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A legitimidade da atuação do juiz a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva

A legitimidade da atuação do juiz a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva

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O direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva incide sobre o legislador e o juiz, ou seja, sobre a estruturação legal do processo e sobre a conformação dessa estrutura pela jurisdição.

Sumário: 1. A jurisdição a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva; 2. As normas processuais abertas como decorrência do direito fundamental à tutela jurisdicional; 3. A ausência de regra processual capaz de viabilizar a realização do direito fundamental à tutela jurisdicional; 4. A subjetividade do juiz e a necessidade de explicitação da correção da tutela jurisdicional mediante a argumentação jurídica; 5. A argumentação jurídica em prol da técnica processual adequada ao direito fundamental à tutela jurisdicional.


1. A jurisdição a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva

O direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva incide sobre o legislador e o juiz, ou seja, sobre a estruturação legal do processo e sobre a conformação dessa estrutura pela jurisdição.

Assim, obriga o legislador a instituir procedimentos e técnicas processuais capazes de permitir a realização das tutelas prometidas pelo direito material e, inclusive, pelos direitos fundamentais materiais, mas que não foram alcançadas à distância da jurisdição. 1 Nesse sentido se pode pensar, por exemplo, i) nos procedimentos que restringem a produção de determinadas provas ou ii) a discussão de determinadas questões, iii) nos procedimentos dirigidos a proteger os direitos transindividuais, iv) na técnica antecipatória, v) nas sentenças e vi) nos meios de execução diferenciados. Na mesma dimensão devem ser visualizados os procedimentos destinados a permitir a facilitação do acesso ao Poder Judiciário das pessoas menos favorecidas economicamente, com a dispensa de advogado, custas processuais etc.2

Porém, não basta parar na idéia de que o direito fundamental à tutela jurisdicional incide sobre a estruturação técnica do processo, pois supor que o legislador sempre atende às tutelas prometidas pelo direito material e às necessidades sociais de forma perfeita constitui ingenuidade inescusável. 3

Aliás, se o legislador sempre atuasse de maneira ideal, jamais haveria necessidade de subordinar a compreensão da lei à Constituição, mesmo quando a lei se refere ao direito material. Ou seja, é justamente porque se teme que a lei possa se afastar dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais, que se afirma que o direito fundamental à tutela jurisdicional incide sobre a compreensão judicial das normas processuais.

A obrigação de compreender as normas processuais a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional e, assim, considerando as várias necessidades de direito substancial, dá ao juiz o poder-dever de encontrar a técnica processual idônea à proteção (ou à tutela) do direito material.

O encontro da técnica processual adequada exige a interpretação da norma processual de acordo com o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, e também, para se evitar a declaração da sua inconstitucionalidade, o seu tratamento através das técnicas da interpretação conforme e da declaração parcial de nulidade sem redução de texto. 4

A interpretação de acordo pressupõe que a interpretação da lei segundo os métodos clássicos tenha conduzido a duas ou mais interpretações viáveis. Nesse caso, deve-se buscar a interpretação que permita a efetiva tutela do direito – identificado no caso concreto. É nesses termos que se diz que a interpretação é feita de acordo com o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva.

Em outras situações, para não se declarar a inconstitucionalidade de uma regra processual, é preciso agregar significado ao seu texto, conformando-o com a Constituição, e desta forma fazendo-se a interpretação conforme. Assim, por exemplo, ao analisar a norma que afirma que a tutela antecipatória não pode ser concedida quando puder causar efeitos irreversíveis ao réu5, o juiz, ao invés de declarar a sua inconstitucionalidade, deverá concluir que o texto legal apenas proíbe a sua concessão quando o valor do direito do demandado, diante do caso concreto, não justificar tal risco. Isso porque o risco de prejuízo irreversível, como é óbvio, não pode impedir, por si só, a concessão da tutela antecipatória, pois essa tem como requisito o risco de lesão a um direito mais provável que o do réu. Ora, se o direito do autor é provável e está sendo ameaçado de lesão (e isso é premissa para a concessão da tutela antecipatória), é completamente irracional e injustificável pensar que o direito do réu – que então é improvável – não pode ser exposto a risco.

