000, p. 47), presumindo a existência de uma relação balanceada, adequada e que oferece a menor gravidade possível ao indivíduo, sendo princípio elementar na hermenêutica da jurisdição constitucional das liberdades.


3. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais

3.1 Do Direito Natural aos Direitos Fundamentais

Os direitos fundamentais, analisados em sua perspectiva histórica, fornecem elementos para a compreensão do Estado de Direito e da própria democracia, na vertente substancial idealizada por Ferrajoli, além de serem fatores indicativos do abuso do poder.

A afirmação histórica dos direitos fundamentais enquanto o conjunto de direitos e liberdades institucionalmente reconhecidos e garantidos pelo ordenamento jurídico de um Estado em um determinado tempo, remonta uma longa história com origens no direito natural. É bem verdade que afirmam alguns juristas que só há que se falar em direitos fundamentais a partir da positivação de tais direitos nas primeiras Constituições [02]. Como bem elucida Perez Luño (apud SARLET, 2003, p. 40),

A positivação dos direitos fundamentais é o produto de uma dialética constante entre o progressivo desenvolvimento das técnicas de seu reconhecimento na esfera do direito positivo e a paulatina afirmação, no terreno ideológico, das idéias da liberdade e dignidade humana.

Todavia, é inegável a contribuição do jusnaturalismo clássico, tendo em vista grande parte dos direitos fundamentais atualmente reconhecidos pela ordem positiva serem direitos há muito considerados direitos naturais pelos jusfilósofos. O direito natural pode ser então encarado uma espécie de pré-história dos direitos fundamentais.

A doutrina jusnaturalista, influenciada por preceitos morais e religiosos, com nuances do direito canônico, concebia que o ser humano, pelo fato de sua existência, era titular de direitos incondicionáveis, imutáveis e inalienáveis, constituindo uma ordem jurídica pré-estatal ou mesmo supra-estatal. Tais direitos possuíam o condão de limitar o poder estatal, além de legitimarem seu exercício.

A partir do século XVII, as idéias contratualistas, associadas ao racionalismo de Kant e Hugo Grocio, promoveram o processo de laicização do direito natural, inspirando o movimento Iluminista do Estado Liberal, que preconizava o apelo à razão como fundamento do Direito. É nesse período que começa a ser cogitada a noção de universalidade dos direitos naturais, que culminou na Declaração de Direitos da Virgínia e na Declaração dos Direitos do Homem, em 1789 na França.

Outrossim, a contribuição do jusnaturalismo para a afirmação de um Direito universalmente válido teve reflexos importantes tanto na teoria constitucional quanto no movimento de codificação que marcou o século XIX. (LAFER, 1998, p. 38).

Esse processo de codificação, mais especificamente de constitucionalização dos direitos ditos naturais, desponta como uma segunda fase na caracterização dos direitos fundamentais.

Com o advento da Revolução Francesa e a posterior criação do Estado Liberal, foi deflagrado um movimento de progressiva recepção de direitos, liberdades e deveres individuais que podem ser considerados como precursores dos direitos fundamentais. (PÉREZ LUÑO, 1995, p. 33).

Com efeito, o constitucionalismo do século XVIII tem como característica o reconhecimento estatal dos direitos estabelecidos nas primeiras declarações. O conceito de Constituição é então indissociável do conceito de Estado Liberal, com sua postura individualista abstrata e primando pela liberdade, segurança e propriedade, na luta contra o abuso de poder.

É, porém, no Estado Democrático de Direito que o processo de democratização política se sobressai, influenciando de sobremaneira a matéria dos direitos fundamentais na medida em que exalta as garantias de igualdade nas relações dos indivíduos entre si e entre o Estado soberano (ANDRADE, 2001, p. 52).

O modelo garantista imposto pelo Estado constitucional traduz uma dupla sujeição do direito ao direito, que afeta a legitimação formal e substancial das normas jurídicas. A democracia torna-se ao mesmo tempo condição e garantia dos direitos fundamentais, que constituem a base moderna do princípio da igualdade.

Hodiernamente, são considerados direitos fundamentais os direitos subjetivos que correspondem universalmente a todos os seres humanos, entendendo por direito subjetivo qualquer expectativa positiva ou negativa adstrita a um sujeito por uma norma jurídica, inseridos na ordenamento positivo constitucional.

Nesse sentido, Robert Alexy (1997, p. 241) ensina que há a posição de uma liberdade jurídica para realizar determinadas ações, a de um direito frente ao Estado para que este não obstaculize certas ações, isto é, a de um direito a ações negativas e a de um direito de ações positivas do Poder Público.

A previsão no âmbito constitucional é pressuposto de existência dos direitos fundamentais. Quando inseridos na ordem internacional, sem qualquer previsibilidade em nível nacional, está-se diante dos direitos humanos, que muito embora guardarem íntima proximidade com os direitos fundamentais, configuram realidades distintas.

