Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/9429
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

O sentimento de justiça da comunidade teresinense

O sentimento de justiça da comunidade teresinense

|||||

Publicado em . Elaborado em .

"Bem aventurados os que têm sede de Justiça porque eles serão saciados."
          Jesus Cristo

"Quem se deixa intimidar perante a idéia, também será incapaz de apreender o conceito."
          Goethe


JUSTIÇA

Desde sempre os homens te perseguiram
Como se a si mesmos buscassem
Desde sempre os homens te intuíram
Como se os anjos lhes soprassem
A sublime beleza que te reveste
Não raro, ao homem desatina
Como a criança a buscar o arco celeste
Que sempre lhe interpõe uma colina
És o bálsamo que sana o sofrimento
És sopro divino, poção homeopática
És irracional, coisa do sentimento
E és como a verdade matemática
Perco-me em teu corpo impalpável
Em tua ausência te reconheço
Contigo desdenho o inalcançável
E em teu manso colo adormeço.

Paulo Henrique Alves Ferreira
Acadêmico de Direito – UFPI


RESUMO

A presente pesquisa consiste numa perquirição do sentimento de justiça predominante na comunidade teresinense, fundada em um conjunto de enquetes realizadas por alunos da Universidade Federal do Piauí, que cursavam no segundo semestre letivo de 1998 a disciplina Filosofia do Direito II. A relevância da Justiça para o homem, nos planos teórico e prático, constitui motivo bastante para qualquer labor do espírito voltado a compreendê-la. Adotou-se um marco referencial teórico que englobava várias das acepções de justiça cunhadas pelas escolas filosóficas ao longo dos tempos, sendo, a posteriori, acrescidas de outras reveladas no decorrer da análise das fontes, em face de sua citação pelos entrevistados. Valeu-se aqui dos métodos hermenêutico e comparativo, além de uma abordagem crítica, buscando ter sempre os dados empíricos somente como bases a partir das quais se possam inferir ou perquirir informações verdadeiramente relevantes. Mostrou-se dominante a visão institucional e/ou legal da justiça, revelando um pálido indício de mudança as opiniões femininas, as dos neófitos no saber jurídico e as dos não-juristas, divergentes que foram da maioria.


SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; I – QUADROS DA DEUSA: THÊMIS SOB VÁRIOS ÂNGULOS, 1.1.Daquilo que a Justiça sempre foi, 1.1.1 Justiça como Expressão da Vontade do Cosmos, 1.1.2 Justiça como Compensação ou Retribuição, 1.1.3 Justiça como Virtude, 1.1.4 Justiça como Igualdade, 1.1.5 Justiça como Vontade ou Razão Divina, 1.1.6 Justiça como Ideal de Liberdade, 1.1.7 Justiça como Bem da Sociedade, 1.2.Daquilo que a Justiça se tornou, 1.2.1 Justiça como Princípio, Valor ou Ideal, 1.2.2 Justiça como Harmonização Social, 1.2.3 Justiça como Instituição ou Lei, 1.2.4 Justiça como Realização do Justo ou Eqüidade, 1.2.5 Justiça Inexistente (não existe), 1.2.6 Justiça como Fruto da Sociedade, II – O SENTIMENTO DE JUSTIÇA EM TERESINA, 2.1Subindo o Monte Olimpo rumo à morada de Thêmis, 2.2.Do alto da montanha divisa-se a lei, 2.3.Como entender que a Justiça é a lei (e algumas outras coisas), 2.4.A Justiça e as questões de gênero, 2.4.1.Na opinião dos homens e das mulheres a Justiça veste toga, 2.4.2.Homens e mulheres confirmam: a Justiça é votada por representantes eleitos, 2.4.3.Transitado em julgado: a Justiça é tangível; III – O MUNDO PROFISSIONAL E A JUSTIÇA, 3.1.A Justiça e os "de fora", 3.1.1.As opiniões dos "de fora" não apagam a luz no fim do túnel, 3.1.2.Os sábios "leigos" e sua Justiça que não é só a lei, 3.1.3.A vitória do legalismo institucional, 3.1.4.As questões de gênero nos "leigos", 3.2. A Justiça e os profissionais da Justiça, 3.2.1.Justiça dos "iniciados": lei, virtude ou compensação?, 3.2.1.1.A communis opinio doctorum: a Justiça de tijolos, togas e letras, 3.2.12.O tribunal não reforma a sentença: a Justiça está escrita em , códigos, 3.2.2.As questões de gênero nos "iniciados", 3.3. Os "leigos" e os "iniciados" vêem a mesma luz no fim do túnel, 3.3.1.A igualdade na Justiça dos "de fora", 3.3.2.O veredicto da maioria: A lei é dura, mas é a Justiça, CONCLUSÃO ; ANEXO I – TABELAS; ANEXO II – OPINIÕES QUE CLAMAM POR JUSTIÇA; BIBLIOGRAFIA; ÍNDICE DE TABELAS, Ranking das acepções em função do sexo – referente à Tabela 3, Ranking das acepções entre os profissionais de áreas não jurídicas – referente à Tabela 4, Incidência das acepções em função do sexo dentro dos profissionais de outras áreas, Ranking das acepções entre os profissionais de áreas não jurídicas do sexo masculino, Ranking das acepções entre os profissionais de áreas não jurídicas do sexo feminino, Incidência das acepções em função do sexo dentro dos profissionais do direito


INTRODUÇÃO

A partir do momento em que o homem se fez o que é, reunindo em torno de si os elementos que fazem dele o ser racional, lógico, ético e estético único, o sentimento de justiça passou a fazer parte do conjunto de atributos que o acompanha sem cessar, como bússola que lhe dá o norte.

Vingança? Retribuir na medida do feito? Dar a cada um segundo a sua necessidade? Os sentimentos de justiça que os homens cultivaram dentro de si são tantos quantos são os próprios, variando de cultura em cultura, de tempos em tempos, segundo a tradição e as realizações de cada civilização. Essa relação entre o sentimento de justiça de cada indivíduo dentro da comunidade e a história que a constrói é inegável e um tanto quanto óbvia.

Incontáveis páginas foram escritas acerca de tais assuntos e têm sido eles objetos das mais elevadas construções do espírito filosófico desde os primórdios da humanidade. De toda uma gama de conhecimentos que o homem pôde e ainda pode apreender ou, ao menos perceber, ele traçou inúmeras secções [01] — como é próprio da mente humana — para melhor visualizar o que se apresentava à sua razão. Assim também ocorreu com o que chamamos de justiça. Com o evolver da história, o homem pôde aprimorar e depurar o conhecimento que tinha desse todo que lhe era descortinado pela razão.

Como dito, os sentimentos de justiça variam conforme a apreensão de determinado povo ou pessoa, influenciada sem dúvida pelos condicionamentos históricos. Tal exposição, de pronto, já explicaria o fato de existirem inúmeras concepções a respeito da justiça. Certamente a discordância referida não invalida a busca humana em descobrir o que ela seja. Aliás, desde o remoto instante no qual o homem percebeu ser capaz de compreender o que fazia, ou seja, "que sabia que sabia", não deixou a Justiça de povoar suas visões, seus sonhos, suas reflexões e seus pensamentos mais elevados. E pela própria subjetividade desta percepção, limitada como o ser que a realiza, sempre houve e por muito tempo haverá discrepância no assunto ora tratado.

Tal discrepância pode ser notada mesmo em pequenos grupos sociais, não se excluindo, portanto, o campo social analisado nesta pesquisa, qual seja, a comunidade teresinense. Que conteúdo as pessoas desta comunidade pensam e vivem através da palavra justiça? Qual o sentimento de justiça predominante na comunidade referida? Podemos obter observações e/ou conclusões seguras sobre os porquês da comunidade ou pessoas, isoladamente, manifestarem uma concepção de justiça determinada e não outra? E podemos investigar sua relação com as atividades pessoais de cada membro da sociedade? Foram basicamente a estes questionamentos que se procurou responder com o presente estudo.

A fonte na qual beberam os elaboradores da presente pesquisa foi um conjunto de enquetes realizadas por alunos da Universidade Federal do Piauí, que cursavam no segundo semestre letivo de 1998 a disciplina Filosofia do Direito II. Tais entrevistas, realizadas no seio da comunidade teresinense, almejavam averiguar o sentimento pessoal de justiça dos entrevistados e foram solicitadas pelo professor da referida disciplina a título de avaliação. Um grupo de estudantes da citada turma se prontificou a sistematizar os dados obtidos nas ditas enquetes, sob orientação do Professor e Mestre em Direito, também responsável pela cadeira já indicada, Marcelino Leal Barroso de Carvalho.

Como norteamento na avaliação dos dados, adotou-se um marco referencial teórico que, inicialmente, continha os seguintes paradigmas:

1.justiça como expressão da vontade do cosmos (escolas Eleática, Jônica e Atomística);

2.justiça como compensação ou retribuição (escolas Pitagórica e Aristotélica);

3.justiça como virtude (escolas Socrática, Platônica e Estóica);

4.justiça como igualdade (escolas Pitagórica e Aristotélica);

5.justiça como vontade ou razão divina (Escolástica e Patrística);

6.justiça como ideal de liberdade (Renascimento e Revolução Francesa);

7.justiça como bem da sociedade (Materialismos Histórico e Dialético);

8.justiça libertadora (escola Crítica).

A busca fundamental dos pesquisadores foi, então, a de determinar o sentimento de justiça predominante em Teresina, ou melhor, de enquadrá-lo nas proximidades das acepções de Justiça defendidas pelas escolas filosóficas do pensamento humano ao longo dos tempos.

Estes agrupamentos de idéias mostram-nos que o homem ainda não alcançou um consenso quanto ao justo, visto que, já vislumbrara, em alguns momentos, a justiça como algo externo a ele e em outros, como ponto constituinte de seu âmago; bem como já tivera sentimento de justiça voltado para o coletivo em certa época, e em outra, a justiça estaria voltada para o indivíduo. Em dados períodos, acreditava que a justiça estivesse relacionada com as forças do cosmos, com mitos ou ainda com deuses ou crenças religiosas. Depois passou a racionalizar o sentimento de justiça crendo que poderia atingi-la através de um conjunto coercitivo de regras de conduta a ser observado por todos.

Todos estes prismas serão abordados nesta pesquisa quando forem tratadas as acepções de justiça adotadas no referencial teórico. Contudo, ao lado da estimativa histórica a qual balizou o referencial, as enquetes revelaram junto aos entrevistados outros sentimentos de justiça muito interessantes. Dessa forma, optou-se pela ampliação do quadro de paradigmas, elastecendo a pesquisa para abranger ainda as seguintes acepções:

1. justiça como princípio, valor ou ideal;

2.justiça como harmonização social;

3.justiça como instituição ou lei;

4.justiça como a realização do justo ou eqüidade;

5.justiça como algo que não existe;

6.justiça como fruto da sociedade;

A importância de um trabalho como o aqui delineado está explícita no seu próprio tema, ainda que, para alguns, pouco dados a especulações, a justiça constitua matéria puramente teorética. De qualquer forma, a relevância da Justiça para o homem, seja no plano teórico (no qual se investiga a essência da Justiça, sua Idéia), seja no plano prático (para tornar o ser humano virtuoso e construir uma sociedade onde reine o bem comum), constitui motivo mais que suficiente para qualquer labor do espírito voltado a compreendê-la.

Não há que se negar que a feitura deste tipo de trabalho expande, consideravelmente, a percepção dos próprios pesquisadores do que venha a ser justiça. Em âmbito mais geral o conhecimento do pensamento local acerca do tema tratado serve, para todo indivíduo inserido na comunidade, como ponto a partir do qual possa desenvolver sua atuação pessoal; seja identificando-se com a opinião geral, seja desta discordando, apontando novos rumos que sirvam como arquétipos para uma ação transformadora.

Cabe ainda uma palavra quanto à terminologia empregada no trabalho. No campo das ciências físicas as palavras possuem quase sempre um sentido claro e preciso, o que impede a ocorrência de dúvidas quanto ao seu significado. Os termos próprios destas ciências são passíveis de serem previamente estabelecidos, uma vez que não oferecem resistência a um acordo terminológico. Porém, ao migrarmos para a seara das ciências humanas, encontramos palavras que abrigam uma multiplicidade de idéias. São verdadeiras células permeadas de múltiplos sentidos. Com o intuito de conhecermos a riqueza de seus significados faz-se necessário a cisão destas estruturas celulares. A variabilidade de acepções é muito maior quando se trata de palavras de uso mais freqüente, porque dizem respeito a exigências essenciais à própria vida.

É fácil notar a grande complexidade de palavras como liberdade e igualdade, visto que ao longo do tempo esses vocábulos têm sido aplicados em sentidos diversos e, muitas vezes, conflitantes. Situação análoga acontece com a palavra justiça, cujo valor para a vida humana traduz perfeitamente a razão de tantos sentidos que se lhe agregaram. Por serem palavras que se aprofundam no mundo contraditório dos interesses e das preferências humanas e que refletem os anseios da existência do homem, todas elas não possuem univocidade.

Com o exposto, tão-somente se quis chamar a atenção para o fato de que, no evolver do estudo em mãos, os termos: concepção, sentimento, opinião e idéia, referiram-se a aspectos subjetivos, ou seja, à percepção pessoal dos entrevistados. Por outro lado, termos como: acepção, significado ou mesmo sentido, foram empregados em referência aos paradigmas adotados, emprestando a tais palavras um cunho nitidamente objetivo.

Como já exaustivamente apontado, os dados utilizados neste estudo foram obtidos de entrevistas, algumas dadas oralmente, outras sob forma de questionário. Não há como negar o caráter empírico-analítico da pesquisa. Isto, contudo, não obstaculiza, como evidentemente não ocorreu, o uso dos métodos hermenêutico e comparativo, além de uma abordagem crítica, buscando ter sempre os dados empíricos somente como bases a partir das quais se possam inferir ou perquirir informações verdadeiramente relevantes.

Daqui em diante o leitor entrará em contato com a trilha que os pesquisadores traçaram para a compreensão do sentimento de justiça da comunidade teresinense, seja em alguns momentos dividindo os entrevistados por sexo, seja em outros pela profissão (jurídicas e não-jurídicas). Assim, por meio de tais análises pormenorizadas, espera-se facilitar o entendimento dos resultados obtidos, em especial a prevalência da acepção de justiça como instituição ou lei e a identidade entre as opiniões de homens e mulheres, assim como, de profissionais jurídicos e não-jurídicos.

Finalmente, quanto à estrutura, o estudo foi dividido em três capítulos. O primeiro contém informações gerais sobre os dados utilizados ao longo da pesquisa, assim como considerações acerca das acepções de Justiça que balizaram o trabalho, sejam as difundidas ao longo da história e adotadas inicialmente como paradigmas, sejam as acrescidas à pesquisa em virtude de sua citação nas opiniões dos entrevistados. O segundo engloba análises dos dados em seu panorama geral, definindo o sentimento de justiça predominante em Teresina. Também será exposto um cruzamento de dados mostrando a relação entre o sentimento de justiça e as questões de gênero. O terceiro, por sua vez, envolve relações entre as opiniões (ou concepções) dos entrevistados e a área profissional a que pertencem (jurídica ou não jurídica), não olvidando as questões de gênero dentro do mundo profissional.

O enquadramento das concepções reveladas pelas entrevistas nas proximidades dos paradigmas referidos resultou na construção de tabelas, que serviram de instrumento à distribuição e compreensão dos dados, as quais figuram em anexo. Outrossim, com vistas ao enriquecimento do estudo, algumas das opiniões mais interessantes avaliadas no decorrer da pesquisa foram transcritas em anexo a este fim destinado, acompanhadas de comentários que explicitam quais acepções podem ser nelas verificadas.

Ao término desta jornada espera-se que um pouco da evolução histórica do pensamento humano sobre a justiça tenha sido transmitida. Mas, muito mais que isso, espera-se expor, com fidedignidade aos dados, quais os sentimentos de justiça mais alentados dentro da sociedade de Teresina. Por fim, reafirmamos a essencialidade da Justiça para o homem, esperando possa o estudo filosófico-sociológico aqui apresentado contribuir de alguma forma para o enriquecimento do leitor, seja este acadêmico ou não, posto que o seu tema é inarredável do ser humano.


I – DO "SER" DA JUSTIÇA

O presente capítulo trata das acepções de justiça adotadas no referencial teórico da pesquisa ora exposta. Constitui-se, portanto, de explicações relativamente breves acerca dos paradigmas que nortearam a classificação dos dados coletados ao longo do processo de tabulação [02], especificando os traços essenciais de cada acepção e que opiniões foram nela enquadradas segundo um núcleo central.

Basicamente, as acepções de justiça adotadas na pesquisa desde o seu início foram:

1.Justiça como expressão da vontade do cosmos (escolas Eleática, Jônica e Atomística);

2.Justiça como compensação ou retribuição (escolas Pitagórica e Aristotélica);

3.Justiça como virtude (escolas Socrática, Platônica e Estóica);

4.Justiça como igualdade (escolas Pitagórica e Aristotélica);

5.Justiça como vontade ou razão divina (Escolástica e Patrística);

6.Justiça como ideal de liberdade (Renascimento e Revolução Francesa);

7.Justiça como bem da sociedade (Materialismos Histórico e Dialético);

8.Justiça libertadora (escola Crítica).

Na etapa de classificação dos dados coletados nos trabalhos individuais, contudo, percebeu-se que várias opiniões não se adequavam satisfatoriamente a nenhum dos referenciais acima, ou pelo menos não poderiam ser enquadradas somente nos até agora expostos. A necessidade de alargar os horizontes da pesquisa obrigou os elaboradores à admissão de outras categorias de justiça, não vislumbradas plenamente pelo paradigma teórico adotado de início.

Dado tal fato, as seguintes acepções foram adicionadas às anteriores, buscando com isso uma maior fidedignidade nos resultados posteriormente apresentados:

- Justiça como princípio, valor ou ideal;

- Justiça como harmonização social;

- Justiça como instituição ou lei;

- Justiça como realização do justo/eqüidade;

- Justiça inexistente (não existe);

- Justiça como fruto da sociedade.

Tais acepções são também rapidamente explicadas a seguir, assim como as categorias de opiniões que foram nelas enquadradas.

1.1 Daquilo que a Justiça sempre foi

1.1.1 Justiça como Expressão da Vontade do Cosmos

Foi quando o primeiro raio do pensamento iluminou o céu da mitologia desenvolvida na Grécia que a idéia de Justiça como expressão de uma vontade cosmológica desabrochou.

