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A inconstitucionalidade da atual regulamentação do conceito de atividade jurídica.

Inconstitucionalidade material e formal das Resoluções nº 04 do CNMP e nº 11 do CNJ

A inconstitucionalidade da atual regulamentação do conceito de atividade jurídica. Inconstitucionalidade material e formal das Resoluções nº 04 do CNMP e nº 11 do CNJ

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I – Introdução

            Tanto o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) quanto o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) editaram, recentemente, resoluções regulamentando a expressão constitucionalmente prevista de "atividade jurídica", necessária para o ingresso nas carreiras do Parquet e do Judiciário.

            Tais resoluções, que são meros atos administrativos, basearam-se, em tese, nos anais das discussões do Congresso Nacional quando da Emenda Constitucional nº 45, que instituiu a necessidade de três anos de atividade jurídica para acesso às carreiras já referidas.

            Ocorre, porém, que ambas as resoluções, conquanto tenham vindo para assegurar a aplicação de uma suposta vontade legislativa, não o fazem e, por isso, são eivadas de vícios de inconstitucionalidade.

            Resolução é ato administrativo com certo caráter normativo, emanado pela Administração Pública com o intuito de fazer a coadunação entre o desígnio genérico e abstrato da Lei a casos concretos, regulamentando-a e eficacizando-a, não podendo ir além ou ficar aquém do prescrito na norma hierarquicamente superior, neste caso a Constituição Federal.

            Os dispositivos constitucionais que prevêem o requisito de três anos de atividade jurídica, quais sejam arts. 93, I e 129, § 3º da Constituição Federal, não estabelecem seu conceito, então, em face de uma pseudo-lacuna do texto constitucional, o CNJ e o CNMP resolveram eliminar qualquer controvérsia e impor o seu entendimento, por intermédio da edição de Resoluções, cada um em seu âmbito de atuação.


II – Impossibilidade lógica e jurídica da interpretação fulcrada na mens legislatoris

            O principal argumento utilizado pelos conselheiros foi "a interpretação extraída dos anais do Congresso Nacional quando da discussão da matéria" (Resolução CNJ nº 11).

            Ora, já está assentada em nossos tribunais a jurisprudência de que a vontade do legislador ou mens legislatoris não pode ser levada em consideração quando da interpretação da norma, uma vez que seria impossível determinar a intenção de mais de 500 parlamentares de modo a delimitar o porquê da edição da Lei.

            Decerto que, ainda que certo texto normativo tenha sido proposto com uma finalidade, é logicamente impossível saber se todos os legisladores que o aprovaram, ou mesmo se a maioria deles, o tenha feito com base no mesmo fim do idealizador do projeto.

            Cada legislador defende interesses diversos, de diferentes parcelas da população, os quais nem sempre convergem. Dessa forma, caso houvesse de fato uma vontade uníssona da casa legislativa voltada para a delimitação do tema, esta seria objeto de emenda e certamente integraria o texto constitucional.

            Nossa Constituição é classificada como analítica, por ter consignado em seu texto diversos institutos jurídicos que poderiam estar regulados diretamente por lei, mas optou o Constituinte por dar-lhes especial proteção, erigindo-os à Carta Magna.

            A conceituação e abrangência do termo "atividade jurídica" poderia estar consagrado no texto constitucional, se não está, é porque o legislador constituinte entendeu que tal delimitação caberia à lei.

            Deste modo, se não foi possível convencer três quintos dos parlamentares do Congresso Nacional da necessidade da posição soberana deste conceito, não há que se falar na suposta vontade tácita do legislador de que exerceria "atividade jurídica" apenas o bacharel em direito.

            Por isso e para assegurar o mínimo de segurança jurídica, os tribunais pátrios têm entendido como determinante não a vontade do legislador (porquanto indeterminável), mas sim a intenção direta do texto da lei (mens legis), vejamos uma decisão do Supremo Tribunal Federal que dirime essa questão:

            Origem: STF - Supremo Tribunal Federal

            Classe: RE - RECURSO EXTRAORDINÁRIO

            Processo: 20210 UF: null Órgão Julgador:

            Ementa: INDIVIDUAÇÃO DA COISA. INTERPRETAÇÃO. MENS LEGIS E MENS LEGISLATORIS.

            DECRETO 21.341 DE 2 DE MAIO DE 1932. ART. 18 DAS DISPOSIÇÕES TRANSITORIAS DA CONSTITUIÇÃO DE 1934. REIVINDICAÇÃO. INDIVIDUAÇÃO DA COISA REIVINDICANDA. INTERPRETAÇÃO PELA MENS LEGIS E NÃO PELA MENS LEGISLATORIS. DESCABIMENTO DO APELO. (grifos nossos)

            Tercio Sampaio Ferraz Jr leciona que a norma jurídica deve ser vista como comando imperativo para o qual não deve ser considerada a intenção do órgão emanador ou a vontade dos seus destinatários. Ou seja, para a interpretação das resoluções aqui discutidas, não deve ser considerada a mens legislatoris das casas legiferantes federais, como já se asseverou, tampouco a vontade dos candidatos ao cargo de Juiz ou Promotor, importa sim a intenção a ser extraída da própria norma, de forma objetiva.