Assim é que os direitos humanos relacionam-se com os documentos de direito internacional, independente do vínculo do indivíduo com qualquer ordem jurídico-positiva, e que, portanto, aspiram à validade universal, de caráter supranacional, ao passo que os direitos fundamentais são os direitos do ser humano reconhecidos pelo Estado, que os insere na Constituição, se manifestando como "direitos positivos de matriz constitucional" (SARLET, 2003, p. 34).

De observar-se que a doutrina por vezes confunde as terminologias direitos fundamentais, direitos humanos e direitos do homem (este último é expressão típica do jusnaturalismo clássico), utilizando-as para um mesmo significado. Inobstante as semelhanças indicadas, há que se atentar para a distinção que traduz-se, a grosso modo, na positivação em nível constitucional dos direitos epigrafados. Contudo, é inegável a história dos direitos fundamentais acompanha a afirmação histórica dos direitos humanos, até porque, como opina Marcelo Campos Galuppo (IN: SAMPAIO, 2003, p. 233),

Os direitos fundamentais representam a constitucionalização daqueles direitos humanos que gozaram de alto grau de justificação ao longo da história dos discursos morais, que são, por isso, reconhecidos como condições para a construção e o exercício dos demais direitos.

Enquanto institutos de direito constitucional positivo, os direitos fundamentais possuem dois sentidos, a saber, o formal e o material, conforme assentes na Constituição em sentido formal ou na Constituição em sentido material (MIRANDA, 2000, p. 8).

Há ainda os sentidos objetivo e subjetivo dos direitos fundamentais. Nesse contexto, tomados a partir de um critério objetivo, os direitos fundamentais podem ser pensados como uma estrutura produtora de efeitos jurídicos, reforçando a imperatividade dos direitos individuais. Por outro lado, a faceta subjetiva dos direitos fundamentais revelam as faculdades, a proteção e as garantias institucionais de defesa. A importância da teoria da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais será melhor explicitada adiante.

3.2 As Dimensões dos Direitos Fundamentais

Costuma-se falar em gerações de direitos fundamentais, identificando-as com os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade consagrados na Revolução Francesa. Assim é que existe a primeira geração, correspondente aos direitos individuais de liberdade, a segunda geração, relativa aos direitos sociais e a terceira geração, que equivale aos direitos difusos e coletivos.

Em primeiro lugar, cumpre observar a imprecisão da terminologia geração, eis que a noção transmitida é a de que cada geração vem substituir outra, que revela-se defasada. Por isso, a doutrina vem adotando a expressão dimensão, haja vista denotar coexistência, é dizer, cada nova dimensão dos direitos fundamentais harmoniza-se com a já existente, sem obstá-la, em um processo qualitativamente cumulativo, aberto e mutável.

Ademais, a correlação entre os ideais da Revolução Francesa e as dimensões dos direitos fundamentais não é de todo adequada por não fazer referência ao direito à vida nem ao princípio da dignidade da pessoa humana (SARLET, 2003, p. 60). Outrossim, desconsidera, para parte da doutrina, a existência dos recentes direitos fundamentais de quarta dimensão.

Luigi Ferrajoli (2002, p. 54) ensina que as diversas dimensões dos direitos fundamentais correspondem a gerações de movimentos revolucionários: desde as revoluções liberais contra o absolutismo até as Constituições deste século, incluindo a italiana de 1948 e a espanhola de 1978, nascidas em no contexto da resistência ao facismo.

Cada dimensão dos direitos fundamentais traduz o resultado de reivindicações concretas decorridas por situações de violação ou ameaça a bens elementares do ser humano em um dado momento histórico. A teoria dimensional dos direitos fundamentais não indica apenas o caráter cumulativo do processo evolutivo e a natureza complementar de todos os direitos fundamentais, mas "afirma sua unidade e indivisibilidade no contexto do direito constitucional interno e, de modo especial, no âmbito do moderno direito internacional dos direitos humanos" (SARLET, 2003, p. 51).

3.2.1 Direitos Fundamentais de Primeira Dimensão

Os direitos fundamentais de primeira dimensão foram os que inauguraram o movimento de constitucionalização dos direitos já aludido anteriormente. Sua afirmação histórica é produto do pensamento liberal-burguês, de cunho individualista, e traz em seu bojo os direitos civis e políticos, tais como o direito à vida, à nacionalidade etc., constituindo a dimensão mais expressiva e consolidada em nível mundial.

A titularidade dos direitos de primeira dimensão pertence ao indivíduo considerado em si mesmo (liberdades clássicas). São oponíveis ao Estado, é dizer, correspondem a uma prestação negativa do Poder Público, configurando direitos de oposição ou de resistência, que procuram evitar a intervenção estatal na esfera da vida privada.

3.2.2 Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão

O reconhecimento dos direitos fundamentais de segunda dimensão decorre do constitucionalismo antiliberal do Estado Social concebido no século XX, consagrados mormente nas Constituições pós II Guerra.

Em virtude de exigirem uma conduta positiva do Estado a vim de proporcionar sua efetivação, propiciando um "direito de participar do bem estar social" (LAFER, 1998, p. 127), os direitos de segunda dimensão receberam, por certo tempo, tratamento de normas programáticas, até a formulação do preceito da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais (art. 5º, § 1º, CF/88).