Convém lembrar que a mentalidade unificadora e dinamizadora dos conhecimentos (que comumente chamamos de Filosofia ocidental) surgida na Grécia Antiga foi resultado de um "longo processo de racionalização da cultura, acelerado a partir da demolição da antiga civilização micênica". [03] É por volta do século VI a.C. que, como é apontado por inúmeros estudiosos, nasce a filosofia como a entendemos hoje. Esse primeiro período do pensar filosófico grego é denominado pré-socrático ou cosmológico, pois os "representantes da filosofia nessa época, interessaram-se, principalmente, pelo mundo físico, pela explicação da origem e da formação do cosmos" [04].

Nesse contexto cosmogônico, onde o homem buscava a apreensão da unidade na multiplicidade, a própria concepção de justiça advinha da compreensão de tal identidade cosmológica. Em outras palavras, sejam os representantes da Escola de Mileto (Tales, Anaximandro, Anaxímenes), sejam os Atomistas (Demócrito, Leucipo) e mesmo os Eleatas (Parmênides, Zenão, Melinos), todos procuravam o entendimento, por meio da razão, das leis que governam o universo (ou cosmos).

Obviamente que as formas de manifestação dessa procura foram diferenciadas; mas na água de Tales, no ar de Anaxímenes, no infinito (ápeiron) de Anaximandro, no Ser parmenídico ou no átomo de Demócrito está sempre presente o princípio único, a "idéia" unificadora. E como antes colocado, as leis que governam o cosmos determinam seu equilíbrio e, assim, a justiça. Injusto é o que agride a tais leis, ou seja, que viola a "vontade do cosmos". Como magnificamente disse Parmênides, "a justiça não permite nem o nascimento nem a morte, mas mantém firme o que é" [05].

Portanto, a justiça seria a manutenção do equilíbrio universal, a expressão de uma vontade cosmológica, inscrita em todas partes do todo (universal). Assim, não constitui a justiça uma determinação humana; ela está na natureza considerada como um todo (cosmos).

Na presente concepção foram enquadradas as opiniões que colocassem o equilíbrio das leis universais (cósmicas) como a própria justiça, ou seja, as que afirmassem a justiça como a manutenção do estado geral do Universo.

1.1.2 Justiça como Compensação ou Retribuição

Semelhante às concepções cosmológicas dos pensadores anteriores a Sócrates é o pensamento de Pitágoras de Samos. No mesmo quadro anteriormente delineado – a busca da unidade (ou identidade) na multiplicidade (ou diferença) - situa-se o pensamento pitagórico.

A Escola Itálica ou pitagórica constituiu transição entre o pensamento jônico (materialista, físico) e o eleático (metafísico-ser). Aqui, o absoluto passa a ser concebido como determinação do pensamento, ou seja, o universal passa a ser um inteligível, o número [06].

Num quadro como esse, a justiça seria um par que, multiplicado por si mesmo, era sempre par. Como colocou Aristóteles, influenciado por essas idéias, o justo implicaria quatro termos: as pessoas para as quais é justo (duas); em outras palavras, uma espécie de proporção [07].

Logo, a compensação e/ou retribuição são as manifestações práticas dessa justiça. O justo se faz, portanto, segundo uma proporção compensatória e retributiva. Assim, a justiça manifesta-se na pena para o crime, na troca entre iguais, no mérito que é recompensado. E ela, como fonte desse todo numérico, que é total e perfeita, também é plena.

Quando da análise das opiniões, usualmente foram aqui classificadas aquelas que apontaram para a punição, o ressarcimento dos direitos, o reconhecimento do mérito como critérios de justiça essenciais (compensação/ retribuição).

1.1.3 Justiça como Virtude

A partir dos sofistas a filosofia grega sofre modificações essenciais, ao transferir o núcleo de pensamento dos elementos materiais, cosmológicos e naturais para o Homem, iniciando-se a fase antropológica do pensamento grego, marcado pela célebre frase de Protágoras: "o homem é a medida de todas as coisas".

A concepção de justiça inicia então a transição da noção de "equilíbrio entre as forças do cosmos" para o âmbito interno do indivíduo, exacerbando-se a subjetividade e o egocentrismo.

A noção de justiça como virtude, fundada na consciência e no bem agir, baseada na Razão e em valores universais nasce com Sócrates, pai do Humanismo grego, que coroa o "século de ouro" com o seu racionalismo antropocêntrico, o que representou um marco fundamental na filosofia de todos os tempos, influenciando mais diretamente os pensamentos platônico e aristotélico.

Para Sócrates a virtude seria expressão da conduta humana, conduta esta que deveria seguir os ditames da Razão, expressando-se esta no bem agir – que seria resultado de uma avaliação moral tão profunda que as conseqüências imediatas e individuais poderiam ser desconsideradas e perderiam seu significado diante da necessidade íntima de agir de acordo com a consciência.

Muitos estudiosos da Filosofia e do Direito pecam ao afirmar que Sócrates não deixou grandes contribuições no que tange à idéia de justiça, negando-lhe relevo ao afirmar que "o que é legal é justo".

A concepção socrática de justiça, bem mais profundamente arraigada em sua filosofia do que muitos pretenderam demonstrar, está em perfeita concordância com o núcleo do seu pensamento: a virtude como retidão da conduta, conscientemente incorporada. Vejamos:

— E crês que quem sabe o que tem que fazer pode julgar que lhe convenha não o fazer?

— Não o creio.

— E conheces alguém que faça coisas diferentes das que julga que é necessário fazer?

— Não.

— Então os que sabem o que as leis ordenam fazem coisas justas.

— Sem dúvida.

— Então definiremos como homens justos os que sabem o que a lei ordena.

Assim, Sócrates identifica a justiça com a ciência, e não necessariamente com as leis. É a ciência que determina a retidão da conduta, expressa no cumprimento das leis. O justo seria então o sábio, o moralmente correto – o virtuoso.

A justiça como virtude também encontra expressão na filosofia estóica.

Para os estóicos a felicidade humana dependeria da aceitação do seu estado de natureza, das coisas como realmente o são.

O estoicismo, contudo, não pregava uma absoluta resignação irracional, de aceitação irrestrita e meramente determinista. Para que o Homem fosse capaz de viver em equilíbrio com a natureza, seria necessária uma aceitação volitiva e, sobretudo, racional, com a renegação das paixões mundanas – só assim seria verdadeiramente livre.

Como Sócrates, os estóicos identificam justiça com retidão de conduta, num rigor tão absoluto que chega a afirmar que "uma ação reta que não é inteiramente reta é uma ação injusta". [08]

Para Platão, a justiça seria a maior das virtudes, tanto no âmbito interno do indivíduo – por organizar os elementos da alma, possibilitando o bom desenvolvimento da personalidade – quanto como critério de organização social, considerando justa a sociedade em que cada um desempenha seu papel no Estado de acordo com suas aptidões.

Aristóteles precisa a justiça como virtude especial, assinalando que o seu objetivo, neste sentido, é que cada um possua o que é seu. [09]

Influenciado, direta ou indiretamente, pelas doutrinas de Platão e Aristóteles, Ulpiano define justiça como a "constante e firme vontade de dar a cada um o que é seu".

Podemos decompor esta definição em dois elementos: o elemento subjetivo, caracterizando pela "constante e firme vontade" e o elemento objetivo, o "dar a cada um o que é seu".

Ambos conjugados sintetizam a concepção moderna de justiça como virtude, observada nas respostas assim classificadas – o primeiro, o volitivo e racional, diretamente relacionado à personalidade humana – o segundo funciona como parâmetro, quando a justiça deixa de pertencer exclusivamente ao interior do indivíduo e parte em busca de concretização.

Devido ao seu relativismo e à sua flexibilidade, a definição de Ulpiano atravessa os séculos, sendo proferida com convicção mesmo por pessoas leigas em Direito e em Filosofia, principalmente no que tange ao seu elemento objetivo, o "dar a cada um o que é seu" (embora o elemento volitivo esteja implícito, já que o termo "dar" pressupõe vontade).

O que é de cada um varia historicamente e de indivíduo para indivíduo. A vontade de, de acordo com ditames da Razão e da consciência, dar a cada um o que lhe é devido, é virtude universal dos justos – possibilitando a continuidade da eterna caminhada que, a cada passo, aproxima a humanidade do horizonte da Justiça.

1.1.4 Justiça como Igualdade

A simbolização numérica preconizada por Pitágoras e o justo meio-termo, expressão aristotélica, representantes da Escola Pitagórica e Peripatética, respectivamente, consubstanciam um conceito de justiça baseado na idéia de igualdade. Desta forma, tem-se dois importantes representantes da Filosofia grega contribuindo para a construção do saber ocidental a partir de idéias extremamente práticas, às quais sempre se voltam os estudiosos quando necessitam trabalhar os conceitos e as idéias aparentemente complexos.

Pitágoras, filósofo nascido em Samos no ano de 571 a.C, desenvolveu suas idéias a partir da premissa de que a essência do universo se encontrava nos números, não somente da maneira simbólica como se compreendem os números hodiernamente, ou seja, a expressão de valores, pois "quando os pitagóricos falam que as coisas imitam os números estariam entendendo essa imitação (mímesis) num sentido perfeitamente realista: as coisas manifestariam externamente a estrutura numérica que lhes é inerente". Pitágoras destacou ainda que a unidade só poderia existir na multiplicidade e que, portanto, uma coisa só existe em relação à outra, que se lhe opõe. Então, o que seria justiça? Ora, como os pitagóricos só entendiam o universo a partir da representação numérica, a justiça seria, neste contexto, o número quatro, ou seja, a multiplicação de dois números pares iguais (2 x 2 = 4). Ressaltando-se que o número par significa, na concepção pitagórica, sinônimo de alteridade, ou seja, de algo que existe em relação a outrem.

Aristóteles, filósofo estagirita nascido em 384 a.C, foi mais além, traçando com seu racionalismo os pilares para uma concepção de justiça calcada no ideal de igualdade, concebendo-a como um termo mediano entre dois extremos. Mister que se verifique, neste contexto, que existiam, na concepção aristotélica, dois tipos de justiça: a geral, entendida como virtude da pessoa, e a particular, que se subdividia em distributiva e corretiva. A justiça distributiva seria aquela aferida de modo proporcional, como por exemplo por mérito; e a corretiva seria, especificamente, a justiça com função igualadora resultando daí o conceito do meio-termo aritmético.

É justamente no conceito justiça corretiva que se encontra um ideal de justiça baseado no pressuposto da igualdade. Explica, pois, Aristóteles, no Livro V de sua obra Ética a Nicômaco, que a justiça funcionaria analogamente à seguinte premissa: dado um segmento AC, medindo 7cm e dado um segmento CB, de 3cm, a justa proporção manda que se igualem os dois da seguinte forma: 7 + 3 = 10. Se a metade de 10 é 5, então o justo meio é 5cm para cada segmento. Ora, se AC possuía 2cm a mais que o segmento CB, então a perda foi de 2cm para AC e o ganho foi de 2cm para CB.

Desta forma metafórica entendia o filósofo estagirita que se conseguiria atingir uma proporção tal que igualaria os dois extremos, transformando a então diferença em uma igualdade aritmética. A justiça seria, portanto, o meio-termo entre a perda e o ganho, cabendo ao juiz estabelecê-la mediante o princípio igualador. Utilizando as singelas e sábias palavras de Aristóteles: "Se o injusto é o não igual, o justo é o igual, e, como o igual é o meio, o justo será um justo meio".

A simplicidade e similaridade dos conceitos pitagórico e aristotélico encerram uma das noções mais profundas de justiça, dentre todas talvez a mais enraizada na mente e no coração do homem contemporâneo, principalmente porque foi a partir do desenvolvimento destas idéias, na Europa revolucionária do século XVIII, que a igualdade viria a figurar como valor intrínseco ao sentimento de justiça, imprimindo-lhe uma dimensão ainda mais significativa.

1.1.5 Justiça como Vontade ou Razão Divina

Numa tentativa de racionalizar e reafirmar a fé, fornecendo alicerces filosóficos sólidos para sua sustentação, despontam na Idade Média duas principais correntes filosófico-teológicas da doutrina cristã, quais sejam: a Patrística e a Escolástica.

A denominação da expressão Patrística deriva de pater (pai) de onde advém patris, isso em virtude de ter sido ela desenvolvida pelos "Padres" da Igreja ou pelos Santos "Padres" entre os séculos II e VI d.C. [10].

Santo Agostinho, o principal expoente da Patrística, foi responsável pela cristianização de Platão, traçando, de forma irrepreensível, paralelos entre a Teoria das Idéias de Platão e o pensamento Cristão. Ele também é considerado precursor de Descartes, de Rousseau e do existencialismo.

Há nele uma forte tendência a opor-se às dualidades extremas, isso talvez decorra de, na juventude, ter entrado em contato com os maniqueus, cuja seita pressupunha um dualismo radical entre o bem e o mal. Santo Agostinho rejeitava de todo a existência de um desvalor absoluto, do mal como princípio absoluto, aceitando tal denominação somente para o bem. Em outras palavras, ele opunha-se à contraposição entre o bem e o mal como forças iguais. Tal forma de pensar, bem como as influências dos estóicos, de Platão e dos neoplatônicos, além dos adeptos do ceticismo, influenciaram sobremaneira a sua concepção do que seria a Justiça.

Para Santo Agostinho, não existe o mal, apenas a ausência de Deus. Ao homem é dado o livre arbítrio o qual pode conduzi-lo tanto à Verdade divina, como ao mal. Este, portanto, seria tão-só fruto do mau uso do livre arbítrio, seria ato de livre decisão ou opção em manter-se longe de Deus; ato da livre vontade humana. Assim, a Justiça, para Santo Agostinho, consistiria no respeito à vontade divina, no seguir a Verdade divina, abandonando os desejos da carne.

A respeito da doutrina geral da lei, o bispo de Hipano [Sto. Agostinho], difere a lex aeterna da lex naturalis. Deus é o autor da lei eterna, enquanto a lei natural é a manifestação daquela no coração do homem [Tertuliano, outro pensador da Patrística, diria que, devido a uma parcial corrupção do gênero humano, muitos preceitos naturais teriam sido esquecidos]. Portanto, a lei natural é a lei eterna transcrita na alma do homem, em razão do seu coração, também chamada lei íntima. Corrige assim, o erro do pensamento estóico que situava a lei natural também nos animais [11].

A lei humana "deve" advir da lei natural, de outro modo jamais presumir-se-á que seja autêntica. Qualquer preceito humano injusto não é lei. Santo Agostinho, destarte, trás à lume um esboço primário da distinção e dos liames entre Direito e Moral. "A lei humana tem por fim o governo dos homens, manter a paz entre eles (harmonia social). Enquanto a lei eterna e a natural referem-se à moralidade, a humana pode ser vista como o Direito [12]". A Felicidade estaria, assim, na eterna contemplação da Verdade (verdades eternas).

O método escolástico, por seu turno, preocupa-se "em fundamentar racionalmente os dogmas e estabelecer sistemas universais compatíveis com a ortodoxia católica (...) procura descobrir em cada ponto debatido as opiniões das autoridades, fundamentando-as à luz da razão [13]".

São Tomás de Aquino é o principal corifeu da Escolástica e também o responsável pela introdução e adequação do racionalismo aristotélico à Igreja de modo semelhante ao que fez Santo Agostinho com Platão.

Não obstante Aristóteles não tenha conhecido a revelação cristã, como afirma Santo Tomás, e de sua obra estar pautada em um saber estritamente racional e mesmo antagônico à qualquer dogmatismo, ela está perfeitamente em consonância com o saber revelado pela fé contido na Bíblia. Santo Tomás afirma que, na essência, reside a igualdade e que as desigualdades são acidentais. A essência é imaterial, possui apenas forma, enquanto que a "substância composta" possui forma e matéria; a alma seria imortal posto que imaterial. Tal essência seria passada por Deus e igualmente com ela uma capacidade natural de distinguir o certo do errado. Nisso residiria o direito natural.

"Santo Tomás de Aquino admite uma diversidade de lei, seriam: a lei divina revelada ao homem, a lei humana, a lei eterna e a lei natural, contudo, não as considera como compartimentos estanques [14]".

A lei eterna é a razão oriunda do divino que coordena todo o universo, acercando-se inclusive do homem. Assim, conforme afirma Santo Tomás, Deus não age diretamente nos fatos de sua criação, atuando tal coordenação do universo somente em sentido providencial. A natural, assim como em Santo Agostinho, é o reflexo da lei divina no homem. "Por ser a lei natural proveniente de disposição divina, eterna, ela é soberana, participando assim do absoluto poder de Deus, não cabendo ao homem modificá-la, anulá-la, nem desconhecê-la" [15].

Vale dizer ainda que, tanto para Santo Agostinho como para Santo Tomás de Aquino, a Felicidade resumir-se-ia na contemplação da Verdade.

Não procede querer reduzir o ser às partes componentes de sua essência. Há quem diga ser Deus a Justiça, outros diriam que Deus é o Amor, há até os que diriam que Deus seria a força que coordena o universo, a Verdade ou mesmo a Causa Primeira de todas as coisas. Tal discussão revela-se inócua. Não se pode consubstanciar Deus em uma das partes que o compõem. Poder-se-ia dizer que o homem fosse, em essência, seu braço? Seria ele o seu coração? Ou a sua cabeça? Não, o homem é a sua essência (alma ou espírito, para uns; razão, para outros), Deus, por sua vez, é essência pura (enteléquia pura); ainda assim a essência guarda uma multiplicidade específica. Infere-se daí que não se pode querer consubstanciar o ser em uma das multiplicidades de sua essência. Deus não é tão-só o Amor, a Justiça, a Verdade, a Causa Primeira de todas as coisas, etc.; antes é ele a junção de tudo isso àquilo que lhe é íntima essência. Isso não significa que a Justiça, o Amor, a Verdade, etc, não lhe sejam por essência. Se Deus é essência pura e se estes estão presentes em Deus, logo fazem parte da essência divina.

Dessa forma, não importa de onde advém a Justiça; não interessa de que parte de Deus ela brota (da Vontade ou da Razão), uma vez que, certamente, ela faz parte de Deus. Importa tão-somente, segundo os argumentos desenvolvidos pela Patrística e pela Escolástica, que a Justiça está em Deus e nos é revelada por ele.

