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Criminologia da complexidade

reflexões epistemológicas

Criminologia da complexidade: reflexões epistemológicas

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Discute-se de maneira interativa o alcance e as limitações de conceitos como violência, agressividade, conflito, crime e delinquência, integrando ciências naturais e humanas.

INTRODUÇÃO

O objetivo desse estudo é apresentar algumas reflexões acerca da possibilidade de integração dos principais metaprogramas de pesquisa da Criminologia (pós-crítico, etiológico-positivista e crítico) realizando um diálogo construtivo entre essas unidades epistemológicas usando como espaço de conversação a teoria da complexidade.

Na concepção do mestre-filósofo Morin: 

Uma sociedade é produzida pelas interações entre indivíduos, mas essas interações produzem um todo organizado que retro atua sobre os indivíduos, para os coproduzir em sua qualidade de indivíduos humanos, o que eles não seriam se não dispusessem da educação, da linguagem e da cultura. Assim, para se conhecer e se transformar, o ser humano depende da variedade de condições que a realidade lhe oferece e do estoque de ideias existentes para que faça, de maneira autônoma, as suas escolhas (ESTRADA, 2009, p. 89).

Na obra intitulada “O método” (volume 1: A natureza da natureza) Morin (1987 [?], p. 15) advertiu que:

O grande corte entre as ciências da natureza e as ciências do homem oculta, simultaneamente, a realidade física das segundas e a realidade social das primeiras. Esbarramos com a onipotência de um princípio de disjunção: este condena as ciências humanas à inconsistência extrafísica, e condena as ciências naturais à inconsciência da sua realidade social.

Como resposta à disjunção do conhecimento, Morin (1987, p. 15) propôs que:

Toda a realidade antropossocial depende, de certo modo (qual?), da ciência física, mas toda a ciência física depende, de certo modo (qual?), da realidade antropossocial. A partir daqui, descobrimos que a implicação mútua entre estes termos se anela numa relação circular que devemos elucidar: Física > Biologia > Antropossociologia

Reforçando o seu ponto de vista, Morin (1987, p. 16) declarou que:

A constituição duma relação, precisamente onde havia uma disjunção, levanta um problema duplamente insondável: o da origem e da natureza do princípio que nos obriga a isolar e a separar para conhecer; o da possibilidade dum outro princípio capaz de ligar novamente o isolado e o separado.

Na busca do ideal da complexidade, o método proposto por Edgar Morin (1987, p. 23) considera que tudo é solidário, portanto, “o que importa procurar não é suprimir as distinções e oposições, mas derrubar a ditadura da simplificação disjuntiva e redutora”).

Morin destacou que o pesquisador deve evitar algumas práticas conservadoras do conhecimento, como por exemplo:

Idealizar (crer que a realidade pode reabsorver-se na ideia, que só o inteligível é real).

Racionalizar (querer encerrar a realidade na ordem e na coerência dum sistema, proibi-la de transbordar para fora do sistema, precisar de justificar a existência do mundo conferindo-lhe um certificado de racionalidade).

E normalizar (isto é, eliminar o estranho, o irredutível, o mistério) (MORIN, 1987, p. 25).

Nesse modelo epistemológico, é preciso romper com a simplificação do conhecimento, o que implica ao mesmo tempo rejeitar “toda a teoria unitária, toda a síntese totalizadora, todo o sistema racionalizador/ordenador” (MORIN, 1987, p. 25).

É necessário acabar com a fechadura do conhecimento programático e construir “ciclos virtuosos, que se tornem reflexivos e geradores de um pensamento complexo” (MORIN, 1987, p. 22). Portanto, mais do que propor um novo sistema, Morin defendeu a necessidade de um novo olhar sobre as regras científicas ou programas já existentes, ou seja, “não basta apenas aprender, e não apenas reaprender; não é apenas desaprender, mas sim reorganizar o nosso sistema mental para reaprender a aprender (MORIN, 1987, p.24).

No processo de abertura do conhecimento as interações com outros programas de pesquisa:

1. Supõem elementos, seres ou objetos materiais, que podem encontrar-se.

2. Supõem condições de encontro, ou seja, agitação, turbulência, fluxos contrários, etc.

3. Obedecem a determinações/imposições que dependem da natureza dos elementos, objetos ou seres que se encontram.

4. Tornam-se, em certas condições, inter-relações (associações, ligações, combinações, comunicação, etc.), ou seja, dão origem a fenómenos de organização (MORIN, 1987, p.53).

Novas organizações do saber dependem diretamente de interações e para que ocorram com sucesso é preciso que haja encontros e instabilidades através da agitação e turbulência das ideias. A ligação de saberes diferentes e até antagônicos do ponto de vista programático deve seguir a dialógica.

Nas palavras do filósofo Morin (1987, p. 79):

Digo dialógico, não para afastar a ideia de dialética, mas para fazê-lo derivar da dialética. A dialética da ordem e da desordem situa-se ao nível dos fenómenos; a ideia de dialógico situa-se ao nível do princípio e, como ouso adiantar, ao nível do paradigma.  Assim, a ordem e a desordem, sob determinado ângulo, são, não só distintas, mas também totalmente opostas; sob outro ângulo, apesar das distinções e oposições, estas duas noções são uma.

Aplicando a dialética da complementaridade do conhecimento, Morin (1987, p. 21) recomendou a seguinte estratégia:

[Com] a associação das duas proposições reconhecidas como verdadeiras, uma e outra isoladamente, mas que mal entram em contato se negam uma à outra, abrir a possibilidade de conceber estas duas verdades como as duas faces duma verdade complexa; [o objetivo aqui] é revelar a realidade principal, que consiste na relação de interdependência entre noções que a disjunção isola ou opõe; consiste, portanto, em abrir a porta à investigação desta relação.

Fazendo parte da dialogicidade, o “anel tetralógico” elaborado por Morin significa que:

As interações são inconcebíveis sem desordem, isto é, sem desigualdades, turbulências, agitações, etc., que os encontros provocam. Significa que a ordem e a organização são inconcebíveis sem interações. Nenhum corpo, nenhum objeto, pode ser concebido fora das interações que o constituíram e das interações nas quais participa necessariamente”. O anel tetralógico significa que quanto mais a ordem e a organização se desenvolvem, mais se tornam complexas, mais toleram, utilizam e necessitam até da desordem (MORIN, 1987, p. 58).

Resumindo:

O anel tetralógico significa que não podemos isolar ou hipostasiar nenhum destes termos. Cada um adquire sentido na sua relação com os outros. Temos de concebê-los em conjunto, ou seja, como termos simultaneamente complementares, concorrentes e antagónicos (MORIN, 1987, p.58).

O método proposto por Morin (1987, p.79) considera que a extrema complexidade da desordem conteria a ordem; e a extrema complexidade da ordem, ao mesmo tempo, hospedaria a desordem. Ou seja:

A relação entre ordem e desordem necessita de noções mediadoras; vemos aparecerem e imporem-se três noções indispensáveis ao estabelecimento da relação ordem/desordem:

1-A ideia crucial de interação, verdadeiro nó górdio de acaso e de necessidade, visto que uma interação aleatória desencadeia, em dadas condições, efeitos necessários (como o encontro no mesmo milionésimo de milionésimo de segundo de três núcleos de hélio que constituem um núcleo de carbono);

2- A ideia de transformação, nomeadamente as transformações de elementos dispersivos num todo organizado e, inversamente, dum todo organizado em elementos dispersivos;

3- A ideia-chave de organização.

Na base de suas reflexões, Morin (1987, p. 97) considerou que:

A vida é um sistema de sistemas, não só porque o organismo é um sistema de órgãos, que são sistemas de moléculas, que são sistemas de átomos, mas também porque o ser vivo é um sistema individual que participa dum sistema de reprodução, porque um e outro participam dum ecossistema, o qual participa da biosfera. E o que temos de compreender são os caracteres da unidade complexa: um sistema é uma unidade global, não elementar, visto que é constituído por partes diversas inter-relacionadas.


2 MÉTODO DE TRABALHO

A composição dos programas de pesquisa desse estudo utiliza seis categorias epistemológicas: ontologia, metodologia, axiologia, teoria, práxis e contexto histórico-social. Essas categorias transformam a publicação do autor na forma de um programa procedimental de pesquisa acompanhando um raciocínio categorial e lógico constituindo o modo de produção do conhecimento de cada pesquisador (MONTARROYOS, 2017). A ontologia do programa de pesquisa declara a tese fundamental da investigação que não é refutada pelo pesquisador visto que representa a base genética do sistema. Inclui principalmente a identidade cientifica do plano de trabalho, os objetivos e os objetos de estudo da investigação. A metodologia estabelece os métodos e as técnicas que possibilitarão a coleta de dados, fazendo necessariamente a ligação da ontologia com a realidade social do objeto de estudo. A axiologia, na sequência, projeta valores, ideologias e preferências que o pesquisador utiliza no recorte intelectual da realidade. A teoria ou uma série delas interpreta ou explica os dados coletados, destacando-se a linguagem transcendental ou abstrata do conhecimento. Cada teoria elencada pelo pesquisador define o grau de abstração das ideias associadas aos dados empíricos. Em seguida, a práxis do programa de pesquisa delimita problemas e soluções, apresentando modelos que recomendam estratégias de transformação da realidade. Por último, o contexto descreve o tempo e o espaço onde circulam manifesta principalmente o objeto de estudo da investigação.


3 CRIMINOLOGIA PÓS-CRÍTICA

Nessa modalidade epistemológica, a Criminologia solicita a ajuda de outros olhares na produção do conhecimento, reconhecendo a importância da arte, religião, mídia, cultura, opinião popular, e das narrativas e percepções dos sujeitos envolvidos pelo mesmo sistema de justiça criminal.

A Criminologia pós-crítica procura conhecer a variabilidade ou diversidade do crime visando avaliar o impacto do pluralismo no funcionamento e legitimidade das instituições criminais. A esse respeito, Salo de Carvalho (2010, p. 22) considerou que “o hiato existente entre o universo jurídico e as expectativas da sociedade, sobretudo das pessoas envolvidas nos conflitos judicializados, é potencializado pela construção despótica, fragmentária e fictícia do processo. O caso em julgamento, portanto, muitas vezes é totalmente outro daquele que foi experimentado/vivenciado pelos sujeitos concretos”.  

Contribui na pesquisa a abordagem cultural considerando o crime um produto hermenêutico, fenomenológico e dialético, cuja expressividade se manifesta através das narrativas, das vivências e do conhecimento tácito dos sujeitos. Segundo Michel Polany o conhecimento tácito é um tipo de saber obtido intuitivamente e vivencialmente pela pessoa ao longo de sua vida. Nessa perspectiva filosófica, a Criminologia pós-crítica propõe que cada indivíduo é um criminologista, espontaneamente, pois acumula conhecimento tácito, ou seja, vivencial e intuitivo sobre a realidade do crime e da justiça criminal.

Atribui-se também ao filósofo Polany a definição pioneira do termo pós-crítico. Em seus diversos escritos, Polany descreveu a filosofia pós-crítica usando quatro graus de produção do conhecimento.

O primeiro grau utiliza método acrítico que identifica as coisas de forma não verbalizada, intuitiva e especulativa. O raciocínio irracional que se desenvolve com esse método não presta conta ao senso crítico da razão. É um método que permanece útil enquanto o seu conhecimento trouxer resultados esperados e atender basicamente à fé do sujeito.

É óbvio que nada semelhante pode ocorrer ao nível pré-articulado. Apenas pela ação posso testar a espécie de mapa mental que possuo de um local familiar, ou seja, usando-o como guia. Se me perder, posso corrigir as minhas ideias. Não há outra maneira de melhorar o conhecimento não articulado. Num dado momento apenas posso ver uma coisa de cada vez, e se duvido do que vejo, tudo que posso fazer é olhar uma outra vez e talvez ver agora as coisas de maneira diferente. A inteligência não articulada pode apenas apalpar o seu caminho mergulhando de uma visão das coisas para outra. O conhecimento adquirido e preservado desse modo pode por isso ser chamado acrítico. Pistas (ou indícios) e ferramentas são coisas usadas como tal, e não observadas por si próprias. Funcionam como extensões do nosso equipamento corporal, o que envolve uma certa mudança do nosso próprio ser. Nessa medida os atos de compreensão são não só irreversíveis, como também não-críticos. Porque não podemos possuir uma estrutura ou quadro de referência fixo, dentro da qual a sua reconfiguração possa ser testada de forma crítica (POLANYI, “Ciência, fé e sociedade”).

O segundo grau utiliza o método pré-crítico que se localiza entre os métodos acrítico e crítico. Seu diferencial é a boa vontade em obter validez científica; e nesse sentido, autoriza o pesquisador a desenvolver meios de ligação entre a vidência intuitiva e imaginativa e a evidência dos fatos, geralmente disponibilizando: hipóteses de trabalho, analogias, metáforas, mapas mentais, alegorias, conjecturas e imaginações diversas.

O terceiro grau utiliza o método crítico, e diferentemente dos anteriores, é totalmente racional, objetivista, priorizando assim o conhecimento explícito, extrovertido, demonstrativo, exato e impessoal.  

A dúvida cartesiana e o empirismo de Locke tornaram-se as duas alavancas poderosas da liberação subsequente da autoridade estabelecida. Essas filosofias e as de seus discípulos pretendiam demonstrar que a verdade poderia ser estabelecida e que uma doutrina rica e satisfatória do universo poderia ser construída apenas sobre os fundamentos da razão crítica. Proposições auto evidentes ou o testemunho dos sentidos, ou a combinação de ambos, seria suficiente. [...] Pensadores como Wells e John Dewey, e toda a geração cujas mentes refletem, continuam a professar essa convicção até os dias de hoje, como até mesmo os empiristas mais extremos que professam a filosofia do positivismo lógico. Todos eles estão convencidos de que nossos principais problemas ainda decorrem de não termos conseguido se livrar de nossas crenças tradicionais e continuam a basear suas esperanças em aplicações subsequentes do método do ceticismo radical e do empirismo (POLANYI, “Ciência, fé e sociedade”).

O quarto grau utiliza o método pós-crítico com o objetivo de produzir conhecimento adaptado, sentimentalizado, humanizado, contextualizado e vivenciado pela subjetividade; ainda assim dentro de uma tradição, ou sistema, teoria, ou conhecimento explícito, etc. É claramente um método anarquista que evita a estagnação do saber crítico e promove um teste de qualidade na Ciência, reorganizando e desacomodando as estruturas e tradições através da percepção detalhista de cada sujeito.

O método pós-crítico depende da percepção ou vivência sobre algo dado a prioristicamente, que será reestruturado, reorganizado, relido, e rearranjado pelo sujeito. Como exemplo, quando surge uma crise entre o ideal e o real, um disparate entre o “mapa” e a minha localização, um descompasso entre o “manual” e a minha situação na sociedade, surgirá uma epistemologia individualista onde cada sujeito ou grupo de pessoas ideologicamente semelhantes aplicarão o seu modo de saber pensar, de saber fazer, de saber ser e de saber conviver, personalizando a utilidade do conhecimento disponível. 

No conhecimento pós-crítico desenvolve-se uma crítica pessoal sobre o conhecimento que foi obtido por outras pessoas anteriormente através da crítica impessoal. Desse modo, o conhecimento pós-crítico realiza uma crítica sobre a crítica.