A segunda dimensão dos direitos fundamentais abrange os direitos sociais, econômicos, cultuais e as chamadas liberdades sociais, tendo estrita conexão com os princípios de igualdade e justiça social.

3.2.3 Direitos Fundamentais de Terceira Dimensão

Ainda não plenamente reconhecida em sua eficácia, a terceira dimensão dos direitos fundamentais representa os direitos difusos e coletivos, cuja titularidade não se concentra mais no indivíduo em si, pertencendo a toda coletividade, tais como direito à paz, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e à autodeterminação dos povos.

Surgiram da compreensão de que a qualidade de vida e a solidariedade entre os seres humanos, independente de etnia, são tão importantes quanto a liberdade e a igualdade.

Inexiste, ao contrário do que ocorre com os direitos de primeira e segunda dimensões, uma homogeneidade na postura do Estado de modo a garantir a efetividade dos direitos. É dizer, em determinados casos, como o direito à paz, redunda em uma prestação negativa, ao passo que o direito ao desenvolvimento exige uma conduta positiva.

Os direitos fundamentais de terceira dimensão são extremamente heterogêneos e complexos, e a proteção, muitas vezes, revela-se ineficaz quando realizada somente no plano nacional, exigindo também uma garantia internacional.

3.2.4 Direitos Fundamentais de Quarta Dimensão

Há uma tendência mundial em reconhecer a existência de direitos fundamentais de quarta dimensão, que representam os direitos à democracia, à informação e ao pluralismo.

Os direitos fundamentais de quarta dimensão decorrem da globalização política na esfera da normatividade jurídica, correspondendo à fase última de institucionalização do Estado social (BONAVIDES, 2003, p. 571).

Muito embora existam autores (entre nós, Paulo Bonavides) que sustentem o reconhecimento desta quarta dimensão de direitos fundamentais, o fato é que diante da imprecisão da proposta, tais direitos estão longe da institucionalização, seja em âmbito nacional como em âmbito internacional.

Urge observar que, no que tange o reconhecimento de novos direitos fundamentais, há o perigo de banalização do conceito da fundamentalidade, colocando em risco seu prestígio jurídico. Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2002, p. 67-68) critica multiplicação dos direitos fundamentais, referindo-se a uma inflação de direitos, que acaba por vulgarizá-los e desvalorizá-los.

Desse modo, importa a imposição de critérios rígidos para que sejam reconhecidos novos direitos fundamentais, no intuito de preservar a relevância valorativa da fundamentalidade da qual revestem-se tais direitos.

3.3 O Regime dos Direitos Fundamentais

Ainda que os direitos fundamentais não sejam homogêneos, é possível identificar elementos comuns quanto aos princípios, características, e métodos interpretativos, a fim de estabelecer um regime jurídico geral.

O regime dos direitos fundamentais está sopesado em uma tríade de princípios, quais sejam, princípio da universalidade, princípio da igualdade e princípio de acesso ao direito e da garantia da tutela jurisdicional efetiva.

Por princípio da universalidade entende-se que a titularidade dos direitos fundamentais está pulverizada por todos os sujeitos de direito, tenham eles ou não nacionalidade brasileira.

Conquanto guarde similitude com o princípio da isonomia, a universalidade adota um critério meramente quantitativo, ou seja, estabelece quem são os destinatários da norma de direito fundamental, ao passo que a igualdade pressupõe critério qualitativo, impondo que a incidência da norma de dê da mesma forma a todos os seus destinatários.

A Constituição brasileira, ao contrário da Declaração Universal da ONU, não distingue com precisão os dois princípios, estando ambos consubstanciados no mesmo preceito (art. 5º, caput). Por este dispositivo legal, estão suscetíveis às normas de direitos fundamentais todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil.

Segue o direito pátrio a orientação do direito europeu no sentido de conceder a todo o indivíduo a proteção aos direitos fundamentais. No direito português, a Constituição de 1976 é expressa ao consagrar o princípio da universalidade em seu art. 12º, que dispõe todos os cidadãos gozarem dos direitos e estarem sujeitos aos deveres consignados em seu texto.

O princípio da universalidade decorre da própria natureza e historicidade dos direitos fundamentais, que surgiram com o papel de preservar a dignidade da pessoa humana em todos os seus aspectos. Desde o início de sua história, os direitos fundamentais ressaltam a tendência universal, englobando todos os seres humanos.

Parece óbvia a idéia de que os direitos fundamentais abrangem a todos os indivíduos nacionais e aos estrangeiros residentes no Brasil. Também é clara a compreensão de que o vínculo jurídico criado a partir da nacionalidade (não se distingue brasileiro nato e naturalizado) faz com que, ainda que fora do país, os brasileiros continuem detendo a titularidade de tais direitos. Todavia, essa inferência lógica não se aplica quando o sujeito de direito for uma pessoa jurídica.

Mais uma vez silenciou a Constituição brasileira, que não traz elementos para o exame da possibilidade de pessoas jurídicas serem sujeitos de direitos fundamentais.