1.1.6 Justiça como Ideal de Liberdade

O século XV apresentou com o Renascimento novos valores para os diversos campos do saber, como o humanismo, o individualismo, o experimentalismo, a importância do método científico, e, notadamente, o predomínio da razão. Essas preocupações foram mais tarde amplamente trabalhadas pelos filósofos iluministas.

O Iluminismo foi um movimento de idéias que teve suas origens no século XVII e que teve seu apogeu na França no século seguinte. Este século ficaria conhecido como o século das luzes porque a razão seria a "luz" que ilumina as trevas da ignorância. Esse movimento tomou proporções impressionantes e suas conseqüências não se restringiram a revoluções intelectuais. O pensamento iluminista foi responsável por revoluções mais intensas como a Revolução Gloriosa na Inglaterra, o processo de independência das colônias inglesas da América do Norte e a Revolução Francesa.

O Iluminismo proporcionou ao homem uma nova maneira de compreender a realidade social e natural que o cercava, por isso transformou-se num elemento poderoso de crítica ao absolutismo monárquico e às desigualdades sociais daquela época. O Iluminismo veio com novas propostas que indicavam o caminho do progresso, de liberdade e de busca da felicidade. Sua influência não ficou restrita ao século das luzes e continua sendo percebida até os nossos dias.

As bases do pensamento iluminista foram erguidas no século XVII por René Descartes (com seu racionalismo), Jonh Locke (com seu liberalismo político e sua teoria da tábula rasa) e Isaac Newton (contribuindo com suas leis físicas). Desses destacamos Locke que defendia uma relação contratual entre o Estado e os indivíduos, por meio das leis escritas, uma constituição que regularia os deveres e obrigações de ambas as partes. Locke foi mais longe e chegou a afirmar que o homem possuía alguns direitos naturais dentre os quais se destacava a liberdade.

Na França do século XVIII encontramos outros nomes importantes como Diderot, D’Alembert, Helvetius, Voltaire, Montesquieu e Rousseau. Não podemos deduzir que esses filósofos construíram uma escola homogênea, uma vez que não concordavam plenamente em suas teorias. Todavia, o ponto comum em seus pensamentos é o valor da liberdade diante da razão humana. Percebemos isso ao observarmos que todos eles tratam-na com muita importância, como expressa essa passagem de Diderot: "Nenhum homem recebeu da natureza o direito de comandar outros. A liberdade é um presente do céu, e cada indivíduo da mesma espécie tem o direito de gozar dela logo que goze da razão". Ou ainda esse trecho do Contrato Social de Rousseau: "Se indagarmos em que consiste precisamente o maior bem de todos, que deve ser o fim de todo o sistema de legislação, achar-se-á que se reduz a estes dois objetivos principais: liberdade e igualdade".

No campo da Filosofia do Direito, à mesma época, o filósofo alemão Immanuel Kant, desenvolveu importantes teorias. Numa delas, ao tratar de liberdade, elaborou uma distinção na qual "a moral garante a liberdade interna do indivíduo e o Direito, a liberdade externa" [16]. De acordo com Kant, "o único direito inato é o da liberdade, existente aprioristicamente, porque o homem é um ser racional e livre" [17].

Aproveitamos as contribuições filosóficas do Iluminismo para caracterizarmos o ideal de liberdade, um dos referenciais teóricos apreendidos neste trabalho de pesquisa. A explicação de sua concepção nos é necessária, pois dentro do público entrevistado encontramos opiniões que se referiam à justiça como sinônimo de libertação, um ideal de liberdade.

1.1.7 Justiça como Bem da Sociedade

A larga diferença entre os homens e os demais seres vivos é inquestionável e a transcendentalidade desses aspectos diferenciadores é discutível. Indiscutível, no entanto, é o fato de que a capacidade de escolher princípios orientadores do que venha a ser justo; e preocupar-se com isso a ponto de comprometer sua vida com a busca ardente da justiça, e a de poder decidir por um conceito de bem são particularidades humanas derivadas da sua diferenciação, que isolam a raça humana no globo, deixando-a sem ter a quem pedir conselhos em tais assuntos.

No desenvolvimento dessas forças morais certamente a vida do homem, atrelada à coletividade, tem feito diferença, seja na exclusão de princípios que venham a ferir sua natureza social, ou na aceitação de elementos que venham a torná-la ainda mais "sólida", produtiva e satisfatória.

Identificar a justiça como sendo a própria realização do Bem da Sociedade significa elevar o organismo social à categoria de ente primeiro, o qual todos os princípios aceitos a partir daí, que devem direcionar a vida da sociedade (política e econômica) e assim a vida do indivíduo, devem guardar respeito no sentido da busca de seu melhoramento.

Não significa o abandono da importância do indivíduo, mas a realização de suas necessidades e desenvolvimento (no sentido rigoroso do termo), reconhecendo, em primeiro plano, como sendo a vida em sociedade a primeira grande necessidade. Sendo assim, o Bem da Sociedade é o bem do próprio indivíduo. Para entender como é razoável essa identificação da justiça como Bem da Sociedade (no sentido de que uma é exatamente a outra) é necessário perceber que quem assim entende a justiça o faz dentro de uma sociedade, realizando-a, assim, também para ele, mas não só, para todos, sem exceção, na medida em que todos são extensão do que ele é, sendo as necessidades alheias as suas também.

Assim, desejar a justiça como Bem da Sociedade é desejar a realização do bem comum. Sendo o todo formado por partes, buscar o bem comum é buscar tudo enquanto o compõe, e o que o compõe de forma alguma se limita a alguma utopia socialista, ou algo conhecido pelo homem. Não estando claro, apresenta-se como apenas intuitivamente em todos os homens e encontra sua realização no final de todo processo dialético, seja ele aplicado às circunstâncias históricas [18] ou ao conhecimento das Idéias.

O bem comum contém tudo enquanto o homem necessita ter de condições por ser tudo o quanto ele pode ser, e ele é.

No enquadramento das opiniões emitidas, as que relacionavam a melhoria global das condições sociais (saúde, educação, alimentação, etc) foram aqui classificadas.

1.1.8 Justiça Libertadora

No contexto do início do Século XIX, das grandes transformações econômicas, do trabalho em série, da produção em larga escala, do homem urbanizado, da cultura massificada, da sociedade dividida em classes - os que têm os meios de produção e os que vendem sua força de trabalho - surge uma acepção de Justiça que se amolda a esse quadro caótico, que transformara a vida do homem de então, outrora simples camponês, independente na sua manutenção, num homem oprimido, vinculado à força do Estado e à pressão da burguesia. A acepção de Justiça Libertadora nada mais é que o reflexo desse mundo novo, no qual o Capitalismo surge com força total, desestruturando concepções filosóficas, morais, religiosas etc.

O pluralismo jurídico, a Escola Crítica e a Escola do Direito Alternativo têm origem direta nesse movimento de repensar os valores sociais, consagrando à Ciência Jurídica um papel preponderante na decisiva tomada de posição dos operadores do Direito, porque há uma verdadeira mudança paradigmática no âmbito da Ciência Jurídica. Finda-se a visão monista e centralizadora do Direito e do Estado como um fim, surgindo novas concepções pluralistas, versando sobre a importância dos movimentos sociais e das práticas normativas não-estatais.

A Escola Crítica surgiu justamente no período pós-guerra, em torno, principalmente, de intelectuais alemães marxistas e não-ortodoxos, ficando, inicialmente, restrita a estudos acadêmicos na Universidade de Frankfurt, para só depois irradiar-se por todo o mundo ocidental.

Seus integrantes, dentre eles Habermas, Horkheimer, Adorno e Luhmann, não possuíam uma homogeneidade de pensamento, entretanto, a temática abordada por seus trabalhos é quase sempre a mesma, qual seja, a dialética da Razão iluminista, a indústria cultural ou de massa e a questão do Estado, mais especificamente, as formas de legitimação de uma sociedade de consumo.

A preocupação é histórica, ou seja, assegurar as conquistas do homem comum, do proletariado que surge como classe social no contexto da Revolução Industrial, das conquistas do trabalhador, numa perspectiva, por quê não dizê-lo, mais sociológica e menos filosófica. Destarte, a Justiça de que se trata aqui é a Justiça Social.

Aqui, a Liberdade não é uma aspiração utópica de um homem metafísico; é a concreção dos ideais marxistas de uma política social voltada para o bem-estar do homem inserido no seu contexto, na sua comunidade. A visão é menos onírica e, portanto, mais pragmática.

A intenção da Escola Crítica é bem clara: libertar o homem da ignorância, da "atrofia da capacidade crítica", das amarras que o prendem às determinações ideológicas daqueles que detêm o poder. Para tanto, prega-se a utilização da razão como o instrumento de libertação do homem, preso à incapacidade de formular um pensamento crítico. O intelectual aqui é um ativista. No dizer de Horkheimer: "Nosso princípio básico sempre foi: pessimismo teórico e otimismo prático".

Interessante notar que a Razão e a Liberdade constituíram a base do movimento Iluminista do século XVIII. Não obstante, a Razão iluminista é, para os críticos, somente instrumental, ou seja, conduz somente à técnica e ciência modernas. A Razão crítica, por sua vez, encerra os conceitos de Razão instrumental e Razão emancipatória. A dialética do esclarecimento, ensina Horkheimer, procura demonstrar o quão perniciosa é a teoria tradicional (Descartes), que estuda a lógica formal a partir do princípio da identidade, definindo os conceitos universais a partir de um homem abstrato. Em contraposição a esta, tem-se a teoria crítica (Marx), que analisa as dimensões históricas e sociais dos indivíduos inseridos numa sociedade, a partir do princípio da contradição.

Na "Dialética Negativa" (1970), Adorno expõe a necessidade de se evitarem as falsas verdades, como faz a lógica formal, que se distancia do objeto de estudo, concebendo-o como um ente abstrato. Aconselha, por sua vez, a inclusão de elementos contraditórios na apreensão de um conceito, de forma a compreendê-lo num contexto, de maneira crítica.

Mais do que uma simples teoria socialista aplicada à Filosofia, a Escola de Frankfurt, ao destacar os elementos contraditórios e estudá-los de forma integrada, contribuiu sobremaneira para a consolidação do pensamento crítico essencial ao desmascaramento do sistema capitalista em vigor e das implicações do mesmo em todas as esferas do desenvolvimento humano. Trouxe à tona, portanto, um sentimento de justiça que liberta os homens de seus semelhantes que lhe oprimem, injetando-lhes nas veias um sentimento renovado de esperança na realização da justiça num plano concreto, retirando-lhe a aura suprema e rasgando o véu que encobre ideologias conservadoras.

A Escola Crítica determina o aniquilamento deste homem fraco e acorrentado, que "nasceu livre, e não obstante, está acorrentado em toda parte", indefeso à tirania do mundo e da realidade que o cerca, tornando-o um ser forte e ativo, na busca incessante da realização de seus ideais, na concretização de suas aspirações sociais, libertando-o das amarras que reprimem seu corpo e sua mente, libertando sua alma para que seja o autor de seu próprio destino.

1.2 Daquilo que a Justiça se tornou

1.2.1 Justiça como Princípio, Valor ou Ideal

A denominação de Justiça como princípio, valor ou ideal, conforme evidenciaram as entrevistas, consubstancia-se na noção de que a Justiça é a priori, eterna, imutável, universal e perfeita. Outras vezes, explicitavam que a Justiça seria como que um parâmetro (perfeito) jamais passível de concreção; jamais atingível, entretanto, sempre perseguido.

Por a priori, entende-se que a Justiça é preexistente ao homem, o qual tão-só a percebe (valor); sendo eterna, preexiste a tudo, é um ente incriado, sempre existiu e sempre vai existir (princípio). Dado o seu caráter imutável, a Justiça não está sujeita às leis do devir: A Justiça "é" (ideal, ou, mais adequadamente, o termo seria Idéia, ou ainda, Arquétipo). Pode-se inferir disso, que a Justiça é essência pura, de outra forma, estaria afeta à mudança. Por fim, entende-se por universal o fato de ser ela aplicável a tudo e a todos independentemente de quem quer que seja. Dito isto, não mais se necessita especificar o porquê de tal acepção ser tida como perfeita.

Vale dizer que tais características estão presentes tanto nas entrevistas daqueles que não aceitam ser a Justiça atingível, como nas respostas daqueles que a tem como exeqüível de pleno.

1.2.2 Justiça como Harmonização Social

Harmonização social relaciona-se, segundo atestam as respostas conformes a esta acepção de justiça, a um equilíbrio das relações intersubjetivas, das relações entre os indivíduos componentes de dada sociedade, ou pelo menos, ao "intuito" que teria a justiça de estabelecer e garantir os limites mínimos suportáveis de convivência entre os homens. A referida acepção aproximou-se, em muito, de outra, a de justiça como instituição/lei, conforme se apreendeu das entrevistas. Bem como na acepção instituição/lei, a acepção harmonização social aproxima justiça ao Judiciário (instituição). Isso talvez seja reflexo da indefinição dos entrevistados (leigos ou não) entre o que venha a ser Justiça e o que venha a ser direito.

1.2.3 Justiça como Instituição ou Lei

Em contraste absoluto com o jusnaturalismo surge, no século XIX, fundado nas idéias de Augusto Comte, o Positivismo Jurídico, cujos principais adeptos foram os da Escola da Exegese, na França, os da Escola dos Pandectistas, na Alemanha, os da Escola Analítica de Jurisprudência, na Inglaterra, além de Duguit, Hans Kelsen, Clóvis Beviláqua e Pontes de Miranda [19].

Para seus adeptos, o Direito deve se resumir à lei, institucionalizada pelo Estado. Abandonam-se, desta forma, os estudos acerca da razão de ser do Direito, da sua gênese, formação e desenvolvimento, do seu ontos, para prender-se, exclusivamente, ao estudo da norma jurídica enquanto manifestação formal. Eis, segundo Paulo Nader, a proposição que melhor caracteriza o positivismo jurídico: "Não há mais direito que o direito positivo" [20].

Embora criticado com veemência pelos doutrinadores, devido ao seu extremismo e visão restrita do Direito — sem atentar para sua identidade com a Justiça, em sentido amplo — o positivismo jurídico (já decadente em nossos dias) encontra suporte na necessidade milenar de segurança jurídica, no esforço contínuo, que data das sociedades primitivas, para codificar as regras de convivência, a fim de que estas sirvam de parâmetro, e por que não dizer, de base, para as relações sociais. A lei estaria acima de qualquer outra manifestação a ela contrária.

Afirma-se assim a relação lei/Estado, entendendo-se Estado em sentido amplo, transcendendo a pessoa do governante, visto que este também estaria subordinado às normas jurídicas.

No bojo da presente pesquisa, a identidade entre Justiça e lei, encontrada por considerável parcela dos entrevistados, divide-se em duas grandes vertentes:

a)A Justiça está na lei. A norma jurídica funcionaria como um pressuposto de realização do justo – a noção do que seja justo muito variou entre os inquiridos e em geral as pessoas que se posicionaram desta forma tiveram suas respostas enquadradas em duas ou mais categorias de pensamento.

Além disso, grande parte das respostas deste grupo foram acompanhadas de ferrenhas críticas às próprias leis, muitas vezes chegando-se a conclusões extremamente paradoxais, tais como: existem leis injustas. Isto denota a idéia de que a Justiça está – ou deve estar – na lei, mas nela não se esgota.

b)A Justiça é a lei. Eis o positivismo expressando-se com plenitude. A norma jurídica é considerada única forma de expressão do justo - aliás, o "justo" e o "legal" são entendidos como sinônimos.

Grande parte das pessoas que assim se posicionaram, também explicitaram certo descrédito em relação à justiça, o que relacionaram, em geral, à falta de segurança jurídica, ao não cumprimento das leis - muitas vezes com menções à ineficácia do Judiciário.

A identificação de Justiça com a instituição ou o Poder Judiciário também encontra justificativa no clamor por segurança jurídica, de ordem positivista. Os motivos que explicam tal posicionamento talvez sejam encontrados quando da análise da atual organização judiciária brasileira, quando a impunidade, a morosidade, a omissão, e, por que não dizer, as injustiças saltam aos olhos de uma população já descrente e aprisionada com tal rudeza que não se atreve a imaginar uma Justiça superior à efetivação das parcas leis dos homens.

Cumpre lembrar, ainda, aqueles que consideraram o vocábulo Justiça como órgão do Judiciário, por uma questão meramente terminológica, devido, talvez, ao direcionamento do entrevistador ou à utilização coloquial e usual do termo neste sentido.

1.2.4 Justiça como Realização do Justo ou Eqüidade

Algumas respostas apontaram uma aproximação do sentimento de justiça dos entrevistados com as idéias de justo e de eqüidade. Aqueles que entendem a justiça como o justo, expressaram seu pensamento afirmando que seu sentimento de justiça seria conseqüência da aplicação do Direito de maneira justa e equânime, ou ainda, que seria a projeção do sentimento de justo que o aplicador da norma deve utilizar-se a fim de solucionar um conflito de interesses.

Os outros que vislumbraram a eqüidade como forma de justiça, argumentavam que esta surgia no relacionamento interpessoal, quando cada indivíduo deveria ser tratado de forma particularizada. Esse conceito seria uma forma particular de aplicação do princípio da igualdade.

Para os aplicadores do Direito, a aplicação estrita da norma criada pelo legislador acarretaria a transmissão de suas falhas aos casos por ela atendidos. Para evitar essa injustiça deveriam, segundo suas opiniões, utilizar a eqüidade como meio de se atingir a justiça.

1.2.5 Justiça Inexistente (não existe)

Dentro do espaço amostral desta pesquisa foram constatadas respostas que não descreviam a justiça com elementos suficientes para que fossem enquadrados em alguma acepção estabelecida. A estas opiniões foram somadas aquelas nas quais o ouvinte afirmou explicitamente, ou não, que a justiça não existe em nenhum universo, seja ele humano, cosmológico ou divino. Todas estas repostas foram apresentadas por indivíduos que se mostraram descrentes quanto à existência da justiça.

Tal pessimismo certamente vincula-se à constatação diária das torpezas e iniqüidades que assolam a humanidade. Como disse Rui Barbosa quanto ao homem honesto (que acabaria por ter vergonha de se apresentar como tal de tanto ver prosperar a desonestidade), de tanto ver se espalhar a injustiça, o homem às vezes deixa se abater pela rudeza da realidade fática, não mais conseguindo vislumbrar o horizonte que a justiça sempre foi para os povos.

