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A vacinação obrigatória na pandemia do coronavírus.

Hermenêutica constitucional e jurisprudência

A vacinação obrigatória na pandemia do coronavírus. Hermenêutica constitucional e jurisprudência

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A questão da vacinação obrigatória na pandemia do Coronavírus continua gerando debates. Neste artigo se pretende refletir esta questão à luz da jurisprudência nacional e internacional, aplicando-se as técnicas de hermenêutica constitucional

Resumo: A questão da vacinação obrigatória sempre foi objeto de debate jurídico, sobretudo quando se trata de doença com alto potencial de contágio e transmissibilidade, na busca da ponderação entre liberdade de alguns de escolher se vacinar ou não, e da sociedade, como um todo, de ver concretizado o direito à saúde, e, em diversos e cenários pandêmicos, igualmente o direito à vida. Em decorrência da pandemia mundial do Coronavírus novamente o debate volta às pautas, mormente porque a Lei Federal n. 13.979/2020, que dispõe sobre medidas a serem tomadas no contexto pandêmico prevê a hipótese de vacinação obrigatória. O Supremo Tribunal Federal analisou a constitucionalidade do texto legal, decidindo no sentido da inexistência de afronta à Lex Mater, haja vista que vacinação obrigatória não implica em vacinação forçada; a primeira consiste na obrigatoriedade de se vacinar, sob pena de imposição de sanções proporcionais, em consonância com a Constituição Federal, ao passo que a vacinação forçada, como o nome sugere, implica na vacinação imposta por meio da força.

Palavras-chave: vacinação. Coronavírus. Hermenêutica. Constituição Federal.


INTRODUÇÃO

A questão da vacinação obrigatória sempre se faz presente nos debates jurídicos, em que se busca a ponderação entre a liberdade de alguns, de escolherem se vacinar ou não, e o direito à saúde, de toda sociedade, e no mais das vezes o direito à vida daqueles a formam, nas hipóteses em que a não vacinação gera enfermidades mortíferas.

Em meio à pandemia do Coronavírus o referido debate ganhou ainda mais enfoque, tendo em vista que foi editada a Lei Federal n. 13.979/2020, que ao dispor sobre as medidas de enfrentamento àquela prevê, dentre diversas, a vacinação obrigatória; disso emergiram as problematizações que ensejaram a presente reflexão: pode ou não o Estado obrigar sujeitos a se vacinarem contra sua vontade? E, no que consiste essa obrigatoriedade? Como conciliar a liberdade de escolha, de convicção político-filosófica, de crença, a liberdade sobre o próprio corpo, valores estes individuais, com o direito à vida, tendo em vista que o Coronavírus ceifou mais de 500.000 mortes, até o presente momento? Estes são alguns dos questionamentos que se buscará responder, no presente estudo, a partir das técnicas de hermenêutica constitucional, e à luz da jurisprudência.

Inicialmente, empreender-se-á reflexão da decisão do Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade n. 6586 e 6587, em que se decidiu pela possibilidade de vacinação obrigatória, desde que não forçada.

Posteriormente, realizar-se-á abordagem da vacinação obrigatória em crianças e demais incapazes. Sendo eles legalmente impossibilitados de se determinarem, é possível que seus representantes legais escolham entre se vacinar ou não, mormente tendo em vista que se trata de medida que visa a imunização contra vírus com potencial mortífero?

Por fim, será analisada a vacinação obrigatória, à luz da jurisprudência internacional, usando, como paradigma, precedentes favoráveis e desfavoráveis, firmados por cortes de locais diversos, em momentos e circunstâncias diversas.

É certo que o presente debate é permeado de discussões de fundo político-filosófico e ideológico. Desde já, insta ressaltar que aqui não se enfrentará estes méritos; busca-se, na verdade, demonstrar que a partir da hermenêutica constitucional, ou seja, da interpretação da Constituição Federal, por meio dos métodos e princípios adequados é possível solucionar a delicada e relevante problemática, presente em um dos momentos mais caóticos vividos na história brasileira.