Na declaração parcial de nulidade sem redução de texto há a declaração da inconstitucionalidade de algumas interpretações da norma, mas a adoção de uma interpretação que esteja de acordo com o caso concreto, apesar de outras serem abstratamente viáveis.

Por outro lado, o legislador está consciente, hoje, de que deve dar aos jurisdicionados e ao juiz maior poder para a utilização do processo. É por isso que institui normas processuais abertas (como a do art. 461 do CPC), ou seja, normas que oferecem um leque de instrumentos processuais, dando ao cidadão o poder de construir o modelo processual adequado e ao juiz o poder de utilizar a técnica processual idônea à tutela da situação concreta.6

O legislador, ao fixar tais normas, parte da premissa de que, por ser impossível predizer todas as necessidades futuras e concretas, é imprescindível dar poder aos operadores do direito para a identificação e a utilização dos meios processuais adequados às variadas situações. É correto falar, nesse sentido, em concretização da norma processual, isto é, na aplicação da norma processual no caso concreto, ou, ainda, na identificação e utilização da técnica processual – apenas autorizada pela norma – adequada às necessidades concretas.

Nessas hipóteses, a concretização da norma processual deve tomar em conta as necessidades de direito material reveladas no caso, mas a sua instituição decorre, evidentemente, do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. O legislador atua porque é ciente de que a jurisdição não pode dar conta das variadas situações concretas sem a outorga de maior poder e mobilidade, ficando o autor incumbido da identificação das necessidades concretas para modelar a ação processual, e o juiz investido do poder- dever de, mediante argumentação própria e expressa na fundamentação da sua decisão, individualizar a técnica processual capaz de lhe permitir a efetiva tutela do direito.

Além disso, as necessidades do caso concreto podem reclamar técnica processual não prevista em lei, quando o juiz poderá suprir a omissão obstaculizadora da realização do direito fundamental à tutela jurisdicional, mediante o que se pode denominar de técnica de controle da inconstitucionalidade por omissão.7

É fácil perceber que, em todas essas situações, a lei processual é pensada segundo as necessidades de direito material particularizadas no caso concreto. A compreensão do processo à luz do direito fundamental à tutela jurisdicional requer a percepção da natureza instrumental da norma processual, isto é, de que ela deve permitir ao juiz encontrar uma técnica processual idônea à tutela das necessidades do caso conflitivo. 8


2. As normas processuais abertas como decorrência do direito fundamental à tutela jurisdicional

Na época do Estado liberal clássico, vigorava no processo civil o chamado princípio da tipicidade das formas executivas, que tinha o significado de impedir a utilização, por parte das partes e do juiz, de meios executivos não expressamente previstos na lei. Esse princípio objetivava garantir a liberdade dos litigantes diante da jurisdição. Medindo-se o poder de atuação do juiz pela lei, eram garantidas as formas mediante as quais a atividade jurisdicional poderia ser exercida. Dava-se ao litigante a garantia de que, no caso de sua eventual condenação, a jurisdição não poderia ultrapassar os limites dos meios executivos tipificados.

Acontece que, com o passar do tempo, tornou-se necessário munir os litigantes e o juiz de uma maior latitude de poder, seja para permitir que os jurisdicionados pudessem utilizar o processo de acordo com as novas situações de direito material e com as realidades concretas, seja para dar ao juiz a efetiva possibilidade de tutelá- las.

Tal necessidade levou o legislador não só a criar uma série de institutos dependentes do preenchimento de conceitos indeterminados – como a tutela antecipatória fundada em "abuso de direito de defesa" (art. 273, II, CPC) -, admitindo o seu uso na generalidade dos casos, mas também a fixar o que denomino de normas processuais abertas (art. 461, CPC).

Essas regras decorrem da aceitação da idéia de que a lei não pode atrelar as técnicas processuais a cada uma das necessidades do direito material ou desenhar tantos procedimentos especiais quantos forem supostos como necessários à tutela jurisdicional dos direitos.

A lei processual não pode antever as verdadeiras necessidades de direito material, uma vez que essas não apenas se transformam diariamente, mas igualmente assumem contornos variados, conforme os casos concretos. Diante disso, chegou-se naturalmente à necessidade de uma norma processual destinada a dar aos jurisdicionados e ao juiz o poder de identificar, ainda que dentro da sua moldura, os instrumentos processuais adequados à tutela dos direitos.