1.2.6 Justiça como Fruto da Sociedade

Inegavelmente, um traço típico do homem que se manifestou em todos os instantes do seu tempo de existência, em maior ou menor grau, nesse ou naquele momento histórico, é a sua capacidade de transformar. Mais do que se adaptar ao meio, o homem aprendeu a modelar o meio a seu "gosto", modificando o clima e alterando a paisagem. Organizando-se em diversas formas de agrupamento, conseguiu sobreviver em todos os lugares do globo, das áreas mais frias às mais quentes; habitando sob o gelo, ou morando em enormes arranha-céus.

Não podendo ser diferente, encontrando na história humana tamanha variabilidade de comunidades, encontram-se também distintas regras sociais e os vários sentimentos de justiça que resultaram da construção de cada um desses sistemas normativos (aqui não no sentido rigoroso).

Diante do fenômeno, seria então a justiça apenas uma "obra" humana, fruto da sua natureza inconformada? É a resposta afirmativa a essa questão, ainda que sob argumentos diferentes, que identifica o sentimento de justiça como fruto da sociedade. Dependeria então dos princípios e valores consagrados por uma dada sociedade e seria apenas construção cultural, perdendo o caráter absoluto e exterior, passando a ser humana e mutável.

Pensando assim, construções filosóficas, com reflexos políticos marcantes, se formaram, deixando de lado os problemas da justiça enquanto criteriosamente absoluta e onipresente, pondo no centro a problemática da praticidade. Do maquiavelismo, passando pelo marxismo, até a sua manifestação mais vitoriosa, o positivismo, a justiça governante e criadora perdeu terreno para a justiça serva e criada.

No tocante à pesquisa, as opiniões enquadradas em justiça como fruto da sociedade apresentam-na, basicamente, como realização dos princípios e valores de cada sociedade localizadamente. Nesses termos, um ato moralmente justificável em um ponto do globo poderia ser considerado extremamente reprovável em outro. Ou seja, o critério de justiça seria delineado pelas convenções sociais. O que é justo poderia também ser injusto, variando no tempo e no espaço condicionados humanamente.


II – O SENTIMENTO DE JUSTIÇA EM TERESINA

2.1 Subindo o Monte Olimpo rumo à morada de Thêmis

Primeiramente, cabe esclarecer que os dados utilizados na presente pesquisa foram recolhidos através de enquetes realizadas por estudantes de Direito da Universidade Federal do Piauí, durante a disciplina Filosofia do Direito II, ministrada pelo professor Mestre em Direito Marcelino Leal Barroso, entre agosto de 1998 e janeiro de 1999.

Como trabalhos individuais, é de notar-se que não havia a homogeneidade própria à pesquisa científica. O empenho de unificação da multiplicidade foi a principal tarefa dos elaboradores do presente estudo. Algumas das ressalvas mencionadas a seguir decorreram fundamentalmente de tal heterogeneidade.

O ponto inicial a elucidar diz respeito à diferença entre o número de entrevistados e o de opiniões coletadas. Tal fato deveu-se à informalidade das enquetes, nas quais cada entrevistado pôde abordar todos os aspectos que achasse relevantes no tocante ao seu sentimento de justiça. Sendo assim, enquanto uns proferiram opiniões sucintas, outros dissertaram (oralmente ou não) acerca de vários aspectos que a justiça apresentaria para eles. Logo, muitas opiniões foram classificadas em mais de um dos referenciais teóricos adotados, algumas até mesmo em quatro ou cinco [21].

O segundo ponto vincula-se ao fato de que alguns entrevistados não foram identificados suficientemente nos trabalhos individuais dos quais suas opiniões foram retiradas. Em certas enquetes não foram indicados os nomes; em outras a profissão não bastou para determinar-lhes o sexo. Portanto, quando da tabulação dos dados, incluiu-se uma categoria denominada não identificados pelo sexo, subdividida entre profissionais do direito e de outras áreas (a profissão foi o único dado mencionado de forma plenamente segura em todas as enquetes individuais).

Por fim, procurou-se manter o máximo possível de fidelidade na análise e enquadramento das opiniões emitidas. A tabulação a seguir foi refeita inúmeras vezes, objetivando torná-la tão fidedigna quanto a insipiência dos pesquisadores permitiu, em especial no que tange aos referenciais adotados na primeira parte deste trabalho.

Segue a análise do Panorama Geral do Sentimento de Justiça em Teresina (Tabela 1), do qual se extraiu as tabulações por sexo e por profissão (operadores do direito/outras áreas) que o sucedem ao longo do trabalho.

2.2 Do alto da montanha divisa-se a lei

Antes de ater-se a considerações mais pormenorizadas, achou-se por bem proceder a uma exposição das considerações extraídas da Tabela 1, ou seja, do Panorama geral do sentimento de justiça em Teresina. Considerações estas, a mais das vezes, simples tentativas de propor leis empíricas diante dos dados estatísticos observados e que, em grande parte, apresentam um sensível aspecto sociológico [22].

Pretende-se enfeixar aqui, num só enfoque, as análises por sexo e por profissão, de modo a considerar apenas os números absolutos de opiniões obtidas na pesquisa (Tabela 1). Mais adiante serão feitas as devidas e mais minuciosas observações quanto aos critérios classificatórios sexo e profissão dos entrevistados.

Vale dizer, de antemão, que as conclusões inferidas de simples dados numéricos (tal quais os da Tabela 1) não são tão científicos, nem tão próximos da realidade social de Teresina quanto às observações percentuais, entretanto, não menos profícuas.

De uma observação imediata da referida tabela, pode-se facilmente constatar, e é lamentável, que não tenham sido entrevistadas sequer uma defensora pública ou mesmo uma desembargadora. No primeiro caso, é perfeitamente cabível, como se verá no estudo das demais tabulações, que a pouca uniformidade da matéria-prima de que se valeu esta pesquisa, qual seja, as entrevistas, sirva de justificativa. No segundo caso, entretanto, não há ainda em Teresina qualquer desembargadora, tal é a distância que a luta das mulheres por igualdade ainda tem por percorrer.

Nas duas áreas profissionais aqui tratadas (não jurídica e jurídica) há um desequilíbrio entre o número de acepções diversas lembradas por cada homem e o número de acepções diferentes indicadas por uma mesma mulher, agravado talvez pela disparidade entre homens e mulheres entrevistados, mas que, decerto, revela serem as mulheres bem mais sintéticas que os homens ao dizer o que venha a ser a justiça para elas, ao explicitar seu sentimento de justiça, sua concepção acerca da justiça.

Entre os profissionais de áreas não jurídicas, guardadas as devidas exceções, há uma certa paridade quanto às opiniões emitidas por homens e mulheres a respeito de uma mesma acepção de justiça. Os motivos, para tanto, serão melhor explicitados na análise das questões de gênero.

Poucas são as diferenças numéricas entre as opiniões de homens e mulheres (profissionais de áreas não jurídicas) acerca de uma mesma acepção de justiça, havendo, no entanto, algumas que merecem ser aqui destacadas. Entre elas estão as referentes às acepções de justiça como harmonização social, justo ou eqüidade, bem da sociedade e fruto da sociedade, além de instituição ou lei. Em todas estas acepções citadas, as opiniões masculinas atingem quase o dobro, o dobro ou mais que o dobro das opiniões femininas, exceto nas de justiça como justo ou eqüidade, em que o quadro se inverte, passando as mulheres a ser maioria (quase o dobro) e em relação à harmonização social, em que o número de opiniões masculinas chega a superar o quíntuplo do número de opiniões femininas. Tais constatações são acintosas de que tamanho desequilíbrio guarda nítido fundo sociológico.

Para fins introdutórios, vale dizer que o fato de as opiniões femininas terem sido bem menores nas acepções harmonização social, bem da sociedade, fruto da sociedade e instituição ou lei remonta todo um passado de opressão, submissão e dominação sofrido pela mulher. As citadas acepções reafirmam toda uma realidade que foi marcantemente dolorosa para a mulher, fomentam a manutenção de todo um status quo que favorece a dominação masculina. Tenha ela emitido opinião contrária a essas acepções, consciente ou inconscientemente, pode-se concluir que isso resulta das marcas deixadas por uma ordem que privilegiou sobremaneira os homens.

As diferenças numéricas nas demais acepções são pouco relevantes, seja pelo pequeno número das opiniões, seja pela pequena desigualdade quantitativa entre os sexos. Em relação às igualdades numéricas, tem-se entre as mais significativas as das acepções princípio, valor ou ideal e não existe. Tanto homens como mulheres de áreas não jurídicas emitiram o mesmo número de opiniões acerca dessas duas acepções de justiça. É, entretanto, bem mais profícuo notar o elevado número de opiniões condizentes com a acepção princípio, valor ou ideal, o que revela uma mudança, ainda que pequena, na mentalidade das pessoas em Teresina. Devido à significativa desconfiança e descrença em relação às autoridades – da mesma forma que ocorre em quase todas as cidades do País – a população teresinense sempre teve a nítida tendência de reduzir a justiça à mera lei ou instituição, tal fato é o que se apreende das tabulações. E esse, como já se disse, pequeno mas significativo montante de opiniões relacionadas à acepção princípio, valor ou ideal já é indício de mudança.

É necessário frisar novamente que, no panorama geral das opiniões, como entre os profissionais do direito, ou ainda, entre os profissionais de áreas não jurídicas há um elevado número de opiniões condizentes com a acepção instituição ou lei. Dentre estas, um número considerável das pessoas que indicaram tal acepção questionavam e criticavam a moralidade e a morosidade do Judiciário; sem, no entanto, especificar qualquer outro arquétipo de justiça, daí ter sido forçoso englobá-las dentro da referida acepção.

Ainda entre os profissionais de áreas não jurídicas, constatam-se aproximações ou mesmo igualdades numéricas entre algumas das acepções de justiça. Como não poderia ser diferente pelos motivos anteriormente explicitados, o maior número de opiniões entre os profissionais de áreas não jurídicas aglutinou-se no grupo instituição ou lei.

Dentre as aproximações, a mais relevante foi a que se estabeleceu entre as acepções compensação ou retribuição e igualdade, que pelas formas como foram expressas demonstraram haver entre os juridicamente leigos uma concepção de justiça liberal e, pelo menos em parte, individualista. Vale dizer que a compensação ou retribuição, quando indicada nas entrevistas, referiu-se geralmente a uma sensível preocupação com o que lhe é próprio, com a reparação de danos à propriedade, seja ela material ou não, enfim, com o individual (embora não necessariamente tal acepção esteja ligada aos dogmas do Liberalismo [23]). Ora, vivemos imersos numa sociedade e num mundo capitalista; nada mais natural que a grande maioria da sociedade interiorize a ideologia individualista que lhe é imposta. Houve, por outro lado, uma dicotomia entre aqueles cuja opinião relacionava-se à acepção de justiça como igualdade. Uma pequena parte deles deixava nítido que a igualdade por eles propugnada era individualista e massificadora; outra parte, esta bem mais numerosa, associou a igualdade com algo mais abrangente, relacionando-a, inclusive, com o bem da sociedade e com o bem-comum.

Quanto aos profissionais do direito, inicialmente far-se-á uma análise comparando cada acepção de justiça entre as diversas profissões jurídicas (pelo menos as acepções mais relevantes, segundo os propósitos desta pesquisa). Posteriormente, ou mesmo concomitantemente quando a elucidação no caso se faça exigir, proceder-se-á a comparação das opiniões entre os sexos dentro das profissões jurídicas.

Somente uma pessoa, a citar, um desembargador, atestou ser a justiça, para ele, a expressão da vontade do cosmos. Isso provavelmente se deve ao fato de essa acepção, ainda que bem próxima de outras, como: princípio, valor ou ideal e justo ou eqüidade, não ser tão acessível a quem não tenha um razoável conhecimento filosófico. Ainda assim, é bem difícil adotar-se tal acepção, talvez pela relativa complexidade, talvez pelo suposto distanciamento da realidade cotidiana mais perceptível.

A acepção compensação ou retribuição apresenta certas peculiaridades, entre as quais, a aproximação entre estudantes de direito (9), advogados (8) e outros profissionais da área jurídica (10). Isso bem poderia denotar que há, em Teresina, uma manutenção de um certo nível de educação jurídica, o qual não permitiria ao estudante desvencilhar-se de um sentimento pessoal de justiça ligado à compensação de danos, à retribuição das perdas eventualmente sofridas, ou mesmo, à vingança. Por outro lado, tem-se um número bem expressivo de advogados (20) e um relativo número de estudantes (7) cujas opiniões indicaram a acepção justiça como virtude, ou seja, em poucas palavras, a prática reiterada do que é certo e do que é justo. Há também um considerável número de estudantes (10) que citaram a acepção de justiça como princípio, valor ou ideal, o que de pronto bastaria para negar a primeira afirmação [24], atestando sim, a contrário senso, uma perceptível mudança nos moldes do ensino jurídico em Teresina [25].

Em contrapartida, não se pode afirmar que tal mudança tenha atingido plenamente os advogados, possivelmente tal mudança não tenha atingido os mais velhos, uma vez que o maior número de opiniões dos advogados (25) atesta que a justiça é instituição ou lei, constatando-se, assim, que a referida mudança no ensino do direito é relativamente recente. O mesmo pode-se dizer para os juízes, cujo maior e mais expressivo número de opiniões (9), entre todas as demais acepções, aglutinou-se na acepção de justiça como instituição ou lei.

Entre os defensores públicos, houve um certo equilíbrio na distribuição das opiniões, talvez até pelo pequeno número de defensores entrevistados. Há de se falar apenas que, dentre eles, haviam alguns que tinham como única e exclusiva acepção de justiça a de instituição ou lei. Dado que todos os promotores sem exceção alguma, indicaram a acepção de instituição ou lei, dentre suas diversas opiniões acerca da justiça, ela foi a que atingiu um maior número dentro desta profissão. Vale afirmar que houve um equilíbrio entre homens (4) e mulheres (4) desta profissão que admitiram a acepção instituição ou lei. Por fim, tem-se que, quanto aos procuradores, predominou a acepção virtude.

A assertiva feita entre homens e mulheres (profissionais de áreas não jurídicas), cujas opiniões acerca das acepções harmonização social, de fruto da sociedade e de justo ou eqüidade eram sobremaneira discrepantes, por motivos já expostos, demonstra aqui ser novamente válida, mesmo nos campos específicos de cada profissão jurídica. Há, entre os advogados (homens) um número bem maior de opiniões nas acepções de harmonização social (16) e fruto da sociedade (10), enquanto que as advogadas expressam nas mesmas acepções, respectivamente, nove (9) e cinco opiniões (5). Dentre os procuradores, não há sequer uma mulher cuja opinião se enquadre na acepção fruto da sociedade e, entre os juízes e outros profissionais da área jurídica, ocorre o mesmo, entretanto referindo-se não mais a fruto da sociedade, mas a harmonização social, sendo que o número de homens foi bem mais expressivo nestes últimos (7 – outros profissionais do direito).

A situação novamente se inverte com a acepção de justo ou eqüidade, agora com algumas exceções. Com relação aos advogados e procuradores, a regra fez valer-se, sendo que nenhum procurador (homem) emitiu opinião condizente com esta acepção. Entretanto, houve o inverso com estudantes, outros profissionais do direito e juízes, sendo que, no caso dos estudantes, nenhuma mulher propôs dentre suas acepções esta acepção, qual seja: justo ou eqüidade.

Por fim, encetar-se-á agora uma comparação entre as principais acepções adotadas pelos profissionais do direito e por profissionais de áreas não jurídicas a fim de constatar aproximações (pontos de contato) e distanciamentos entre suas opiniões.

As opiniões relacionadas à justiça como compensação ou retribuição foram bem mais significativas entre os profissionais de áreas não jurídicas (61 – profissionais de áreas não jurídicas a 41 – profissionais do direito), devido talvez à diferença numérica de entrevistados na área jurídica e o somatório dos entrevistados nas demais áreas. O mesmo se poderia dizer sobre as acepções igualdade, vontade ou razão divina, ideal de liberdade e bem da sociedade, se a diferença numérica entre os juridicamente leigos e os profissionais do direito não fosse, proporcional e respectivamente, tão grande (igualdade / 63 – profissionais de áreas não jurídicas a 22 – profissionais do direito; vontade ou razão divina / 10 – profissionais de áreas não jurídicas a 2 – profissionais do direito; ideal de liberdade / 9 – profissionais de áreas não jurídicas a 3 – profissionais do direito; e bem da sociedade / 34 – profissionais de áreas não jurídicas a 18 – profissionais do direito). O que se pode constatar nesses casos é que os profissionais do direito, seja em Teresina, seja em qualquer outro estado brasileiro, ou mesmo, em qualquer outro país, tem o vício, imposto talvez pelo próprio labor jurídico, de distanciar-se da população, daqueles para quem e por quem o direito é feito; daí as discrepâncias entre o pensar do povo e o dos profissionais da área jurídica.

Ocorre o inverso quando das acepções de harmonização social e fruto da sociedade (harmonização social / 22 – profissionais do direito a 14 – profissionais de áreas não jurídicas; e fruto da sociedade / 30 – profissionais do direito e 19 – profissionais de áreas não jurídicas). Já estas diferenças denotam que o primado de uma ordem que oprime, de um equilíbrio que tão-só vem mantendo as desigualdades, decepciona todo o povo – isso é o que se nota não só em Teresina, mas em âmbito nacional – daí jamais ter sido ou vir a ser essa pretensa ordem e esse "equilíbrio" a bandeira de um povo.

Há de se falar ainda nas aproximações e igualdades numéricas entre os dois citados grupos, quais sejam, profissionais do direito e profissionais de áreas não jurídicas.

Quanto às acepções virtude, princípio, valor ou ideal e justo ou eqüidade, houve uma proximidade marcante entre o número de opiniões emitidas pelos profissionais das áreas aqui consideradas (virtude / 42 – profissionais do direito a 45 – profissionais de áreas não jurídicas; princípio, valor ou ideal / 30 – profissionais do direito a 34 – profissionais de áreas não jurídicas; justo ou eqüidade / 16 – profissionais do direito a 19 – profissionais de áreas não jurídicas). Houve ainda uma igualdade, talvez até inexpressiva para fins científicos, dado o número irrelevante diante do todo desta pesquisa (1), quanto à acepção de justiça libertadora [26].