Contudo, o estudo comparado do regime dos direitos fundamentais, associado às construções pátrias em sede doutrinária e jurisprudencial, ensina que as pessoas jurídicas podem ser titulares de direitos fundamentais, desde que tais direitos revelem-se compatíveis com sua natureza.

As pessoas colectivas só têm os direitos compatíveis com a as natureza, ao passo que as pessoas singulares têm todos os direitos. E, como nota o Tribunal Constitucional, tem de reconhecer-se que, ainda quando certo direito fundamental seja compatível com essa natureza, e, portanto, susceptível de titularidade colectiva, daí não segue que a sua aplicabilidade nesse domínio vá se operar exactamente nos mesmos termos e com a mesma amplitude com que decorre relativamente às pessoas singulares (...) Cada pessoa colectiva somente pode ter os direitos conducentes à prossecução dos fins para que exista, os direitos adequados à sua especialidade (MIRANDA, 2000, p. 219-220).

Assim é que os direitos que adotam um referencial de existência humana, tal qual o direito à vida, não abrangem as pessoas jurídicas. Porém, não é preciso esforço para perceber que direitos como a liberdade de imprensa, liberdade de domicílio, liberdade de reunião e direito à imagem são extensivos às pessoas jurídicas.

Ao lado do princípio da universalidade, e com ele semelhante, conforme acima referido, figura o princípio da igualdade ou isonomia, que deve ser observado tanto no momento da criação quanto no momento da aplicação do direito.

Parte de um conceito filosófico de que todos os homens são iguais, cabendo ao direito respeitar e viabilizar essa igualdade através das normas jurídicas e dos mecanismos de garantia. A igualdade surge indissociável da própria liberdade individual, haja vista ser um pressuposto para a "uniformização do regime das liberdades individuais a favor de todos os sujeitos de um ordenamento jurídico" (CANOTILHO, 2002, p. 426).

No Brasil, o princípio da isonomia é consagrado no art. 5º, caput, CF/88, que estatui todos serem iguais perante a lei, sem qualquer sorte de distinção.

A igualdade assume assim não apenas a qualidade de direito fundamental, mas sobressai-se como princípio informador do próprio regime geral dos direitos fundamentais, devendo sempre ser considerado em todas as fases de concretização do direito.

Concluindo o tríplice sustentáculo axiológico do regime geral dos direitos fundamentais, aparece a garantia da tutela jurisdicional efetiva, que equivale dizer a proteção institucionalizada aos direitos fundamentais, assegurando o acesso ao direito e aos tribunais (jurisdição constitucional das liberdades).

De nada adianta a existência de direitos fundamentais se não houver organização estatal através de seus órgãos jurisdicionais a fim de conceder a devida proteção, garantindo a efetividade dos direitos. Por isso, através da jurisdição constitucional das liberdades, o Poder Público exerce a atribuição de fazer valer os direitos fundamentais, assegurando a prevalência de sua integridade diante de lesão ou ameaça de lesão.

Nesse aspecto, é de extrema relevância o papel dos remédios constitucionais enquanto instrumentos de defesa em face de uma dada situação de violação dos preceitos constitucionais, restaurando o equilíbrio existente anteriormente à ingerência ilegítima na esfera da ação individual livre.

No direito constitucional brasileiro, os remédios constitucionais compreendem o habeas data (art. 5º, LXVIII), o mandado de segurança (art. 5º, LXIX e LXX), o mandado de injunção (art. 5º, LXXI), o habeas data (art. 5º, LXXII), a ação popular (art. 5º, LXXIII), a ação civil pública (art. 129, III) e a argüição de descumprimento de preceito fundamental – ADPF (art. 102, §1º).

Ademais, no âmbito da criação do direito, o art. 60, §4º, IV, CF/88 aduz que os direitos fundamentais são protegidos do poder reformador através da elevação de seu status a cláusulas pétreas, constituindo parte do núcleo imodificável da Constituição.

Os direitos fundamentais possuem quatro características elementares, a saber, historicidade, inalienabilidade, imprescritibilidade e irrenunciabilidade.

Com exceção da historicidade, as demais características decorrem do fato dos direitos fundamentais serem direitos personalíssimos. É dizer, os direitos fundamentais, inerentes à dignidade da pessoa humana, não revestem-se de caráter econômico-patrimonial, de modo que são insuscetíveis de transmissão a título gratuito ou oneroso, vedado qualquer ato no sentido da disposição de sua titularidade, muito embora o sujeito ativo possua a faculdade de deixar de exercê-los, sem que, contudo, a exigibilidade reste prejudicada em razão da inércia.

Conforme fora anteriormente relatado, os direitos fundamentais estão inseridos dentro de um contexto histórico que se inicia ainda na Antigüidade Clássica, quando se cogitou a existência de um direito natural, ganhando os contornos atuais após as revoluções burguesas e sociais compreendidas entre os séculos XVIII e XX, e que hodiernamente abrangem três (ou quatro) dimensões distinta de direitos.