Acontece que as normas processuais abertas não apenas conferem maior poder para a utilização dos instrumentos processuais, como também outorgam ao juiz o dever de demonstrar a idoneidade do seu uso, em vista da obviedade de que todo poder deve ser exercido de maneira legítima.

Se antes o controle do poder jurisdicional era feito a partir do princípio da tipicidade, ou da definição dos instrumentos que podiam ser utilizados, hoje esse controle é mais complexo e sofisticado. A legitimidade do uso dos instrumentos processuais do art. 461, que abre aos cidadãos e ao juiz um leque de instrumentos processuais destinados a viabilizar a denominada "tutela específica", depende da identificação da espécie de tutela específica (tutela inibitória 9 etc) objeto do caso concreto, da consideração do direito de defesa e, obviamente, da racionalidade da argumentação expressa na fundamentação da decisão ou da sentença.

O art. 461 do CPC afirma que o juiz poderá impor multa diária ao réu para constrangê-lo ao cumprimento de uma ordem de fazer ou de não fazer, seja na concessão da tutela antecipatória, seja na sentença concessiva da tutela final (art. 461, §§3º e 4º), ou ainda determinar, para dar efetividade a qualquer uma dessas decisões, as "medidas necessárias", que são exemplificadas, pelo §5º do artigo 461, com a busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas, o desfazimento de obras e o impedimento de atividade nociva.

O legislador deu ao juiz o poder de impor o meio executivo adequado (art. 461, §§4º e 5º), adotar a sentença idônea e conceder a tutela antecipatória (art. 461, §3º), fazendo referência apenas às técnicas processuais que podem ser utilizadas, mas não precisando em que situações de direito material, e muito menos em que casos concretos, elas podem ser aplicadas.

De modo que, para a adequada aplicação da norma do art. 461, o juiz é obrigado a identificar e precisar as necessidades de direito material particularizadas no caso concreto. Ou seja, não há como o juiz ordenar um fazer ou um não-fazer sob pena de multa, determinar a busca e apreensão ou conceder a tutela antecipatória (sempre por exemplo), sem anteriormente compreender a razão pela qual está atuando, ou melhor, sem antes identificar a espécie de tutela específica solicitada (inibitória, de remoção de ilícito, ressarcitória etc) e os seus pressupostos (ameaça de ilícito, prática de ato contrário ao direito, dano etc).10

Os procedimentos e as técnicas processuais somente adquirem substantividade quando relacionados ao direito material e às situações concretas, e por isso podem ser ditos neutros em relação ao direito substancial e à realidade social quando pensados como procedimentos ou técnicas voltados, por exemplo, à imposição de um fazer ou à busca e apreensão. Ora, não é preciso muito esforço para evidenciar que impor um fazer, ou determinar a busca e apreensão, não tem qualquer significado no plano do direito material ou concreto.

Não é por outra razão que se fala em tutela inibitória, ressarcitória, do adimplemento na forma específica etc. Perceba-se que "tutela" significa o resultado jurídico-substancial do processo, representando o impacto do processo no plano do direito material. Quando se teoriza o tema das "tutelas" se tem em mira exatamente a imprescindibilidade da identificação das situações de direito material para a compreensão crítica da lei processual e para o delineamento das técnicas processuais capazes de outorgar efetividade à prestação jurisdicional e, assim, colocá-la em uma dimensão realmente capaz de concretizar o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva.

Contudo, quando se pensa na técnica processual capaz de garantir a efetividade da tutela do direito, não é possível esquecer da esfera jurídica do réu. Se é possível escolher a técnica processual capaz de dar proteção ao direito, não há como admitir que essa escolha possa prejudicar o demandado. Isso quer dizer que a utilização da técnica processual, diante da norma processual aberta, tem a sua legitimidade condicionada a um prévio controle, que considera tanto o direito do autor, quanto o direito do réu.

Esse controle pode ser feito a partir de duas sub-regras da regra da proporcionalidade, isto é, das regras da adequação e da necessidade. A providência jurisdicional deve ser: i) adequada e ii) necessária. Adequada é a que, apesar de faticamente idônea à proteção do direito, não viola valores ou os direitos do réu.