Propositadamente, deixou-se para agora a análise em separado das acepções não existe e instituição ou lei. Como muito já se frisou, há uma perceptível revolta da população contra as injustiças e a pouca celeridade em algumas das ações do Judiciário, bem como das demais autoridades, pertençam elas a quaisquer dos poderes. Daí ter sido maior o número de opiniões agrupadas na acepção instituição ou lei, não apoiando necessariamente tal acepção, antes, em considerável parcela dos casos, denunciando e criticando os vícios já citados (instituição ou lei / 112 – profissionais de áreas não jurídicas a 67 – profissionais do direito). Contribui para confirmar isso o fato de que as opiniões referentes à acepção não existe terem sido, em muito, maiores nos profissionais de áreas não jurídicas (10) que nos profissionais do direito (1), denotando, mais uma vez, a descrença do povo não necessariamente na Justiça, mas no Judiciário.

2.3 Como entender que a Justiça é a lei (e algumas outras coisas)

A tabela ora analisada (Tabela 2) reúne o conjunto de dados obtidos através das relações entre três elementos coletados: a quantidade de vezes que cada acepção foi citada, o total das opiniões emitidas e o número total dos entrevistados. Em outras palavras, evidencia a Incidência das acepções de justiça na comunidade teresinense.

Relacionando a quantidade de opiniões que indicaram cada acepção com o total das opiniões, obtém-se os dados da terceira coluna, que nos mostram o percentual representativo de cada acepção diante do total das opiniões manifestadas (ou seja, do total de vezes que se citaram cada uma das acepções). Quanto à coluna seguinte, seus dados dizem respeito à relação entre o número de aparições de cada acepção e o número total de entrevistados.

Presentemente, deve ser levado em consideração que cada entrevistado mencionou uma média de 2,14 acepções de justiça. Desse modo, a segunda coluna mostra os percentuais de freqüência da incidência de cada acepção entre os entrevistados. Esses dados devem ser entendidos da seguinte forma, tomando-se a acepção Instituição ou Lei como exemplo:

1)Pela terceira coluna (nº opiniões daquela acepção sobre o nº total de opiniões), quantidade de vezes que tal acepção foi mencionada constitui 24,59% de todas as opiniões coletadas;

2)Multiplicando-se esse percentual pelo total das opiniões (728) pode-se encontrar a quantidade de vezes que a acepção foi mencionada (179).

O que se atinge, desse modo, é, na verdade, a quantidade de pessoas que fizeram alusão à acepção Instituição ou Lei. Relacionando esse número com o número total de entrevistados (340) obtém-se o percentual da quarta coluna (52,65%). Este impressionante dado mostra a quantidade de pessoas do total que apontaram justiça como Instituição ou Lei: a maioria.

O processo de leitura deve ser feito dessa forma para todas as acepções da presente tabela que, apesar de conter informações preciosas, mostra apenas os números gerais da pesquisa, desdobrados mais adiante nas relações entre acepções e sexo dos entrevistados, acepções e profissão e outros elementos.

Comentários sobre as prováveis razões pelas quais os resultados finais foram especificamente os acima e não outros serão delineados ao longo de todo o presente estudo.

2.4 A Justiça e as questões de gênero

Em comparação com o número de mulheres entrevistadas, houve quase 50% mais homens nos trabalhos dos quais foram coletados os testemunhos. O mesmo se repetiu proporcionalmente ao número de opiniões.

2.4.1 Na concepção dos homens e das mulheres a Justiça veste toga

O fato principal a ser notado com a interpretação dos dados da Tabela 3 – Justiça e as questões de gênero – é a semelhança marcante entre os resultados concernentes às porcentagens número de opiniões daquela acepção naquele sexo sobre o número total de opiniões daquele sexo. Ou seja, em termos gerais, as acepções mais lembradas pelos homens e pelas mulheres foram as mesmas.

Ora, dado o avanço significativo da mulher no cenário social durante este último século é evidente que os valores educacionais colocados para cada sexo se aproximaram. Ou seja, o condicionamento social imposto ao indivíduo em virtude do seu sexo tem perdido importância, ou ao menos tem se tornado semelhante. Provavelmente tais mudanças expliquem a gritante identidade de resultados nas porcentagens acima referidas dentro do conjunto de opiniões de cada sexo.

Tanto entre homens quanto entre mulheres a acepção mais lembrada foi a de justiça como instituição ou lei, seguida por outras quatro que apenas alternaram suas posições dentro do conjunto opinativo de cada sexo: compensação ou retribuição, virtude, igualdade e princípio, valor ou ideal.

As únicas dessemelhanças realmente significantes na proporção opinativa ora estudada foram as apresentadas nas acepções de justiça como harmonização social e justiça como justo ou eqüidade.

No caso da harmonização social, dentro do quadro de opiniões masculinas a sua importância é muito maior (6,81%) do que no de femininas (1,85%). Ou seja, proporcionalmente ao total de opiniões em cada sexo (masculino – 426; feminino – 270), a citada acepção figurou acima de três vezes e meia a mais entre os homens que nas mulheres.

Um pouco menos exacerbada foi a diferença no caso das mesmas proporções aplicadas à acepção justo ou eqüidade. Dentre as opiniões femininas, sua relevância (7,04%) foi quase duas vezes maior que em meio às masculinas (3,76%).

Bem, provavelmente as causas de tal diferença estejam vinculadas à situação social feminina de ontem e hoje. Nos últimos milênios as mulheres sofreram violentas repressões masculinas a sua liberdade, seja em nome de uma suposta "natureza superior do homem", seja em favor das "tradições sociais". A posição de justiça como harmonização social, por sua vez, está muito próxima de uma ordem, em nome da qual milhões de mulheres foram assassinadas desde muito. Sendo assim, dificilmente as mulheres se sentiriam dispostas a apresentar tal acepção de justiça, conscientes disso ou não, visto que a mesma harmonização social tem servido por muitos séculos como pretexto para a perseguição e assassínio de inúmeros seres humanos (naturalmente, entre estes, de um sem número de mulheres). Este fato iníquo, longe de ter se manifestado isoladamente, se estendeu por praticamente todo o globo, inclusive a sociedade ocidental – da qual Teresina faz parte.

Por outro lado, a relevância de uma acepção mais pessoal de justiça (justo ou eqüidade) denuncia que, no quadro geral das opiniões por sexo, as mulheres tendem a acreditar muito mais numa configuração individual da justiça que numa construção por fora, ou de fora para dentro (harmonização social). Logicamente, se a "ordem" e o "equilíbrio" têm servido muito mais ao confinamento que à libertação feminina, um paradigma de justiça pessoal [27] é um contrapeso a tal situação e uma forma de contrastá-la.

2.4.2 Homens e mulheres confirmam: a Justiça é votada por representantes eleitos

Quando a análise é focalizada nas porcentagens definidas pela razão entre o número de opiniões daquela acepção naquele sexo (o que equivale a número de pessoas com aquela acepção naquele sexo) sobre o número total de pessoas daquele sexo as diferenças se avultam.

Novamente, é necessário destacar a supremacia da acepção Justiça como instituição ou lei. Mais da metade dos homens (53,68%) e metade das mulheres (50,00%) lembraram tal acepção em suas opiniões. Como será bastante colocado adiante, em um país onde reinam a impunidade e o desprezo pelas leis e abundam as denúncias de corrupção envolvendo magistrados, não se pode estranhar que as pessoas vejam o cumprimento (tão raro) das normas elaboradas pelos seus representantes como efetiva realização da Justiça.

Enquanto nas demais acepções o equilíbrio se mantém, confirmando os comentários iniciais do item anterior, no caso de justiça como vontade ou razão divina, como bem da sociedade, como harmonização social, como justo ou eqüidade e como fruto da sociedade as dessemelhanças se agravam consideravelmente.

Como o desequilíbrio das acepções harmonização social e justo ou eqüidade já foi tratado, nos ateremos a comentar as demais:

a)A acepção divina de justiça teve maior eco entre os homens. Tal consideração parece paradoxal, uma vez que a mulher, ao longo da história, tem estado imersa na religião bem mais que o homem. Pode-se supor que tal fato deva-se à opressão mesma sofrida pela mulher. Uma provável, mas remota explicação para esse desequilíbrio entre as opiniões masculinas e femininas, especificamente nesta acepção, seria a posição feminina no contexto das religiões, em geral de submissão ao marido, situação esta que se não atinge diretamente a mulher citadina atual – como no caso da teresinense – ainda persiste em relação às interioranas dos rincões mais afastados, inclusive do nosso estado. Além disso, as seqüelas deixadas por tal fato não se apagam em menos que séculos ou décadas;

b)Justiça como bem da sociedade teve, maior relevância entre os homens. As doutrinas materialistas, sem dúvida, tiveram um eco maior no século XIX, quando o homem era o centro social único, seja na Europa, seja em plena Teresina;

c)Já visível nas porcentagens antes estudadas, agora ainda maior, é a significância das opiniões que indicam a justiça como algo variável de sociedade para sociedade entre os homens que foram entrevistados. A explicação para isto parece ser um misto da já realizada quanto às diferenças correspondentes às acepções de justiça como harmonização social, justo ou eqüidade e bem da sociedade. Ao mesmo tempo em que esse relativismo atingiu muito mais aos homens (que eram os únicos a freqüentarem centros de intelectualidade na Antigüidade dos Sofistas ou a maioria na contemporaneidade dos materialistas), para as mulheres enxergar justiça como fruto da sociedade significaria concordar com as injustiças praticadas contra elas em nome dessa mesma justiça. A concepção de justiça como algo superior a um simples fruto social (mesmo que tal justiça superior seja o tratamento equânime que cada pessoa deve dispensar as outras – e, portanto, bastante individualizada) é o que tem sustentado a luta feminina contra a barbárie a que os homens submeteram (e, em alguns casos como nos países islâmicos, ainda submetem mais abertamente) as mulheres ao longo dos séculos.

2.4.3 Transitado em julgado: a Justiça é tangível

Elaborou-se o ranking abaixo buscando um termo de comparação final entre os homens e mulheres entrevistados (posição de cada acepção por sexo), fundando a determinação das posições na coluna número de opiniões (ou pessoas) daquele sexo que indicaram aquela acepção sobre o número total de pessoas daquele sexo (vide Tabela 3):

Ranking das acepções em função do sexo – referente à Tabela 3

Acepção de justiça

Homens

Mulheres

Expressão da Vontade do Cosmos

14º

13º

Compensação ou Retribuição

*

Virtude

Igualdade

Vontade ou Razão divina

10º

12º

Ideal de Liberdade

11º

Bem da Sociedade

Justiça Libertadora

13º

13º

Princípio, Valor ou Ideal

Harmonização Social

Instituição ou Lei

Justo ou Eqüidade

Não existe

12º

Fruto da Sociedade

* Em destaque as posições que foram idênticas no ranking

Quanto àquelas pessoas não identificadas pelo sexo, a análise das suas opiniões será realizada no capítulo seguinte (onde serão avaliadas as relações entre acepções de justiça e profissão dos entrevistados), posto que além de não apresentarem referências que possibilitassem sua consideração nesta parte do estudo, suas opiniões pouco influenciariam nos resultados acima (representaram cerca de 4,36% das opiniões e 5,88% das pessoas).


III - O MUNDO PROFISSIONAL E A JUSTIÇA

3.1 A Justiça e "os de fora"

Cumpre destacar, neste momento, antes de atermo-nos à contextualização de cada acepção de justiça, o quadro percentual, ou seja, representativo, do número de profissionais de áreas não jurídicas no montante da amostragem desta pesquisa, de forma que se possa ter uma idéia real e concreta da representação desta parcela na construção das conclusões que serão elaboradas.

De pronto, constata-se que no universo de 340 pessoas entrevistadas, 218 eram profissionais não ligados, direta ou indiretamente, à Ciência Jurídica. Destes 218, por sua vez, pode-se extrair os mais diferentes níveis de educação e cultura. São empregadas domésticas, gazeteiros, médicos, engenheiros, sociólogos, donas de casa, professores, estudantes do ensino médio e superior, dentre outros, que colaboraram com um total de 431 opiniões, num total de 728 obtidas no montante geral.

Dessa forma, conclui-se que os profissionais de áreas não jurídicas representaram cerca de 64,12% dos entrevistados e 59,20% das opiniões auferidas. E o que estes dados nos revelam? É o que se tentará esclarecer nos tópicos abaixo enumerados. De tal sorte que serão divididas, inicialmente, as opiniões predominantes na totalidade dos profissionais de áreas não jurídicas; e, logo a seguir, serão analisadas as opiniões de cada acepção sobre o número de profissionais de áreas não jurídicas (incidência das acepções), bem como as diferenças entre homens e mulheres, nas definições do que seja justiça.

3.1.1 As opiniões dos "de fora" não apagam a luz no fim do túnel

A análise das porcentagens opinativas (número de opiniões que citaram aquela acepção emitidas por profissionais de áreas não jurídicas sobre o número total de vezes que as acepções apareceram entre estes profissionais) revelou aspectos interessantes no quadro formado pelos profissionais "leigos" nas ciências jurídicas.

Não fugindo à regra positivista que identifica o Direito e a Justiça com a norma posta, tal é o tradicionalismo de nossa cultura jurídica na identificação dos pressupostos da Teoria Pura do Direito de Kelsen, que a Justiça foi indicada, em assustadora maioria das opiniões, como sendo instituição ou lei.

De fato, a maioria dos entrevistados identificou imediatamente a Justiça como sendo o próprio Poder Judiciário ou a Lei, e isso ocorreu até mesmo entre os profissionais do Direito, totalizando um percentual de 25,99% das opiniões coletadas entre os profissionais de outras áreas.

Um segundo grupo de opiniões identificou Justiça como sendo igualdade (14,62%) ou compensação ou retribuição (14,15%). Aqui, pode-se ver que a distribuição das opiniões não se deu de forma equânime, muito pelo contrário. A acepção mais citada foi bem superior às outras.

Os profissionais de áreas não jurídicas que identificaram a Justiça como sendo igualdade externaram, em sua grande maioria, o descontentamento com as desigualdades sociais. Na mais das vezes, quem se reportou a essa acepção, optou por acreditar que a justiça seria uma forma de transformação da sociedade a partir do pressuposto de que, se todos são iguais, merecem ter as mesmas condições de vida. Mesmas condições de vida, entenda-se, significando mesmas condições materiais de vida, numa sociedade Capitalista, em que se mede o valor das pessoas, não pelo que são, mas pelo que possuem.

Entretanto, há que se salientar que algumas das pessoas que entenderam Justiça como sendo igualdade, fizeram-no acreditando ser a Justiça a medida perfeita, ou seja, a medida do que deve ser dado a cada um para que se atinja o bem-comum, a paz social.

Justiça como compensação ou retribuição afigura-se dentro da mesma linha de raciocínio que a acepção igualdade, isto é, são primados os mesmos valores individualistas que na anteriormente mencionada acepção. Aqui, importa saber que os profissionais não ligados à Ciência Jurídica associaram tal acepção, quando de suas opiniões, à idéia de vingança, de castigo.

A justiça identificada como virtude (10,44%) ocupou a quarta posição dentre as 14 (quatorze) acepções consideradas nesta pesquisa, encerrando o quadro daquelas com mais de 10% de freqüência dentre os profissionais ora tratados. Aqui, destaca-se um aspecto interessante, pois virtude está associada à idéia de bem agir, agir segundo sua consciência, fazendo aquilo que é justo, o que significa dizer que, para esta parte dos profissionais de áreas não jurídicas, a Justiça funciona como um controle interno do indivíduo, fazendo a sociedade tanto melhor, quanto mais homens cultivarem a Virtude do bem agir, que não depende de leis nem de códigos para se manifestar.

As acepções princípio, valor ou ideal (7,88%) e bem da sociedade (7,88%) compreendem um quarto grupo. Empatadas no número de opiniões, estas duas acepções trazem algumas diferenças mais marcantes em relação ao sexo. De fato, os homens destacaram duas vezes mais a acepção bem da sociedade do que as mulheres.

Justo ou eqüidade e fruto da sociedade empataram com 4,40% das opiniões colhidas. Vale ressaltar que a acepção fruto da sociedade adquiriu uma porcentagem bem maior de opiniões entre os homens do que entre as mulheres; enquanto que a acepção justo ou eqüidade foi bem mais citada entre as mulheres, o que será mais detalhado em momento oportuno.

Há ainda um sexto grupo de opiniões que deve ser mencionado. Aqui, estão as acepções de Justiça como harmonização social (3,24%), ideal de liberdade (2,03%) e não existe (2,32%).

Destaca-se, de pronto, que a justiça libertadora, das 431 opiniões colhidas entre os profissionais de áreas não jurídicas, obteve apenas uma opinião, representando 0,23% das opiniões emitidas por esse grupo.

Infelizmente, aqui se retrata com mais nitidez o que pôde ser constatado durante toda a pesquisa, ou seja, o descrédito para com a capacidade do homem em transformar a sociedade em que vive e as instituições que lhe dão forma. Ora, quando se perde a capacidade de acreditar no Homem, deixa de existir a motivação, a mola propulsora capaz de fazer girar as engrenagens que podem transformar a História e a Vida do Homem em sociedade, fazendo-o escravo porque não acredita que possa viver fora dessa escravidão. Daí o percentual até representativo de 4,64% que acreditam, simplesmente, que não existe Justiça ou de que ela é proveniente apenas da Vontade ou Razão Divina (2,32% + 2,32% = 4,64%).

