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Crise dos aeroportos: quem vai pagar os prejuízos?

Uma reflexão sobre a responsabilidade objetiva das agências de viagens e turismo

Crise dos aeroportos: quem vai pagar os prejuízos? Uma reflexão sobre a responsabilidade objetiva das agências de viagens e turismo

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Resumo:

O espaço aéreo brasileiro vive uma crise sem precedentes na história. O caos provocado nos aeroportos, após o acidente com o vôo 1907 da Gol, tem provocado atrasos e cancelamentos diários de vôos, gerando um grande infortúnio para milhares de passageiros. Os prejuízos aos consumidores são incalculáveis: negócios não fechados, contratos não cumpridos, vendas não realizadas, aborrecimento, constrangimento, humilhação e inúmeros outros danos de ordem moral e material. Neste contexto, ressurge a polêmica a respeito da responsabilidade objetiva das agências de viagens e turismo. O tema já é objeto de discussão no Congresso Nacional, por meio de um Projeto de Lei, já aprovado na Câmara, e em tramitação no Senado.


Introdução

A crise no espaço aéreo brasileiro, tem resultado no cancelamento e atraso diário de inúmeros vôos, gerando a revolta de milhares de passageiros face aos transtornos causados pelas longas esperas, falta de informações, negócios não cumpridos e tantos outros infortúnios aos passageiros que viajam a negócio ou a turismo.

O caso vai ensejar, naturalmente, inúmeras ações judiciais, não só contra a Infraero, mas também diretamente contra as agências de viagens e turismo que emitiram os bilhetes, face à responsabilidade civil objetiva que estas possuem em relação aos seus clientes. O problema levanta a polêmica acerca da responsabilidade objetiva das agências. A propósito, o tema já é objeto de discussão no Congresso Nacional, através do Projeto de Lei 5.120/90, já aprovado na Câmara, e em tramitação no Senado.


A Responsabilidade Objetiva como Regra

A bem da verdade, a polêmica em torno da responsabilidade objetiva sempre caminhou paralelamente à sua própria evolução no direito privado. Ela deixou de ser um instituto previsto de forma esparsa em alguns diplomas legais, para se tornar uma regra no ordenamento jurídico positivo. A Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) abriu de vez as portas para uma tendência cada vez maior da "Teoria do Risco", onde aquele que pelo mero exercício de uma atividade econômica assume o risco pelos danos e vícios decorrentes desta atividade ainda que não tenha culpa pelo fato ocorrido.

Mais recentemente, novo Estatuto Civil também tratou de absolver a teoria do risco no regramento das relações sociais, o que se pode observar em diversos dispositivos previstos no Título da Responsabilidade Civil. Assim, parece que a teoria do risco, por meio da qual repousa a responsabilidade objetiva, ingressou no ordenamento como verdadeira regra geral.


Modalidades do Risco

Todavia, fato é que a imprecisão sobre a modalidade de risco que incide nas diferentes atividades econômicas tem dado azo a situações distorcidas no escopo maior de se buscar a justiça por meio da prestação jurisdicional. Não restam dúvidas de que o instituto da responsabilidade objetiva constituiu uma inovação no direito privado, mas o seu alcance reclama por uma delimitação, sobretudo no que diz respeito à sua incidência sobre determinadas atividades, como é o caso das agências de viagens e turismo, de modo a não considerá-la de forma tão absoluta.

A este respeito, é oportuno trazer a lume o fato de que a Teoria do Risco afigura-se sob diversas modalidades, dentre as quais, as teorias do risco-proveito e do risco integral.

A teoria do risco-proveito, em síntese, é aquela cuja responsabilização pelo dano recai, independentemente de culpa, sobre "todo aquele que tire proveito de determinada atividade que lhe forneça lucro ou vantagem" (Enciclopédia Jurídica Leib Soibelman, 2005). No dizer de Cavalieri, "onde está o ganho, aí reside o encargo – ubi emolumentum, ibi onus". (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 3ª ed. rev., aum. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p.167.)

Por sua vez, o risco integral é a modalidade mais extrema da Teoria do Risco, onde nem mesmo o nexo de causalidade, entre o dano e a conduta do seu causador, seria necessário para se exigir a reparação civil. Para alguns, até mesmo o caso fortuito e a força maior seriam irrelevantes no risco integral. O risco integral assume, pois, um caráter absoluto da incidência da responsabilidade objetiva, razão pela qual não teve boa receptividade junto à doutrina.