Conclui-se que os direitos fundamentais vivem em constante transformação, e seu conteúdo varia de acordo com o momento histórico e com a cultura do povo que os consagrou.

Em relação a esta perspectiva cultural, Manoel Gonçalves Ferreira Filho (IN: SAMPAIO, 2003, p. 248) expõe que o estudo dos direitos fundamentais tal qual hoje se revela é produto da cultura ocidental e a validade universal destes direitos só é patente nos limites das civilizações ocidentais. Esta concepção é um dos entraves que o direito internacional dos direitos humanos deve ultrapassar para que consiga sua afirmação.

Dada sua acentuada relevância no contexto do Estado social, as normas de direitos fundamentais apresentam interpretação diferente em relação a toda sorte de normas jurídicas. A interpretação dos direitos fundamentais está atrelada à concepção de Estado, de cidadania e democracia, restando impossível exercer a atividade interpretativa empregando unicamente os recursos utilizados na análise das demais regras.

Paulo Bonavides (2003, p. 605), citando o jurista alemão Konrad Hesse, assevera que, em sede de interpretação constitucional, e, por via de conseqüência, de direitos fundamentais, ater-se às regras tradicionais significa desvirtuar o fim da interpretação, desconsiderando "a íntima estrutura e as condicionalidades do processo interpretativo, o que equivale a postergar a tarefa de uma interpretação correta".

As regras de direitos fundamentais devem ser interpretadas à luz de método peculiar, proveniente da nova hermenêutica, denominado concretizador ou concretista, que impõe o sentido da norma só poder ser extraído em sua completude diante da situação subjetiva, vedada a interpretação restritiva, levando em consideração sobretudo o caráter histórico dos direitos fundamentais.

A este respeito, Daniel Sarmento (2000, p. 134) esclarece que a interpretação é feita em dois momentos: um de índole objetiva, que corresponde a um juízo prévio do conteúdo da norma em abstrato (pré-compreensão) e outro de índole subjetiva, em que é procedida a análise a partir do caso concreto, condicionando a aplicação da norma de direitos fundamentais ao contexto da situação material. A técnica concretista possui viés criativo, que confere sentido à norma de direito fundamental, aperfeiçoando-a no bojo da realidade apresentada.

É óbvio que o método concretista, por ser utilizado na esfera da jurisdição constitucional das liberdades, atende aos princípios da supremacia da Constituição, da presunção de constitucionalidade dos atos do Poder Público da interpretação conforme a Constituição, da unidade da Constituição e da razoabilidade.


4. O Fenômeno da Colisão entre Direitos Fundamentais e suas Soluções

4.1 O Princípio da Razoabilidade

De todo princípio emana uma força vinculante que limita em maior ou em menor grau as atividades do poder público, tendo sempre incidência obrigatória na condução das diretrizes do Estado, que encontra nos princípios o reflexo de sua própria estrutura ideológica.

O princípio da razoabilidade decorre da criatividade da jurisprudência constitucional norte americana a partir da evolução do procedural due process of law para o substantive due process of law, figurando como instrumento controlador do Poder Público na medida em que impõe elementos de ordem subjetiva e objetiva, embasados na razão, bom senso, equilíbrio e justiça, para aferir legitimidade aos atos estatais, seja na esfera executiva, legislativa ou judiciária.

Leciona Alexandre Câmara (1998, p. 42), que "a garantia substancial do devido processo legal pode ser considerada como o próprio princípio da razoabilidade das leis". Isto porque, ao assegurar que o devido processo legal é princípio de incidência não apenas processual, mas igualmente importante no âmbito do direito material, foi inaugurada discussão acerca da possibilidade de exame meritório dos atos emanados pelos agentes estatais, traduzindo, neste contexto, uma idéia de razoabilidade (reasonableness) e racionalidade (rationality), uma noção de ponderação entre os meios empregados pelo poder público e os fins almejados, de forma a proporcionar solução adequada e menos onerosa à sociedade.

O princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça. (BARROSO, 1999, p. 215)

A razoabilidade surge, assim, no contexto do Estado Democrático de Direito como cânone do direito constitucional moderno, que irradia-se por todo o ordenamento jurídico, e funciona como a medida da legitimidade dos atos do poder público, evitando medidas arbitrárias e desarrazoadas.

Urge de plano destacar a fungibilidade dos termos razoabilidade e proporcionalidade, muitas vezes utilizados de forma indistinta pela doutrina.

De logo, existe uma diferença territorial nos dois termos: a terminologia razoabilidade, conforme dito, é oriunda dos Estados Unidos, enquanto que proporcionalidade (Verhältnismässigkeitsprinzip) é uma construção jurisprudencial do direito alemão.

A rigor, em ambos os países o conteúdo dos dois princípios é exatamente o mesmo. Contudo, a jurisprudência alemã forneceu elementos ou sub-princípios que compõe a proporcionalidade, quais sejam, o princípio da adequação (Geeignetheit), o princípio da necessidade (Enforderlichkeit) e o princípio da proporcionalidade em sentido estrito (Verhältnismässigkeit).