3.1.2 Os sábios leigos e sua Justiça que não é só a lei

Considerando-se a tabulação referente ao número de opiniões que apontaram certa acepção (ou de profissionais de áreas não jurídicas que a citaram) sobre o número total de entrevistados profissionais de áreas não jurídicas, ou seja, não ligados à Ciência Jurídica, destaca-se que:

a)A acepção mais difundida foi instituição ou lei (51,38%), o que não foge à regra de que grande parte das pessoas quando se referem à Justiça a associam diretamente ao Poder Judiciário. Isto posto entre os profissionais de áreas não jurídicas serve, sobretudo, para evidenciar que as práticas reiteradas do ensino positivista nas Escolas de Direito influenciam também os profissionais não ligados diretamente à Ciência Jurídica. De fato, nossas universidades têm se preocupado mais com o ensino da Norma Jurídica, numa atitude francamente positivista, esquecendo-se que a aprendizagem dos códigos deve ser feita de maneira crítica. A sociedade teresinense, expressando suas concepções sobre Justiça, nada mais fez do que refletir aquilo que é difundido entre os próprios profissionais do Direito. Contudo, deve ser ressaltado que grande parte dos entrevistados que citaram essa acepção também citaram outra(s). Além disso, um aspecto muito interessante, é o que versa sobre a importância da Lei. Ora, se é lugar comum afirmar, na nossa sociedade, que as leis não são cumpridas, nada mais lógico que afirmar que a Justiça seria o cumprimento destas leis; donde se conclui que a insegurança gerada pelo descumprimento de nossos preceitos jurídicos origina, talvez, uma necessidade de amparar um conceito de Justiça numa acepção concreta, que não figure no tecido social apenas como um ideal distante, tão distante que o fato de se estar ainda na mera expectativa de realizá-la não se constitua, por si só, numa desculpa para sua total ausência.

b)Um segundo grupo de opiniões versou sobre as acepções compensação ou retribuição (27,98%) e igualdade (28,90%) que, juntas, representam um pouco mais que o percentual apresentado pela acepção instituição ou lei.

c)A acepção de Justiça como virtude figurou significativamente entre os profissionais de áreas não jurídicas (20,64%), o que, de certa forma, nos anima a crer numa atitude progressista por parte destes profissionais. De fato, a virtude figurando em grande número de opiniões pode denotar uma atitude de apego a uma acepção mais valorosa de Justiça, que não se localiza nas leis, nos códigos e nas instituições, mas no Homem, como ser racional e capaz de construir seus caminhos.

d)Um terceiro grupo percentual citou, de forma até significativa, as acepções bem da sociedade (15,60%) e princípio, valor ou ideal (15,60%). Não serão feitas explanações, neste momento, porque as diferenças mais acentuadas serão detalhadas quando da análise das questões de gênero, que será feita logo a seguir.

e)Fruto da sociedade (8,72%) e harmonização social (6,42%) formam um quarto grupo, que teve uma porcentagem pouco significativa (na comparação entre os sexos) na análise das opiniões pelo número total de entrevistados porque não foram acepções de grande aceitação entre as mulheres.

f)Num quinto grupo estão presentes as acepções de vontade ou razão divina (4,59%), não existe (4,59%) e ideal de liberdade (4,13%). Estas acepções, dentro da categoria estudada, ou seja, dos profissionais de áreas não jurídicas, denotam interessantes conclusões. A acepção vontade ou razão divina e não existe podem estar muito próximas do descrédito para com o Poder Judiciário e a Justiça dos Homens.

g)As acepções justiça libertadora (0,46%) e expressão da vontade do cosmos (0,00%) não obtiveram um número expressivo de opiniões.

3.1.3 A vitória do legalismo institucional

A seguir expõe-se, para fins ilustrativos, um ranking das acepções indicadas pelos profissionais de outras áreas.

Ranking das acepções entre os profissionais de áreas não jurídicas – referente à Tabela 4

Nº de opiniões que indicaram aquela acepção/ordem decrescente

Instituição ou Lei

112

Igualdade

62

Compensação ou Retribuição

60

Virtude

45

Princípio, Valor, ou Ideal

34

Bem da Sociedade

31

Justo ou Eqüidade

19

Fruto da Sociedade

19

Harmonização Social

14

Ideal de Liberdade

12

Não Existe

10

Vontade ou Razão Divina

9

Justiça Libertadora

1

Expressão da Vontade do Cosmos

0

OTAL

431

3.1.4 As questões de gênero nos "leigos"

Incidência das acepções em função do sexo dentro dos profissionais de outras áreas*

Acepção de Justiça

Homens

Mulheres

TOTAL

Expressão da Vontade do Cosmos

0 – 0,00%

0 – 0,00%

0

Compensação ou Retribuição

28 – 12,02%

31 – 17,32%

59

Virtude

24 – 10,34%

19 – 10,61%

43

Igualdade

34 – 14,59%

27 – 15,08%

62

Vontade ou Razão divina

6 – 2,57%

3 – 1,67%

9

Ideal de Liberdade

6 – 2,57%

3 – 1,67%

9

Bem da Sociedade

21 – 9,01%

10 – 5,59%

31

Justiça Libertadora

1 – 0,43%

0 – 0,00%

1

Princípio, Valor ou Ideal

17 – 7,29%

17 – 9,5%

34

Harmonização Social

11 – 4,72%

2 – 1,12%

13

Instituição ou Lei

60 – 25,75%

45 – 25,1%

105

Justo ou Eqüidade

7 – 3,00%

12 – 6,7%

19

Não Existe

5 – 2,14%

5 – 2,79%

10

Fruto da Sociedade

13 – 5,57%

5 – 2,79%

18

TOTAL

233

179

412**

* Referente à Tabela 4.

** Observar que não foram inclusos os profissionais de áreas não jurídicas que não puderam ser identificados pelo sexo

No âmbito da tabulação por sexo, entre os profissionais não ligados à área jurídica, destacam-se alguns dados: das 218 pessoas entrevistadas nessa categoria, 19 não puderam ser identificados pelo sexo, figurando, portanto, fora dos quadros desta parte da pesquisa. Deste número de 218 entrevistados, 111 eram do sexo masculino e 94 eram do sexo feminino. Houve, portanto, uma diferença de 17 homens a mais que as mulheres, dado este que deverá ser considerado ao longo das conclusões que serão estabelecidas neste momento da pesquisa.

As porcentagens ora estudadas (número de opiniões daquela acepção sobre o número de opiniões de profissionais de áreas não jurídicas classificados pelo sexo) desenham um quadro a partir do qual algumas interessantes conclusões podem ser extraídas, especialmente no que se refere à média da quantidade de respostas entre homens e mulheres e às acepções mais significantes, quais sejam, instituição ou lei, igualdade, compensação ou retribuição e virtude.

De fato, tanto em relação aos homens como em relação às mulheres, a média de respostas foi de aproximadamente duas por cada entrevistado: em relação às mulheres essa média ficou em torno de 1,90; enquanto entre os homens foi de 2,10. Demonstra-se, pois, uma ínfima diferença quanto ao número de acepções citadas por homens e mulheres, profissionais de áreas não jurídicas.

Quanto às acepções mais citadas, tem-se algumas peculiaridades no que tange à distribuição das respostas entre os dois sexos, que poderão ser visualizadas pela tabela disposta logo abaixo.

Ranking das acepções entre os profissionais de áreas não jurídicas do sexo masculino*

Homens – nº opiniões

Instituição ou Lei

60

Igualdade

34

Compensação ou Retribuição

28

Virtude

24

Bem Da Sociedade

21

Princípio, Valor, ou Ideal

17

Fruto Da Sociedade

13

Harmonização Social

11

Justo ou Eqüidade

7

Ideal de Liberdade / Vontade ou Razão Divina

6

Não Existe

5

Justiça Libertadora

1

Expressão da Vontade do Cosmos

0

TOTAL

233 OPINIÕES

* Referente à Tabela 4.

Ranking das acepções entre os profissionais de áreas não jurídicas do sexo feminino*

Mulheres – nº opiniões

Instituição ou Lei

45

Compensação ou Retribuição

31

Igualdade

27

Virtude

19

Princípio, Valor ou Ideal

17

Justo ou Eqüidade

12

Bem da Sociedade

10

Fruto da Sociedade/Não Existe

5

Ideal de Liberdade / Vontade ou Razão Divina

3

Harmonização Social

2

Justiça Libertadora/Expressão da Vontade do Cosmos

0

TOTAL

179 OPINIÕES

* Referente à Tabela 4.

Após a visualização das tabelas, algumas conclusões podem ser auferidas, a saber:

a)As quatro acepções mais citadas coincidem entre homens e mulheres, com algumas diferenças quanto à porcentagem de preferência dentre um e outro sexo. São elas: instituição ou lei, igualdade, compensação ou retribuição e virtude. Estas quatro acepções representaram, entre as mulheres, 68,16% das opiniões e, entre os homens, 62,66%. Destaca-se que, quanto às mulheres, a forma de distribuição das respostas foi mais paritária, dentro destas quatro acepções mais significativas, entendendo-se que houve uma maior diversificação das respostas entre as mulheres, o que pode ser melhor compreendido pela tabela supra citada.

b)A acepção instituição ou lei foi a mais significativa na pesquisa entre os profissionais de áreas não jurídicas, quer sejam homens ou mulheres. Para os homens, compreendeu cerca de 25,75% das opiniões; para as mulheres, esse percentual foi um pouco menor, 25,13%. Esta referência majoritária à Justiça como sendo instituição ou lei foi de tal forma significativa entre os homens que, ao se analisar a segunda acepção mais citada dentro das opiniões colhidas, teremos o seguinte quadro: entre os homens, instituição ou lei (25,75%) foi citada quase que duas vezes mais que a segunda acepção (14,59%), que foi igualdade; entre as mulheres, por sua vez, o resultado foi um pouco diverso, pois a primeira acepção foi referência em 25,13% das opiniões; ao passo que a segunda, compensação ou retribuição, em 17,32% das opiniões emitidas.

c)Um outro fato interessante é que a quinta referência mais citada entre homens e mulheres foi diversa. Para estas, princípio, valor ou ideal; para aqueles, bem da sociedade. Se fizermos o mesmo cálculo percentual do item "a", supra, teremos a seguinte conclusão: as cinco acepções mais citadas entre as mulheres representaram cerca de 77,65% do total de opiniões; entre os homens, incluindo-se a acepção bem da sociedade, esse valor percentual é da ordem de 71,67%. Com isso verifica-se que, em termos gerais, as opiniões emitidas entre homens e mulheres, profissionais de áreas não jurídicas, não foram bem distribuídas, concentrando-se preferencialmente em cinco acepções, das quatorze mencionadas na pesquisa em geral.

d)Um outro ponto que deve ser mencionado, com cautela, é o das acepções que figuraram em segundo lugar entre os homens e mulheres. Aqui, há uma sensível diferença, pois a igualdade figurou mais vezes entre os homens do que entre as mulheres; equiparando-se à compensação ou retribuição dentre as opiniões femininas.

e)A acepção bem da sociedade foi, entre os homens, a quinta mais citada, ao passo que, nesta posição, entre as mulheres, figurou a acepção de Justiça como princípio, valor ou ideal. Isto nos leva, fatalmente, a concluir pela descrença das mulheres num conceito de Justiça que se baseie na evolução natural da sociedade. De fato, os anos de dominação do homem em detrimento da mulher podem aqui ser apontados como fator decisivo na pequena porcentagem de opiniões que pôde ser colhida entre as mulheres, no sentido de identificar a Justiça como um bem da sociedade. Dado este que pode ser, inclusive, ratificado, quando da análise da acepção de Justiça como harmonização social, que obteve, entre os homens, 11 opiniões, ao passo que entre as mulheres, somente duas, ou seja, mais do quíntuplo de referência entre as opiniões masculinas em detrimento das femininas. Daí por que, a acepção princípio, valor ou ideal tenha figurado, entre as opiniões femininas, como a quinta posição, com 17 citações dentro das 179 colhidas. De fato, numa sociedade "machista", difícil é, para o caráter feminino, afirmar que Justiça seria o bem da sociedade, pois surgem sempre as perguntas: Mas, que sociedade? A sociedade "machista" em que vivem? Melhor, portanto, para elas, é considerá-la como um Princípio, um Valor ou até mesmo um Ideal, distante que seja, para que não se acredite que o que está posto como ordem, como razão social ou como "o bem da sociedade" não se confunda e, principalmente, não se misture sequer com o pálido rascunho do que seja o Justo.

3.2 A Justiça e os profissionais da Justiça

Serão analisados aqui os valores anotados na Tabela 1, mas somente aqueles presentes nos campos assinalados por profissionais do Direito (ou seja, os contidos na Tabela 5 – A Justiça e os "iniciados"), a saber: advogados, defensores públicos, promotores de justiça, juízes, desembargadores, estudantes de Direito e outros identificados ou não pelo sexo. A categoria "outros" representa as demais atividades ligadas ao mundo do Direito como delegados de polícia, técnicos e auxiliares judiciários, oficiais de justiça etc.

Participaram da pesquisa 122 pessoas ligadas ao Direito. Este universo amostral é composto por 79 homens, 36 mulheres e 7 pessoas cuja descrição apresentada nas enquetes-fonte da pesquisa não permitiu a identificação por sexo.

Dentre todos os operadores do Direito, os advogados foram os que mais emitiram opiniões sobre seu sentimento de justiça. As participações destes contabilizaram um número de 106 opiniões na pesquisa, o que representa 35,69% das opiniões totais dos operadores do Direito.

Analisando o percentual da cada acepção de justiça em cada categoria de operadores do Direito percebemos que entre os advogados a mais citada foi instituição ou lei com 23,58% das suas opiniões, seguida por virtude com 18,86% e fruto da sociedade com 14,15%. Em todo o conjunto formado por profissionais do Direito foi assinalada somente uma opinião declarando que a justiça não existe e este profissional era um advogado.

Entre os promotores imperou também a acepção de justiça como instituição ou lei. Sua parcela representa exatamente um terço do total de opiniões emitidas pelos membros do Ministério Público, o que é um valor muito expressivo.

Os magistrados, assim como a maioria dos profissionais do Direito, também expressaram por meio de suas opiniões uma aproximação de seu sentimento de justiça com a acepção instituição ou lei. Cerca de 28% das opiniões dos juízes esteve ligada a esta acepção. Esta constatação é lamentável, uma vez que, em tese, deveriam ser os maiores provedores da verdadeira justiça.

Percebe-se uma melhor distribuição das opiniões pelas acepções de justiça dentre os estudantes de cursos jurídicos. Eles são o segundo grupo mais representativo nesta pesquisa, suas opiniões somam 20,53% do total — isso mostra quanto a participação dos advogados é substancial, pois suas opiniões alcançam quase o dobro destas.

Uma surpresa foi registrada no grupo de estudantes, a acepção de justiça como lei ou instituição ficou apenas em terceiro lugar dentre as mais citadas pelo grupo. A maioria dos estudantes de Direito entrevistados concebe a justiça como princípio, valor ou ideal. Aproximadamente 18,03% dos universitários tiveram suas opiniões relacionadas a esta acepção. Este resultado inesperado talvez seja uma conseqüência positiva da adoção recente de mais disciplinas filosóficas e sociológicas voltadas ao Direito, o que influencia na formação do pensamento jurídico do futuro profissional do Direito. De uma maneira pessimista, poder-se-ia cogitar que estes valores surgiram em virtude de os estudantes entrevistados não possuírem ainda uma vivência do Direito que lhes permitisse vislumbrar a justiça sob outro foco — talvez o da maioria: justiça como lei ou instituição.

Para os oficiais de justiça, delegados de polícia e demais integrantes da categoria denominada "outros" operadores do Direito a acepção que melhor representaria seus sentimentos de justiça seria instituição ou lei com 24,48% das opiniões por eles emitidas. E outra vez a acepção dominante no mundo dos operadores do Direito registrou o primeiro lugar, ficando em segundo a acepção compensação ou retribuição com 20,40% das opiniões.

Fato curioso foi encontrado na resposta de um desembargador entrevistado. Ele foi o único dentre todos os demais, profissionais do Direito ou não, a apontar um sentimento de justiça ligado à acepção expressão da vontade do cosmos.

As opiniões emitidas por defensores públicos, procuradores de justiça e desembargadores não foram analisadas individualmente porque representam números pequenos diante do quadro geral. Porém, quando unidos foram de grande importância para traçar-se um perfil acerca do sentimento de justiça dos operadores do Direito de Teresina.

3.2.1 Justiça dos "iniciados": lei, virtude ou compensação?

Analisando-se quantitativamente os entrevistados, segundo suas profissões, constatou-se que aproximadamente 35,88% deles exerciam alguma atividade jurídica (122 pessoas num total de 340). Quanto às opiniões emitidas pelos profissionais do Direito, estas representam cerca de 40,80% do total de opiniões coletadas nos trabalhos.

3.2.1.1 A communis opinio doctorum: a Justiça de tijolos, togas e letras

A interpretação das porcentagens opinativas (nº de opiniões daquela acepção emitidas por profissionais do direito sobre o nº total de opiniões emitidas por estes profissionais) revelou que dentre as diversas acepções de justiça encontradas nos trabalhos aquela que obteve um número de opiniões significativamente superior foi a que simbolizava justiça como instituição ou lei, registrando 22,56% do total.

O estudo dos valores percentuais acima referido pode ser realizado em quatro grupos, a saber:

a)Justiça como instituição ou lei foi a acepção com o maior número de opiniões. Este dado faz emergir uma triste realidade, a de que está presente na maioria dos profissionais do Direito uma tendência a confundir a justiça com o próprio Poder Judiciário, ou senão, com o ordenamento jurídico. A razão para explicar esta realidade pode ser encontrada na formação profissional dos entrevistados que exercem alguma atividade no meio jurídico. Grande parte deles não teve uma formação universitária que lhes permitisse adquirir conhecimentos filosóficos e sociológicos mais apurados. Isto se deve ao fato de que até bem pouco tempo os cursos jurídicos do Estado do Piauí não ofereciam aos alunos a oportunidade de lidar com aquelas matérias de maneira que pudessem associá-las ao Direito.

b)As acepções de justiça como compensação ou retribuição e como virtude formam o segundo grupo. Estas acepções obtiveram valores percentuais muito próximos (13,80% e 14,14% respectivamente). A interpretação do número de opiniões que indicaram estas acepções revela haver uma ligação entre ambas. A justiça enquanto virtude está assentada no bem agir do indivíduo segundo sua consciência. A justiça como compensação ou retribuição é entendida pelo ressarcimento de um dano causado por alguém que deixou de bem agir. Devido, talvez, a esta relação entre as acepções houve uma aproximação numérica bastante nítida no que tange ao número de opiniões em cada uma delas.

c)As acepções de justiça como igualdade (7,74%), bem da sociedade (6,06%), princípio, valor ou ideal (10,10%), harmonização social (7,41%), justo ou eqüidade (5,39%) e como fruto da sociedade (10,10%) foram reunidas neste terceiro grupo em virtude de suas pequenas representações percentuais. Individualmente, os números de opiniões de cada uma destas acepções foram pelo menos 50% menores que o número de opiniões ligadas à acepção instituição ou lei (a que obteve o maior percentual individual). Os baixos índices aqui apresentados apenas reforçam a idéia anteriormente citada, ou seja, estes números refletem que a formação do profissional do Direito neste Estado era (e em alguns casos continua) deficiente no que diz respeito ao ensino de matérias filosóficas e sociológicas. Ressalta-se que a compreensão de tais matérias é o que garante o entendimento delas como parte integrante do Direito.

d)Por fim, as acepções de justiça como expressão da vontade do cosmos, vontade ou razão divina, ideal de liberdade, justiça libertadora e como algo que não existe apresentaram um número inexpressivo de opiniões. A soma percentual destas acepções representa 2,7% do total. A variação percentual do número de opiniões de cada uma destas acepções sobre o número total de opiniões registrou valores irrisórios, limitados entre 0,34% e 1,01%.