Necessária é a providência jurisdicional que, além de adequada, é faticamente efetiva para a tutela do direito material e, além disso, produz a menor restrição possível ao demandado; é, em outras palavras, a mais suave. 11

Porém, a necessidade de raciocinar a partir da consideração da tutela no plano direito material e do direito de defesa não teria significado sem a devida jus tificativa, isto é, sem a motivação capaz de expressar adequadamente o raciocínio judicial. A justificativa permite controle crítico sobre o poder do juiz 12, sendo que o equívoco da justificativa evidencia a ilegitimidade do uso da técnica processual.

A ampliação do poder de execução do juiz, ocorrida para dar maior efetividade à tutela dos direitos, possui, como contrapartida, a necessidade de que o controle da sua atividade seja feita a partir da compreensão do significado das tutelas no plano do direito material, das regras da adequação e da necessidade e mediante o seu indispensável complemento, a justificação judicial. Em outros termos: pelo fato de o juiz ter poder para a determinação da melhor maneira de efetivação da tutela, exige-se dele, por conseqüência, a adequada justificação das suas escolhas. Nesse sentido se pode dizer que a justificativa é a outra face do incremento do poder do juiz.

Na justificativa o juiz deve dizer a razão pela qual preferiu uma modalidade de execução e não outra. Ou seja, porque preferiu, por exemplo, ordenar a instalação de um equipamento antipoluente ao invés de ordenar a cessação das atividades da empresa ré.

Tal opção deve configurar o meio mais idôneo à tutela do direito, concretizando o meio que, além de menos restritivo ao réu, seja capaz de dar tutela efetiva ao direito.

As sub-regras da proporcionalidade, embora façam parte do raciocínio decisório, pois viabilizam a decisão, obviamente não podem ser ignoradas quando da justificativa. Até porque tais regras não servem apenas para facilitar a decisão, mas muito mais para que se possa justificá-la de modo racional, permitindo-se o seu controle pelas partes.

O crescimento do poder de atuação do juiz e a conseqüente necessidade de outros critérios de controle da decisão judicial nada mais são do que reflexos das novas situações de direito substancial e da tomada de consciência de que o Estado tem o dever de dar proteção efetiva aos direitos.


3. A ausência de regra processual capaz de viabilizar a realização do direito fundamental à tutela jurisdicional

Resta ainda tratar dos casos de ausência de técnica processual ou de previsão de técnica processual para uma situação diferente da contemplada no caso concreto. Tomese como exemplo o caso da execução da tutela antecipatória de soma em dinheiro. O art. 273, §3º, do CPC, afirma que "a efetivação da tutela antecipada observará, no que couber e conforme sua natureza, as normas previstas nos arts. 588, 461, §§ 4º e 5º, e 461-A". Como o art. 461 trata da sentença que impõe fazer ou não- fazer, o art. 461-A da sentença que impõe entrega de coisa, e o art. 588 diz respeito apenas à eficácia da execução na pendência do processo - e não sobre a forma mediante a qual a execução de soma deve se realizar -, conclui-se que essa norma se omitiu em relação à forma da execução da tutela antecipatória de soma em dinheiro.

Essa omissão, no entanto, pode ser seguramente suprida quando se tem consciência de que a técnica processual depende apenas da individualização das necessidades do caso concreto. Quer dizer que se o juiz identifica a necessidade de antecipação de soma em dinheiro, e por isso mesmo concede a tutela antecipatória, acaba lhe sendo fácil identificar a necessidade de um meio executivo capaz de dar efetivo atendimento à tutela antecipatória.

Esse meio executivo, dada a urgência que deve ser admitida como existente para a concessão da antecipação da soma em dinheiro, obviamente não pode ser aquele que foi pensado para dar atuação à sentença que condena ao pagamento de dinheiro. Como as necessidades de direito material que têm relação com a tutela antecipatória e a sentença condenatória são aberrantemente distintas, é pouco mais do que evidente que os meios executivos devem ser com elas compatíveis.