A VACINAÇÃO OBRIGATÓRIA NA PANDEMIA DO CORONAVÍRUS

Em 17 de dezembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal realizou o julgamento conjunto das ADIs n. 6586 e 6587, que versavam sobre a temática da vacinação obrigatória, durante a pandemia do Coronavírus. Trata-se de paradigmática decisão, cujo teor e fundamento serão a seguir expostos e apreciados.

Para melhor imersão no precedente jurisprudencial, objeto deste tópico, segue a ementa do acórdão:

Ementa: AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE. VACINAÇÃO COMPULSÓRIA CONTRA A COVID-19 PREVISTA NA LEI 13.979/2020. PRETENSÃO DE ALCANÇAR A IMUNIDADE DE REBANHO. PROTEÇÃO DA COLETIVIDADE, EM ESPECIAL DOS MAIS VULNERÁVEIS. DIREITO SOCIAL À SAÚDE. PROIBIÇÃO DE VACINAÇÃO FORÇADA. EXIGÊNCIA DE PRÉVIO CONSENTIMENTO INFORMADO DO USUÁRIO. INTANGIBILIDADE DO CORPO HUMANO. PREVALÊNCIA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA. INVIOLABILIDADE DO DIREITO À VIDA, LIBERDADE, SEGURANÇA, PROPRIEDADE, INTIMIDADE E VIDA PRIVADA. VEDAÇÃO DA TORTURA E DO TRATAMENTO DESUMANO OU DEGRADANTE. COMPULSORIEDADE DA IMUNIZAÇÃO A SER ALÇANÇADA MEDIANTE RESTRIÇÕES INDIRETAS. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DE EVIDÊNCIAS CIENTÍFICAS E ANÁLISES DE INFORMAÇÕES ESTRATÉGICAS. EXIGÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA SEGURANÇA E EFICÁCIA DAS VACINAS. LIMITES À OBRIGATORIEDADE DA IMUNIZAÇÃO CONSISTENTES NA ESTRITA OBSERVÂNCIA DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS. COMPETÊNCIA COMUM DA UNIÃO, ESTADOS, DISTRITO FEDERAL E MUNICÍPIOS PARA CUIDAR DA SAÚDE E ASSISTÊNCIA PÚBLICA. ADIS CONHECIDAS E JULGADAS PARCIALMENTE PROCEDENTES.

I A vacinação em massa da população constitui medida adotada pelas autoridades de saúde pública, com caráter preventivo, apta a reduzir a morbimortalidade de doenças infeciosas transmissíveis e a provocar imunidade de rebanho, com vistas a proteger toda a coletividade, em especial os mais vulneráveis. II A obrigatoriedade da vacinação a que se refere a legislação sanitária brasileira não pode contemplar quaisquer medidas invasivas, aflitivas ou coativas, em decorrência direta do direito à intangibilidade, inviolabilidade e integridade do corpo humano, afigurando-se flagrantemente inconstitucional toda determinação legal, regulamentar ou administrativa no sentido de implementar a vacinação sem o expresso consentimento informado das pessoas. III A previsão de vacinação obrigatória, excluída a imposição de vacinação forçada, afigura-se legítima, desde que as medidas às quais se sujeitam os refratários observem os critérios constantes da própria Lei 13.979/2020, especificamente nos incisos I, II, e III do § 2º do art. 3º, a saber, o direito à informação, à assistência familiar, ao tratamento gratuito e, ainda, ao pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas, bem como os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, de forma a não ameaçar a integridade física e moral dos recalcitrantes. IV A competência do Ministério da Saúde para coordenar o Programa Nacional de Imunizações e definir as vacinas integrantes do calendário nacional de imunização não exclui a dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para estabelecer medidas profiláticas e terapêuticas destinadas a enfrentar a pandemia decorrente do novo coronavírus, em âmbito regional ou local, no exercício do poder-dever de cuidar da saúde e assistência pública que lhes é cometido pelo art. 23, II, da Constituição Federal. V - ADIs conhecidas e julgadas parcialmente procedentes para conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 3º, III, d, da Lei 13.979/2020, de maneira a estabelecer que: (A) a vacinação compulsória não significa vacinação forçada, por exigir sempre o consentimento do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e (i) tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, (ii) venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, (iii) respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas; (iv) atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade, e (v) sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente; e (B) tais medidas, com as limitações expostas, podem ser implementadas tanto pela União como pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, respeitadas as respectivas esferas de competência (STF, 2021).