Desse modo, o juízo da proporcionalidade, nos moldes do direito alemão, parte da análise da adequação, ou seja, do grau de eficácia dos meios disponíveis para atingir ao fim almejado.

Após a constatação da idoneidade (princípio da adequação), é verificado se o meio escolhido é necessário ou exigível, é dizer, se revela-se indispensável para a conservação dos direitos em questão de modo que inexista solução menos gravosa (princípio da necessidade).

Obviamente o princípio da necessidade só se aplica a partir de uma situação concreta, envolvendo "o grau de afetação do destinatário, em função do meio eleito" (BARROS, 2003, p. 83) em que, uma vez encontrado o meio mais idôneo, é necessário examinar se dele resultará a menor restrição possível.

Por fim, o princípio da proporcionalidade em sentido estrito traduz a idéia de equilíbrio entre valores e bens, ou seja, entre o meio escolhido e o fim desejado, viabilizando o controle do excesso.

Os princípios da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito guardam íntima relação, mas não se confundem, operando em planos distintos: a necessidade é a constatação de que o meio idôneo é o menos gravoso e a proporcionalidade em sentido estrito analisa se esse meio menos gravoso presta-se aos fins perseguidos, sem causar desequilíbrio na relação meio-fim.

Para Alexy (1997, p. 113), a necessidade trata de uma otimização com relação a possibilidades no plano fático, e a proporcionalidade em sentido estrito engloba a otimização das possibilidades contidas no plano jurídico.

Conquanto essa decomposição tenha sido elaborada pela jurisprudência alemã, no direito norte americano, a análise da razoabilidade opera-se com critérios semelhantes, ainda que não esquematizados nessa mesma estrutura, donde conclui-se que o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade em sentido amplo traduzem a mesma idéia.

Todavia, cabe asseverar que, pelo próprio significado dos dois termos, não se pode fazer uso dos mesmos indistintamente, como se sinônimos fossem.

A rigor, a proporcionalidade denota noção de equilíbrio ponderado, ou seja, equivale somente à proporcionalidade em sentido estrito do direito alemão. Adequação e necessidade transcendem o plano denotativo da proporcionalidade, amoldando-se no bojo da razoabilidade.

Logo, proporcionalidade e razoabilidade, a despeito de uma boa parte da doutrina pátria e do próprio STF, não são sinônimos, inobstante falar em razoabilidade pressupõe falar em proporcionalidade, haja vista constituir esta uma exigência daquela, cujo juízo só se faz perfeito após a escolha do meio mais idôneo, menos restritivo e mais equilibrado através da ponderação dos interesses em apreço que resulta em uma equânime distribuição de ônus.

A Constituição brasileira não cuida em dispositivo específico do princípio da razoabilidade. O assento constitucional da razoabilidade no ordenamento pátrio decorre da conjugação de outros princípios, mormente o princípio da igualdade e do devido processo legal, possuindo conexão estreita com a legitimidade do Poder Público.

Paulo Bonavides (2003, p. 436) leciona que a razoabilidade é axioma do direito constitucional moderno, funcionando como regra que limita a ação do poder estatal na esfera da juridicidade.

Inexoravelmente, enquanto elemento de interpretação utilizada pela nova hermenêutica constitucional, o princípio da razoabilidade adquire maior relevância na jurisdição constitucional das liberdades, sendo fundamental para a realização do método concretista.

Com efeito, a razoabilidade é condição de efetivação dos direitos fundamentais no sentido de que, conforme será visto adiante, o núcleo ou conteúdo essencial de um direito fundamental (Wesensgehalt) somente pode ser extraído a partir da análise concretista da situação de restrição ilegal do direito sub examen, principalmente nas hipóteses de colisão entre estes direitos.

Guilherme Moraes (2000, p. 70), citando Konrad Hesse, ao referir-se à aplicação da razoabilidade no âmbito dos direitos fundamentais, aduz que a limitação a um direito fundamental deve ser adequada na proteção do bem jurídico, necessária para estabelecer o meio mais ameno e proporcional no sentido de fornecer equilíbrio entre o peso e o significado do direito.

4.2 O Fenômeno da Colisão

O fenômeno da colisão entre direitos fundamentais assemelha-se ao conflito entre princípios, eis que o conteúdo de um direito fundamental é abrangente e abstrato, informativo de toda a atuação do poder público, sendo possível capturá-lo apenas diante da situação subjetiva materializada.

A par da distinção entre regras e princípios, entendendo ambos como espécies do gênero norma jurídica, é certo que a colisão entre regras é solucionada no plano de validade da norma, em conformidade com os critérios cronológico (lex posterior derogat priori), hierárquico (lex superior derogat lex inferior) e da especialidade (lex specialis derogat generali). A aplicação das regras decorre da simples subsunção.

Por outro lado, a colisão de princípios está localizada em plano axiológico, não podendo haver preponderância de um sobre o outro, mas sim a ponderação dos interesses jurídicos em conflito no intuito de harmonizá-los para então alcançar solução, sendo garantida a menor constrição possível.