Em que pese o sentido amplo do termo, o risco-proveito não se confunde com o risco integral, posto que naquele o caráter objetivo da responsabilidade não é tão absoluto quanto neste. Ou seja, o risco-proveito dispensa do ônus da prova em favor da vítima, mas, por outro lado, admite hipóteses de elisão da responsabilidade. Todavia, o risco-proveito poderá assumir feitios do risco integral, porquanto não se delimita precisamente o alcance daquele instituto, ou seja, até que ponto a sua aplicabilidade é justa para solucionar todas as situações concretas que ocorrem nas relações de consumo.

Como toda regra, a teoria do risco também é passível de exceção, tal como acontece com a sua não incidência sobre os profissionais liberais (art. 14 § 4º do CDC). Para estes, ainda prevalece a teoria da culpa, sob o fundamento de se tratarem de atividades intuitu personae, e também porque, na maioria das vezes, nelas não há garantia de resultado.

Por outro lado, parece razoável que outras atividades, como é o caso das agências de viagem e turismo, dada à sua natureza, também mereçam uma especial atenção no que diz respeito à aplicação da responsabilidade objetiva. A falta de uma melhor delimitação deste instituto, para o caso específico destas agências, tem as colocado sob a ótica do risco integral, chegando-se ao extremo de desconsiderar, por exemplo, o caso fortuito e a força maior (omissos no CDC), como causa de exclusão da responsabilidade.

A omissão pelo CDC do caso fortuito e da força maior não significa que tais fatores deixaram de ser considerados para efeito da elisão da responsabilidade, conforme já pronunciou o STJ: "O fato de o artigo 14, § 3º do Código de Defesa do Consumidor não se referir ao caso fortuito e à força maior, ao arrolar as causas de isenção de responsabilidade do fornecedor de serviços, não significa que, no sistema por ele instituído, não possam ser invocadas." Acórdão RESP 120647/SP 1997/0012374-0 DJ: 15/05/2000 - PG: 00156.

Todavia, em que pese entendimentos doutrinário e jurisprudencial reforçando a subsistência do c.f. e da f.m., fato é que a forma aberta com que a teoria do risco vem incidindo tem incentivado a proliferação das demandas judiciais, e até mesmo julgados, ignorando estes fatores em explícita adesão à teoria do risco integral.


O Problema da Atividade de Intermediação

A adoção da teoria do risco, como regra no ordenamento civil e consumerista, adequa-se com maior facilidade nos casos ou atividades cuja execução ou o controle é feito diretamente pelo responsável. Todavia, referido instituto, mesmo sob a ótica do risco-proveito, não tem convivido de forma tão pacífica quando aplicado a certas atividades cuja intermediação é a essência do negócio, como é o caso das agências de viagens e turismo. Por conseguinte, ao contrário dos outros ramos empresariais as agências possuem, basicamente, duas particularidades que justificam um especial regramento:

a)a atividade viagem e turismo pressupõe uma cadeia de fornecedores (transporte, hotéis, restaurantes, shows, guias, passeios, etc.), o que implica, comparativamente aos demais ramos empresariais, numa maior probabilidade de ocorrência de vícios;

b)as agências não realizam a execução direta dos serviços prestados. Apenas intermedeiam as prestações de serviço.

A natureza estritamente intermediária pressupõe a impossibilidade de execução e controle direto de cada serviço prestado pela cadeia de fornecedores. Neste sentido, algumas situações concretas que ocasionam vícios na fruição turística ou nas viagens merecem uma regulamentação mais específica, na medida em que podem constituir uma justa excludente de responsabilidade das agências.

Por certo, as agências de viagem e turismo devem primar pela máxima qualidade dos fornecedores de serviços envolvidos. Mas não poderão evitar situações anômalas que, dado ao seu caráter imprevisível ou inevitável, acabam fugindo ao seu controle. A atual crise dos aeroportos, por exemplo, caracteriza, em relação às agências de viagens e turismo, caso fortuito e força maior, o que pode elidir a responsabilidade destas em relação a danos morais e materiais decorrentes de fatos oriundos exclusivamente das empresas públicas responsáveis pelo correto funcionamento dos aeroportos.


Incidência Imprópria do Risco Integral

Em alguns casos, tal como a presente crise dos aeroportos, a incidência da responsabilidade objetiva e solidária sobre as agências de viagens e turismo pode assumir feitios da teoria do risco integral, configurando uma injusta aplicação do direito. Tratam-se de fatos alheios à vontade dos contratantes e que não decorreram da negligência, imprudência, imperícia das agências.