Se o objetivo da multa é dar maior celeridade e efetividade à realização das decisões judiciais, não há racionalidade em admiti- la apenas em relação às decisões que determinam fazer, não fazer ou entrega de coisa. No caso de soma em dinheiro, a multa, além de "livrar" a administração da justiça de um procedimento oneroso e trabalhoso e beneficiar a parte com a eliminação dos custos e dos entraves da execução por expropriação, confere à tutela antecipatória a tempestividade necessária para que ela possa dar efetiva proteção ao direito material e, assim, realizar o direito fundamental à tutela jurisdicional 13. Como é simples concluir, a multa é meio imprescindível para a execução da tutela antecipatória de soma e para permitir que o juiz responda ao direito fundamental à tutela jurisdicional.

Como esse direito fundamental incide sobre o Estado e, portanto, sobre o legislador e o juiz, é evidente que a omissão do legislador não justifica a omissão do juiz. Melhor explicando: se tal direito fundamental, para ser realizado, exige que o juiz esteja munido de poder suficiente para a proteção - ou tutela - dos direitos, a ausência de regra processual instituidora de instrumento processual idôneo para tanto constitui evidente obstáculo à atuação da jurisdição e ao direito fundamental à tutela jurisdicional. Diante disso, para que a jurisdição possa exercer a sua missão – que é tutelar os direitos – e para que o cidadão realmente possa ter garantido o seu direito fundamental à tutela jurisdicional, não há outra alternativa a não ser admitir ao juiz a supressão da omissão inconstitucional.


4. A subjetividade do juiz e a necessidade de explicitação da correção da tutela jurisdicional mediante a argumentação jurídica

É evidente que a necessidade de compreensão da lei a partir da Constituição confere ao juiz maior subjetividade, o que vincula a legitimidade da prestação jurisdicional à explicação da sua correção. Mas, o problema da legitimidade da tutela jurisdicional, no Estado contemporâneo, está em verificar se é possível atribuir correção à decisão do juiz, ou melhor, encontra-se na definição do que se pretende dizer com correção da decisão jurisdicional.

Na verdade, não é possível chegar a uma teoria da decisão correta, isto é, a uma teoria que seja capaz de sustentar a existência de uma decisão correta para cada caso concreto. Porém, a circunstância dessa impossibilidade não pode retirar do juiz o dever de demonstrar que a sua decisão é racional e, nessa linha, a melhor que poderia ser proferida diante da lei, da Constituição e das peculiaridades do caso concreto. 14

Acontece que uma decisão não é racional em si, pois a racionalidade da decisão não é atributo dela mesma. Uma decisão "se mostra" racional ou não. Para tanto, necessita de "algo", isto é, da racionalidade da argumentação. Essa argumentação, a cargo da jurisdição, é que pode demonstrar a racionalidade da decisão e, nesse sentido, a decisão correta. 15

É certo que a decisão deve se guiar pela lei, mas isso obviamente não é suficiente como argumento em favor de uma decisão correta. Decisão racional não é o mesmo do que decisão baseada apenas em dados dotados de autoridade; a decisão judicial exige que a argumentação recaia em pontos que não podem ser dedutivamente expostos.16 Ou melhor, a racionalidade do discurso judicia l necessariamente envolve a racionalidade do discurso que objetiva um juízo prático ou moral 17.

Segundo Alexy, não são possíveis teorias morais materiais que dêem uma única resposta, intersubjetivamente concludente, a cada questão moral, porém são possíveis teorias morais procedimentais que formulem regras ou condições da argumentação ou da decisão prática racional, sendo que a teoria do discurso prático racional é uma versão muito promissora de uma teoria material procedimental. Essa teoria tem uma grande vantagem sobre as teorias morais materiais, pois é muito mais fácil fundamentar as regras da argumentação prática racional do que as regras morais materiais.18

Para o aperfeiçoamento da racionalidade da argumentação judicial, Alexy propõe a passagem por quatro procedimentos ou a criação de um procedimento com quatro etapas ou graus: o primeiro é o discurso prático, envolvendo um sistema de regras que formula uma espécie de código geral da razão prática; o segundo é o procedimento legislativo, constituído por um sistema de regras que garante uma considerável medida de racionalidade prática e, nesse sentido, justifica-se dentro das linhas do discurso prático. Depois seguem o discurso jurídico e o procedimento judicial.19

A teoria do discurso jurídico se assemelha à teoria do discurso prático por também constituir uma teoria procedimental fundada em regras de argumentação e ser incapaz de levar a um único resultado, caracterizando-se por ser sujeita à lei e à Constituição, aos precedentes judiciais e à dogmática. O discurso jurídico restringe a margem de insegurança do discurso prático, mas obviamente não permite chegar a um grau de certeza suficiente, não eliminando a insegurança do resultado 20.