O método pós-crítico é imediatamente necessário quando o conhecimento explícito dos manuais, “mapas” e modelos são impertinentes ou inoportunos para a situação em que se encontra o sujeito. Nesse caso, o sujeito tem um modo próprio de pensar e de resolver as situações ordinárias e extraordinárias. Portanto, o método pós-crítico é fundamentalmente dirigido pela vivência do indivíduo.

Confirmando esse diagnóstico, Polanyi apresentou o seguinte exemplo na obra “Ciência, fé e sociedade”:

A vantagem de um mapa é óbvia, tanto pela informação que transmite, como por uma razão ainda mais importante: é muito mais fácil seguir um itinerário com um mapa do que sem um mapa. Mas há também um novo risco envolvido ao viajar por um mapa: o mapa pode estar errado. É aqui que entra a reflexão crítica. O risco peculiar que corremos ao confiar em qualquer conhecimento explícito combina-se com a oportunidade peculiar que oferece de refletir criticamente sobre ele próprio. Podemos verificar a informação de um mapa, por exemplo, lendo-o num local que possamos examinar diretamente e comparar o mapa com os marcos à nossa frente. Esse exame crítico do mapa é possível por duas razões. Primeiro, porque um mapa é algo que nos é externo e não qualquer coisa que executamos ou a que damos forma; e, segundo, porque mesmo que seja um mero objeto externo, ainda assim pode-nos falar. Diz-nos algo a que podemos prestar atenção. E fá-lo; quer tenhamos elaborado nós próprios o mapa, quer o tenhamos comprado numa loja. Mas é o primeiro caso que de momento nos interessa, em especial quando o mapa é de fato uma afirmação de nós próprios. Ao ler tal afirmação estamos a rever para nós mesmo algo que já antes tínhamos expresso, de modo que agora podemos atender criticamente. Um processo crítico deste tipo pode continuar por horas, e até por semanas ou meses. Posso percorrer o manuscrito de um livro completo e examinar o mesmo texto, frase por frase, um qualquer número de vezes.

Na metodologia pós-crítica o pesquisador aplica o método etnográfico pretendendo sistematizar o conhecimento plural do cotidiano que depois deverá ser confrontado com o Direito Penal visando estrategicamente avaliar e melhorar a capacidade de resiliência das instituições criminais sem perder de vista o direito individual, a dignidade da pessoa e da sociedade humana.

O americano Ferrel, por exemplo, que marca o avanço dos estudos culturais na Criminologia contemporânea aplicou a técnica etnográfica pelo viés anarquista e mostrou na década de 1990 que:

A tensão entre as práticas de grafitagem como expressão cultural de determinadas tribos urbanas e o seu confronto com campanhas contrárias serviu ao pesquisador como estudo de caso sobre temas como poder, autoridade e resistência, subordinação e insubordinação, abrindo espaço para possibilidades teóricas e metodológicas que intitulou na época, criminologia anarquista.

A etnografia criminal do especialista Ferrel foi “inspirado fortemente em Kropotkin”, através do qual fez uma análise do crime e da criminalidade “informada pela perspectiva anarquista de ruptura com a autoridade – sobretudo com a incrustação da autoridade nas relações humanas – e com os sistemas hierárquicos de dominação, o que permitiu abertura de inimagináveis focos de investigação criminológica” (CARVALHO, 2020, p. 36)

Reforçando a metodologia pós-crítica, Salo de Carvalho (2010, p. 27) afirmou que é “imprescindível a abertura da dogmática, iniciando-se pela aproximação com a realidade da vida, pois a peculiaridades das circunstâncias em casos envolvendo drogas, violência de gênero, meio ambiente, sistema financeiro, crimes patrimoniais, p. ex., exigem sofisticação das estruturas do direito e do processo penal, sem que isto represente ruptura com o sistema de garantias”.

Contribui também na pesquisa pós-crítica a metodologia pós-moderna que prioriza o microssocial, o particular, o artesanal, o regional, para depois alcançar aspectos macrossociais e sistêmicos.

A Criminologia pós-moderna desenvolve dois pilares: 1- o reconhecimento do fim das grandes narrativas e 2 - a impossibilidade de aceitação de qualquer tipo de verdade universal” (CARVALHO, 2010, p. 31).

Como resultado prático, “o pensamento pós-moderno permite [...] problematizar idealismos presentes em algumas vertentes das criminologias críticas - tendências que romantizam o autor de atos delitivos ao incorporarem determinismo econômicos”. Aprofundando esse último aspecto, Salo de Carvalho ressaltou que “é importante pontuar as tendências metafísicas em todos os campos de construção do pensamento criminológico, inclusive nas correntes críticas” (CARVALHO, 2010, p. 32).

Desenvolve-se na pesquisa pós-crítica o anarquismo metodológico e teórico, que deve “problematizar de forma qualificada o estudo das distintas formas de manifestação do crime, nas sociedades complexas, indicando a impossibilidade de um modelo teórico universal que [equivocadamente] forneça respostas adequadas” (CARVALHO, 2010, p. 26). Dessa forma, “o estudo do Direito Penal, do processo penal e da criminologia a partir de casos específicos, com possibilidade de experimentação (por mais infiel que possa ser o relato), permitiria a aproximação dos operadores com a vida concreta e a compreensão dos ricos e plurais elementos da sua cultura” (CARVALHO, 2010, p. 23).

Enfatiza o ilustre autor que é “inconcebível na complexidade da vida contemporânea, ensinar e aprender Direito Penal e processo penal sem análise dos problemas específicos que envolvem as distintas condutas que conformam o universo da ilicitude” (CARVALHO, 2010, p. 27).

O abolicionismo penal é bem-vindo nesse programa de pesquisa como utopia orientadora. Embora seja difícil a plenitude desse paradigma na prática forense, os argumentos abolicionistas “são extremamente úteis para a avaliação fenomenológica da ineficácia, dos custos e da violência que o sistema penal reproduz” (CARVALHO, 2010, p. 146).

Porém, o abolicionismo penal se esbarra em limites constitucionais, como a Constituição de 1988, que ao estatuir os direitos e garantias fundamentais, “define o modelo de persecução criminal dos fatos puníveis, e inclusive prevê na enumeração das sanções, a pena privativa de liberdade e regime fechado” (CARVALHO, 2010, p. 146).

Também a Constituição de 1988 em diversos incisos do artigo 5º indica meios penais que deverão minimizar o sofrimento imposto pelo Estado ao condenado, respeitando os princípios de humanidade, de individualização da pena e de respeito à integridade física e moral do condenado.

Mas o dispositivo mais exemplar de configuração constitucional da política penalógica de redução dos danos é encontrada na alínea “e” o inciso XLVII. Ao determinar vedações a algumas espécies de pena (morte, prisão perpétua, trabalhos forçados e banimento - a Constituição estabelece na referida alínea o princípio da proibição do excesso punitivo ao negar em qualquer hipótese a aplicação e execução de penas cruéis (CARVALHO, 2010, p. 148).

Apesar das restrições constitucionais,

O abolicionismo penal abre espaço para no campo da política criminal e da atuação cotidiana dos atores do Direito Penal elaboração de práticas voltadas à redução dos danos causados pelas violências do sistema penal. Neste quadro, a utopia orientadora vislumbrada por Baratta adquire importância ímpar (CARVALHO, 2010, p. 146).

A axiologia da Criminologia pós-crítica ressalta a importância da complexidade do saber. Afirmando esse valor científico, a Criminologia pós-crítica focaliza o pluralismo dos eventos ilícitos dentro de um mesmo padrão ou tipo penal:

[...] pois as, violência de gênero, meio ambiente, sistema financeiro, crimes patrimoniais, etc., exigem sofisticação das estruturas do direito e do processo penal, sem que isto represente ruptura com o sistema de garantias. Problemas de fundo como a medicalização do Direito Penal das drogas, o sexismo na abordagem das questões de gênero, o impacto socioeconômico nos crimes patrimoniais, a escassa vulnerabilidade nos crimes societários, a ausência de consciência ambiental nos ilícitos contra a natureza, não podem restar alheios de especificações nas teorias penais e processuais penais (CARVALHO, 2010, p. 27).

A teoria complexificadora da Criminologia pós-crítica rejeita a uniformidade da questão criminal que se manifesta nas soluções políticas e dogmáticas do Direito Penal. Como diferencial procura “estudar o crime e o funcionamento do sistema da justiça penal, conectando-se à dogmática penal, com a finalidade de possibilitar chaves de interpretação das variáveis inerentes a cada espécie de conflito” (CARVALHO, 2010, p. 27).

A teoria desse programa de pesquisa informa também que as diversas ciências criminológicas ficaram atreladas à dogmática, fazendo a interdisciplinaridade ser uma ilusão de ótica, pois no final da investigação predomina a vontade do sistema jurídico penal maximalista, autoritário, excludente, violento e desumano. Por extensão, a Criminologia positivista se torna uma sucursal do Direito Penal, uma ciência auxiliar, que serve apenas para compreender a lógica de punição dos códigos estatais.

Refutando a simplificação do Direito Penal, a teoria complexificadora da Criminologia pós-crítica destaca que existe uma “fixação da resposta penal na univocidade da sanção carcerária, independente da diversidade do ato praticado” (CARVALHO, 2010, p. 33).

Em outra situação, essa mesma teoria crítica procura rejeitar o modo como é ensinada a disciplina Criminologia nas Faculdades, visto que:

Os estudos realizados sobre o ensino do direito têm demonstrado à exaustão, a inominável defasagem em termos pedagógicos e a profunda distância entre o saber jurídico e a realidade social. No entanto, se é dado irrefutável que a formação do jurista está dissociada das demandas sociais contemporâneas, é fundamental dizer que este mesmo modelo está desconectado da própria realidade legislativa, que lhe é referente e lhe dá sustentação (CARVALHO, 2010, p. 18).

A praticologia do programa de pesquisa pós-crítico apresenta uma problematização e recomenda diretrizes que podem modificar a realidade social. Na prática, devem ser investigados empiricamente os fatores de risco, a vulnerabilidade individual e social ao delito, e os danos proporcionados através da atuação das agências punitivas (CARVALHO, 2010, p. 27).

Em sua agenda de trabalho, a pesquisa pós-crítica estabelece várias tarefas relevantes:

1-Inventar espaços de integração de saberes críticos (CARVALHO, 2010, p. 53).

2-Realizar diagnósticos que possam desnudar a vontade do sistema inerente aos projetos políticos e científicos modernos (CARVALHO, 2010, p. 55).

3-Usar a arte como instrumento não racional do saber (teatro, cinema, artes plásticas) e perguntar qual tem sido a forma de representação do controle social punitivista e dos atores que nele operam? Em segundo lugar perguntar como a representação artística sobre as agências de punitividade e os seus operadores correspondem à autoimagem cultivada no sistema e na justiça criminal (CARVALHO, 2010, p. 66).

4- Investigar o grau de risco de ressurgimento da prática inquisitorial no sistema democrático. Nessa direção, entende-se que:

A opção de identificar os níveis de atuação dos sistemas em inquisitorialidade de alta ou de baixa intensidade possibilitaria desnudar suas reais formas de manifestação e de otimizar ações neutralizadoras de redução dos danos potenciais aos direitos fundamentais. Desde esta perspectiva, seria possível compreender o garantismo penal como discurso e como prática voltada para a instrumentalização do controle e a limitação dos poderes punitivos (CARVALHO, 2010, p. 90).

5- Defender a racionalização e o minimalismo do poder punitivo. Nesse sentido, Salo de Carvalho (2010, p. 110) afirmou que:

Se a regra da programação penal e a violação aos direitos fundamentais, o que tornaria legítima a intervenção penal punitiva? A resposta necessariamente deve se iniciar com o reconhecimento de que o grau mínimo de legitimidade da ingerência penal é adquirido através do absoluto respeito às regras do jogo democrático, ou seja, com a radical observância das garantias penais e processuais penais.

6- Desenvolver estratégias políticas de ação forense visando à redução de danos causados pelas violências dos poderes (CARVALHO, 2010, p. 131).

7- Direcionar esforços para minimizar os riscos gerados pelos aparatos punitivos, desnudar a retórica penal (discursos declarados e não cumpridos) e retomar a natureza política da pena. Desse modo, distante de qualquer idealização, a pena é recolocada no campo político da manifestação do poder (CARVALHO, 2010, p. 132).

8- Neutralizar ao máximo possível os efeitos da prisionalização e vulnerabilidade do indivíduo submetido ao sistema executivo. Tais premissas como pondera Zaffaroni, seriam orientadoras de práticas sem pretensões impossíveis ou utópicas (CARVALHO, 2010, p. 153).

9- Buscar apoio na chamada criminologia cultural, “pois como fenômeno da cultura punitivista contemporânea, as formas, as imagens, a representação e a significação social da punição ingressam no universo de análise da Criminologia cultural” (CARVALHO, 2010, p. 42).

Configura-se como criminologia, estética de análise de ícones e símbolos culturais mercantilizados pelos meios formais e informais de comunicação. Por esse motivo, representações televisivas, cinematográficas, artes plásticas, teatro, expressões e estilos musicais, campanhas publicitárias, websites, vídeo games, moda urbana e práticas desportivas e de entretenimento, sejam transgressivas ou conformistas, apresentam-se como potenciais objetos de pesquisa que falam sobre o sujeito contemporâneo.

10- Assumir a virtude de não ser a Criminologia uma ciência preocupada por temas e problemas criminológicos distintos ou simplesmente sugerir interpretações e revisões sobre temas tradicionais. Dentre os problemas emergentes desta Criminologia sem compromisso epistemológico estaria o de mapear a multiplicidade dos campos de investigação com intuito de compreender os diversos olhares científicos, penais e políticos sobre a questão criminal. O levantamento permite identificar as inúmeras chaves de leitura propostas e em segundo momento, de forma experimental, propor aproximações, sugerir diálogos, testar colagens, inverter premissas lógicas, e redefinir perspectivas (CARVALHO, 2010, p. 44).

11- Finalmente, harmonizar as especificidades culturais e os saberes locais de maneira que antes de tudo as distintas perspectivas possam dialogar com reciprocidade (CARVALHO, 2010, p. 45).

A Criminologia pós-crítica propõe alternativas que não só minimizariam os impactos do direito e do processo penal sobre a dignidade e a psicologia das vítimas, suspeitos, acusados e condenados, mas também racionalizariam a necessidade do Direito Penal como estratégia de última aplicação institucional, quando enfim outros ramos do Direito não se mostrassem condizentes com os delitos de maior gravidade.

[...] em razão de o poder penal tender sempre a um excesso - seja no plano da elaboração (legislativo), da aplicação (judiciário) ou da execução (executivo) das leis - sua utilização deveria ocorrer apenas em última instância (ultima ratio nas situações de maior gravidade aos principais interesses sociais (CARVALHO, 2010, p. xxi).