            Logo, absolutamente descabido o argumento de que tais resoluções apenas regulamentam o preceito constitucional, sem inovar na ordem jurídica, visto que não é admissível a busca pelos anais do Congresso Nacional para uma interpretação jurídica.

            Estes atos normativos não só introduziram novas regras no ordenamento jurídico, como também restringiram, e muito, o conceito que já se sedimentava em nossos tribunais e, corretamente, se mostrava amplo de "atividade jurídica".

            Ainda que se entenda de modo diverso e aceite-se a interpretação mens legislatoris, não há como prosperar o entendimento dos conselhos nacionais, uma vez que a PEC n° 96-A/1992, que deu origem a EC 45/2004, trazia em seu texto a exigência de "três anos de atividade privativa de bacharel em direito".

            O Congresso Nacional, ao suprimir tal expressão pela exigência, para o bacharel em direito, de "três anos de atividade jurídica", mostrou claramente que não tinha intenção de restringir a amplitude do conceito.


III – Interpretação sistemática e princípio da unidade da Constituição

            Na Constituição não se pode interpretar uma norma isoladamente, é necessário afastar um pouco nossa perspectiva, de modo a ver todo o subsistema constitucional, ou seja, para a interpretação de tal dispositivo, deve-se enxergá-lo em comunhão com todas as demais normas constitucionais.

            Luís Roberto Barroso [01], ao discorrer sobre interpretação da norma constitucional, ensina que:

            "O direito objetivo não é um aglomerado aleatório de disposições legais, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, que convivem harmonicamente. A interpretação sistemática é fruto da idéia de unidade do ordenamento jurídico.

            (...)

            "No centro do sistema, irradiando-se por todo o ordenamento, encontra-se a Constituição, principal elemento de sua unidade, porque a ela se reconduzem todas as normas no âmbito do Estado. A Constituição, em si, em sua dimensão interna, constitui um sistema. Essa idéia de unidade interna da Lei Fundamental cunha um princípio específico, derivado da interpretação sistemática, que é o princípio da unidade da Constituição". (grifos nossos)

            Portanto, não podemos olvidar as demais normas constitucionais quando da interpretação do conceito que deve ser atribuído à expressão "atividade jurídica".

            Destarte, no que concerne à hermenêutica das normas constitucionais, deve-se escolher o sentido que promova sua integração sistemática às demais normas da Constituição, garantindo a máxima eficácia de toda a unidade constitucional.

            Ambas as carreiras reguladas pelas Resoluções sob exame, assim como todos os cargos públicos efetivos, necessitam de prévio concurso público para o devido provimento, logo, para acesso a tais cargos deve ser obedecido o disposto na própria Constituição Federal quando esta regula esta espécie de processo seletivo.

            Nos restringiremos à análise do artigo 37, inciso I da CF, uma vez que é este o dispositivo constitucional violado, quando dispõe que:

            Art. 37 (...)

            I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei;

            Está assegurado constitucionalmente o princípio da ampla acessibilidade aos cargos públicos, desde que preencham os requisitos estabelecidos na lei, entendida esta em seu sentido mais restrito, não se enquadrando nesta acepção os atos normativos infralegais, como as Resoluções, Decretos, Portarias e outros.

            Celso Ribeiro Bastos [02], ao comentar este dispositivo da Constituição Federal, ensina que:

            "A palavra ‘lei’ está aí utilizada na sua acepção mais restrita e mais técnica, isto é, de ato normativo aprovado sob procedimento específico pelo legislativo com a colaboração do chefe do executivo ou de ato que lhe faça as vezes"

            "Não é, em conseqüência, admissível a utilização de atos de menor dignidade jurídica: decretos, resoluções, editais, enfim, atos administrativos em geral não têm a aptidão para satisfazer o requisito constitucional de exigência de lei". (grifos nossos)

            Após a promulgação da Emenda Constitucional 45, alguns órgãos decidiram estabelecer, por meio de resoluções, a amplitude do termo "atividade jurídica", o Tribunal Superior do Trabalho foi uma destas instituições, porém tal ato normativo foi objeto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, e o Supremo Tribunal Federal manifestou seu entendimento afirmando, em sede de liminar, a inconstitucionalidade formal do dispositivo por desrespeito ao art. 37, I da CF, supra transcrito, senão vejamos:

            Origem: STF - Supremo Tribunal Federal

            Classe: ADI-MC - MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

            Processo: 1188 UF: DF - DISTRITO FEDERAL

            AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LIMINAR -CONCURSO PÚBLICO - JUIZ DO TRABALHO SUBSTITUTO - REQUISITOS - IMPOSIÇÃO VIA ATO DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Exsurgindo a relevância jurídica do tema, bem como o risco de serem mantidos com plena eficácia os dispositivos atacados, impõem-se a concessão de liminar. Isto ocorre no que previstos, em resolução administrativa do Tribunal Superior do Trabalho, requisitos para acesso ao cargo de juiz estranhos a ordem jurídica. "Apenas a lei em sentido formal (ato normativo emanado do Poder Legislativo) pode estabelecer requisitos que condicionem ingresso no serviço público. As restrições e exigências que emanem de ato administrativo de caráter infralegal revestem-se de inconstitucionalidade." (Jose Celso de Mello Filho em "Constituição Federal Anotada"). Incompatibilidade da imposição de tempo de pratica forense e de graduação no curso de Direito, ao primeiro exame, com a ordem constitucional. (grifos nossos)


IV – Princípio da Isonomia e o conceito objetivo de atividade jurídica

            Atividade, seja ela jurídica ou não, é sempre uma ação, uma forma de exteriorização de um determinado comportamento, com certa habitualidade.

