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Eco na interpretação constitucional

A falta que a intenção do texto faz à sala da compreensão da norma

Eco na interpretação constitucional: A falta que a intenção do texto faz à sala da compreensão da norma

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À luz da evolução literária de Umberto Eco, expomos a importância da intenção do texto à atividade de interpretação no direito, sobretudo na jurisdição constitucional.

Já percebeu que, em uma sala vazia, limitada apenas por suas paredes, o som emitido por você retorna aos seus ouvidos de forma aparentemente duplicada? Quando esse fenômeno acontece em uma variação temporal superior a 0,1 (um décimo) de segundo, a Física dá o nome de ‘eco’. Fantasticamente, é como se o ambiente estivesse dialogando com o emissor, devolvendo-lhe como resposta a mesma mensagem proferida.

Já experimentou, porém, repetir a mesma ação em uma sala habitada, com móveis e obstáculos? Muito provavelmente, você ouvirá os dois sons – a voz emitida e a devolução sonora – em um intervalo de tempo extremamente próximo, de modo que não conseguirá distingui-los, o que a Física vai denominar de ‘reforço’.

Essa explicação simplória e sintética dos dois fenômenos físicos (excluída, por fins didáticos, a ‘reverberação’), descontextualizada, pouco significaria ao Direito, mas as contribuições literárias do filósofo e semioticista italiano Umberto Eco dão sentido à divagação preliminarmente empreendida. Explica-se.

Numa marcha de restauração do direito constitucional a partir da segunda metade do século XX, constitucionalismo e democracia se uniram em prol de um novo modelo político: o Estado Constitucional. No Brasil, logicamente, à vista de um regime excepcional de mais de duas décadas, essa nova realidade constitucional, o pós-positivismo neoconstitucionalista, é instaurada pela promulgação da Constituição de 1988, que virtuosamente fez a transição de uma ordem autoritária e violenta para um Estado democrático de Direito.

A realidade neoconstitucionalista pós-positivista, vivenciada no Brasil a partir da redemocratização, trouxe à interpretação da norma jurídica traços axiológicos notáveis e indispensáveis à vivência do Direito, pressupondo uma nova hermenêutica, apta à distinção entre interpretação e concretização das normas jurídicas, mormente em tempos de constante necessidade de reafirmação da veia democrática contemporânea.

Essa ‘Nova Hermenêutica’, pós-bélica e humanista, não se restringiria a conhecer e revelar as vontades e objetivos da lei através do conhecimento técnico do intérprete, mas sim cuidaria de posicionar o jurista como cocriador do Direito, aditando o trabalho do legislador nos limites das escolhas possíveis dentro dos eixos semânticos e hermenêuticos. Nas palavras do ilustre Professor Paulo Bonavides[1] (2016, p. 591):

 A distinção é relevante desde o aparecimento da Nova Hermenêutica, que introduziu o conceito novo de concretização, peculiar à interpretação de boa parte da Constituição, nomeadamente dos direitos fundamentais e das cláusulas abstratas e genéricas do texto constitucional.

Nesse papel renovador do neoconstitucionalismo, o exercício de jurisdição constitucional ganha contornos dinâmicos de atuação dos intérpretes, conferindo-lhes protagonismo na aplicação do Direito manifestado na delimitação do alcance e extensão da norma. Trata-se de uma empreitada de reaproximação entre o Direito e a Filosofia, exigindo do julgador uma leitura moral da norma, compreendendo o fim social pretendido e o produzindo através daquela atividade jurisdicional. Válido trazer a doutrina do Professor Luís Roberto Barroso[2] (2009, pp. 244-245):

A ciência do Direito assume um papel crítico e indutivo da atuação dos Poderes Públicos, e a jurisprudência passa a desempenhar novas tarefas, dentre as quais se incluem a competência ampla para invalidar atos legislativos ou administrativos e para interpretar criativamente as normas jurídicas à luz da Constituição.

Malgrado a doutrina barrosiana abrigue convicções de criatividade e compreensão aditiva, o professor constitucionalista preza por esclarecer que essa ideia não pretende escudar voluntarismos ilimitados, defendendo como medida para tal perigo o fomento ao princípio da proporcionalidade.