Na contextualização histórica do programa de pesquisa pós-crítico Salo de Carvalho observou que a primeira ferida narcísica na Criminologia etiológica foi causada pela Criminologia crítica americana ao denunciar que os mitos da igualdade e da eficiência do Direito Penal não são efetivados, pois há uma seletividade ideológica nos processos punitivos e na atuação das agências policiais, repressivas e investigativas. Pelo olhar da Criminologia crítica ficou evidente que a “impunidade é a regra” (CARVALHO, 2010, p. 93). A segunda ferida narcísica na História da Criminologia tradicional seria a Modernidade líquida ou pós-modernidade, com a multiplicações dos riscos ambientais e sociais, que exigem naturalmente um novo paradigma sobre a realidade, não mais baseado:

Na pretensão e na soberba exageradas pela crença romântica de que o Direito Penal pode salvaguardar a Humanidade de sua destruição sem ter clareza dos seus próprios limites que não aparecem quando a própria dogmática manifesta o delírio de grandeza messiânica de responsabilizar-se pela proteção dos valores mais importantes à Humanidade, chegando ao ponto de assumir o encargo de garantidor do futuro da civilização através da tutela penal das gerações futuras [...] (CARVALHO, 2010, p. 109).

Segundo Salo de Carvalho, os problemas que modelam a contextualização da pesquisa são:

  1. O hipercarceramento, ou inchaço da população carcerária nos presídios.
  2. A hipercriminalização, ou penalização excessiva de condutas desviantes; ou então, a banalização do Direito Penal.
  3. As irregularidades dos atos de poder do Estado, ou seja, o exercício abusivo da violência das agências penais.
  4. O inquisitorialismo, ou prática medieval, gótica, autoritária, que pode ressurgir no estado democrático de direito.
  5. A cultura punitivista, ou culto à doutrina do maximalismo penal.
  6. E os danos institucionais, ou violação dos direitos humanos da parte do Estado.

Como alternativa, a Criminologia pós-crítica propõe:

  1. Reduzir a dor e o sofrimento das pessoas no terreno da legalidade e das instituições punitivas.
  2. Desenvolver meios humanos e democráticos de aplicação das penas.
  3. Frear a fúria do Estado que afeta a vítima e o autor do delito.
  4. Proteger direitos humanos fundamentais.
  5. Não banalizar a relação e contato físico do indivíduo com o Direito Penal e com o sistema carcerário.
  6. Integrar a dogmática penal com a Criminologia e a política criminal.
  7. Desenvolver uma Criminologia vigilante dos direitos humanos.
  8. Além disso, interagir construtivamente com a Criminologia crítica, especialmente em sua abordagem cultural direcionada aos temas da política criminal e da cultura punitiva em geral.


4 CRIMINOLOGIA CRÍTICA

Em contraposição à abordagem etiológica, Baratta (2002, p. 159) considerou que:

Quando falamos de ‘Criminologia crítica’ [...], colocamos o trabalho [...] de uma teoria materialista, ou seja, econômico-política, do desvio, dos comportamentos socialmente negativos e da criminalização; um trabalho que leva em conta instrumentos conceituais e hipóteses elaboradas no âmbito do marxismo.

A Criminologia crítica investiga os processos de representação ou de percepção sobre o fenômeno criminoso e as instituições repressivas, rejeitando qualquer explicação etiológica ou causalista sobre o criminoso e a delinquência.

Trata-se de uma Criminologia institucionalista, entendendo que o crime é um constructo social, cultural, ou estrutural, quer dizer, não é um dado ontológico natural ou médico, mas produto de uma representação da estrutura social ou contexto em que vive o delinquente que é percebido pelos outros como desviante.

Na abordagem da Criminologia crítica, “[...] a criminalidade não é uma qualidade ontológica, mas um status social atribuído através de processos (informais e formais) de definição e mecanismos (formais e informais) de reação” (BARATTA, 2002, p. 118).

A ontologia desse programa de pesquisa estuda o cotidiano e a cultura da criminalidade e da violência, contando com a ajuda fundamental da Sociologia e da Antropologia cultural. Por esse viés programático, estupro, homicídio, pedofilia, por exemplo, revelariam não a maldade da pessoa enquanto indivíduo isolado, mas do sistema econômico, social, político e cultural incorporado pelo indivíduo; transformando assim o criminoso em vítima do sistema.

Em outras palavras:

Para a Criminologia crítica o sistema positivo e a prática oficial são, antes de tudo, o objeto de seu saber. [Essa Criminologia deve] examinar de forma científica a gênese do sistema, sua estrutura, seus mecanismos de seleção, as funções que realmente exerce, seus custos econômicos e sociais e avaliar, sem preconceitos, o tipo de resposta que está em condições de dar, e que efetivamente dá, aos problemas sociais reais (BARATTA, 2002, p. 215).

A Criminologia crítica é uma ciência processualista, quer dizer, investiga a ocorrência da criminalidade levando em consideração o contexto social capitalista, bem como o processo institucional de criminalização, ou de rotulação da pessoa como tipo penal criminoso.

Na abordagem marxista proposta por Baratta (2002, p. 163):

A crítica da ideologia do direito privado consiste, pois, em reconstruir a unidade dos dois momentos, desmascarando a relação desigual sob a forma jurídica do contrato entre iguais, mostrando como o direito igual transforma-se no direito desigual. Este é o primeiro aspecto da crítica marxista do direito: o aspecto relativo ao contrato. Sob o segundo aspecto, aquele relativo à distribuição, a desigualdade substancial é vista como o acesso desigual aos meios de satisfação das necessidades. Na sociedade capitalista, o princípio da distribuição deriva, imediatamente, da lei do valor que preside à troca entre força de trabalho e salário. Também deste segundo ponto de vista, a igualdade formal dos sujeitos de direito se revela como veículo e legitimação de desigualdade substancial.

A metodologia do programa de pesquisa da Criminologia crítico-marxista utiliza o método dialético, produzindo publicações que mostram que o ideal da igualdade penal é dissonante com a realidade.

Na pesquisa empírica, é realizado trabalho de campo, pesquisa de opinião, análise do discurso e dos dados estatísticos dentro de uma abordagem interdisciplinar da sociologia criminal ligada com outras áreas do conhecimento.

Além da dialética são utilizados os métodos de abordagem conhecidos como: etnometodologia; interacionismo simbólico; e estruturalismo.

No interacionismo simbólico, a descrição dos comportamentos em relação a certas normas não se efetua de maneira automática, pois se trata de uma operação intelectual problematizadora que inclui a interdependência de indivíduos e instituições. O interacionismo simbólico e social investiga a qualidade das vivências, a circulação dos discursos, a linguagem cotidiana e a cultura, buscando conhecer as percepções e classificações que incidem na identificação dos desvios e crimes na sociedade.

A etnometodologia é uma técnica da Antropologia que descreve os acontecimentos e as vivências de cada grupo sem perder de vista a totalidade do sistema social (BARATTA, 2002, p. 87).

Finalmente, o estruturalismo parte da concepção de que as estruturas são entidades reais na sociedade e funcionam com o objetivo de controlar o comportamento dos indivíduos. Segundo Marx, a estrutura do capitalismo é desumana, e incentiva a relação de exploração do Homem pelo Homem.

Em suma: Baratta reforçou a importância do interacionismo e da etnometodologia a fim de conhecer os comportamentos mais simples até alcançar construções mais complexas que dizem respeito à totalidade social.

Segundo a explicação do autor:

Os desvios sucessivos à reação social (compreendida num primeiro momento através da incriminação e da pena aplicada pelas instituições) são fundamentalmente determinados pelos efeitos psicológicos que tal reação produz no indivíduo objeto da mesma; o comportamento desviante (e o papel social correspondente) sucessivo à reação torna-se um meio de defesa e de ataque ou de adaptação em relação aos problemas manifestos e ocultos, criados pela reação social ao primeiro desvio (BARATTA, 2002, p. 90).

O método de trabalho da Criminologia crítica na versão do autor Baratta inclui uma axiologia embasada no abolicionismo penal. Há um esforço crítico nesse tipo de abordagem em acelerar o processo de descriminalização e consequentemente em promover a extinção do sistema carcerário e do Direito Penal. “De todas as formas, a ideia reguladora de uma política criminal alternativa implica a superação do sistema penal” (BARATTA, 2002, p. 222).

Citando o filósofo Radbruch, Baratta (2002, p. 222) destacou a esse respeito que “a melhor reforma do Direito Penal não consiste em sua substituição por um Direito Penal melhor, mas sua substituição por uma coisa melhor que o direito”. Entretanto, além da concepção marxista, existe no interior da Criminologia crítica a abordagem liberal, que admite a necessidade de recompor a ordem penal por meio de novas práticas eficientes e minimalistas.

Para a Criminologia liberal, são necessários novos estímulos sociais e estatais para que o sujeito se afaste da atividade criminosa. Nessa direção, o sistema prisional deve ser revigorado, recebendo maior grau de racionalidade e eficiência. Segundo os criminalistas liberais: “as normas e os valores sociais que os indivíduos transgridem ou dos quais se desviam são universalmente compartilhados, válidos a nível intersubjetivo, racionais, e presentes em todos os indivíduos, imutáveis etc. (BARATTA, 2002, p. 87).

Baratta (2002, p. 152) afirmou que a Criminologia liberal trata a criminalidade:

Como um fenômeno social a-histórico, portanto, em linha de princípio, ineliminável. Mas se a criminalidade é um fenômeno social ineliminável, o são, também, as suas causas. A luta contra a criminalidade, por isso, não pode mais significar a luta contra as causas da criminalidade, mas somente para tornar efetivas as medidas de controle social como único meio para reduzir a amplitude da criminalidade.

Na base do programa de pesquisa da criminologia crítica organizado pelo especialista Baratta encontram-se duas teorias: a do materialismo-histórico marxista; e a do labeling approach.

A Criminologia crítica desse mesmo autor pretende construir:

Uma teoria materialista (econômico-política) do desvio, dos comportamentos socialmente negativos e da criminalização, e elaborar as linhas de uma política criminal alternativa, de uma política das classes subalternas no setor do desvio: estas são as principais tarefas que incumbem aos representantes da Criminologia crítica, que partem de um enfoque materialista e estão convencidos de que só uma análise radical dos mecanismos e das funções reais do sistema penal, na sociedade tardo-capitalista, pode permitir uma estratégia autônoma e alternativa no setor do controle social do desvio, ou seja, uma “política criminal” das classes atualmente subordinadas (BARATTA, 2002, p. 197).

A teoria marxista enfatiza que:

Na atual fase de desenvolvimento da sociedade capitalista, o interesse das classes subalternas é o ponto de vista a partir do qual se coloca uma teoria social comprometida não na conservação, mas na transformação positiva, ou seja, emancipadora, da realidade social. O interesse das classes subalternas e a força que elas são capazes de desenvolver são, de fato, o momento dinâmico material do movimento da realidade. Uma teoria da sociedade dialeticamente comprometida no sentido supradito, é uma teoria materialista (isto é, econômico-política) da realidade que encontra as suas premissas em particular, ainda que não exclusivamente, na obra de Marx e no materialismo histórico que dela parte (BARATTA, 2002, p. 158).

Aplicando a sua teoria crítico-marxista, Baratta (2002, p. 166) considerou que:

O aprofundamento da relação entre Direito Penal e desigualdade conduz, em certo sentido, a inverter os termos em que esta relação aparece na superfície do fenômeno descrito. Ou seja: não só as normas do Direito Penal se formam e se aplicam seletivamente, refletindo as relações de desigualdade existentes, mas o Direito Penal exerce, também, uma função ativa, de reprodução e de produção, com respeito às relações de desigualdade.

Baratta reconheceu que a abordagem liberal do labeling approach lançou luz sobre o fato de que o poder de criminalização e o exercício desse poder estão estreitamente ligados à estratificação e à estrutura competitiva da sociedade pluralista (BARATTA, 2002, p. 112).

De acordo com Juarez Cirino dos Santos, no prefácio da obra do autor Baratta (2002, p. 11):

A análise do labeling approach constitui um momento de grande lucidez do texto: a criminalidade não seria um dado ontológico pré-constituído, mas realidade social construída pelo sistema de justiça criminal através de definições e da reação social; o criminoso não seria um indivíduo ontologicamente diferente, mas um status social atribuído a certos sujeitos selecionados pelo sistema penal (Prefácio, 2002, p. 11).

Na perspectiva do labeling approach, Goffman afirmou que o estigma é um “rótulo social negativo” que surge no cotidiano a fim de proteger os tipos ideais de pessoas e comportamentos.

Na América dos anos de 1960, Goffman (2004, p. 109) percebeu que:   

[...] há só um tipo de homem que não tem nada do que se envergonhar: um homem jovem, casado, pai de família, branco, urbano, do Norte, heterossexual, protestante, de educação universitária, bem empregado, de bom aspecto, bom peso, boa altura e com um sucesso recente nos esportes. Todo homem americano tende a encarar o mundo sob essa perspectiva, constituindo-se isso, num certo sentido, em que se pode falar de um sistema de valores comuns na América. Qualquer homem que não consegue preencher um desses requisitos ver-se-á, provavelmente - pelo menos em alguns momentos - como indigno, incompleto e inferior; em alguns momentos, provavelmente; ele se encobrirá e em outros é possível que perceba que está sendo apologético e agressivo quanto a aspectos conhecidos de si próprio que sabe serem, provavelmente, considerados indesejáveis. Os valores de identidade gerais de uma sociedade podem não estar firmemente estabelecidos em lugar algum, e ainda assim podem projetar algo sobre os encontros que se produzem em todo lugar na vida quotidiana.

A estigmatização desenvolve práticas violentas de rotulação e de julgamento sobre a vítima que resultam em traumas, antipatias, recalques, medos, agressividade, etc., fazendo com que as relações microssociais se tornem ainda mais conflituosas e imprevisíveis no cotidiano.

No processo social de rotulação: 

[...] acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida: Construímos uma teoria do estigma; uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de classe social. utilizamos termos específicos de estigma como aleijado, bastardo, retardado, em nosso discurso diário como fonte de metáfora e representação, de maneira característica, sem pensar no seu significado original (GOFFMAN, 2004, p. 8).

Ao praticar a estigmatização, o cidadão conservador defende no dia a dia o interesse do padrão a todo custo e de forma alienada acaba esquecendo que ele próprio pode possuir defeitos ou desvios sociais.

Curiosamente, a maioria das pessoas não consegue ser fiel ao padrão ideal colocado pela sociedade; e procurando evitar os infortúnios de sua “deficiência” na comunidade, muitas pessoas escondem as suas falhas ou defeitos físicos e diferenças perseguindo outros indivíduos que apresentem outros defeitos físicos ou comportamentais, como forma de desviar a atenção sobre o seu problema particular que também chama a atenção pela discrepância em relação ao tipo ideal de beleza ou atitude dominante.

A vítima da estigmatização manifesta diversas respostas comportamentais: de um lado, a agressividade contra a sociedade; de outro lado, a passividade ou aceitação do estigma; e no meio desses extremos, pode apresentar inúmeras reações intermediárias, disfarçadas entre o ódio e resignação social.