Inicialmente, antes de adentrar à obrigatoriedade da vacinação, cumpre ressaltar no item IV, da ementa do acórdão, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a competência de todos os entes políticos, União, Estados, Distrito Federal e Municípios para regulamentar a temática da vacinação, com fundamento no art. 23, II, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), que prevê a competência material concorrente, ou seja, entre todos àqueles, para garantir a saúde.

Trata-se de importante precedente, pois não apenas preserva o disposto no art. 23, inciso II, da Constituição, mas também prestigia a definição constitucional, estatuída no art. 1º, caput, do Brasil como federação (BRASIL, 1988), no que toca à sua forma de Estado:

Um Estado pode ser Unitário ou Federal. Adotamos este último, em que os Estados-membros cedem parcela de sua soberania para formar a união, entidade primordialmente concebida para proteger fronteiras. O Estado Unitário não tem, em seu território, divisão de Estados-membros. Foeder, em latim, significa pacto. Os Estados-membros firmam um pacto para criação da união. É o pacto federativo. Sua característica essencial é ser indissolúvel após formado (PIRES, 2014, p. 47-48).

Em suma, a forma de Estado em que o Brasil foi Constituído garante autonomia aos entes, para que tome suas decisões políticas, conforme suas peculiaridades locais, o que é, em muito, relevante, sobre tudo em um país continental, como o Brasil, com realidades sociais e locais tão diversas:

Os Estados assumem a forma federal tendo em vista razões de geografia e de formação cultural da comunidade. Um território amplo é propenso a ostentar diferenças de desenvolvimento de cultura e de paisagem geográfica, recomendando, ao lado do governo que busca realizar anseios nacionais, um governo local atento às peculiaridades existentes (MENDES; BRANCO, 2015, p. 818).

Basta se imaginar São Paulo e o Acre, ambos Estados Federados, porém com realidades sociais, orçamentárias e populacionais, em muito, diversas; não há como impor a ambos que sigam, sem discricionariedade, as mesmas regras. O mesmo se aplica sob o aspecto territorial. Imagine-se os Estados do Amazonas e Alagoas, com extensão territorial, em muito, discrepante; cada um deles têm suas peculiaridades, e, portanto, necessidades singulares.

Diante de contextos sociais tão diversos, é necessário assegurar autonomia aos entes políticos para que se determinem conforme suas necessidades locais:

Pode-se, portanto, afirmar que a ideia de federalismo reside em um conteúdo fortemente autonomista, remanescente da soberania que cada um dos Estados confederados perdeu para que se pudesse criar o Estado Federal. Talvez seja esse seu característico mais marcante, ou seja, a autonomia assegurada às vontades parciais chamadas de Províncias, Estados, Cantões, etc. e o poder central (ARAÚJO; NUNES JÚNIOR, 2017, p. 326).

Em suma, no Brasil, país continental, rico em diversidade, é necessário se concretizar a autonomia política que a Constituição assegura aos Estados Membros, mormente em tempos de crise, em que a Pandemia do Coronavírus fragiliza o sistema público.

Adentrando ao tema da vacinação obrigatória, insta ressaltar que se cuida de pauta um tanto quanto polemica, objeto de inúmeros debates populares, tendo em vista que enquanto grande camada deseja a vacinação obrigatória, outra se manifesta a favor da liberdade de escolher: vacinar-se ou não.

É de se vislumbrar que se trata de problemática e complexa controvérsia jurídica, tendo em vista que há o conflito entre direitos e pretensões constitucionais. E como assegurar o máximo respeito à Constituição Federal? Por meio da ponderação:

Técnica da ponderação de valores ou interesses é recurso colocado ao dispor do intérprete para que ele avalie qual o bem constitucional que deve prevalecer perante situações de conflito. Para seu intermédio, procura-se estabelecer qual o peso relativo de cada um dos princípios contrapostos. Como os bens constitucionais não são superiores uns aos outros, afinal integram um mesmo texto magno, e foram procriados pelo mesmo poder constituinte, apenas pelo estudo de caso concreto saberemos qual deve preponderar. À vista da situação prática, o interprete analisa qual o bem que deve ceder perante o outro, sempre buscando o resultado socialmente desejável (BULOS, 2012, p. 460).