No procedimento judicial, do mesmo modo do que ocorre no procedimento legislativo, há argumentação e decisão. Os resultados do procedimento judicial são razoáveis, segundo Alexy, se as suas regras e a sua realização satisfazem as exigências dos procedimentos que lhe antecedem, isto é, as regras do discurso prático, do procedimento legislativo e do discurso jurídico 21.


5. A argumentação jurídica em prol da técnica processual adequada ao direito fundamental à tutela jurisdicional

Quando se trata da argumentação em prol da técnica processual adequada ao direito fundamental à tutela jurisdicional, é preciso relacionar a argumentação com as modalidades de compreensão da lei: i) interpretação de acordo, ii) interpretação conforme, iii) declaração parcial, iv) concretização da norma geral e v) supressão da omissão inconstitucional.

Na interpretação de acordo, argumenta-se em prol de uma interpretação que, sendo capaz de atender às necessidades de direito material, confira a devida efetividade ao direito fundamental à tutela jurisdicional.

Na interpretação conforme, argumenta-se que a lei, consideradas as necessidades do caso concreto e o direito fundamental à tutela jurisdicional, precisa de "algo mais" ou de "um ajuste" para não ser dita inconstitucional. Na declaração parcial de nulidade, o argumento deve ser no sentido de que determinadas interpretações inviabilizam o efetivo atendimento das necessidades de direito material e, por conseqüência, a atuação do direito fundamental, mas há uma interpretação que se ajusta perfeitamente ao caso.

Como é óbvio, a questão se complica quando se pensa na concretização das normas processuais abertas e na supressão da omissão legal inviabilizadora da realização do direito fundamental à tutela jurisdicional. Isso porque, nessas hipóteses, a margem de poder do juiz é maior e, assim, a possibilidade de arbítrio também.

No caso de concretização de norma processual aberta, a necessidade de justificar a utilização da técnica processual é, antes de tudo, decorrência da própria estrutura dessa modalidade de norma, instituída para dar ao juiz poder necessário para atender às variadas situações concretas.

Lembre-se que as normas processuais abertas - como, por exemplo, a do art. 461 do CPC - devem ser concretizadas a partir das necessidades reveladas no caso concreto, pois se destinam a dar ao juiz poder para dar efetividade ao direito material. Isso quer dizer que, ao aplicar essas normas, o juiz tem o dever de encontrar uma técnica processual ou um "modo" processual que seja capaz de atender ao direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. Mas, como esse "modo" é a expressão da concretização de uma norma aberta – que obviamente não se preocupa apenas com o direito do autor, mas igualmente com o direito do réu -, o juiz deve argumentar que o "modo" encontrado, além de dar efetividade ao direito fundamental à tutela jurisdicional, é o que gera a menor restrição possível ao demandado.

Na hipótese de omissão de regra processual ou de inexistência de técnica processual adequada ao caso concreto, a diferença, em termos de argumentação, é a de que o juiz deverá demonstrar que as necessidades de direito material exigem uma técnica que não está prevista pela legislação processual. Porém, ao juiz não bastará demonstrar a imprescindibilidade de determinada técnica processual não prevista pela lei, mas também argumentar, considerando o direito de defesa, que a técnica processual identificada como capaz de dar efetividade à tutela do direito é a que traz a menor restrição possível à esfera jurídica do réu.

Nos casos de concretização de normas abertas e de supressão de omissão inconstitucional, a identificação das necessidades dos casos concretos e o uso das técnicas processuais idôneas para lhes dar proteção obviamente devem ser precisamente justificados. Na verdade, o juiz deve estabelecer uma relação racional entre as necessidades do caso concreto, o significado da tutela jurisdicional no plano substancial (tutela inibitória, ressarcitória etc) e a técnica processual (sentença executiva, multa, busca e apreensão etc). Em outros termos, deve demonstrar que determinada situação de direito material deve ser protegida por certo tipo de tutela jurisdicional, e que, para que essa modalidade de tutela jurisdicional possa ser implementada, deve ser utilizada uma precisa técnica processual.