Segundo Goffman, o estigma destrói a saúde mental do eu, gerando pessoas emocionalmente desajustadas, inquietas, agressivas, violentas, ou acomodados. Conforme descreveu o autor dessa teoria:

Em vez de se retrair, o indivíduo estigmatizado pode tentar aproximar-se de contatos mistos com agressividade; mas isso pode provocar nos outros uma série de respostas desagradáveis. Pode-se acrescentar que a pessoa estigmatizada algumas vezes vacila entre o retraimento e a agressividade, correndo de um para a outra, tornando manifesta, assim, uma modalidade fundamental na qual a interação face-to-face pode tornar-se muito violenta. O indivíduo estigmatizado pode, também, tentar corrigir a sua condição de maneira indireta, dedicando um grande esforço individual ao domínio de áreas de atividade consideradas, geralmente, como fechadas, por motivos físicos e circunstanciais, a pessoas com o seu defeito. Isso é ilustrado pelo aleijado que aprende ou reaprende a nadar, montar, jogar tênis ou pilotar aviões, ou pelo cego que se torna perito em esquiar ou em escalar montanhas. Finalmente, a pessoa com um atributo diferencial vergonhoso pode romper com aquilo que é chamado de realidade, e tentar obstinadamente empregar uma interpretação não convencional do caráter de sua identidade social (GOFFMAN, 2004, p. 18).

Na estigmatização, os conservadores se preocupam apenas com os papéis e as imagens coletivas e não propriamente com as pessoas reais, de carne e osso. Reforçando esse fato, Goffman (2004, p. 117) explicou que:

O normal e o estigmatizado não são pessoas, e sim perspectivas que são geradas em situações sociais durante os contatos mistos, em virtude de normas não cumpridas que provavelmente atuam sobre o encontro. E já que aquilo que está envolvido são os papéis em interação e não os indivíduos concretos, não deveria causar surpresa o fato de que, em muitos casos, aquele que é estigmatizado num determinado aspecto exibe todos os preconceitos normais contra os que são estigmatizados em outro aspecto.

A estigmatização dos indivíduos que pertence a determinado segmentos raciais, religiosos ou étnicos também serve para afastá-los da competição no mercado; além disso, é utilizada para desvalorizar aquelas pessoas que têm desfigurações físicas, causando restrição na escolha de parceiros.

A recomendação política coerente com essa teoria é desmontar ou refazer os tipos ideais; educar as pessoas para aceitarem as falhas e diferenças humanas; e reforçar o pluralismo onde a diferença pessoal seja encarada como virtude da comunidade. É preciso também considerar que as normas sociais não mudam por decreto, mas através de uma nova cultura assimilada pacificamente.

Em outra obra, intitulada “Manicômios, prisões e conventos”, Goffman (1974) descreveu a origem, o funcionamento e os resultados das instituições totais, que segundo ele, se caracterizam por cuidar da vida integral da pessoa por um determinado período de internação.

Segundo Goffman, as instituições totais [que são totalitaristas devido ao excesso de totalidade institucional sobre a vida dos internos] exercem controle e planejamento através de uma elite do poder que controla a massa populacional dos internos.

O dia a dia nesse tipo de instituição será tão perverso que o próprio indivíduo deverá avaliar e julgar publicamente o desenvolvimento do seu próprio eu, reconhecendo objetivamente se o seu próprio comportamento evoluiu e se ele se tornou exemplar perante a vontade do sistema.

No presídio, a vida privada do condenado desaparece, sendo modelada uma nova identidade pública do indivíduo. A regra é obedecer às autoridades oficiais da instituição. Todo mundo deve ser submisso, e quanto mais submisso, mais exemplar se torna o encarcerado.

De acordo com a teoria do sociólogo Goffman, o eu fica desnudado; a anatomia do corpo do apenado é exposta; sua intimidade não existe mais. O prisioneiro toma banho, come, defeca, dorme, mas todos os internos têm conhecimento dessa rotina exposta coletivamente. Também as visitas de parentes são públicas e simultâneas. O tempo e o espaço da relação sexual são controlados pela instituição. O apenado perde conforto, autonomia, e liberdade de escolha.

Portanto, no presídio o eu do condenado não é mais autônomo, e sofre uma constante série de mortificações e mutilações. Goffman concluiu assim que o presídio existe para negar a existência da pessoa, massacrando o ego do condenado.

Confirmando essa opinião, os egressos entrevistados na época pelo autor dessa teoria confessaram que o tempo da cadeia foi inútil. Eles afirmaram, ainda, que não ganharam nada de bom quando estavam no presídio. O egresso se sentia angustiado, sofria impotência perante o novo mundo que não o recebeu com satisfação e por esse motivo sentia-se alijado da Modernidade. A sua linguagem pessoal ficou também viciada ao ambiente do presídio. Seu modo de raciocinar e seus conhecimentos profissionais também não contribuíram na reinserção social visto que o preconceito impossibilita o renascimento social.

Consequentemente, o ex-apenado ganha um novo rótulo: é uma criatura inútil, incapaz, derrotada, sem autoestima, sem controle do seu eu; enfim, é desatualizado e desqualificado para concorrer no mercado de trabalho e viver normalmente na sociedade moderna.

O cárcere, segundo Baratta (2002, p. 167), em sua visão marxista:

[...] representa, em suma, a ponta do iceberg que é o sistema penal burguês, o momento culminante de um processo de seleção que começa ainda antes da intervenção do sistema penal, com a discriminação social e escolar, com a intervenção dos institutos de controle do desvio de menores, da assistência social etc. O cárcere representa, geralmente, a consolidação definitiva de uma carreira criminosa. O cárcere é um instrumento de formação de uma população criminosa.

Completando sua argumentação, Baratta (2002, p. 198) ressaltou que:

As estatísticas indicam que, nos países de capitalismo avançado, a grande maioria da população carcerária é de extração proletária, em particular, de setores do sub proletariado e, portanto, das zonas sociais já socialmente marginalizadas como exército de reserva pelo sistema de produção capitalista. [...] a mesma estatística mostra que mais de 80% dos delitos perseguidos nestes países são delitos contra a propriedade. Estes delitos constituem reações individuais e não políticas às contradições típicas do sistema de distribuição da riqueza e das gratificações sociais próprias da sociedade capitalista [...].

Na praticologia do programa de pesquisa da Criminologia crítica o problema fundamental é o mito da igualdade penal. As alternativas em relação a esse problema sugerem a descriminalização progressiva associada com a extinção gradual do cárcere.

O mito da igualdade penal apresenta as seguintes características (BARATTA, 2002, p. 90):

  1. O Direito Penal protege igualmente todos os cidadãos contra ofensas aos bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos (conforme o princípio do interesse social e do delito natural).
  2. A lei penal é igual para todos, ou seja, todos os autores de comportamentos antissociais e violadores de normas penalmente sancionadas têm iguais chances de tornar-se sujeitos, e com as mesmas consequências, do processo de criminalização (conforme o princípio da igualdade).

Contraditando o mito da igualdade penal, a Criminologia crítico-marxista procura mostrar que:

  1. O Direito Penal não defende todos e somente os bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quando pune as ofensas aos bens essenciais o faz com intensidade desigual e de modo fragmentário.
  2. A lei penal não é igual para todos, e o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos.
  3. O grau efetivo de tutela e a distribuição dó status de criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizante e da sua intensidade.

Nesse quadro, o uso alternativo do Direito Penal exige, na concepção do autor Baratta:

Uma análise realista e radical das funções efetivamente exercidas pelo cárcere, isto é, uma análise do gênero daquela aqui sumariamente traçada, a consciência do fracasso histórico desta instituição para os fins de controle da criminalidade e de reinserção do desviante na sociedade, do influxo não só no processo de marginalização de indivíduos isolados, mas também no esmagamento de setores marginais da classe operária, não pode deixar de levar a uma consequência radical na individualização do objetivo final da estratégia alternativa: este objetivo é a abolição da instituição carcerária. A derrubada dos muros do cárcere tem para a nova Criminologia o mesmo significado programático que a derrubada dos muros do manicômio tem para a nova psiquiatria (BARATTA, 2002, p. 203).

Baratta (2002, p. 202) propôs o “uso alternativo” do Direito Penal, sugerindo novas opções de controle social, não menos rigorosos, que podem se revelar, em muitos casos, até mais eficazes do que as regras tradicionais de combate à criminalidade.

A abolição do cárcere tem duas razões:

  1. Inutilidade do sistema prisional enquanto controlador da criminalidade e por seus claros efeitos de estigmatização e marginalização, após o desvio primário e a entrada do indivíduo em tal bastilha.
  2. E falha na reinserção do condenado em uma sociedade portadora da ideologia dominante, que se funda em estereótipos e conceitos formulados pelo senso comum, trazendo o jargão lei e ordem contra tudo e contra todos aqueles que não perfazem sua noção de igualdade, mitigada por uma consciência obscurecida a qualquer tipo de solidariedade.

Além de defender a extinção do sistema punitivo penal, Baratta afirmou que é necessário mudar a mentalidade da opinião pública. O efeito da mídia e a imagem da criminalidade transmitida pelos veículos de comunicação provocariam, segundo o mesmo autor:

Processos de indução de alarme social que, em certos momentos de crise do sistema de poder, são diretamente manipulados pelas forças políticas interessadas, no curso das assim chamadas campanhas de ‘lei e ordem’, mas que, mesmo independentemente destas campanhas, limitadas no tempo, desenvolvem uma ação permanente para a conservação do sistema de poder, obscurecendo a consciência de classe e produzindo a falsa representação de solidariedade que unifica todos os cidadãos na luta contra um ‘inimigo interno’ comum (BARATTA, 2002, p. 204).

Diante dessa realidade apontada pela Criminologia midiática, Baratta (2020, p. 205) admitiu:

Quão essencial é, para uma política criminal alternativa, a batalha cultural e ideológica para o desenvolvimento de uma consciência alternativa no campo do desvio e da criminalidade. Trata-se, também neste terreno como em tantos outros, de reverter as relações de hegemonia cultural, com um decidido trabalho de crítica ideológica, de produção científica, de informação. O resultado deve ser o de fornecer à política alternativa uma adequada base ideológica, sem a qual ela estará destinada a permanecer uma utopia de intelectuais iluministas. Para este fim é necessário promover sobre a questão criminal uma discussão de massa no seio da sociedade e da classe operária.

Duas metas devem ser alcançadas pelo pesquisador:

  1. Mostrar a distribuição desigual das etiquetas ou tipos penais.
  2. E aprofundar o conflito existente na sociedade ao invés de contemplar o discurso ideal de harmonia.

Na tentativa de minimizar o impacto do Direito Penal na sociedade, Baratta definiu a seguinte agenda de trabalho:

  1. Criminalizar e penalizar as condutas antissociais das classes dominantes.
  2. Penalizar condutas corruptas das classes políticas.
  3. Diversificar procedimentos punitivos.
  4. Desinstitucionalizar o sistema penal.
  5. E despenalizar condutas selecionadas para penalização.

Em geral, a Criminologia crítica procura deixar claro que existe uma:

[...] necessária distinção programática entre política penal e política criminal, entendendo-se a primeira como uma resposta à questão criminal circunscrita ao âmbito do exercício da função punitiva do Estado (lei penal e sua aplicação, execução da pena e das medidas de segurança), e entendendo-se a segunda, em sentido amplo, como política de transformação social e institucional. Uma política criminal alternativa é a que escolhe decididamente esta segunda estratégia, extraindo todas as consequências da consciência, cada vez mais clara, dos limites do instrumento penal. Entre todos os instrumentos de política criminal o Direito Penal é, em última análise, o mais inadequado (BARATTA, 2002, p. 201).

Por último, o programa de pesquisa da Criminologia crítica focaliza um contexto marcado pela estrutura sócioeconômica desigual onde se desenvolve a problemática empírica e teórica da criminalidade.

Baratta explicou que:

Só descendo do nível fenomênico da superfície das relações sociais, ao nível da sua lógica material, é possível uma interpretação contextual e orgânica de ambos os aspectos da questão. Mas isto ultrapassa os limites das teorias de médio alcance, e implica um deslocamento do ponto de partida para a interpretação do fenômeno criminal, do próprio fenômeno para a estrutura social, historicamente determinada, em que aquele se insere (BARATTA, 2002, p. 99).

Antecedendo o debate das medidas educativas e de reinserção social, a Criminologia crítica deve realizar um exame radical do sistema de valores e dos modelos de comportamento presentes na sociedade em que se pretende reinserir o preso. O exame sociológico deve levar à conclusão de que a verdadeira reeducação precisa começar pela sociedade, e não pelo condenado; ou seja, antes de pretender modificar a pessoa do criminoso é preciso transformar a estrutura capitalista da sociedade, que é criminógena, atacando-se, portanto, a raiz da exclusão.

Fundamentando o seu ponto de vista revolucionário, Baratta fez a seguinte advertência:

Nós sabemos que substituir o Direito Penal por qualquer coisa melhor somente poderá acontecer quando substituirmos a nossa sociedade por uma sociedade melhor, mas não devemos perder de vista que uma política criminal alternativa e a luta ideológica e cultural que a acompanha devem desenvolver-se com vistas à transição para uma sociedade que não tenha necessidade do Direito Penal burguês, e devem realizar, no entanto, na fase de transição, todas as conquistas possíveis para a reapropriação, por parte da sociedade, de um poder alienado, para o desenvolvimento de formas alternativas de autogestão da sociedade, também no campo do controle do desvio (BARATTA, 2002, p. 207).

 As características gerais da criminologia crítica são as seguintes (Open University: Introduction to critical criminology, 2019):

  1. A ação humana é voluntarística (em diferentes graus), ao invés de ser determinada (em algumas formulações, as ações são voluntárias em determinados contextos);
  2. A ordem social é pluralista ou conflituosa, ao invés de ser consensual;
  3. Algumas teorias críticas baseiam-se na análise marxista e partem da premissa de que políticas econômicas capitalistas reforçam a miséria;
  4. As estratégias de criminalização são estratégias de controle de classe, raça e gênero que são conscientemente usadas para despolitizar a resistência política e controlar economicamente bairros e grupos politicamente marginalizados;
  5. O pânico moral sobre o crime é manipulado pelos grupos dominantes com a função de desviar a atenção sobre os conflitos estruturais inerentes;
  6. As categorias jurídicas que afirmam ser neutras em termos de raça-gênero favorecem direta ou indiretamente os homens brancos;
  7. A agenda criminológica deve ser expandida para incluir os danos sociais ignorados ou subestimados no discurso dominante, envolvendo gênero, racialização, violência, pobreza, guerra, crimes dos poderosos, crime ambiental, crime de estado, violência pública e crimes contra a humanidade.

Entende-se na Criminologia Marxista que os crimes cometidos pelo proletariado são delitos compreensíveis ou aceitáveis em alguns casos pois representam estratégias de sobrevivênca ou de resistência à dominação da classe dominante burguesa.

Estranhamente, uma característica essencial da Criminologia crítico-marxista é sua abordagem etiológica que descreve o Capitalismo como causa dos crimes tanto praticado pelos pobres necessitados como pelos ricos ambiciosos (AKERS & SELLERS, 2013). 

Os marxistas acreditam que “o Capitalismo torna os homens mais individualistas e mais propensos à prática do crime”. Os militantes avaliam que o Capitalismo é um “sistema virado para a obtenção do lucro e a competição, [é] propício ao exacerbamento do egoísmo, e [é] hostil ao florescimento dos sentimentos de altruísmo e solidariedade” (DIAS & ANDRADE,1997, p. 27).

Infelizmente, a Criminologia Marxista aplicada nos países capitalistas não criticou a Criminologia Marxista em vigor na União Soviética, nos anos de 1970, na mesma época em que começou a fazer sucesso na América Latina. Se tivesse criticado provavelmente colocaria em xeque os seus dogmas, uma vez que os mesmos horrores cometidos no sistema da justiça criminal do capitalismo aconteciam no socialismo.