            Dessa forma, a atividade para ser enquadrada como tal, necessariamente, independe do sujeito, deve ser vista de forma objetiva, como manifestação da conduta humana no mundo fático.

            Entender diferente seria o mesmo que olvidar o princípio da isonomia, que garante tratamento igual para idêntica situação jurídica, assegurando que nenhuma norma (ainda que escrita em lei, no seu sentido estrito) pode estabelecer diferenciações desarrazoadas.

            Tal princípio constitucional elegido como direito fundamental e, portanto, cláusula pétrea de nosso sistema normativo, é afrontado diretamente pelas Resoluções do CNJ/CNMP, uma vez que a mesma atividade pode ou não ser considerada como jurídica para os fins de contagem dos três anos, dependendo apenas de o sujeito possuir ou não o diploma de bacharel em Direito.

            Isso ocorre porque as referidas resoluções nutriram o conceito de atividade jurídica de ações que não são executadas, necessariamente, por bacharel em Direito, afirmando apenas que se encaixam na definição de "atividade jurídica" aqueles trabalhos que requeiram, primordialmente, conhecimentos jurídicos.

            Exemplifico.

            Suponhamos que na Justiça Estadual existam dois servidores ocupantes do cargo efetivo de oficial de justiça, supondo ainda que o requisito admissional é nível médio completo, como ocorre em alguns tribunais, ambos desempenham, portanto, a mesma atividade.

            Considerando, em nossa hipótese, que apenas um dos dois possua bacharelado em Direito, inobstante desempenharem idênticas funções e da necessidade de conhecimento jurídico para tal, apenas para um destes será computado tempo para se completar os três anos de atividade jurídica, para o outro somente se iniciará a contagem a partir da conclusão da graduação em Direito.

            Imaginemos uma outra hipótese: um servidor público com 10 anos de carreira na Receita Federal, em um cargo cujo requisito admissional é curso superior em qualquer área, resolve cursar Direito, para tal teremos que inobstante já possuir um tempo mais que razoável num cargo que exige conhecimento jurídico no dia-a-dia tal período só será computado como atividade jurídica quando, depois de formado, ele continuar a praticar exatamente os mesmos atos que já praticava, por adicionais três anos (considerando o impedimento objetivo desses profissionais ao exercício da advocacia).

            Assim, o servidor deste nosso último exemplo só poderá se candidatar ao cargo de juiz/promotor quando, além dos 10 anos iniciais, 5 anos para completar o curso de Direito e exercer as funções inerentes ao seu cargo por mais 3 anos, totalizando 18 anos de uma atividade que é considerada em nosso sistema normativo como jurídica para admissão em concursos para juiz/promotor.


V– Conclusão

            Por tudo que aqui foi exposto, podemos concluir pela impossibilidade de utilização de uma pseudovontade do legislador para inovar no sistema jurídico por instrumento infralegal, desvirtuando os dispositivos constitucionais que estabelecem a necessidade de três anos de atividade jurídica para ingresso nas carreiras da magistratura e do Parquet.

            O princípio da unidade da Constituição impõe o acatamento, em todas as normas sobre concurso público, do requisito objetivo da reserva legal para criação de qualquer restrição ao acesso a cargos públicos.

            Apenas a lei pode reduzir a amplitude do conceito de "atividade jurídica" e mesmo ela não pode determinar que certa ação é jurídica com base no sujeito executor de determinada conduta, sob pena de que para uma mesma atividade existam duas situações jurídicas de acordo apenas com a titulação ou não do agente, ferindo mortalmente o princípio da igualdade.

            Dessa forma, a inconstitucionalidade formal e material das Resoluções nº 11 do Conselho Nacional de Justiça e nº 04 do Conselho Nacional do Ministério Público é evidente por tudo quanto exposto.


VI – BIBLIOGRAFIA

            DANTAS, Ivo. Princípios Constitucionais e Interpretação Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1995.

            LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001

BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: Promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1992.

BARROSO, Luíz Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996.

            MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada: E Legislação Constitucional. 4. ed. São Paulo: Atlas S.a., 2004

            FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas S.a., 2003.


NOTAS

            01 BARROSO, Luíz Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996

            02 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: Promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1992. 290 p.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIANA JUNIOR, Dorgival da Silva; OLIVEIRA, Carine Nunes de Albuquerque. A inconstitucionalidade da atual regulamentação do conceito de atividade jurídica. Inconstitucionalidade material e formal das Resoluções nº 04 do CNMP e nº 11 do CNJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1188, 2 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8998. Acesso em: 24 abr. 2024.