Antes de partir para o encontro da técnica processual adequada, o juiz deve demonstrar as necessidades de direito material, indicando como as encontrou no caso concreto. De maneira que a argumentação relativa à técnica processual se desenvolve sobre um discurso de direito material já justificado. Nesse caso existem dois discursos: um primeiro sobre o direito material, e um outro, incidente sobre o primeiro, a respeito do direito processual. O discurso de direito processual é um sobre-discurso, ou um meta-discurso, no sentido de que recai sobre um discurso que lhe serve de base para o desenvolvimento. O discurso jurídico processual é, em outros termos, um discurso que tem a sua base em um discurso de direito material. 22

É certo que a idoneidade desses dois discursos se vale dos benefícios gerados pela realização e pela observância das regras do procedimento judicial. Mas, ainda assim, não se pode deixar de perceber a nítida distinção entre um discurso de direito material legitimado pela observância do procedimento judicial e um discurso de direito processual que, além de se beneficiar das regras do procedimento judicial, sustenta-se sobre um outro discurso (de direito material).23

O discurso de direito processual, ou seja, o que elege a técnica processual adequada em razão da exigência de uma norma aberta ou o que identifica a necessidade de uma técnica processual não prevista na lei, não representa qualquer ameaça à segurança jurídica, na medida em que parte de um discurso que se apóia nos fatos e no direito material. O discurso processual objetiva atender a uma situação já demonstrada pelo discurso de direito material, e não pode esquecer que a técnica processual eleita deve ser a mais suave, ou seja, a que, tutelando o direito, cause a menor restrição possível ao réu.

A justificação, obedecendo a esses critérios, dá às partes a possibilidade de controle da decisão jurisdicional. A diferença é a de que, em tais situações, o controle da atividade do juiz é muito mais complexa e sofisticada do que aquela que ocorria com base no princípio da tipicidade, quando o juiz apenas podia usar os instrumentos processuais definidos na lei. Mas essa mudança de forma de pensar o controle jurisdicional é apenas reflexo da necessidade de se dar maior poder ao juiz – em parte a ele já entregue pelo próprio legislador ao fixar as normas abertas – e da transformação do próprio conceito de direito, que submete a compreensão da lei aos direitos fundamentais.


Notas

1 Dimaras, Nikolaos, Die enge Beziehung des Zivilrechts zum Zivilprozessrecht und der Einfluß der Verfassung auf das Ziviprozessrecht, in FS Beys, Band I, Athen 2003, p. 291 e ss.

2 Os procedimentos dos Juizados Especiais Cíveis.

3 Wautelet, P., Le droit au procès équitable et l’égalité des armes, in L’efficacité de la Justice Civile en Europe –Caupain Therése/De Leval Georges (Hrsg.) Bruxelles 2000, pp. 101-129;

Couture, Eduardo, Der verfassungsmäßige Schutz des Prozesses, ZZP 67 (1954) 128; Dimaras,

Nikolaos, Die enge Beziehung des Zivilrechts zum Zivilprozessrecht und der Einfluß der

Verfassung auf das Ziviprozessrecht, in FS Beys, Band I, Athen 2003, p. 291 e ss.; Kirchhof,

Paul, Verfassungsrechtliche Maßstäbe für die Verfahrensdauer und die Rechtsmittel, FS

Doehring, 1989, p. 438.

4 Schwab, Karl-Heinz/Gottwald, Peter, Verfassung und Zivilprozess, in Effektiver Rechtsschutz, 1983, pp. 1-10; v. Lorenz, Dieter ,Grundrechte und Verfahrensordnungen , NJW 1977, 865.

5 Art. 273 – (....)

§2º "Não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado".

(...).

6 Ver item adiante.

7 Ver item adiante.

8 Dimaras, Nikolaos, Die enge Beziehung des Zivilrechts zum Zivilprozessrecht und der Einfluß der Verfassung auf das Ziviprozessrecht, in FS Beys, Band I, Athen 2003, p. 291 e ss.; Lorenz, Dieter, Grundrechte und Verfahrensordnungen, NJW 1977, 865.