De fato, nos países capitalistas, marxistas e simpatizantes ideológicos fizeram a Criminologia Crítica prosperar desde os anos de 1970; porém, nos países socialistas esse modo de produção do conhecimento desenvolveu uma trajetória intelectual oposta, ou seja, anticrítica. 

Sobre esse fato, Dias & Andrade (1997, p. 25) mostraram que, na evolução da criminologia soviética, existem três períodos:

  1. Entre 1917-1930, houve um período de liberdade de investigação com espaço aberto aos não marxistas, florescendo diversos pontos de vista, interdisciplinaridade e posicionamentos críticos em relação às experiências científicas dos países capitalistas, além de surgirem vários Institutos de pesquisa criminal.
  2. Entre 1930-1956, época do estalinismo, houve um silenciamento quase total da Criminologia. As ciências criminais viveram num período de monarquia do direito criminal, como instrumento de terror ao serviço de eliminação dos inimigos de classe, da industrialização e da coletivização. A Criminologia assumiu feição lombrosiana e logo depois foi perdendo seu caráter sociológico para ser uma área presa ao Direito Criminal.
  3. A partir de 1956, depois um Congresso do Partido Comunista, ressurgiu a Criminologia como ciência fundamental na elaboração de políticas criminais, e nesse sentido foram escutadas as vozes oficiais e as reclamações dos juristas; foram pesquisadas as causas do crime e o problema da reincidência; e foram propostas novas medidas preventivas. Emergiu uma Criminologia utilitarista. Nessa nova fase houve reconhecimento de que os crimes que existiam no contexto socialista representavam resquícios do sistema capitalista: “a conclusão é, pois, a de que é fora de uma tal sociedade que se encontra a explicação. Fora de seu tempo, por um lado: do que se trata é resíduos, subsistentes na consciência dos cidadãos socialistas, do modelo de comportamento capitalista. Fora do seu espaço, por outro lado, como influência da propaganda (o imperialismo) dos países capitalistas, divulgando os seus falsos valores e contribuindo para a difícil erradicação dos resíduos capitalistas”. Diante dessa avaliação, resultou uma Criminologia etiológica, lombrosiana, biopositivista, propondo medidas preventivas, terapêuticas e penais que fossem eficazes para acabar com a influência do Capitalismo ainda residual na cultura soviética.

A Criminologia Marxista a partir dos anos de 1970, na versão do italiano Baratta, foi progressivamente utilizada por pesquisadores ocidentais inconformados com o sistema dominante, sobretudo nos países latino-americanos. Impressionou a Criminologia desse autor pois além de criticar o Positivismo e o Liberalismo, criticou também o próprio Marxismo.

Sobre a Criminologia Positivista, Baratta realizou os seguintes procedimentos críticos:

Em primeiro lugar, abandonou o idealismo positivista da ordem e progresso; e introduziu o idealismo socialista defendo o ideal de uma sociedade pós-capitalista.

De acordo com Baratta (2002, p. 207), a vitória do sistema socialista resultaria na superação do Direito Penal burguês; entretanto, advertiu que:

[...] substituir o Direito Penal por qualquer coisa melhor somente poderá acontecer quando substituirmos a nossa sociedade por uma sociedade melhor, mas não devemos perder de vista que uma política criminal alternativa e a luta ideológica e cultural que a acompanha devem desenvolver-se com vistas à transição para uma sociedade que não tenha necessidade do Direito Penal burguês, e devem realizar, no entanto, na fase de transição, todas as conquistas possíveis para a reapropriação, por parte da sociedade, de um poder alienado, para o desenvolvimento de formas alternativas de autogestão da sociedade, também no campo do desvio.

O idealismo de esquerda do autor postulou que:

Em uma sociedade livre e igualitária; e é longo o desenvolvimento que leva a ela; não só se substitui uma gestão autoritária por uma gestão social do controle do desvio, mas é o próprio conceito de desvio que perde, progressivamente, a sua conotação estigmatizante, e recupera funções e significados mais diferenciados e não exclusivamente negativos (BARATTA, 2002, p. 207).

No idealismo de esquerda do autor:

A sociedade igualitária é aquela que deixa o máximo de liberdade à expressão do diverso, porque a diversidade é precisamente o que é garantido pela igualdade, isto é, a expressão mais ampla da individualidade de cada homem, portanto, que consente a maior contribuição criativa e crítica de cada homem à edificação e à riqueza comum de uma sociedade de  “livres produtores”, na qual os homens nã0 são disciplinados como portadores de papéis, mas respeitados como portadores de capacidades e de necessidades positivas. [...] Marx expressou a definitiva superação do direito desigual, em uma sociedade de iguais, em uma fórmula que queremos relembrar aqui: “de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades” (BARATTA, 2002, p. 208).

Em segundo lugar, Baratta foi radicalmente contra o procedimento etiológico-positivista, mas não deixou de usar a etiologia marxista considerando o Capitalismo como causa distante dos crimes; enquanto as causas próximas seriam geralmente os estigmas e a distribuição desigual do poder criminal, político e econômico na sociedade. 

Em terceiro lugar, Baratta rejeitou o estereótipo de que os desviantes e criminosos seriam criaturas anormais e antissociais. Entretanto, produziu outra imagem, romântica na visão dos adversários, a do criminoso portador de um germe social revolucionário que o militante de esquerda poderia cultivar, nesse caso, desalienando a sua rotulação penal a partir de um intenso trabalho de crítica racional sobre o sistema ideológico-criminal e a estrutura capitalista.

Em outro momento Baratta fez novas adaptações críticas em cima do Liberalismo.

Em primeiro lugar, reconheceu que a Criminologia Liberal fez revolução teórica no século XVIII, contrapondo-se ao Positivismo e autoritarismo, e depois a partir de 1930 fez outra revolução teórica com a Escola de Chicago.

Segundo palavras do próprio autor (BARATTA, 2020, p. 153):

A ideologia substitutiva construída pelas teorias liberais contemporâneas da criminalidade é uma ideologia complexa, que supera os pressupostos éticos e metafísicos que ainda se aninham na ideologia penal da defesa social (princípio do bem e do mal, princípio de culpabilidade etc.) para pôr o controle social do desvio na típica plataforma tecnocrática, reformista e eficientista que caracteriza a mediação política das contradições sociais nos sistemas de máxima concentração capitalista.

Apesar desse reconhecimento histórico, Baratta enfatizou que a Criminologia Liberal não é capaz de iluminar a raiz da criminalidade. Em sua avaliação ideológica, as teorias liberais apresentam por natureza uma crítica rasante sobre a realidade capitalista. 

Em segundo lugar, Baratta fez um processo de releitura materialista do legado liberal. Nesse sentido, observou as situações conflitivas do cotidiano e o processo de criminalização como duas consequências das relações sociais inerentes ao modo de produção capitalista. 

Em terceiro lugar, Baratta inferiorizou a Criminologia Liberal, rotulando-a de ciência idealista, visto que ela acredita no ideal de uma sociedade justa, fraterna, democrática, humana e equilibrada, mantendo as desigualdades econômicas.

Em quarto lugar, Baratta exaltou os instrumentos conceituais e hipóteses teóricas de Marx & Engels. Entretanto, ressaltou que a utilização do marxismo deve ser feita de maneira livre do dogmatismo. Para ele, o marxismo é um edifício teórico aberto, e que como qualquer outro, pode e deve ser continuamente controlado mediante a experiência e o confronto crítico; e sem preconceitos com os argumentos e os resultados provenientes de outros enfoques teóricos.

Em quinto lugar, Baratta afirmou que não basta só criticar a realidade; é preciso operacionalizar mudanças culturais, ficando evidente assim o realismo de esquerda da Criminologia.

No nível descritivo, Baratta reconheceu que existem muitos resultados significativos no âmbito da sociologia liberal contemporânea. Entretanto, por meio do marxismo cultural, diferentemente, a análise criminológica será impelida a um nível mais profundo de reflexão com o objetivo de compreender a função histórica do sistema penal.

A intenção da Criminologia marxista é superar o nível da visibilidade sociológica da desigualdade (a esfera da distribuição dos bens positivos ou negativos), para segundo palavras do próprio autor, penetrar na lógica objetiva da desigualdade entre classes que reside invisivelmente na estrutura das relações sociais de produção. Portanto, a Criminologia deve ser descritiva, reflexiva e propositiva [mas será também etiológica, embora esse detalhe fique mascarado pelo autor e pelos adeptos da Criminologia Marxista!].

Em sexto lugar, Baratta desenvolveu o realismo de esquerda, apontando estratégias pedagógicas; propondo meios alternativos à política institucional dominante; e incentivando a opinião pública a rever os estereótipos criminais, além das definições, teorias e práticas penais correntes na sociedade contemporânea.

Semelhantemente ao que pensam os marxistas gramscianos, considerou o criminalista Baratta que a opinião pública é vulnerável à ideologia burguesa, experimentando vícios e valores alienantes que legitimam o sistema penal, e perpetuam no dia a dia o mito da igualdade penal e da defesa social.

Segundo Baratta, é na opinião pública que se desenvolvem processos de projeção da culpa e do mal e também se realizam as funções simbólicas da pena, analisadas pelas teorias psicanalíticas da sociedade punitiva. Nessa perspectiva, a intenção é reverter as relações de hegemonia cultural através da crítica ideológica, envolvendo racionalidade teórica e educação libertadora.

O resultado da pesquisa crítica deve produzir uma política alternativa de solução de conflitos, confrontando a dogmática penal vigente. Nesse processo, é necessário promover um debate libertador em massa, especialmente com a participação da classe operária (BARATTA, p. 204, 205).


5 CRIMINOLOGIA POSITIVISTA

Dias & Andrade (1997, p. 165) lembraram que as teorias bioantropológicas identificam biotipos de pessoas intrinsicamente predispostas ao crime. Na Criminologia etiológica a explicação da tendência natural depende exclusivamente de variáveis congênitas inalteráveis, onde o delinquente é diferente da pessoa “normal”.

Juarez Cirino dos Santos (s.d., p. 8) considerou na mesma direção que “o discurso etiológico é a marca da Criminologia positivista, que trabalha com um método causal-determinista fundado na pergunta: por que certas pessoas cometem crimes?”.

Baratta (2002, p. 43) concordaria com esse quadro dizendo que “[...] a tarefa da Criminologia etiológica é reduzida à explicação causal do comportamento criminoso, baseada na dupla hipótese do caráter complementar determinado do comportamento criminoso, e da diferença fundamental entre indivíduos criminosos e não criminosos”.

Buscar fatos científicos que podem explicar a criminalidade tem sido e continua sendo uma vertente dominante na criminologia acadêmica. O positivismo nesse quadro epistemológico não se preocupa com o abstrato e improvável, mas sim com o tangível e quantificável. Através da aquisição de conhecimento objetivo, é assumido na pesquisa positivista que a maioria dos problemas sociais pode ser melhor compreendida e tratada. A principal característica da escola positiva é sua ênfase na aplicação dos métodos das ciências naturais ao estudo do comportamento humano (Open University: Introduction to critical criminology, 2019)

As atividades científicas do positivismo seguem no sentido de estabelecer relações de causa e efeito e aumentar a capacidade de prever a criminalidade quando determinados fatores criminogênicos podem ser identificados (Open University: Introduction to critical criminology, 2019)

A metodologia da Criminologia etiológica recomenda os seguintes procedimentos (SANTOS, s.d., p.8-9):

a) Assumir a teoria do consenso sobre valores e intereses como fundamento político da sociedade, o que permite definir o desvio como dissenso individual determinado por patologia ou subsocialização.

b) Trabalhar com o conceito de determinação causal da conduta humana, que reduz o comportamento a mero sintoma revelador da natureza do sujeito, produzido por causas internas desconhecidas e não controladas pelo autor, mas identificáveis por peritos (psiquiatras, biólogos etc.) mediante diagnóstico de causas, prognóstico de comportamentos e prescrição de terapias corretivas, segundo o modelo e a linguagem médica.

c) Pressupor o método indutivo-experimental das ciências naturais, verificando hipóteses induzidas da quantificação da conduta com base em estatísticas criminais. 

d) Responder à pergunta (por que determinadas pessoas cometem crimes?) com a apresentação de propostas de correção pessoal ou de reformas sociais, substituindo assim as penas criminais (fundadas na liberdade de vontade) por medidas corretivas.

Na axiologia da Criminologia etiológica “o castigo dos elementos associais reconfortará os membros das maiorias obedientes à Lei, sancionando as suas proposições de seres normais e morais. A pena tem assim, a função de evitar o castigo” (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 203). A axiologia da Criminologia etiológica acredita também que o criminoso é inimigo da sociedade, cabendo assim às políticas públicas o desafio de promover a guerra contra o crime (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 178).

Entre as teorias mais populares da Criminologia etiológica destacam-se a biológica, a morfológica, a genética, a hereditária e a instintiva.

a) Teoria biológica. A primeira explicação biológica do comportamento humano é a teoria do criminoso nato (LOMBROSO), fundada na hipótese de atavismo, definível como degeneração pessoal identificável por estigmas físicos: o crânio estreito e pomos salientes do assassino, os olhos oblíquos e o nariz grande do estuprador, a fronte fugidia do ladrão etc.

b) Teoria morfológico-constitucional. Pressupõe correlações entre caracteres físicos e tendências psíquicas para determinados delitos: por exemplo, o leptossomático ou ectomorfo (indivíduo magro e alto), possui tendência para o furto, o estelionato etc.; o atlético ou mesomorfo (indivíduo musculoso), possui tendência para a violência pessoal, patrimonial e sexual; ao contrário, o pícnico ou endomorfo (indivíduo gordo) seria sociável e bonachão.

c)  Teoria genética. A teoria mais difundida indica a presença de um Y a mais na estrutura cromossômica individual como responsável pelo comportamento violento (o normal é apenas XY no homem, XX na mulher); essa anomalia cromossômica teria sido encontrada na proporção de 3% a 4% da população das prisões e apenas na proporção de 0,04% da população em geral.

d) Teoria da hereditariedade. Pesquisas de gêmeos idênticos e fraternos pressupõem correlações entre disposições hereditárias e comportamento humano, assim formuladas: se existe a correlação herança/comportamento, então (a) o comportamento de gêmeos idênticos seria concordante e (b) o comportamento de gêmeos fraternos seria discordante. Os dados de pesquisas mais recentes indicam pequena correlação: gêmeos idênticos, concordância em 35% dos casos; gêmeos fraternos, concordância em 13% dos casos. A crítica menciona influências sociais e culturais para explicar a concordância superior do comportamento de gêmeos idênticos em relação aos gêmeos fraternos, desconsideradas nas pesquisas indicadas.

e) Teoria dos instintos. Estudos do comportamento instintivo animal identifica sinais/estímulos inatos (maioria) e condicionados (minoria) responsáveis pelo controle das relações recíprocas, mostrando como a transmissão/captação desses sinais/estímulos pode desencadear ou inibir a agressividade (SANTOS, 2002, p. 10-11).           