Dentro deste entendimento, não se visa defender a extinção da responsabilidade objetiva no que tange às agências de viagens e turismo. No entanto, parece razoável concebê-la no que se refere à obrigação de "agir com diligência" no âmbito de suas atribuições, enquanto intermediárias dos serviços de viagem e turismo. Destarte, responderão objetivamente pela negligência ou omissão que cometerem em toda a tarefa de programação da viagem ou do pacote turístico, a exemplo da propaganda enganosa, erro na emissão de bilhetes, omissão ou erro de informações, contratação de hotel com padrão inferior ao descrito no contrato, e outros. Note-se que a programação, os contatos, o planejamento, as informações sobre o roteiro etc., são funções próprias das agências e por elas executadas diretamente.

A ausência desta melhor delimitação da responsabilidade objetiva, no caso específico das agências de viagens e turismo, tem as submetido ao extremismo do risco integral, dando azo ao abuso das demandas judiciais que sequer levam em consideração o caso fortuito, a força maior e o fato de terceiro como possíveis excludentes de responsabilidade. É o rigor lembrado por CAVALIERI: "Colocada no limiar do razoável, e aceita em casos excepcionalíssimos, a teoria do risco integral atribui a obrigação de indenizar pelo simples fato de ocorrência do dano, independentemente da existência de qualquer outro fator, como culpa ou nexo de causalidade. Nessa condição, a responsabilidade pela indenização permanece mesmo ante a existência de culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro, caso fortuito ou de força maior" (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 3ª ed. revista, aumentada e atualizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2002 p.169.)


A Necessidade de Delimitação da Responsabilidade Objetiva

De todo o exposto, aponta-se para a necessidade de se delimitar a responsabilidade objetiva, vale dizer, relativizar a sua incidência, de modo a não fechar os olhos para situações concretas que evidenciam a ausência de culpabilidade das agências de turismo. Do contrário, está-se construindo um injusto desequilíbrio processual em desfavor das agências que, além dos abusos processuais com arrimo no dano moral, também as deixará a mercê da sorte, ante a sua natural impossibilidade de controlar diretamente cada um dos serviços prestados pela cadeia dos fornecedores.

Como foi dito, não se trata de extinção da responsabilidade objetiva das agências, mas calha à justiça delimitá-la em relação às atividades por elas diretamente exeqüíveis. No caso da crise dos aeroportos, certamente que as agências devem tomar todas as providências necessárias para o conforto e o destino de seus passageiros. Mas será justo responsabilizá-las pelos danos morais e materiais advindos por culpa exclusiva das empresas públicas responsáveis pelo funcionamento dos aeroportos? Nesta intelecção, a responsabilidade objetiva das agências, sob a ótica do risco-proveito, não seria aplicada nos moldes do risco integral, cujo extremismo afugenta a noção de justiça. No dizer de Alonso: "a teoria do risco integral é taxada, por aqueles que defendem a responsabilidade subjetiva, de brutal, levando a conseqüências iníquas." (ALONSO, Paulo Sérgio Gomes. Pressupostos da responsabilidade civil objetiva. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 57.).


Conclusão

Portanto, o precitado Projeto de Lei nº. 5120/01, e mais ainda, a Lei Geral do Turismo, que também tramita no Congresso, vale dizer, bem servem para suscitar o importante debate acerca do alcance da responsabilidade objetiva das agências de viagens e turismo. Uma legislação mais específica, neste caso, será muito bem-vinda no sentido de relativizar este novo instituto. A falta de uma delimitação da responsabilidade objetiva das agências de viagens e turismo pode favorecer convenientemente uma das partes litigantes, mas, por outro lado, ela pode ser injusta quando o seu caráter absoluto fecha os olhos para situações concretas que evidenciam a isenção de culpa e responsabilidade de quem de direito.


BIBLIOGRAFIA

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 3ª ed. revista, aumentada e atualizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.

ALONSO, Paulo Sérgio Gomes. Pressupostos da responsabilidade civil objetiva. São Paulo: Saraiva, 2000.

ROGRIGUES, Sílvio. Direito Civil - Responsabilidade Civil. 20ª ed., vol. 4. São Paulo: Saraiva, 2003.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO, Itamar André Rodrigues do. Crise dos aeroportos: quem vai pagar os prejuízos? Uma reflexão sobre a responsabilidade objetiva das agências de viagens e turismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1266, 19 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9303. Acesso em: 16 abr. 2024.