Para que reste caracterizada a colisão entre direitos fundamentais, deve-se partir de duas premissas, quais seja, o entendimento de que os mesmos permitem o indivíduo a formular pretensões negativas ou positivas perante o Estado, ou seja, "fazer reivindicações, reclamar condutas estatais" (AMARAL, 2001, p. 116) e a possibilidade de limitação.

Em tese, os direitos fundamentais são ilimitados. Contudo, são duas as hipóteses em que sofrem limitação legítima: no caso de elaboração, fulcrada em exigência constitucional, de norma restritiva de direito fundamental e quando um ou mais direitos fundamentais colidem entre si (colisão stricto sensu) ou com outro princípio constitucional (colisão lato sensu).

De qualquer maneira, é necessário que seja firmado o entendimento de que não existe hierarquia entre direitos fundamentais. Em que pese uma parte da doutrina advogar a idéia de hierarquia ontológica, em que o direito à vida é o direito supremo e que todos os demais são a eles submissos, ou mesmo utilize o princípio in dubio pro libertate, o escalonamento hierárquico dos direitos fundamentais é incompatível com sua natureza e com sua função no Estado Democrático de Direito.

É claro que, no sistema brasileiro de Constituição rígida, há hierarquia entre algumas normas constitucionais, evidenciadas pela proteção de alguns dispositivos sob a forma de cláusulas pétreas, o que permite considerar a existência normas constitucionais inconstitucionais. Porém, essa verticalização das normas constitucionais não se aplica entre os direitos fundamentais, que gozam da mesma proteção no bojo da Constituição.

Na realidade, os direitos fundamentais possuem a qualidade da "supraconstitucionalidade" (SAMPAIO, 2002, p. 730), que significa a superioridade de certas normas, explícitas, como os direitos fundamentais, ou implícitas, como o princípio da razoabilidade, em relação ao conteúdo da Constituição.

Admitir a possibilidade de um ou mais direitos fundamentais serem superior aos demais é impor uma espécie de tirania de valor, esvaziando o conteúdo dos direitos fundamentais, observado diante da colisão entre os mesmos.

Por exemplo, se o direito à vida fosse sempre superior aos demais direitos, não seria admitido pela legislação pátria o aborto em caso de estupro, já que inexiste risco de vida à mulher e ao feto. Nesse caso conflitam dois direitos fundamentais: o direito à vida do feto e o direito à honra da mulher vítima da violência, tendo o legislador, ao ponderar os interesses jurídicos em questão, optado por prestigiar a honra da mulher em detrimento da vida do feto.

O STF, seguindo a orientação das cortes constitucionais italiana, alemã, portuguesa, francesa, espanhola e norte americana, posicionou-se no sentido de impossibilidade de escalonamento dos direitos fundamentais, gozando todos da mesma proteção constitucional.

A concepção de que os direitos fundamentais estão todos no mesmo patamar constitucional, conduz ao desenvolvimento de uma lógica flexível, ou seja, de balanceamento dos valores envolvidos na situação concreta, partindo de um juízo de razoabilidade no sentido extrair o conteúdo dos direitos fundamentais conflitantes para harmonizá-los, nem que dada as circunstâncias apresentadas, um prepondere sobre os demais.

4.3 Técnicas ou Critérios de Solução: a Ponderação de Interesses

Uma vez caracterizada a colisão entre direitos fundamentais (colisão stricto sensu), cabe ao aplicador da lei fazer uso do método concretista e, através da razoabilidade, ponderar os interesses, os bens jurídicos tutelados a fim de fornecer a melhor solução.

A ponderação de interesses ou bens, enquanto técnica de decisão que, de acordo com Daniel Sarmento (IN: TORRES, 2001, p. 55), "atribui especial relevância às dimensões fáticas do problema", pressupondo uma coordenação e conjugação dos bens jurídicos conflitantes ou concorrentes de forma a harmoniza-los nas circunstâncias da situação material, e evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros.

No que concerne à jurisdição constitucional das liberdades, a ponderação de interesses, realizada com base na razoabilidade, é a técnica mais adequada para dirimir conflitos entre direitos fundamentais. Somente a ponderação entre os valores em questão pode resultar na escolha da melhor medida.

No entanto, para que seja procedida a ponderação, impende antes extrair, a partir do caso concreto, o denominado pela doutrina alemã de núcleo essencial da norma (Wesensgehalt).

O núcleo essencial é o conteúdo mínimo e intangível do direito fundamental, que deve sempre ser protegido em quaisquer circunstâncias, sob pena de fulminar o próprio direito. Assim é que as restrições aos direitos fundamentais encontram sua constitucionalidade na preservação ao núcleo essencial do direito.

Nesse diapasão, Otto Prado (apud MORAES, 2000, p. 65) expõe que o núcleo essencial, ou conteúdo essencial, "limita a possibilidade de limitar, isto é, estabelece um limite além do qual não é possível a atividade limitadora dos direitos fundamentais".

Logo, um direito fundamental só pode ser considerado ilegitimamente restringido se seu núcleo essencial for afetado.