A praticologia do programa de pesquisa da Criminologia etiológica desenvolve procedimentos experimentais e laboratoriais, realizando observações antes e depois do crime com abordagens genéticas, neurocerebrais, endocrinológicas, médicas, psiquiátricas e psicanalíticas. Diferentemente da criminologia metafísica, o programa de pesquisa etiológico derruba o mito iluminista de que a pessoa teria liberdade de escolha para praticar ou não o ato criminoso, e como justificativa demonstra a existência de fatores endógenos e exógenos que impedem o livre arbítrio.

5.1 Criminologia etiológica de Enrico Ferri

A ontologia do programa de pesquisa do criminalista Ferri declarou como tarefa essencial estudar as causas, as condições e os remédios dos fenômenos criminais (FERRI, 2006, p. 411). Nessa direção, o criminalista não deve investigar o delito e a pena como entidades exclusivamente jurídicas. Ele deverá pensar na prevenção e repressão do crime, bem como na prisão, tratamento e socialização do condenado.

Segundo Ferri, a criminalidade é uma “planta malfeitora” que cresce com vigor e estende suas raízes profundas exigindo medidas de combate da sociedade que ficarão situadas entre o texto da lei, as sentenças do juiz, a organização das prisões e as medidas preventivas.

O remédio para enfrentar a criminalidade não é moralista, nem burocrática, mas social, e demanda estratégias visando socializar o apenado e ao mesmo tempo melhorar o ambiente social. Nessa perspectiva, o delito não é um dado imoral decorrente da livre escolha; mas um dado bio-físico-psico-social, determinado por fatores “antropológicos, telúricos, sociais; e como tal é um sintoma de patologia individual e social (FERRI, 2006, p. 416).

Considera-se nesse programa de pesquisa que existe a criminalidade atávica, que é por natureza incorrigível; e de outro modo, a criminalidade evolutiva, que pode ser corrigida com a intervenção de uma medicina sociológica.

Ferri explicou que “voltando a nossa comparação com a medicina biológica, na medicina sociológica também as grandes classes de medidas higiênicas (meios preventivos); de disciplinas terapêuticas (meios reparatórios e repressivos); e de operações cirúrgicas (meios eliminatórios), constituem o arsenal que permite a sociedade fazer frente a necessidade permanente de sua própria conservação” (FERRI, 2006, p. 204).

Ferri separou a nova ciência positivista da tradição clássica que justificou “o direito de castigar pelos atos reprováveis dos homens que possuem livre arbítrio ou seja liberdade moral”. Usando essa mentalidade clássica, o Direito Penal reproduz uma crença simplista a respeito da criminalidade. Nesse tipo de abordagem, segundo Ferri:

O [indivíduo] pode querer o bem e o mal, e em consequência se escolhe o mal é responsável de sua eleição e deve ser castigado por ela. E segundo é ou não livre, ou que é mais ou menos nesta eleição que faz de mal, é também mais ou menos responsável e punível (FERRI, 2006, p. 13).

Existem fatores naturais e artificiais que alteram o comportamento humano. Correspondendo a essa premissa a metodologia da pesquisa recomenda observar estímulos ambientais sobre o corpo da pessoa, que depois são interiorizados causando reações nervosas, musculares e cerebrais que não dependem, portanto, das crenças ou ideologias da pessoa para se manifestarem, pois fazem parte de um processo mecânico e biológico.

O café e o chá excitam a produção de ideias; o álcool a doses pequenas excita a vontade, entanto, que se é tomado em doses frequentes e excessivas conduzem a uma degeneração orgânica seguida de debilitação das funções psíquicas, inteligência e vontade. Outro tanto pode decidir-se da ação característica de certos venenos, narcóticos, etc. (FERRI, 2006, p. 20).

Importante destacar que Ferri reconheceu que “cada sujeito tem uma personalidade própria, temperamento e caráter”; “que a personalidade é essencialmente  determinada pela herança físio-psíquica e que depois se desenvolve e se modifica segundo o meio”; “que o ambiente tem grande poder sobre a conduta da pessoa”; “que uma temperatura elevada, um vento siroco, um esgotamento nervoso, como resultado de um excesso de trabalho, um período de digestão laboriosa, e outras causas acidentais têm sobre a energia de nossa vontade e até sobre nossos sentimentos um poder que todos nós temos comprovado por experiência” (FERRI, 2006, p. 20). 

Ferri destacou que “todo homem tem sua maneira própria e especial de responder as influências exteriores que dependem de um modo necessário logo em cada momento de sua vida, destas mesmas condições externas combinadas com o estado fisio-psicológico do organismo” (FERRI, 2006, p.32).

A pesquisa deve demonstrar, portanto, que em muitas situações o indivíduo não age plenamente de acordo com as suas crenças morais. O hipnotismo é um exemplo que faz o indivíduo perder o controle e o livre arbítrio. As tipologias raciais ajudam também na observação das variações do temperamento e da maneira de pensar entre diferentes povos. A Estatística também mostra a influência do meio sobre o comportamento das pessoas. A esse respeito, Ferri avaliou que “a estatística só não é suficiente para provar a inexistência do livre arbítrio; serve de uma maneira incontestável a confirmá-la. De outra parte, essa liberdade moral uma vez admitida, haveria impossível e absurda toda ciência psicológica e social, o mesmo que a suposição do livre arbítrio nos átomos da matéria reduziria a nada toda ciência física e química” (FERRI, 2006, p. 25).

A metodologia da pesquisa valoriza a determinação do meio na definição do destino das espécies. Por exemplo: duas plantas da mesma espécie podem crescer com formas diferentes mesmo respondendo às mesmas causas ou condições ambientais.

A observação empírica nesse programa de pesquisa desenvolve um modelo pluricausal sobre a criminalidade evolutiva. Existem causas físicas (envolvendo ação-reação); psicológicas (incluindo sentimentos, aversões, percepções, etc.); sociais (influenciadas pelos fatores de agregação); e biológicas (correspondendo à luta pela sobrevivência).

Além de aceitar a possibilidade do desajuste familiar e social, esse programa de pesquisa denuncia também a existência de uma seletividade injusta que ocorre no sistema de justiça criminal. Desse modo, além de derrubar o mito da liberdade criminal, Ferri procurou combater o mito da isonomia penal. 

Ferri demonstrou que a Justiça penal é desmoralizada no dia a dia porque não inclui dados científicos sobre a criminalidade e nesse sentido “assegura a impunidade ou a indulgência mais imprevista aos malfeitores perigosos, reservando todas as suas severidades tão desproporcionais como prejudiciais aos que são menos temíveis, aos delinquentes ocasionais” (2006, p. 39).

Em sua avaliação: 1- devem existir critérios científicos para se definir a periculosidade penal do indivíduo; 2- constata-se que os critérios burocráticos e ideológicos vigentes são mais rigorosos sobre os delitos de ligeira importância; 3- por outro lado, ocorrem “dulcificações extraordinárias” na pena para as manifestações temíveis de criminalidade atávica; 4- e de modo simplista o Direito Penal tem como finalidade apenas prender/punir o condenado.

Ferri enfatizou que a justiça penal deve se assentar “sobre o determinismo natural dos atos humanos e, portanto, sobre os dados da antropologia e sociologia criminal, e nesse caso, deve buscar critérios radicalmente diferentes e se desenvolver em conjunto adequado de instituições e mecanismos judiciais e administrativos (FERRI, 2006, p. 43)

A axiologia positivista desse programa de pesquisa adverte que “quanto se enganam aqueles que nos acusam de fazer do Estado um ídolo e de anular em seu proveito todos os direitos dos indivíduos. Na verdade, o que se busca é o “equilíbrio entre os direitos do indivíduo que comete um delito e os da sociedade dos homens honrados” (FERRI, 2006, p. 223). Também não é cabível a acusação de que “a escola positiva desconheça os direitos da pessoa humana; ou que procure “fazer do delinquente um instrumento em mãos da sociedade”; ou então que pretenda afirmar que “ o indivíduo está feito para o Estado e não o Estado para o indivíduo”.  

Ferri (2006, p.224) reforçou a sua preocupação humanista da seguinte forma:

[...] a Idade Média viu unicamente o delinquente, e a escola clássica considera só ao Homem. Para conformar-se a verdade experimental se deverá considerar ao homem delinquente, equilibrando assim os direitos inegáveis do Homem, que ainda no delinquente subsistem, e os direitos não menos inegáveis da sociedade honrada que sofre a ameaça do delinquente [grifo nosso].

Segundo Ferri, além de impor deveres sobre os indivíduos, também “impomos ao ser coletivo obrigações consideráveis e permanentes em proveito dos indivíduos, ao dar a preeminência à prevenção, e dizer, ao melhoramento do direito social, sobre a repressão violenta e demasiado cômoda, que nós medimos ademais, sempre pelas regras da justiça social [...]” (FERRI, 2006, p. 224).

Como resultado desses posicionamentos, Ferri propôs um código de procedimentos sociais a ser utilizado no Poder Judiciário baseado em três princípios gerais:

1- é preciso restabelecer  o equilíbrio dos direitos e das garantias entre o indivíduo que deve ser julgado e a sociedade que julga, obviar os exageros do individualismo introduzidas pela escola clássica; 2- o ofício do juiz penal não é tampouco comprovar o grau  de responsabilidade moral do delinquente, senão uma vez provada sua culpabilidade material ou responsabilidade física, fixar a forma de preservação social mais apropriada ao processado, segundo a categoria antropológica a que pertença; 3- deve existir continuidade e solidariedade entre as diferentes funções práticas de defesa social desde a polícia judicial até à sentença e sua execução (FERRI, 2006, p. 229).

A teoria da complexidade desse programa de pesquisa informa que “a biologia e a sociologia em lugar de estar uma com respeito a outra em uma relação de sucessão ou de verdadeira e rigorosa independência, são, pelo contrário, concomitantes e paralelas, tendo em conta que a vida animal se manifesta desde seus começos em uma dupla série de organismos individuais e sociais” (FERRI, 2006, p. 45).

Ferri considerou que os seres vivos buscam defender a sua vida individual e reagem com agressividade ou violência física quando são ameaçados. Organizados em colônias, os indivíduos passam então a reagir em nome da coletividade. Chama atenção que quanto mais elevados ou sofisticadas se tornam as organizações animais, a defesa social deixa de ser uma iniciativa puramente individualizada para ser coordenada e até mesmo assumida primeiramente por um chefe ou pelo Estado.

Muitos mamíferos herbívoros vivem em sociedade e existe sempre um indivíduo que exerce alguma autoridade sobre os demais, que os guia ou defende: tal fato acontece entre os elefantes e os cavalos. Entre os humanos, o Estado passou a assumir o controle mais amplo da força, da violência e da resistência. 

Ferri considerou que a defesa social tem a ver com a existência do organismo social.  “A sociedade como organismo coletivo permanente sofre todos os dias agressões criminais contínuas, não interrompidas”. Diante dessa realidade, o Direito Penal segue uma direção não recomendada pela Criminologia positivista. Ou seja, não garante, e não promove a defesa social, pois não considera as condições concretas da “existência social” (FERRI, 2006, p. 67).

Além disso, Ferri advertiu que “o direito de castigar não pode ser assimilado ao de defesa”. Segundo Ferri, quando se fala de direito de defesa o alvo não é o Direito Penal, mas a sociedade. Ele concluiu nesse sentido que a defesa social não é o fundamento e a alma da justiça penal. E nem deve a defesa social ser confundida com a defesa do interesse de uma classe dominante.

Infelizmente, segundo Ferri, o Direito Penal em nome da sociedade reage contra o indivíduo que ora atenta ao interesse do Estado, outras vezes, incomoda o interesse da classe dominante.

Sendo mais crítico, Ferri afirmou que:

A última objeção contra a ideia de que a defesa social é a razão da função penal é afirmar que o ofício das leis penais não tem sido até aqui defender a sociedade, e dizer a quantos grupos a compõe, senão que tem sido proteger particularmente os interesses daqueles em cujo favor está constituído o poder político, ou o que é igual, da minoria (FERRI, 2006, p. 77).

Na visão desse programa de pesquisa, o Direito preserva mais a soberania do Estado e menos a existência livre da sociedade. Também o caráter punitivo das penas é considerado um dogma e alimenta o otimismo de que depois de cumprido cronologicamente o castigo o sujeito vai estar apto à convivência social. Outro aspecto social marcante do direito consiste na sanção legal que é o seu conteúdo necessário e que constitui o único critério positivo” (FERRI, 2006, p. 78).

A palavra justiça, em seu sentido positivo, expressa o conjunto e a ideia geral das sanções sociais que em todo tempo e lugar seja pelo costume ou pela lei, mas sempre com uma autoridade coativa, fixam e protegem as regras do direito determinadas pelas condições especiais da existência social (2006, p. 73).

Aprofundando a contribuição científica da Criminologia positivista, Ferri introduziu um novo conceito. Além de usar o conceito de criminalidade atávica (decorrente da herança maldita e criminosa dos antepassados), propõe a criminalidade evolutiva que tem fundamento psicológico-social (FERRI, 2006, p. 79). A primeira criminalidade “atávica” é antihumana; a segunda “criminalidade evolutiva” é antissocial (em sentido estrito).

Na sequência, a praticologia desse programa de pesquisa propõe uma política criminal e uma penalogia que leve a sério o enfrentamento da criminalidade evolutiva, sendo necessário superar a visão cronológica e burocrática da Justiça, e ao mesmo tempo rejeitar os privilégios distribuídos tradicionalmente à classe dominante.

Segundo Ferri:

No porvir da justiça penal, a ciência deve indicar e impor um predomínio sempre crescente, até chegar a ser exclusivo, dos interesses permanentes e comuns da coletividade inteira, reduzindo ao mínimo quando não eliminando completamente a parte que concerne aos interesses e privilégios de classe, e transformando assim a justiça penal de um mecanismo de dominação política que é, em uma clínica social preservadora (FERRI, 2006, p. 82).

Ou seja, Ferri desenvolveu o discurso da medicalização e socialização das penas. Consequentemente, não basta prender o indivíduo, é preciso tratar/cuidar e socializar o apenado, mas além disso é preciso reformar a sociedade e as instituições públicas usando o viés positivista.  

A justiça penal não é só uma função de seleção; é melhor ou deve ser uma função clínica preservativa; e de outra parte, o ponto de vista puramente selecionado (darwinismo) deve ser completado tanto na ordem social como no biológico, pelo ponto de vista da adaptação ao meio (lamarckismo); de sorte que a influência do meio social na patogenia do delito deve ser de grande valor, quando se trata da sanção social contra o delito, da readaptação do condenado à vida social (FERRI, 2006, p. 101).

A proposta política apresentada por Ferri é que a Justiça Penal seja reformada, da seguinte forma:

Despojando-se em princípio de qualquer outro caráter que não seja o de uma função de preservação social, deve considerar o delito como um efeito de anomalias individuais e como um sintoma de patologia social, que exige necessariamente que se afaste dos indivíduos antissociais, isolando assim os elementos infecciosos e saneando o meio em que se desenvolvem os germes (FERRI, 2006, p. 102).

Ferri propôs não só reinserir o condenado na sociedade, mas também melhorar a qualidade do meio, pois a sociedade é a causa externa ou exógena da criminalidade. O meio deve ser saudável, inclusivo, justo, fraterno, civilizado, etc. Não pode ser um espaço criminógeno.