Parece-nos, nesse ponto, que a doutrina pós-positivista, também no contexto neoconstitucionalista, esbarra num paradoxo. Negar o subjetivismo desmedido do intérprete, mas reconhecer a necessidade da proporcionalidade como contrapeso a esse voluntarismo, é admitir – conscientemente ou não – que o exercício jurisdicional é permeado de particularismos pessoais, legitimados a partir de uma leitura moral – que se reserva aos conceitos individuais do julgador – do Direito.

Dito isso, pode-se dizer que o neoconstitucionalismo cuida de uma conformação entre norma (aí também inseridos os princípios) e a justiça de seu fim, o que de alguma forma foi muito benéfico à Sociedade, mas também alçou, na experiência brasileira, o Supremo Tribunal Federal (STF) a um protagonismo tão notório que, por vezes, poderia – como de fato já ocorreu – encorajar a Corte a extrapolar os limites de uma jurisdição constitucional pós-positivista.

Isso fica claro no tema da execução provisória de sentenças penais condenatórias. Levado por um fervo de combate à corrupção, o STF abriu precedente criativo para entender pela constitucionalidade da conhecida ‘prisão em segunda instância’, mas precisou revisitar a sua jurisprudência para fazer valer não só o conteúdo constitucional formal, o texto bruto do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição, mas também a constituição material: o princípio da presunção de inocência, a amplitude do direito de defesa e o devido processo legal.

Sob essa análise, outros exemplos temerários de interpretação constitucional criativa do STF emergem à análise mais acurada da doutrina, indicando sinais de desvirtuação do propósito pós-positivista no exercício da atividade jurisdicional e da virtude jurídica que o neoconstitucionalismo representa ao julgador-intérprete, ao extrapolar a liberdade de compreensão da norma constitucional para além dos limites semântico-hermenêuticos da intenção do texto.

É o que se pode flagrar do Tema nº 897 de Repercussão Geral (RE nº 852.575), em que o STF também ignorou não só a clareza do texto constitucional, mas sobretudo o privilégio do acesso aos bastidores da norma posta à análise, apreendidos através das notas taquigráficas da Assembleia Nacional Constituinte, para aditar o comando do § 5º, artigo 37, da Lei Maior e, num exercício de jurisdição constitucional criativa, posicionar-se pela imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário por ato doloso de improbidade administrativa.

Nesse sentido, o trocadilho do título do presente ensaio é tanto quanto insólito, mas aparentemente válido: estudar (Umberto) Eco é essencial para se entender os ecos na interpretação constitucional.

A obra do filósofo e escritor italiano, autor do mundialmente conhecido ‘O Nome da Rosa’, percorre um caminho literário tanto curioso quanto útil à compreensão da importância dos limites da interpretação.

Num primeiro momento, em Obra Aberta[3] (2005), Umberto Eco lança luz sobre o protagonismo do leitor na interpretação e significação dos textos, como se a ele fosse conferido o poder de ativamente dar às palavras o sentido que quiser (tal qual a personagem Humpty Dumpty, em Alice Através do Espelho, de Lewis Caroll, como bem ilustra o Professor Lenio Luiz Streck).

Num aparente exercício autocrítico, porém, Eco desperta para o risco desse subjetivismo interpretativo, tratando em Interpretação e Superinterpretação[4] (2018) de um feixe possível de intepretações a partir da coisa – o texto – observada, dentre as quais sempre haverá aquela incompatível com os limites semânticos daquele conjunto de palavras, a denominada superinterpretação.

Eco, em sua obra, valorosamente persegue aquilo que ele denomina de intenção do texto, um fenômeno resultado do equilíbrio harmônico entre o intencionalismo dos fiéis ao autor e o radicalismo dos que professam a supremacia do leitor. Na busca por um critério ideal de interpretação de um texto, o filósofo italiano (ECO, 2018) bem registra:

Qualquer interpretação feita de uma certa parte de um texto poderá ser aceita se for confirmada por outra parte do mesmo texto, e deverá ser rejeitada se a contradisser. Neste sentido, a coerência interna do texto domina os impulsos do leitor, de outro modo incontroláveis.[5]

Vale dizer, quem tenta compreender, como defende o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, maior representante da Hermenêutica Filosófica, está exposto ao erro de opiniões prévias, mas a tarefa fulcral da compreensão é elaborar adequados projetos das coisas, que nelas devem se confirmar, de modo que só se alcança quando as opiniões prévias que avançam dentro do círculo da compreensão não são arbitrárias.