3.2.1.2 O tribunal não reforma a sentença: a Justiça está escrita em códigos

Ao desenvolver-se um estudo sobre a razão entre o número de profissionais do Direito com aquela acepção sobre o número total de profissionais do Direito entrevistados torna-se mais visível ainda a substancial superioridade numérica das opiniões dirigidas à acepção de justiça como instituição ou lei.

Neste campo da tabela (Tabela 5 – A Justiça e os "iniciados"), a acepção de justiça como instituição ou lei, que supera, com 67 opiniões, qualquer outra acepção, registra o surpreendente índice de 54,92% do total de opiniões. É seguida à distância pelas demais acepções, sendo que as que mais se aproximam são justiça como virtude (34,43%) e como compensação ou retribuição (33,61%). As outras acepções apresentaram valores percentuais sempre inferiores a 25%, o que significa que elas possuem um número de opiniões inferior à metade da acepção com o maior número de opiniões registradas.

A soma de todos os percentuais individuais registrados neste campo atinge um valor superior aos 100%, visto que grande parte dos profissionais do Direito indicou mais de uma acepção quando da entrevista. Em termos numéricos, foi emitida uma média de 2,43 acepções por entrevistado.

No mais, dentre as outras acepções, foram mantidas aqui as mesmas relações já verificadas no campo em que foram analisadas as opiniões daquela acepção sobre o número total de opiniões dos profissionais de Direito entrevistados (ver item 3.2.1.1).

3.2.2 As questões de gênero nos "iniciados"

Incidência das acepções em função do sexo dentro dos profissionais do direito*

Acepção de Justiça

Homens

Mulheres

TOTAL

Expressão da Vontade do Cosmos

01 – 0,52%

00

01 – 0,52%

Compensação ou Retribuição

30 – 15,54%

10 – 11,00%

40 - 26,54%

Virtude

22 – 11.40%

18 – 19,78%

40 - 26,54%

Igualdade

13 – 6,74%

09 – 9,89%

22 - 16,63%

Vontade ou Razão Divina

02 – 1,04%

00 – 00,00%

02 - 1,04%

Ideal de Liberdade

01 – 0,52%

02 – 2,20%

03 - 2,72%

Bem da Sociedade

12 – 6,22%

06 – 6,59%

18 - 12,81%

Justiça Libertadora

01 – 0,52%

00 – 00,00%

01 - 0,52%

Princípio, Valor ou Ideal

20 – 10,36%

07 – 7,69%

27 - 18,05%

Harmonização Social

18 – 9,33%

03 – 3,30%

21 – 21,63%

Instituição ou Lei

42 – 21,76%

20 – 22,00%

62 – 43,76%

Justo ou Eqüidade

09 – 4,66%

07 – 7,69%

16 – 12,35%

Não Existe

01 – 0,52%

00 – 00,00%

01 – 0,52%

Fruto da Sociedade

21 – 10,88%

09 – 9,89%

30 – 20,77%

TOTAL

193

91

284**

* Referente à Tabela 5.

** Não inclusas as opiniões dos profissionais do direito que não puderam ter o sexo identificado

Foram entrevistados 122 profissionais da área jurídica. No entanto, nem todos foram identificados de maneira que se pudesse distingui-los pelo sexo. Dessa forma, foram contabilizadas para o estudo desta tabela somente as opiniões daqueles profissionais do Direito passíveis de identificação conforme o sexo. A exclusão de alguns dados não interferirá nos resultados finais, visto que os não identificáveis emitiram apenas 13 opiniões, enquanto os demais somam 284 opiniões.

No universo de operadores do Direito identificados pelo sexo (número de opiniões daquela acepção sobre o número de opiniões de operadores do direito classificados pelo sexo) pode-se constatar que os homens emitiram duas vezes mais opiniões que as mulheres (193 e 91 opiniões respectivamente). Foram abordados 79 homens, 36 mulheres e 7 pessoas não identificadas pelo sexo.

Dentre as acepções listadas a mais citada em ambos os sexos foi a de justiça como instituição ou lei, que apresentou um empate de porcentagens opinativas entre homens (21,76%) e mulheres (22,00%).

Com 15,54% do total de opiniões masculinas, a acepção de justiça como compensação ou retribuição ocupa o posto de segunda acepção mais lembrada. Em seguida surge a justiça como virtude com cerca de 11,40%. Enquanto isso no universo feminino, a ordem se inverte. Em segundo lugar está a acepção virtude com 19,78% e em terceiro compensação ou retribuição com 11,00%.

Destaca-se o elevado percentual da acepção de justiça como virtude (18 opiniões), lembrado pelas mulheres do mundo jurídico, que se aproxima bastante, numericamente, da acepção instituição ou lei (20 opiniões). Este fato revela o quanto as profissionais da área jurídica do Piauí estão mais avançadas que os homens da mesma área. Enquanto a grande maioria do grupo masculino ainda associa a justiça ao Poder Judiciário ou à lei propriamente dita, as mulheres já apresentam além desta acepção, uma segunda, que vincula a justiça à virtude.

Presumimos que este progresso feminino é explicado historicamente. Até bem pouco tempo, as mulheres não desfrutavam dos mesmos direitos masculinos, e um destes direitos era o acesso à educação fundamental, ainda menos de uma formação universitária. Logo percebemos que os cursos jurídicos começaram a receber mulheres no quadro discente há pouco tempo.

Desta forma, compreendemos que o ingresso da mulher nas faculdades de Direito do Estado coincide com a exploração mais intensa de disciplinas crítico-reflexivas (sociologia e filosofia, por exemplo) nos cursos jurídicos. Assim, a grande maioria feminina formada em Direito no Piauí possui uma formação mais atual que a obtida pelos homens.

3.3 Os "leigos" e os "iniciados" vêem a mesma luz no fim do túnel

Diferentemente das análises das questões de gênero, a avaliação por profissão abrange todas as pessoas entrevistadas, visto que em todos os trabalhos que constituíram a fonte dos dados ora apresentados foi somente a ocupação o dado identificado sem obscuridade.

O primeiro aspecto a ser citado é a marcante diferença numérica entre profissionais do direito e os das demais áreas: estes últimos superam os primeiros em mais de 75%. O fato é facilmente explicável, pois embora uma das exigências que recaíram sobre os trabalhos individuais tenha sido entrevistar pelo menos alguns profissionais do direito, a realidade social é que estes profissionais são raros em comparação com a somatória dos demais (acesso difícil ao curso universitário).

Outro resultado interessante é a relação entre número de opiniões de cada área sobre o número de profissionais de cada área, que revelou uma média mais alta entre os profissionais do direito (quase 2,5 acepções por pessoa, enquanto entre os demais profissionais essa média não chega a 2 acepções por pessoa). A principal explicação para esse dado se nos afigura o maior preparo teórico para tratar desse tema entre profissionais jurídicos, mas não se pode olvidar a existência de outras razões (como por exemplo, a indecisão pessoal, que faz citar várias acepções conhecidas no decorrer de seus cursos universitários como se refletissem suas próprias opiniões).

3.3.1 A igualdade na Justiça dos "de fora"

Se na tabulação por sexo as semelhanças eram relevantes, agora o quadro é um pouco diverso. A não ser no que tange à vitoriosa acepção instituição ou lei, no conjunto das porcentagens opinativas de cada área (número de opiniões daquela acepção dentre aqueles profissionais sobre o número total de opiniões daqueles profissionais) surgiram diferenças importantes. As mais significativas se deram nas acepções de justiça como igualdade, vontade ou razão divina, ideal de liberdade, harmonização social, algo que não existe e fruto da sociedade.

A diferença nas porcentagens da acepção justiça como igualdade é espantosa: quase o dobro percentual entre os profissionais de outras áreas (14,62%) em comparação com os do direito (7,74%). Provavelmente o mundo do direito vivido (e não o do pensado) tenha enfraquecido entre os que nele se movem a certeza da igualdade como critério de justiça. Afinal, o pragmatismo jurídico é lar de privilégios e de prepotência, ambos contrários à retidão e à igualitariedade. Por outro lado, a relevância de tal acepção entre os profissionais de outras áreas é imensa (2º lugar geral). Isto reflete simplesmente uma situação social de fato: a igualdade é uma aspiração há muito perseguida, mas ainda não atingida.

A acepção justiça como vontade ou razão divina, por sua vez, figurou notadamente mais entre os profissionais de outras áreas. Certamente, o vivenciar acadêmico do direito muitas vezes afasta o indivíduo dessa acepção deísta, especialmente porque o positivismo domina a doutrina e a produção jurisprudencial nacionais. Além disso, a cisão entre Igreja e Estado, ocorrida há muito em todo o mundo ocidental (no qual Teresina está inserida), ainda agora não pode deixar de manifestar-se visivelmente na opinião daqueles que são os cientistas jurídicos.

Justiça como ideal de liberdade é uma acepção que se mostrou duas vezes mais presente entre os profissionais de outras áreas (2,09%, enquanto entre os profissionais do direito chegou a 1,01%). Como acima, se admitimos que a enorme sombra do positivismo ainda obscurece os horizontes jurídicos teresinenses, é perfeitamente explicável que os juristas, em geral, prefiram a ordem à liberdade – ou concebam uma justiça na qual a ordem seja mais essencial que um vivenciar tão extremado da liberdade. É o mesmo fato que acaba por explicar a diferença nos números da acepção harmonização social (dentro das opiniões de cada grupo profissional, os juristas, percentualmente, emitiram duas vezes mais opiniões voltadas a tal acepção de justiça – 7,41% - contra 3,25% nos profissionais de outras áreas).

Além disso, esse positivismo desemboca num relativismo axiológico, atingindo em cheio o conceito de justiça dos profissionais do direito. Isto explica a brutal diferença nas porcentagens de justiça como fruto da sociedade entre estes (10,10% das opiniões emitidas) e os demais profissionais (4,41%).

Por fim, é interessante constatar a importância muito maior que teve a acepção de que justiça não existe entre as opiniões dos profissionais não-jurídicos. Evidentemente, a distância existente entre os demais profissionais e o estudo jurídico – repleto de belíssimas definições de justiça, enunciadas por filósofos, juristas, etc – influenciou decisivamente na descrença refletida em tais opiniões. Ou seja, ainda que com conceitos de justiça extremamente diferentes, os juristas dificilmente admitem a sua inexistência – mesmo que ela se reduza ao cumprimento dos mandamentos legais positivos. Para as demais pessoas, profissionais das mais diversas áreas, a frieza e a brutalidade da realidade por vezes afastam a idéia de que a justiça possa sequer existir. Entre estes, 2,32% das opiniões emitidas consideraram a justiça como algo inexistente (no conjunto das opiniões dos profissionais do direito, tal percentual chegou apenas a 0,34%).

3.3.2 O veredicto da maioria: A lei é dura, mas é a Justiça

Alguns interessantes pontos podem ser observados numa análise comparativa entre os profissionais do direito e aqueles de outras áreas, tomando-se por base as porcentagens tratadas nesta seção - número de opiniões que citaram aquela acepção (ou número de pessoas que a emitiram) sobre o número de entrevistados em cada campo profissional (jurídico e não jurídico):

a)As significativas diferenças nas porcentagens referidas quanto às acepções de justiça como igualdade, vontade ou razão divina, ideal de liberdade, princípio, valor ou ideal, harmonização social, fruto da sociedade ou algo que não existe;

b)A semelhança das acepções mais lembradas, a despeito das diferenças profissionais.

Quanto à letra a, as diferenças aludidas já foram parcialmente explicadas no item 3.3.1 deste estudo comparativo, exceto o caso da justiça como princípio, valor ou ideal. Vale ressaltar que as razões anteriormente explicitadas também se aplicam às porcentagens aqui tratadas, na verdade ainda com mais força que anteriormente. Exemplificando: o fato de entre os profissionais do direito menos de 20% terem citado a acepção de justiça como igualdade, enquanto entre os demais profissionais a mesma acepção ter sido lembrada por quase 30% dos entrevistados (ficando em segundo lugar num ranking das acepções) demonstra que os primeiros, no dia-a-dia da labuta jurídica, certamente convivem com privilégios e diferenciações (mesmo que formais) que acabam por minar a certeza da igualdade (ou a necessidade dela) como critério de justiça.

No que tange à acepção de justiça como princípio, valor ou ideal, 24,59% dos profissionais do direito entrevistados a lembraram em suas opiniões, contra 15,60% dos profissionais de outras áreas. Tal diferença, bastante significativa, provavelmente possa ser explicada pelo maior contato dos profissionais do direito com correntes do pensamento jusfilosófico que tendem a considerar (ou realmente consideram) a justiça como algo perfeito, geralmente inatingível na situação do homem como ser circunstancialmente material. Além disso, em muitas pessoas a convivência numa realidade como a da vida jurídica acaba por solidificar ainda mais a convicção íntima de uma justiça-modelo, perseguida pelo ser humano incansavelmente. Ela serve até mesmo como tábua de salvação, a flutuar em um mar de iniqüidades diárias.

Contudo, tanto a convivência acima mencionada como as próprias convicções pessoais dos entrevistados do universo jurídico podem incliná-los a enxergar a justiça como fruto da consciência coletiva de cada grupo social – uma espécie de convenção valorativa dos homens em sociedade. E isto se deu com o mesmo percentual de entrevistados do caso anterior (24,59%). Por sua vez, entre os profissionais de outras áreas a significância de tal acepção foi bem menor (8,72%).

Voltemos agora nossas vistas para as importantes semelhanças entre os percentuais ora estudados.

De início, ressalte-se a elevada freqüência de entrevistados que consideram a justiça como instituição ou lei. Como antes mencionado, muitas dessas pessoas emitiram opiniões que criticavam o Judiciário ou as próprias leis (escritas), sem contudo esclarecerem os seus sentimentos estritamente pessoais. De uma forma ou de outra, todavia, tais opiniões denunciavam uma pressuposição da existência de órgãos ou leis realmente eficazes para que se realize a justiça. Em meio à impunidade que assola o país, é compreensível que tantas pessoas acreditem que o cumprimento pelo menos dos mandamentos legais assegure a justiça, já que a realidade social é exatamente a oposta.

Independentemente da área profissional, mais de 50% dos entrevistados fizeram alguma referência à instituição ou lei quando explicitaram seus sentimentos do que venha a ser a justiça. O que se nos afigura digno de nota é que 54,92% dos profissionais do direito citaram a referida acepção – uma marca maior que entre os profissionais de outras áreas (51,38%). É provável que a influência do positivismo, aliada à vida forense diária dos juristas, explique satisfatoriamente a diferença. O elevado número de pessoas de outras profissões que apresentaram tal acepção, contudo, só pode ser explicado pela falta de bagagem teórica (estudos de filosofia, direito, etc) ou pelas razões apontadas anteriormente (inclusive quando da análise de outras tabelas).

Entre os profissionais do direito, a segunda acepção mais lembrada foi a de justiça como virtude (34,43%), seguida de perto pela de justiça como compensação ou retribuição (33,61%). A ligação entre elas já foi explicitada em outras partes da presente pesquisa. O que interessa aqui é perceber que entre os profissionais de outras áreas a acepção de justiça como igualdade figura em segundo lugar (28,90%) e a de justiça como compensação ou retribuição - semelhante ao que ocorre entre os profissionais do direito – em terceiro (27,98%). A enorme diferença na posição da acepção de justiça como igualdade (6ª entre os profissionais do direito) já foi explicada anteriormente.

A acepção de justiça como virtude ocupa o 4º posto entre os profissionais de outras áreas e, como dito acima, o 2º entre os profissionais do direito. Parece razoável a explicação que parte do fato de que uma das acepções de justiça mais difundidas nos meios jurídicos ocidentais é a do jurista romano Ulpiano: "Justiça é a firme e perpétua vontade de dar a cada um o que é seu". Por ser vontade dirigida a um fim, a justiça aqui se apresenta como virtude.

Finalmente, ressalte-se que as acepções mais citadas, tanto pelos profissionais do direito quanto pelos demais, foram, em geral, as mesmas, ainda que em posições diferentes. Certamente, os condicionamentos sociais semelhantes impostos às pessoas – que são seres humanos em sociedade antes mesmo de serem profissionais – influenciou decisivamente para que tal similitude se configurasse.


CONCLUSÃO

O homem surgiu sobre a Terra há aproximadamente um milhão de anos; a sua busca pela Justiça é da mesma ordem de grandeza temporal. Tal é a ancestral magnitude da Justiça para o gênero humano. Na eterna luta para ser melhor naquilo que ele é, o homem persiste na batalha para alargar seus horizontes, tentando compreender, da melhor forma, estruturas que a ele se apresentam tão-somente pela intuição. Tal tentativa levou a humanidade a percorrer infindáveis labirintos, em grande parte, fazendo-a persistir em caminhos errados, distanciando-se do objeto de sua procura.

Diante de tão agigantada relevância, inúteis se mostrariam quaisquer linhas que fossem aqui escritas com o intuito de demover a Justiça da sua posição de destaque no pensamento humano, assim como desnecessária se configuraria uma enumeração de motivos ou justificativas para a existência de mais um estudo sobre o tema. Sendo assim um tema universal, nada mais lógico que seja ele também aplicável à comunidade teresinense, posto não haver homem que possa arredar a indagação do que seja ou não justo (aquilo que é conforme à Justiça).

Quanto aos resultados, em todas as suas matizes, o sentimento de justiça voltado à instituição e à lei apresentou os índices numéricos mais elevados. Em outras palavras, homens e mulheres (agrupamento por gênero), juristas e não juristas (agrupamento por profissão), em sua maioria citaram tal acepção nas suas opiniões. A superioridade em relação à segunda acepção mais lembrada (compensação ou retribuição) foi tão significativa que esta mal ultrapassou a metade da freqüência percentual dos entrevistados que citaram aspectos institucionais ou legais da Justiça.