O projeto político é valorizar a função defensiva da sociedade não usando unicamente o castigo, mas sobretudo medidas sociais, morais e pedagógicas. “A palavra pena implica sempre um resto das ideias medievais de expiação e de retribuição como objeto final, e de dor ou de tortura como meio de consegui-lo, meio que acaba por chegar a ser seu fim mesmo (FERRI, 2006, p 103.).

Para mudar essa tradição penalista, Ferri afirmou que “de hoje em diante, pelo contrário, a função social deverá ter por fim exclusivo e por só efeito o bem-estar da coletividade, posto que uma das primeiras condições para trabalhar nela é o respeitar a personalidade humana”. Ele sugeriu deixar de lado os termos delito e pena, e usar “ofensas e defesa”; ou melhor ainda, “quando os dados científicos sobre os dados da delinquência tenham passado a consciência comum falar somente de enfermidade moral e clínica preservativa” (FERRI, 2006, p. 105).

Outro procedimento importante seria jogar fora a ideia de responsabilidade moral “que é impugnada pela psicologia positiva” (FERRI, 2006, p. 105). Em seu lugar foi sugerido o conceito de responsabilidade social. Ferri explicou que o delito será considerado na ciência positivista um fenômeno da “patologia individual e social” (FERRI, 2006, p 115). Dessa forma a modernização da Justiça deve adotar a premissa de que “o Homem é um ser social, que não vive só, isolado, e por isso é responsável pelas ações e efeitos resultados no mundo. “Isto equivale a dizer que todo Homem é sempre responsável de qualquer ação antijurídica realizada por ele, unicamente porque e entanto vive em sociedade” (FERRI, 2006, p. 120).

A praticologia desse programa de pesquisa lembra que existem diferentes formas de reação social contra as ações antissociais:

  1. Existem meios preventivos: inspirados nas regras de higiene. Estes meios, considerados de uma maneira abstrata poderiam não ser estimados como uma forma de sanção ou de reação, porque são anteriores aos feitos antissociais. Incluem medidas de policiamento
  2. Existem meios reparatórios: que visam reparar os danos causados à vítima e à sociedade
  3. Existem meios repressivos: que incluem prisão em colônias agrícolas, para adultos; para menores o internato; a multa; e a suspensão do exercício de um cargo ou profissão liberal. Segundo Ferri, deveriam ser estes meios: 1-temporários; 2- aplicados em delitos poucos graves; 3-e quando os delinquentes exigissem realmente pouco cuidado social.
  4. Finalmente, existem os meios eliminatórios: que são melhor aplicados nos crimes atávicos e nos casos de grave criminalidade envolvendo criminosos natos, loucos e habituais. Podem ser usadas: 1- a pena de morte; 2- o manicômio para os loucos criminosos; 3- e as colônias agrícolas.

Em seu programa de pesquisa Ferri propôs medidas direcionadas ao desencarceramento. Nas palavras do autor “[...] desembaraçar os Códigos, tribunais, e prisões, destes infinitamente pequenos do mundo criminal, suprimindo a detenção, [...] e abrindo um pouco as malas desta rede de proibições e de penas, que aprisiona despiedosamente aos pequenos contraventores e delinquentes, sendo demasiado elástica para os malfeitores perigosos” (FERRI, 2006, p. 255).

O modelo de prisão celular também deveria ser modificado, pois sua natureza isola e oprime a personalidade humana. Em seu lugar, deveriam ser criadas colônias agrícolas e industriais onde o apenado poderia apreender a se comportar na rotina da comunidade. Seria também necessário que a nova Justiça penal posivista adotasse os conhecimentos produzidos pelo ditame pericial, ou seja, “pela reunião e evolução metódicas das comprovações experimentais acerca das circunstâncias materiais do delito (provas físicas, químicas, mecânicas, caligráficas, profissionais, toxicológicas, etc.) e sobretudo pelas provas individuais e sociais relativas à pessoa do delinquente: provas antropológicas, psíquicas e psicopatológicas (FERRI, 2006, p. 268).

Ferri afirmou que acusadores públicos e advogados “[...] deveriam possuir o conhecimento técnico, não da história do direito, ou do direito romano, ou civil, se não, da biologia, da psicologia; em suma: das ciências naturais e sociais de onde há surgido na ciência nova da sociologia criminal” (FERRI, p. 277).

Finalmente, Ferri considerou que a liberação condicional e até definitiva do apenado deveria estar pautada nos conhecimentos fisio-psicológicos do apenado, no exame pessoal e não burocrático sobre documentos médicos e assistenciais. Seriam os exames decisivos para soltar ou não o apenado, independentemente de a pena judicial estar ou não finalmente cumprida, pois o mais importante é saber se o indivíduo está apto para retornar ao convívio social. Isso deveria ser preponderante e poderia inclusive se sobrepor ao tempo burocrático da execução estabelecida pelo Código Penal e Tribunal de Justiça. Essa medida de segurança social deveria ser preponderante. Nesse quadro modernista o  juiz precisa se render aos dados científicos e estatísticos e graduar os delitos, segundo os graus da liberdade moral, devendo assim calcular uma infinidade de elementos e de fatores que se encontram fora do indivíduo; por exemplo: o juiz deve saber a temperatura, a latitude, e os metros cúbicos de ar respirável e disponíveis ao indivíduo no momento do crime (por exemplo, saber se ele vivia numa guarita miserável, ou se ele se amontoava dentro de um caminhão carregado de adultos e crianças; também deveria aprofundar o aspecto social e conhecer as condições lamentáveis do meio familiar e social; também precisaria fazer avaliação física, fisiológicas, psíquica e social periodicamente no condenado.

Por último, é preciso reconhecer na contextualização desse programa da pesquisa que existe uma diversidade de raças e de tipos sociais para os quais serão dedicadas aplicações punitivas e preventivas especiais. Nesse sentido, Ferri explicou que “as medidas de defesa social devem reduzir-se a reparação do dano [...] ou ao isolamento por tempo indeterminado em manicômios criminais ou em colônias agrícolas com uma disciplina diferente segundo as diversas categorias antropológicas dos isolados” (FERRI, 2006, p. 418).


DISCUSSÃO

Os três programas de pesquisa da Criminologia apresentados nesse estudo mostram que existe uma separação abismal entre o valor da abordagem etiológica e o valor dos outros paradigmas.

Na agenda de trabalho da Criminologia crítica, por exemplo, Dias & Andrade (1997, p. 177) lembram que “não se pode esquecer que muito dos postulados de fundo daquelas teorias [bioantropológicas] continuam a presidir ao quadro de representações coletivas e aos estereótipos mais divulgados em relação ao crime e ao criminoso. E, por isso, [estão] a pré-determinar as soluções práticas da política criminal”.

Segundo os mesmos autores:

É o que acontece com o modelo médico de resposta ao crime e ao criminoso e com a ideologia de tratamento que lhe preside. Forma-se uma retórica de guerra ao crime cada vez mais difundida na mentalidade coletiva e nos discursos políticos. Por analogia, considera-se que o delinquente é um vírus que importa erradicar, ou um inimigo, que importa combater (DIAS & ANDRADE, 1997, p.178).

Outros adversários da Criminologia biológica afirmam que “a personalidade é função de vários fatores, apenas um dos quais é a hereditariedade. As famílias criminosas somente o são pelo ambiente contaminador em que vivem seus membros” (ZAFARONNI & OLIVEIRA, 2010, p. 321). Nessa linha de raciocínio, “o homem vive numa atmosfera herdada, mas pode sublimar tendências e dar vazão às inclinações negativas pela prática do esporte, pela produção artística ou literária. O atleta que se exaure nos exercícios físicos de cada dia perde ali a agressividade” (ZAFFARONI & OLIVEIRA, 2010, p. 322).

Na opinião dos mesmos autores (ZAFFARONI & OLIVEIRA, 2010, p. 290): 

Não há evidência alguma de que violência e vingança sejam fatalismo biológico. A verdade é que não existe evidência deste destino biológico da espécie. Muitos são os comportamentos que historicamente foram considerados condicionados ou naturais, quando eram produto da cultura, e frequentemente, como recurso de poder, pretendeu-se que eles eram instituições naturais ou padrões culturais.

Na agenda de trabalho da Criminologia pós-crítica, segundo Salo de Carvalho, constam itens significativos do ponto de vista epistemológico como abertura do conhecimento; não-dogmatismo; transdisciplinaridade; atitude cética em relação ao Positivismo; humanização do saber criminológico com maior participação dos sujeitos envolvidos; apelo à complexidade; fim das grandes narrativas, etc. Entretanto, nessa mesma agenda de trabalho Salo de Carvalho (2010, p. 58) afirmou que:

É impossível apreender as causas e as origens da delinquência, pois os inúmeros fatores, as variáveis e os acasos que atuam nas e sobre as diversas pessoas que cometem os mais diferentes atos em circunstâncias absolutamente distintas de tempo, local, e forma de agir – fatores que tornam inconsistente qualquer individuação – inapropriado propor fins específicos e universais aos mecanismos da pedagogia e da moral punitiva. Se o evento delitivo é a experiência única e não repetível ‘na vida de quem o praticou e o sofreu, igualmente as técnicas punitivas quaisquer que sejam terão distintos impactos nas pessoas (des) cumprindo sempre seus objetivos, por mais nobres que sejam.

Com essa afirmação não se admite na Criminologia Pós-crítica do autor Salo de Carvalho a contribuição etiológica e a possibilidade de ser o crime um comportamento de origem biológica.

Salo de Carvalho preferiu concordar com Nietzsche:

Portanto, o que é a Verdade (do crime, do criminoso, da pena?). Responderá Nietzsche: um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que após longo uso parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões das quais se esquece o que são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível [...].

Em outra passagem do seu livro, Salo de Carvalho (2010, p. 60) volta a dizer em que é importante o olhar transdisciplinar; também recusa “qualquer sistema fechado de pensamento”; e aponta a necessidade de “uma troca dinâmica entre as ciências exatas, as ciências humanas, a arte e a tradição”. Contudo, em outra passagem da mesma obra considera Salo de Carvalho que “a ruptura com as práticas criminológicas neopositivistas parece pois essencial, juntamente com a crítica às leituras advindas de linha obsoleta da própria criminologia crítica fundada em causalismos sociais e econômicos” (CARVALHO, 2010, p. 192).

Na agenda de trabalho da Criminologia Pós-crítica Salo de Carvalho (2010, p. 34) incluiu também a utilização da teoria pós-moderna “demonstrando que para problemas complexos é fundamental construir mecanismos complexos de análise, avessos às respostas binárias, unívocas e universais, bem como alheios à pretensão de verdade inerente à vontade do sistema que orienta os modelos científicos modernos”.

 A aversão à Criminologia positivista-etiológica foi mantida por Salo de Carvalho levando em conta os seguintes aspectos (CARVALHO, 2010, p. 7):

  1. Essa Criminologia é demarcada por saberes sanitaristas psiquiátricos e psicológicos;
  2. Tem feição essencialmente institucional;
  3. Reproduz a concepção patológica do crime e do criminoso e em decorrência disso propõe a sua demonização;
  4. Por último, reproduz perspectivas causal-deterministas

Salo de Carvalho descarta a participação da Neurocriminologia em seu projeto transdisciplinar pois:

As neurociências revitalizam o positivismo criminológico e ao criarem a especialidade neurocriminologia mantêm viva a rede de distribuição de estigmas do sistema punitivo. O retorno à biologia como explicação do comportamento humano e o uso da cultura para projetar qualidades negativas a determinados grupos (raciais, étnicos, sociais, religiosos e ou econômicos), resolvem duplo problema da tradição positivista: os criminosos nascem criminosos como pela cultura do grupo se tornam criminosos. Conforme assinala Jock Young, a fusão dos essencialismos culturais e biológicos permite condições ideais para o exercício de demonização bem sucedida e fabricação de monstros.

A Criminologia crítico-marxista de Alessandro Baratta (2002), da mesma forma, descartou a importância da abordagem etiológica, colocando em seu lugar os processos sociais de criminalização e de estigmatização, bem como a seletividade do sistema penal em relação a determinados sujeitos.

A rejeição do modelo etiológico da parte desse autor tem a seguinte motivação:

Uma investigação das causas não é procedente em relação a objetos definidos por normas, convenções ou valorações sociais e institucionais. Aplicar a objetos deste tipo um conhecimento causal-naturalista, produz uma “reificação” dos resultados dessas definições normativas, considerando-os como “coisas” existentes independentemente destas. [...] os “criminosos” são, sem dúvida alguma, objetos deste tipo: resultam impensáveis sem intervenção de processos institucionais e sociais de definição, sem a aplicação da lei penal por parte das instâncias oficiais e, por último, sem as definições e as reações não institucionais (BARATTA, 2002, p. 210).

Mas ao contrário do que afirmam tradicionalmente os adversários, o programa de pesquisa etiológico tem procurado desenvolver uma Criminologia da complexidade com a ajuda da Psiquiatria forense, da Neurocriminologia, e do Direito Penal. Uma característica relevante dessas novas abordagens é que continuam sendo etiológicas, mas não se restringem à visão clássica de uma causa representada por um único elemento biológico ou social independentes de outros fatores. As novas abordagens nessa área propõem uma causalidade relacional, interativa, ou seja, dois ou mais elementos ou disciplinas encontram-se em relação de simultaneidade, constituindo novos olhares e saberes complexos sobre a realidade social. A causa do crime é, portanto, uma inter-relação de fatores, sendo por isso multifatorial. Existem inclusive, causas distantes e próximas.

Na Psiquiatria forense, por exemplo, a integração de vários fatores ou disciplinas, especificamente, Medicina, Psicologia e Sociologia traz o conceito de “transtorno de personalidade antissocial” (TPAS).

Não será mais a loucura - como acontecia nos primórdios da psiquiatria - e sim uma classe particular de transtorno, o “transtorno de personalidade antissocial” (TPAS), o que se converterá em peça-chave da ampliação do universo de objetos compreendidos nos processos contemporâneos de medicalização do crime. A principal característica dessa conduta anormal seria a criminalidade violenta (MITJAVILA & MATHES, 2012, p. 1378; 1385).

O mesmo conceito considera que “a violência humana é consequência da perversão dos valores dominantes e do desenvolvimento psicológico provocado por graves perturbações na interação Mãe-Filho-Pai”. Nesse conceito, “a família e, fundamentalmente, em condições de pobreza, tende a ser observada como espaço privilegiado para o desenvolvimento do TPAS e da criminalidade que dele decorreria” (MITJAVILA & MATHES, 2012, p. 1389).

Usando esse conceito, pesquisa realizada por Rigonatti (1999) envolvendo um grupo de condenados por homicídio e estupro no Brasil concluiu que “não foram achadas correlações entre doença mental e crime; porém, os resultados apontam para a alta prevalência do transtorno de personalidade antissocial, que estaria presente em 96% dos homicidas e 84% dos estupradores” (MITJAVILA & MATHES, 2012, p. 1386).

A configuração do TPAS inclui os seguintes aspectos:

  1. Indiferença e insensibilidade diante dos sentimentos alheios.
  2. Atitude persistente de irresponsabilidade e desprezo por normas, regras e obrigações sociais estabelecidas.
  3. Incapacidade de manter relacionamentos estabelecidos.
  4. Baixa tolerância à frustração.
  5. Baixo limiar para a deflagração da agressividade e violência.
  6. Incapacidade de experimentar culpa.
  7. Grande dificuldade de aprender com a experiência ou com a punição que lhe é aplicada.
  8. Tendência a culpar os outros e a apresentar argumentações e racionalizações plausíveis para explicar um comportamento que leva o portador desse tipo de transtorno a entrar em conflito com a sociedade (MITJAVILA & MATHES, 2012).