A busca da essencialidade do direito fundamental pode ser feita de acordo com duas teorias, ambas desenvolvidas na Alemanha: a absoluta, para a qual o núcleo essencial é extraído de forma abstrata, independente de circunstâncias fáticas norteadoras, e a relativa, na qual o núcleo essencial só pode ser obtido a partir da situação concreta, ou seja, é mensurado somente em face do conflito.

A doutrina portuguesa [03] é partidária da teoria absoluta do núcleo essencial do direito fundamental. Nada obstante, mais conducente com a lógica flexível e com o método concretista é a teoria relativa do núcleo essencial, que cede espaço à aplicação da técnica da ponderação de interesses.

O ordenamento constitucional brasileiro não menciona, ao contrário das Constituições de países como a Alemanha (art. 19. 2), Portugal (art. 18.3) e Espanha (art. 53.1), o núcleo essencial dos direitos fundamentais, mas não há dificuldade de deduzir que ele é inerente à própria natureza destes direitos, inexistindo motivo para que no exercício da jurisdição constitucional das liberdades seja declinada a aplicação da técnica da ponderação de interesses efetuada a partir do núcleo essencial, extraído com base no princípio da razoabilidade.

Para que a colisão entre direitos fundamentais seja dirimida, a doutrina alemã desenvolveu uma técnica, com fulcro no método concretista, que consiste em dois momentos: o Tatbestand e a ponderação de interesses.

No primeiro momento (tatbestand), ocorre a determinação do âmbito de proteção dos direitos fundamentais envolvidos de acordo com as situações fáticas que a situação subjetiva revela, configurando a efetiva colisão, de modo a eliminar a possibilidade de uma colisão apenas aparente.

Feito isso, o segundo momento caracteriza-se pela ponderação dos interesses jurídicos em conflito, levando ao aplicador a extrair o núcleo essencial dos mesmos de modo a causar o menor sacrifício possível, devendo, para tanto, utilizar-se dos princípios da unidade da Constituição e da razoabilidade. Somente dessa forma é que ocorre a máxima proteção e concretização dos direitos fundamentais.

A técnica da ponderação de interesses na seara da jurisdição constitucional das liberdades constitui área de resistência da jurisprudência constitucional pátria.

Com efeito, ainda que as colisões entre direitos fundamentais estejam na ordem do dia, a técnica jurídica brasileira ainda não se encontra no mesmo nível em que estão os países europeus, mormente Alemanha, Portugal e Espanha.

Em assim sendo, as decisões proferidas na solução de colisão entre direitos fundamentais não aborda com clareza o tema, muito menos utiliza os métodos e técnicas específicos, o que provoca uma sub proteção aos direitos fundamentais consagrados em nossa Constituição.


5. Conclusão

Os direitos fundamentais são direitos personalíssimos revestidos de caráter histórico, evidenciado pela sua multidimensionalidade, além de desempenharem relevante papel de limitadores e legitimadores das ações do Estado, combatendo o abuso do poder.

Através da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, compreende-se que os mesmos possuem eficácia irradiante, ou seja, informam o ordenamento jurídico do qual fazem parte para orientar tanto a produção quanto a aplicação do direito. Também a partir do corte objetivo, os direitos fundamentais têm a proteção do Estado não só contra os atos do Poder Público, mas também contra lesões ou ameaças por parte de terceiros.

Diante da inexistência de hierarquia, é difícil prever, em abstrato, como será solucionado o problema da colisão entre direitos fundamentais.

Por isso, a jurisdição constitucional das liberdades, entendida esta como a jurisdição constitucional que tutela os direitos fundamentais, possui método específico, qual seja, o método concretista ou concretizador, que melhor se coaduna às peculiaridades dos conflitos entre direitos fundamentais.

Ainda em relação à hermenêutica no âmbito da jurisdição constitucional das liberdades, há que se destacar a função exercida pelo princípio da razoabilidade, que, com seus três sub princípios (princípio da adequação, princípio da necessidade e princípio da proporcionalidade em sentido estrito), propicia um juízo justo, equilibrado e ponderado, com vistas atender as espeficidades que a problemática da colisão entre direitos fundamentais apresenta.

A técnica mais adequada para a solução de conflitos entre direitos fundamentais é a ponderação de interesses ou bens, idealizada pela jurisprudência alemã, com base no princípio da razoabilidade.

Todavia, em que pese a freqüência com que se verifica o choque entre direitos fundamentais, a jurisdição constitucional brasileira ainda demonstra pouco avanço no que concerne aos métodos e técnicas aplicáveis, fato que pode ser constatado pelas ainda decisões proferidas em sede de colisão entre tais direitos.


Notas

01 Na Europa há que se considerar também como fonte o direito comunitário.

02 Nesse sentido, o marco inicial do estudo dos direitos fundamentais é o advento da Magna Charta Liberatum, em 1215, na Inglaterra, em que foram reconhecidos direitos como o habeas corpus, devido processo legal e o direito de propriedade.

03 Vf. José Carlos Vieira de Andrade. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAUL, Ana Carolina Lobo Gluck. Colisão entre direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1136, 11 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8770. Acesso em: 19 abr. 2024.