Há que se explicar que nem todos os entrevistados puderam pensar bem antes de responder às perguntas. Quem olha um noticiário de relance, quem vê um mendigo nas calçadas ou uma criança nas ruas, quem fecha as portas de casa mais cedo e tem uma noção ao menos remota de que existem leis e aplicadores que vão ajudar a acabar com as injustiças (ou não), encontram, nessa lógica às avessas, seu conceito de justiça (o que, em tese, solucionaria seus problemas): as leis e o Judiciário, ou mesmo, o Legislativo. Em outras palavras, o fato de a maioria das pessoas, seja em Teresina, no Brasil ou no mundo inteiro estarem de tal forma ávidas por Justiça contribui para o pensamento de que a simples aplicação das leis, a todos indistintamente, seja a única forma de realização do justo que lhes fita ao horizonte. Muitas vezes, o descrédito em relação às instituições encarregadas de aplicar o Direito — e que quase sempre são confundidas com a Justiça — gera a descrença não só no Direito, como também na Justiça, julgando-os, erroneamente, idênticos e indissociáveis. A identificação da Justiça com as leis, contudo, envolve problemas de nítido caráter ideológico, ou ainda, em âmbito pessoal, uma atitude evidentemente comodista e imediatista, o que logicamente se espalha por toda a sociedade.

Dado que a acepção de justiça como instituição ou lei é de caráter fortemente positivista, se nos afigura lastimável sua elevada freqüência, ainda mais quando se percebe que mesmo os profissionais de direito, "iniciados" nos "mistérios" da "ciência oculta ao vulgo" que é o Direito, revelaram uma índole conservadora inconciliável com a necessidade de mudanças radicais na estrutura sócio-econômica e principalmente ética do Brasil. Ora, aquele que imagina uma justiça expressa em leis e instituições elaboradas ou criadas por necessidades ou conveniências históricas, políticas, sociais, etc, não é nada mais que um relativista e este relativismo axiológico é o cerne do positivismo.

O apego às leis, ou melhor, à letra das leis e às instituições foi justamente o responsável pelo assassínio dos maiores homens da Terra, os mais sábios e virtuosos, aqueles que em verdade trouxeram a melhor amostra à raça humana do que verdadeiramente significa conformar-se à Justiça (vide Cristo, Sócrates, entre outros).

A Justiça, a única que pode ser grafada com inicial maiúscula, jamais poderá estar condicionada às vontades humanas ou às aspirações de pequenos grupos que têm ao longo dos tempos dominado as sociedades. Não pode a Justiça que o ser humano busca ser tangível para as mãos de seres circunstancialmente materiais; nem vestir togas ou tornar-se representável pelos primitivos símbolos que utilizamos em nossa comunicação escrita. A Justiça é mais que isso. Ela seria uma Idéia, segundo a qual todo o cosmos foi construído, manifestando-se desde a pequenez do átomo até o gigantismo das galáxias, revelando nas grandes como nas pequenas coisas uma sabedoria inumana, ou melhor, infinitamente sobre-humana. Com isso, pretendemos afirmar ser a Justiça externa ao homem e anterior a ele, ao mesmo tempo que a ele imanente, por ter sido o ser humano moldado segundo tal Arquétipo.

O homem, portanto, meramente percebe a Justiça, muitas vezes envolta nas brumas de sua ignorância, em outras tantas, na penumbra de seu orgulho, isso a tal ponto de admitir como justiça a sua própria vontade ou interesse, quando, muitas vezes, esta se situa no pólo oposto do que se possa afirmar como justo.

O ser humano tão-só apreende-a em graus cada vez mais perfeitos segundo conforme-se às Leis, mandamentos estes não as reles leis humanas, mas sim Imperativos Cósmicos superiores a qualquer ordenação possível de ser construída pelas sociedades. Não é tarefa do homem criar a Justiça. Esta sempre existiu e sempre existirá, ainda que o próprio Universo não tivesse surgido naquela tão conhecida explosão (até agora não explicada pela inconsCiência humana), posto que sua Idéia reside no intelecto do Criador e não simplesmente em qualquer objeto da Criação de forma plenamente esgotada. O dever do homem é investigar sua essência e, (re)conhecendo-a, realizá-la tanto quanto seu estado de ignorância o permita.

Quem conhece as leis — e principalmente — quem tenta conhecer o Homem, percebe que a Justiça não cabe nas cartas legais. Há alguns que já perceberam até que a Justiça não cabe no próprio Homem. E estes, certamente, não se auto-intitularam donos do Direito, ou donos da Justiça, posto que perceberam que as leis (e os homens das leis) são, em sua gama de defeitos e qualidades, quando muito, meros instrumentos para a construção de um mundo melhor, ou mais justo, em alguns aspectos.

Oxalá que a humanidade possa, um dia, — e que esse dia não tarde — compreender que para se fazer Justiça, se é que ela é exeqüível por homens, não se necessita de quaisquer instituições. Talvez fosse suficiente que cada homem individualmente se tornasse justo. Daí ser bem mais difícil o que se almeja, não só pela dificuldade quantitativa de tornar a todos homens justos, mas pela milenar e talvez incomensurável tarefa (dificuldade qualitativa) de tornar um único homem um homem justo.


ANEXO I

Tabela 1. Panorama geral do sentimento de justiça em Teresina

Concepções de Justiça

Áreas Não Jurídicas

Operadores do direito

TOTAL

Advogado

Def. Público

Promotor

Procurador

Juiz

Desembargador

Estudante

Outros

Ñ ident. p/ sexo*

H

M

Ñ ident. p/ sexo*

H

M

H

M

H

M

H

M

H

M

H

M

H

M

H

M

Expressão da vontade do Cosmos

1

1

Compensação ou Retribuição

28

31

2

6

2

1

2

2

1

1

4

1

1

8

1

7

3

1

102

Virtude

24

19

2

10

10

1

1

2

3

1

1

1

1

4

3

1

1

2

87

Igualdade

34

27

2

3

3

1

2

1

2

1

1

2

4

2

1

86

Vontade ou Razão Divina

6

3

1

1

1

12

Ideal de Liberdade

6

3

2

1

12

Bem da Sociedade

21

10

3

4

2

1

4

1

1

2

2

1

52

Justiça Libertadora

1

1

2

Princípio/Valor/Ideal

17

17

7

3

2

1

1

1

6

4

2

3

64

Harmonização Social

11

2

1

6

2

3

3

7

1

36

Instituição/Lei

60

45

7

16

9

3

4

4

1

8

1

4

4

6

2

5

179

Justo/Eqüidade

7

12

3

4

2

1

2

3

1

35

Não Existe

5

5

1

11

Fruto da Sociedade

13

5

1

10

5

1

1

1

2

2

1

3

1

2

1

49

TOTAL

233

179

19

66

40

9

0

13

11

8

3

26

6

5

0

33

22

33

9

13

728

FONTE: Classificação dos dados retirados dos trabalhos individuais

H = Homens
M = Mulheres
* Pessoas não identificadas pelo sexo

Tabela Total das pessoas

Outras Áreas

Operadores do direito

Advogado

Def. Público

Promotor

Procurador

Juiz

Desembargador

Estudante

Outros

Ñ ident. P/ sexo

H

M

Ñ ident. P/ sexo

H

M

H

M

H

M

H

M

H

M

H

M

H

M

H

M

111

94

13

31

16

4

4

4

3

1

11

1

1

12

10

13

4

7

TOTAL

218

47

4

8

4

12

1

22

17

7

TOTAL

122

ANEXO II

OPINIÕES QUE CLAMAM POR JUSTIÇA

Conforme se expôs em intróito, este anexo apresenta entrevistas advindas das enquetes que serviram de fonte a este trabalho. Elas foram aqui colocadas por se destacarem aos olhos dos pesquisadores e para que sirvam de base aos leitores quanto à compreensão de como se tenha enquadrado determinada entrevista nos moldes de determinada acepção. Assim, breves comentários sucedem-nas com este intuito.

1.)"Justiça é um conjunto de ações baseadas em princípios universais, com a finalidade de se obter a verdade entre os homens. Ser justo é respeitar todos os valores e princípios em que se baseia a Justiça. É buscar a verdade sob todas as coisas. A justiça possibilita a criação de uma sociedade justa, ou seja, uma sociedade em que os homens são capazes de criar, respeitar e executar leis a fim de manter a igualdade entre os homens e o meio onde vive" (Estudante do 3º ano do ensino médio).

Comentários: De início já se percebe que justiça para ele é um princípio realizado através de ações, ou seja, virtude. Sendo princípio há que se englobar esta opinião no arquétipo princípio, valor ou ideal. Por fim, indicando a igualdade como fim das leis humanas não há que relutar em enquadrá-lo na respectiva acepção. É impressionante o nível especulativo da resposta dada, vinculando justiça a termos como princípio, verdade, valor, etc. Convém destacar que a pessoa aqui entrevistada ainda cursava o ensino médio à época da enquete.

2.)"Eu não tenho nenhum conceito sobre justiça, porém acho que uma passagem fascinante da Bíblia é aquela que diz: ‘Bem aventurados os que têm sede de justiça porque serão saciados’" (formanda do curso de Nutrição).

Comentários: É de se notar a humildade e a sapiência da resposta. Quando ela afirma desconhecer ou não ter formulado qualquer conceito de justiça, ao mesmo tempo se socorre na esteira de mestres, para os quais a satisfação plena da sede de justiça do homem jamais poderá ser realizada por ele próprio, mas além da sua manifestação como ser temporariamente material. Em outras palavras, justiça divina.

3.)"Justiça é uma coisa que não existe. Para mim a justiça é do mais forte. Na verdade justiça tem mão e contramão. Só os sabidos sabem andar nos dois sentidos" (Motorista profissional).

Comentários: Categoricamente, o entrevistado afirmou que a justiça não existe, embora logo após da sua boca tenham saído as palavras de Trasímaco (sofista – vide A República,de Platão). O que mais chama a atenção é o paralelo entre justiça e sua profissão, quando ele propõe ser a justiça como uma via em que só os "sabidos" sabem andar nos dois sentidos, só os espertos sabem transgredi-la sem que lhe sobrevenham as conseqüências do ato. Decerto se poderia querer enquadrar esta opinião com a acepção de justiça como instituição ou lei. Não se pode, entretanto, fazê-lo pela visível contradição diante da afirmação cabal feita de início, a afirmação de que justiça não existe.

4.)"Em resposta ao seu questionário, tenho de dizer o seguinte: Justiça para mim é o sentimento moral que existe no íntimo das pessoas e inspira as preocupações éticas cuja conseqüência é a ordenação jurídica das sociedades humanas.

Ser justo é agir em consonância com os sentimentos morais que Kant identificou numa página memorável que todo jurista devia saber de cor: ‘Duas coisas me causam crescente admiração e respeito, quanto mais intensamente medito sobre elas: o céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim. Não tenho necessidade de procurá-las envoltas na obscuridade ou no transcendental, fora dos meus horizontes; vejo-as adiante de mim e relaciono-as diretamente com a consciência de minha existência.

A idéia de que existem mundos incontáveis, anula minha importância como ser animal, que deverá restituir ao planeta [um simples ponto no universo], a matéria da qual se originou, depois de ter sido dotado [não se sabe como], por pouco tempo, de energia vital. A segunda idéia, contudo, eleva sobremaneira meu valor como ser inteligente mediante minha personalidade, na qual a lei moral revela-me uma vida independente da animal e também de todo o mundo sensível; pelo menos é o que posso deduzir da determinação teológica conferida à minha existência por essa lei moral, que não está restrita às condições e limitações desta vida, mas que se estende ao infinito.’

Fiel aos ensinamentos de Kant, para mim só existe uma justiça: a lei moral que sesta em mim como determinação teológica, boa maneira de se dizer determinação de Deus, ou se preferem, determinação de uma inteligência responsável pela arquitetura do universo. Todas as demais justiças – sagradas ou profanas, escritas ou subentendidas; codificadas ou consuetudinárias; litúrgicas ou sumariamente improvisadas – são decorrências mais ou menos legítimas do sentimento moral de que fomos dotados por determinação teológica.

Como todo ideal, a justiça depende de uma compreensão geral para ser realizada. Numa situação ideal, ou seja, no dia em que todos houverem identificado, ou, percebido o sentimento moral que nos transforma em animais jurídicos, desde o nascimento, é bem provável que o ideal de justiça seja alcançado" (Jornalista).

Comentários: Que se falar de tão bela resposta? Poder-se-ia ao menos tentar mostrar os pontos de contato entre ela e as acepções de justiça do referencial adotado. Primeiramente, verifica-se que o seu sentimento de justiça liga-se à ordenação das sociedades humanas, ou seja, à harmonização social. Para ele, ser justo é conformar-se no agir, em consonância com os sentimentos morais propugnados por Kant. Daí, sua opinião associar-se também à acepção de justiça como virtude, ou seja, a prática reiterada do que é certo e justo. Colocando o sentimento de justiça como algo intrínseco ao ser racional, resultado de uma determinação de quem o moldou, ele indica ser a justiça qual a vontade ou razão divina. Na esteira de Kant, justiça para o jornalista é princípio, valor ou ideal, que, sendo perseguido e alcançado por todos os homens realizaria o bem da sociedade. No geral, é uma resposta complexa e de certa forma completa, fechada.


BIBLIOGRAFIA

ADORNO & HORKHEIMER. Temas básicos de Sociologia. São Paulo, Cultrix, 1978.

CARDOSO, Flávio Marcílio, SILVA, Carlos Eduardo, VIEIRA FILHO, Francisco de Sousa et al. A concepção de direito e justiça dos filósofos clássicos aos da Idade Média. Teresina, Universidade Federal do Piauí. [s.d.] Mimeografado.

CORBISIER, Roland. Introdução à filosofia, tomo 1, parte 1: Filosofia Grega, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1984.

CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de filosofia do direito. 5. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1995.

GUIMARÃES, Ylves José de Miranda. Direito natural: visão metafísica e antropológica. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1991.

HORKHEIMER, Max. Teoria crítica. São Paulo, Perspectiva, 1970.

KELSEN, Hans. O problema da justiça. Trad. João Baptista Machado. 3. ed. São Paulo, Martins Fontes, 1998.

MORAES, José Geraldo Vinci de. Caminhos das civilizações: da pré-história aos dias atuais. São Paulo, Atual, 1993.

MELLO, Leonel Itaussu A. & COSTA, Luís César Amad. História moderna e contemporânea, 5. ed., rev. e atual. São Paulo, Scipione, 1995.

NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 16. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1998.

SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo, Abril Cultural, 2000, Coleção Os Pensadores.

SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. São Paulo, Abril Cultural, 2000, Coleção Os Pensadores.

SÓCRATES. Vida e Pensamentos. São Paulo, Martin Claret Ltda., 1996.

14. VERGEZ, André & HUISMAN, Denis. História dos filósofos ilustrada pelos textos. Trad. Lélia de Almeida Gonzales. 7. ed. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1988.


Notas

01 Categorias do pensamento.

02 Forma de agrupamento da contagem das opiniões segundo certos critérios e que resulta na elaboração de tabelas. Neste estudo, tais tabelas constam em anexo apropriado.

03 Pré-Socráticos. Coleção Os Pensadores, Abril Cultural, 1999, p.6.

04 Roland Corbisier, Introdução à Filosofia, t. II, pt.I, 1984, p.41.

05 Cf. Roland Corbisier, Introdução à Filosofia, t. II, pt. I, 1984, p. 63.

06 Idem, ibidem, p.54

07 Idem, ibidem, p.57.

08 André Vergez & Denis Huisman, História dos filósofos ilustrada pelos textos. Trad. Lélia de Almeida Gonzales, p. 61.

09 Ylves José de Miranda Guimarães. Direito natural: visão metafísica e antropológica, p.25.

10 Cf. José Cretella Júnior, Curso de Filosofia do Direito, p. 116.

11 Carlos Eduardo Gomes M. Silva; Flávio Marcílio Fonseca Cardoso; Francisco De Sousa Vieira Filho; et. al, A Concepção de Direito e Justiça dos Filósofos Clássicos aos da Idade Média. p. 23.

12 Idem, Ibidem, p. 23.

13 José Cretella Júnior, Op. Cit., p. 121.

14 Carlos Eduardo Gomes M. Silva et. al., Op. Cit., p. 25.

15 Ylves José de Miranda Guimarães, Direito natural: visão metafísica e antropológica, p. 226.

16 Ylves José de M. Guimarães, Direito Natural: visão metafísica e antropológica, p. 50.

17 Idem, ibidem, p. 51.

18 Dando margem a sistemas filosóficos que atribuem às condições sociais o papel de determinadoras de toda a sociedade.

19 Paulo Nader, Introdução ao Estudo do Direito, p.450.

20 Eisenman, "El jurista y el Derecho Natural", Crítica del Derecho Natural, Madrid, Taurus, 1966, p.276 apud Paulo Nader, Op.Cit., p. 449.

21 Isso mais tarde explicará certos resultados da pesquisa, em que a soma total de algumas porcentagens foi superior a 100%.

22 Constatar-se-á que tal assertiva estará igualmente presente no estudo de todas as demais tabulações.

23 Historicamente, tal acepção tem sido mesmo muitas vezes invocada por movimentos de cunho social com aspirações revolucionárias.

24 A afirmação de que haveria uma pretensa estagnação no nível educacional jurídico em Teresina.

25 Essa mudança deveu-se certamente ao aprofundamento do estudo das indagações filosóficas voltadas para o próprio direito. Essa relação será melhor aclarada nas considerações posteriores sobre os resultados da pesquisa nas profissões jurídicas.

26 Não se sabe ao certo o que tenha possibilitado essas aproximações e igualdades numéricas, como já dito, menos expressivas que os dados percentuais. Pode-se, entretanto, supor que o início das modificações educacionais nos cursos jurídicos em Teresina e as mudanças propiciadas pelo maior contato com outros estados e países, a maior gama de veiculação de informações e os meios de comunicação tenham propiciado, ainda que incipientemente, as referidas aproximações e igualdades.

27 Não confundir com "fazer justiça com as próprias mãos". A pessoalidade aqui se refere à atitude individual de prática do justo no tratamento equânime das pessoas.


Autores


Informações sobre o texto

A presente monografia decorre de pesquisa (teórico-prática) realizada sob a coordenação e orientação do professor e mestre MARCELINO LEAL BARROSO DE CARVALHO, tendo como autores-pesquisadores: ALEX MYLLER DUARTE LIMA; ANA LYGIAN DE SOUSA LUSTOSA; CARLOS EDUARDO GOMES; FRANCISCO DE SOUSA VIEIRA FILHO; GLEYCIANE TENÓRIO RIOS; e VENCESLAU FELIPE OLIVEIRA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA FILHO, Francisco de Sousa; LIMA, Alex Myller Duarte et al. O sentimento de justiça da comunidade teresinense. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1307, 29 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9429. Acesso em: 20 abr. 2024.