Na Neurocriminologia, por sua vez, pesquisa realizada recentemente por Adrian Raine autor do livro The Anatomy of Violence (A Anatomia da Violência) “descreveu como funciona o cérebro de um indivíduo violento e como uma série de tratamentos pode prevenir esse tipo de comportamento” (SANTOS, 2018, p. 61). De acordo com esse pesquisador, “a Neurocriminologia pode ajudar a explicar os casos extremos de violência, pois é uma nova disciplina que está começando a se desenvolver [...] e envolve a aplicação de técnicas da neurociência para entender as causas do crime” (apud SANTOS, 2018, p. 61). Na explicação desse mesmo cientista, “é importante juntar tudo o que foi aprendido nos últimos anos - a genética, as técnicas de imagem cerebral, a neuroquímica, a psicofisiologia e a neurocognição - para explicar porque algumas pessoas crescem e se tornam criminosos violentos [...]” (SANTOS, 2018, p. 61).

A Neurocriminologia considera que “as formas diferentes de violência não têm a mesma base cerebral, conforme evidenciaram estudos com psicopatas em que os criminosos não têm empatia nem remorso” (SANTOS, 2018, p.  62). Estudos nessa área demonstraram que os psicopatas apresentam “um baixo funcionamento da amígdala, que é o centro emocional do cérebro” (SANTOS, 2018, p. 62). Outras pesquisas revelaram, inclusive, que nos indivíduos portadores de psicopatia a “estrutura física dessa área cerebral é 18% menor do que no resto da população da sociedade” (SANTOS, 2018, p. 62). Por esse motivo, “com o centro emocional reduzido e sem funcionar direito, os psicopatas passam a não sentir medo. E é por isso que eles quebram as regras da sociedade, pois não têm medo da punição” (SANTOS, 2018, p. 62).

Entretanto, a Neurocriminologia chama a atenção para o fato de que:

Nem todo o comportamento violento pode ser explicado por disfunções no cérebro, devido a causas multifatoriais, pois na verdade, encontrar as causas da violência é muito mais complexo do que isso. [...] A amígdala é uma peça, o córtex pré-frontal é outra peça, e certamente há outras áreas cerebrais envolvidas. Mas também há outros tipos de peças; não é só a Biologia. Fatores sociais também são importantes. Desemprego, pobreza, preconceito racial, maus tratos paternos e más condições de habitação e educação têm seu papel nisso; e, inclusive, podem afetar o desenvolvimento cerebral. Acontece que por décadas os pesquisadores têm estudado só essas peças sociais, mas agora estamos descobrindo as peças biológicas do quebra-cabeça e o próximo desafio será colocar essas peças juntas (SANTOS, 2018, p. 63).

No Direito Penal, existem também algumas publicações que mostram a importância da Criminologia da complexidade, dentre elas, uma dissertação da Faculdade de Direito, da Universidade de São Paulo (USP), intitulada “Pedofilia: aspectos clínicos, éticos e forenses”, da autora Jessica Almeida (2014). A pesquisa dessa autora demostrou que a prisão de pedófilos condenados pela Justiça que cometerem crime sexual pode ser direcionada ao conhecimento clínico com a utilização de uma abordagem interdisciplinar, juntando-se a Medicina Forense, a Psiquiatria Forense, a Psicologia Jurídica, a Dogmática penal e a Bioética. A pergunta que se pretendeu responder nesse programa de pesquisa é se são necessárias ou não medidas terapêuticas para o prisioneiro portador de transtorno pedofílico.

A ontologia desse programa de pesquisa defendido na Pós-graduação da Faculdade de Direito da USP, seção Penal, considerou que a pedofilia é um tema complexo e multifacetado; o que justifica a interdisciplinaridade visando acompanhar clinicamente o indivíduo portador de “distúrbio parafílico”.

A metodologia dessa pesquisa da USP desenvolveu uma análise tridimensional da saúde conforme recomenda a Organização Mundial (OMS) integrando aspectos biológicos, sociais e psicológicos nas políticas de bem-estar dos indivíduos, compondo finalmente um olhar biopsicossocial sobre a realidade do tema.

Foram realizadas entrevistas, principalmente com os agentes de saúde (médicos, psicólogos, psiquiatras); observação participante; e pesquisa bibliográfica e documental a respeito do tratamento clínico dedicado aos pedófilos (ou portadores de transtorno pedofílico).

A axiologia da pesquisa destacou como valor central a dignidade da pessoa, e propôs medidas clínicas alternativas ao apenado respeitando a livre escolha individual com a oferta de tratamento clínico voluntário.

A teoria de base dessa pesquisa se apoiou na interação ou diálogo entre o conceito de transtornos mentais, sexualidade humana, Direito Penal e bioética. Consequentemente, as medidas alternativas e eticamente defensáveis em favor do bem-estar e do desenvolvimento humano do apenado incluem: 1- voluntariedade do tratamento; 2-abordagem terapêutica interdisciplinar; 3- envolvimento e participação da família; 4-promoção de psicoterapia de grupos; 5- criação de centros especializados destinados à terapia dos pedófilos apenados; e 6- realização de campanhas educativas sobre o assunto, criticando mitos, enfraquecendo estigmas, e destacando a importância do tema dentro e fora dos presídios na perspectiva de uma análise clínica e social integrada.

Finalmente, o contexto delimitado por esse programa de pesquisa observou que existe uma história social e científica que desumaniza a pessoa do pedófilo; “circunstância que avaliamos ser inadequada e bastante perigosa”, conforme escreveu a autora da dissertação (ALMEIDA, 2014, p. 18).

Também foi utilizada a Criminologia clínica da inclusão social, que aborda o sujeito em seu contexto individual e social, entendendo que a prática da pedofilia tem rejeição social intensa, porém, não se admite nesse programa de pesquisa o uso de estereótipos comuns na dogmática jurídica (chamados frequentemente de monstros, de criaturas anormais, de predadores sexuais, etc.), que atrapalham o progresso da Criminologia sobre esse tema e condenam o pedófilo a uma eterna exclusão e fracasso existencial.


CONCLUSÃO

O objetivo da Criminologia da complexidade é conhecer não só a variabilidade do objeto de estudo mas também os diferentes fatores que determinam a sua ocorrência na sociedade, utilizando para isso novos arranjos teóricos híbridos, sintéticos, pluridimensionais, ou integradores do conhecimento que ajudem na produção de políticas públicas voltadas à prevenção do crime; na pacificação da sociedade; na humanização das penas; no tratamento dos condenados; e na reinserção social dos ex-presidiários. 

O desafio transdisciplinar da Criminologia da complexidade não é produzir uma síntese fechada do conhecimento; nesse sentido deve propor um método refinado que incentive a abertura dos saberes e a dialogicidade entre os sistemas programáticos disponíveis.

Na Criminologia da complexidade, os programas de pesquisa já existentes preservam até certo ponto a sua integridade epistemológica, mas realizam a dialética entre a estrutura ordenada e a desordem externa trazida pelos dados empíricos ou pelas críticas dos programas adversários. Nesse processo, surgem inevitavelmente reformulações progressivas dentro e fora de cada programa de pesquisa.

Nesse paradigma, é o pesquisador que constrói o ambiente de conversação entre os programas conflitantes, fazendo com que cada um deles se torne disposto ao diálogo, com a preocupação virtuosa de ligar o que se encontra desligado; de juntar o que se acha disjuntado. Nesse contexto, o pesquisador coordena a mediação do conhecimento, produzindo um ambiente empreendedor favorável para que os programas de pesquisa tenham igual chance de participação e de diálogo.

O resultado do processo dialógico usando a mediação do conhecimento tem o propósito de alcançar o equilíbrio das ideias ou a convergência das abordagens conflitantes a fim conhecer novos temas emergentes da realidade ou mesmo reeditar pelo olhar da complexidade as análises tradicionais já existentes.

A Criminologia da complexidade procura aperfeiçoar e ampliar os laços de solidariedade minimamente existentes entre a Biologia, o Direito Penal, a Sociologia, a Ética, a Psicologia, a Política criminal, entre outras áreas.

Com essa finalidade, as Criminologias crítica e pós-crítica podem impedir que a Criminologia etiológica oriente práticas nazistas e antiéticas. Mas a Criminologia etiológica não pode tolerar, de outro modo, que o pesquisador ignore a natureza biológica do ser humano.

Também, na contramão da Criminologia crítica, a abordagem etiológica condena a demonização da Biologia, lembrando que Direito e Medicina já praticam há muito tempo uma solidariedade histórica construtiva, especialmente quando a Psiquiatria forense avalia se o criminoso é digno de ser ou não responsabilizado penalmente.

A respeito dos laços históricos entre Medicina e Direito Penal é necessário recordar que:

[...] as pesquisas em torno do tema confirmam a importância que os laudos psiquiátricos assumem para as decisões judiciais em matéria penal, uma vez que a maior parte dos magistrados tenderia a aceitar como válidos os resultados das avaliações realizadas pelos peritos e a emitir suas sentenças de conformidade com eles. Trata-se de um indicador bastante específico da confiança que o poder judiciário deposita na profissão médica, confirmando assim, uma aliança de larga data entre ambos os universos (MITJAVILA & MATHES, 2012, p. 1390).

As atividades do programa de pesquisa da Criminologia da complexidade começam com a interação dos programas já existentes, fiscalizando-se mutuamente.

Esse diálogo crítico numa espécie de check and balance ético não se acomoda, uma vez que o pesquisador promove a construção de novas organizações transversais ou unidades epistemológicas híbridas, transdisciplinares, que devem ter obrigatoriamente alguma utilidade social.

O processo dialógico do conhecimento depende da cooperação dos programas auxiliares. Ao contrário, não havendo interatividade construtiva e real abertura do conhecimento entre as unidades epistemológicas invocadas dificilmente a Criminologia da complexidade poderá progredir e atender à expectativa transdisciplinar.

A ontologia do programa procedimental de pesquisa da Criminologia da complexidade pode conciliar inicialmente a Biologia com a Sociologia, o Direito Penal, a Psiquiatria, a Psicologia, a Ética e a Ciência Política (RIVERO, 2016). Nesse sentido, a metodologia deve estabelecer técnicas próprias a fim de derrubar obstáculos não só epistemológicos, ou conceituais, mas também políticos, devido às “relações de poder e às disputas que isolam os campos disciplinares” (RIVERO, 2016, p. 263).

Acompanhando a proposta integrativa do conhecimento nos termos do filosofo Edgar Morin, a Criminologia da complexidade não pretende estudar fragmentos soltos deixados pelas ciências mestras e procura, ao contrário, realizar um esforço conjunto de reunificação do saber, sintetizando diferentes abordagens na busca de uma unidade epistemológica transdisciplinar (RIVERO, 2016, p. 72).

A axiologia da pesquisa deve refutar a hiperespecialização do conhecimento (RIVERO, 2016), acreditando nesse sentido que estamos próximos do ideal transdisciplinar, conforme sugerem acontecimentos recentes “que têm contribuído para que cada vez mais se desenvolvam abordagens integradoras” (RIVERO, 2016, p. 73).

Com a teoria da complexidade o pesquisador analisa as causas do comportamento criminoso que precisa ser reconhecido como um fenômeno multifatorial e circunstancial (RIVERO, 2016).

Segundo o filósofo Edgar Morin:

Complexus significa o que foi tecido junto; de fato, há complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico), e há um tecido interdependente, interativo e retroativo entre o objeto de conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si. A complexidade é, portanto, a união entre a unidade e a multiplicidade e produtos são necessários à sua própria produção (ESTRADA, 2009, p. 90).

Na praticologia da Criminologia da complexidade o roteiro de trabalho inclui algumas tarefas especiais (RIVERO, 2016):

  1. Estudar não apenas o crime que é resultado da imputação penal e dos valores culturais de uma época, mas principalmente a violência, o comportamento agressivo e a contribuição dos fatores individuais e sociais que causam conflitos.
  2. Evitar na pesquisa a exclusividade dos dados penais, judiciários, policiais, burocráticos, pois é fato notório que existe seletividade nas instituições ao estigmatizar o indivíduo (geralmente pobre e negro) como criminoso e delinquente. Em compensação, a Criminologia da complexidade deve estudar mais profundamente os comportamentos violentos, observando a interação do indivíduo com a família e a comunidade.
  3. No campo jurídico, a pesquisa deve apontar a existência da complexidade do crime, havendo diversas situações e variáveis que atuam na ocorrência do mesmo tipo penal.
  4. Deve-se garantir a participação da Biologia e Psicologia no estudo dos tipos penais.
  5. Não descartar o livre arbítrio da pessoa, porém, é preciso reconhecer que fatores biológicos e sociais reduzem ou aumentam a liberdade de escolha da pessoa em praticar ou não determinando comportamento violento ou criminoso.
  6. Por último, é preciso deixar claro na pesquisa que a medida punitiva sobre a criminalidade e o ato violento não é a única solução, nem a melhor em muitos casos. De modo complementar, e obrigatoriamente, a pesquisa deve valorizar as políticas preventivas, especialmente ligadas à Saúde Pública que repercutem na Segurança Pública. 

Segundo Rivero (2016, p. 262):

A possibilidade de se construir programas e políticas preventivas é absolutamente viável dentro dessas perspectivas, da mesma forma como faz parte da sua agenda contemporânea.  [...]. Do mesmo modo como tem ocorrido na Medicina, os estudos criminológicos poderiam ser classificados conforme níveis de evidências, orientando de maneira mais precisa a construção e a implementação de políticas públicas de segurança.

Finalmente, a contextualização do programa de pesquisa da Criminologia da complexidade deve considerar que existe uma tradição intelectual separatista do conhecimento.  A fim de superar esse quadro, “é importante que se discuta de maneira interativa o alcance e as limitações de conceitos e categorias”, como violência, agressividade, conflito, crime e delinquência, reintegrando as Ciências Naturais e Humanas na busca de uma nova unidade programática denominada “Criminologia biossocial” (RIVERO, 2016, p.80).


REFERÊNCIAS

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MITJAVILA, Myriam Raquel & MATHES, Priscilla Gomes. Doença mental e periculosidade criminal na psiquiatria contemporânea: estratégias discursivas e modelos etiológicos. Rio de Janeiro: Physis, Revista de Saúde Coletiva, 22 [ 4 ]: 1377-1395, 2012.

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MORIN, Edgar. O método: A natureza da natureza. Vol 1. 2. Ed. Publicações Europa-América, 1987 [?]. Depósito Legal n.15555/87.

POLANY, Michael. Ciência, fé e sociedade. Tradução Eduardo Beira. Universidade do Minho (Portugal), 2014.

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ZAFFARONI, Eugenio Raúl & OLIVEIRA, Edmundo. Criminologia e política criminal. Rio de Janeiro: GZ Ed., 2010.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTARROYOS, Heraldo Elias. Criminologia da complexidade: reflexões epistemológicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6460, 9 mar. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88040. Acesso em: 18 abr. 2024.