9 V. Luiz Guilherme Marinoni, Tutela inibitória , São Paulo: Ed. RT, 2003, 3ª. ed.

10 V. Luiz Guilherme Marinoni, Técnica processual e tutela dos direitos, São Paulo, Ed. RT, 2004.

11 Sobre a regra da proporcionalidade, ver, no direito brasileiro, Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Malheiros, 1993, p. 314 e ss; Luis Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, São Paulo, Saraiva, 1996; Raquel Denize Stumm, Princípio da proporcionalidade no direito constitucional brasileiro, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1995, Suzana de Toledo Barros, O princípio da proporcionalidade e o controle da constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, Brasília, Brasília Jurídica, 1996; Paulo Arminio Tavares Buechele, O princípio da proporcionalidade e a interpretação da Constituição, Rio de Janeiro, Renovar, 1999.

12 V. Michele Taruffo, La motivazione della sentenza civile . Padova: Cedam, 1975, p. 194-195, Michele Taruffo, Funzione della prova: la funzione dimostrativa, Rivista trimestrale di diritto e procedura civile , 1997, p. 553-554; Michele Taruffo, Il controllo di razionalita’ della decisione fra logica, retorica e dialettica, in: www.studiocelentano.it/le nuove voci del diritto; Michele Taruffo, La motivazione della sentenza, Revista de Direito Processual Civil (Genesis Editora), v. 30, p. 674 e ss; Michele Taruffo, Senso comum, experiência e ciência no raciocínio do juiz, Conferência proferida na Faculdade de Direito da UFPR; Curitiba, março de 2001, p. 17.

13 A "execução" sob pena de multa somente tem sentido em relação ao devedor que possui patrimônio suficiente para responder ao crédito. Na hipótese de devedor sem patrimônio, não cabe, como é óbvio, a "execução" sob pena de multa. Assim, na hipótese de antecipação da "execução", o juiz deve dar ao réu a oportunidade de justificar o não adimplemento. Além disso, é fundamental que o juiz estabeleça prazo suficiente para o réu adimplir, sendo que a sua justificativa também pode ser no sentido de que necessita de mais tempo para cumprir a obrigação (V. Luiz Guilherme Marinoni, A antecipação da tutela, São Paulo: Ed. RT, 2004, 8ª. ed).

14 V. Chayes, A., How Does the Constitution Establish Justice? 101 Harv. L. Rev. 1026 (1988).

15 Schlüter, Wilfried, Das Obiter Dictum, München, Beck, 1973, pp. 29-33.

16 A respeito da argumentação jurídica, além das teses precursoras de Perelman (Perelman e Olbrecht-Tyteca, Trattato dell’argomentazione, Torino: Einaudi, 1966), Viehweg (Tópica e jurisprudência, Brasília: UNB, 1979) e Toulmim (The uses of argument, Cambridge: Cambridge Universiy Press, 1958), são fundamentais as teorias de MacCormick (Legal reasoning and legal theory, Oxford: Oxford University Press, 1978) e Alexy (Teoria da

argumentação jurídica, São Paulo: Landy, 2001)

17 Sobre a conexão entre direito e moral no pensamento de Alexy, ver a polêmica travada entre Alexy e Bulygin, La pretensión de corrección del derecho, Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2001; v. ainda Robert C. Farrel, Legislative Purpose and Equal Protection´s Rationality Review, 37 Vill. L. Rev. I, 7 (1992).

18 Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 530.

19 Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, cit, p. 531.

20 Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, cit, p. 532; v. Jules Coleman, Truth and Objetivity in Law, 1995, Legal Theory 33, p. 48-54.

21 Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, cit, p. 532.

22 Dujardin , Roger, L’efficacité des procédures judiciaires au sein de l’Union Européenne et les garanties des droits de la défense, L’efficacité de la Justice Civile en Europe – Caupain Therése/De Leval Georges (Hrsg.) Bruxelles 2000, p. 41-80 ; v. Dütz, Wilhem, Rechtsstaatlicher Gerichtsschutz im Privatrecht, Bad Homburg, Berlin/Zürich, 1970, pp. 2-20.

23 Stickelbrock, Barbara, Inhalt und Grenzen richterlichen Ermessens im Zivilprozess, Köln 2002, p. 4-15.


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MARINONI, Luiz Guilherme. A legitimidade da atuação do juiz a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1161, 5 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8846. Acesso em: 16 abr. 2024.