Nesse paralelo hermenêutico doutrinário, importante lição nos é dada pelo Professor Lenio Streck[6] (2013, p. 179):

Para Gadamer, aquele que pretende compreender não pode entregar-se desde o princípio à sorte de suas opiniões prévias e ignorar a mais obstinada e consequentemente possível opinião do texto.

Portanto, na medida em que admite a construção do texto a partir e através da interpretação, Eco conclui que, se ainda não havia maturidade para definir um critério ideal de extração da intenção do texto, haveria, doutra banda, algumas balizas de identificação do inadequado, do extrapolado, da superinterpretação.

Esse limite, à luz da contribuição de Umberto Eco à literatura mundial, é a materialidade da coisa interpretada, a sua textualidade. Em Os Limites da Interpretação[7] (2015), Eco estabelece que há, no texto, um sistema de significação e coerência textual no qual a semântica das palavras se alicerça, reputando-se por inviável qualquer interpretação que fuja à fronteira desses limites hermenêuticos.

Isso porque, como leciona Hans-Georg Gadamer[8], para que a atividade interpretativa se faça exitosa, imprescindível é que ela também seja verificável, isto é, que os pré-conceitos se confirmem na própria coisa – o texto.

Nesse diapasão, a conveniência da superinterpretação, incoerente e alheia ao texto e aos seus sistemas de significação – ou seja, à intenção do texto, repousa na conformidade de seu alinhamento com a vontade do leitor, que se assenhora dos limites semântico-hermenêuticos para forjar conclusões até então inacessíveis através da coisa interpretada.

Retomando a sintética explanação física que inaugura o presente ensaio, no âmbito do Direito, o microssistema do exercício jurisdicional de interpretação da Constituição pode ser entendido como uma sala, um ambiente em que vários obstáculos se impõem às vozes do leitor, nesse caso o julgador-intérprete.

No Tema de Repercussão Geral nº 897, por exemplo, quando o Supremo Tribunal Federal, empenhando sobre a norma do artigo 37, § 5º, da Constituição de 1988, uma interpretação volitiva investida de uma carga subjetivista-axiológica de combate à corrupção, macula a compreensão da Lei Fundamental com a sua intenção – leitor daquele texto, a de que ali se preveria uma suposta imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário por ato doloso de improbidade administrativa.

Todavia, à medida que o julgador-intérprete retira daquela ‘sala da compreensão’ da norma constitucional o obstáculo da intenção do texto, toda mensagem emitida pelo sujeito naquele vácuo a ele retornará tal qual proferida, inclusive quando carregada de prejuízos ilegítimos: é o eco da interpretação (neo)constitucional.

É dizer: naquele espaço vazio, se o julgador ali manifesta a sua intenção de que o texto constitucional desvele uma implícita intenção de imprescritibilidade, nada lhe retornará aos seus pavilhões auditivos, senão o eco de sua voz, reproduzindo exatamente aquilo que se pretendia ouvir, viciando o julgamento da matéria pelo notório intento de fazê-lo dizer o que efetivamente não diz.

Muitas vezes, no exercício interpretativo, os comandos normativos equivocados se originam desse eco. Lança-se sobre a norma um pré-conceito ilegítimo e, na renúncia aos critérios hermenêuticos de investigação semântica, a exemplo de sua intenção, ela devolve uma condição de realização (como define Konrad Hesse, em ‘A Força Normativa da Constituição’) abertamente distorcida do feixe de interpretações possíveis para aquele texto.

É a já mencionada superinterpretação de Eco, um movimento de desrespeito aos limites semânticos – interpretações possíveis – do texto, que deságua na naturalização do ativismo judicial, recorrentemente ofensiva ao Direito, sobretudo no âmbito do exercício da jurisdição constitucional, como no STF.


[1] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional – 31ª ed., atual, - São Paulo : Malheiros, 2016.

[2] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Brasileiro: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.

[3] ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2005.

[4] ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2018.

[5] Ibid., p. 76.

[6] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 11 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

[7] ECO, Umberto. Os limites da interpretação. São Paulo: Perspectiva, 2015.

[8] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis, Vozes, 1997.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO, Ítalo Alexandre do. Eco na interpretação constitucional: A falta que a intenção do texto faz à sala da compreensão da norma. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6644, 9 set. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/92947. Acesso em: 25 abr. 2024.