Da lição acima se depreende que no ordenamento jurídico pátrio é inaplicável a denominada teoria das normas constitucionais inconstitucionais, atribuída a Otto Bachof (NOGUEIRA, 2014), que permite o controle de constitucionalidade de dispositivos previstos na Constituição Federal em conflito, tendo como parâmetro outro, que componha o mesmo a mesma Carta, porém com maior densidade constitucional. Assim, normas constitucionais conflitantes devem coexistir, cabendo ao interprete, à luz do caso concreto, ponderar os interesses e os valores preponderantes.

Conforme consta da ementa de julgamento a pouco transcrita, o Supremo Tribunal Federal, entendeu que, de fato, não é possível a vacinação forçada, por ofensa à Constituição Federal. Todavia, possível é a vacinação obrigatória e compulsória.

A priori, cumpre destacar que, embora os termos acima tenham sentido próximo, são diversos.

Segundo o dicionário português Priberam (2018), o verbo obrigar significa impor obrigação; constranger; levar (outrem) a fazer, a se decidir, etc, ao passo que forçar é o mesmo que exercer força contra; imprimir maior força a; entrar à força em. Vislumbra-se que quando se obriga alguém há o emprego de coação para que o obrigado aja segundo determinado fim, ao passo que forçar alguém é lhe determinar algo, por meio da força. O que se percebe é que na primeira hipótese o destinatário do ato é obrigado, mas tem liberdade para agir, ao passo que na segunda a obrigação é imposta sem dar liberdade ao destinatário para se negar ou aceitar.

Assim sendo, o Supremo Tribunal Federal entendeu que não é possível forçar ninguém a se vacinar, contra vontade. Todavia, é possível obrigar, impondo-se sanções pela não vacinação, como multa, retenção de passaporte, etc (STF, 2021).

De fato, afrontaria, em muito, a Constituição Federal forçar alguém a se vacinar. O Min. Relator, Ricardo Lewandowski, fundamentou seu voto no sentido de que a vacinação forçada violaria a dignidade da pessoa humana:

Atualmente, não pairam dúvidas acerca do alcance de duas garantias essenciais asseguradas às pessoas: a intangibilidade do corpo humano e a inviolabilidade do domicílio. Tais franquias, bem sopesadas, por si sós, já excluem, completamente, a possibilidade de que alguém possa ser compelido a tomar uma vacina à força, contra a sua vontade, manu militari, no jargão jurídico. Isso porque elas decorrem, assim como outros direitos e liberdades fundamentais, do necessário e incontornável respeito à dignidade humana, que constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a teor do art. 1º, III, da Constituição de 1988 (STF, 2020).

Não é por mero acaso que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do Estado Brasileiro. Trata-se de mandamento constitucional que coloca o homem como centro do Estado e de suas decisões políticas. O que se quer dizer é que a República não tem fim nela mesma, mas sim naqueles que a formam:

É tão importante esse princípio que a própria CF 1.º III o coloca como um dos fundamentos da República. Esse princípio não é apenas uma arma de argumentação, ou uma tábua de salvação para a complementação de interpretações possíveis de normas postas. Ele é a razão de ser do Direito. Ele se bastaria sozinho para estruturar o sistema jurídico. Uma ciência que não se presta para prover a sociedade de tudo quanto é necessário para permitir o desenvolvimento integral do homem, que não se presta para colocar o sistema a favor da dignidade da pessoa humana, que não se presta para servir ao homem, permitindo-lhe atingir seus anseios mais secretos, não se pode dizer Ciência do Direito. Os antigos já diziam que todo direito é constituído hominum causa (NERY JR.; NERY, 2009, p. 151).

Em suma, o homem jamais poderá ser tratado como coisa. Reconhece-se, sempre, sua personalidade jurídica (PIRES, 2014, p. 53), de modo que nessa dimensão do referido princípio o Estado serve o homem, devendo lhe dar todas as prerrogativas necessárias para se autodeterminar. Sendo assim, não há como dizer que é possível acorrentar alguém em uma unidade de saúde e lhe aplicar, contra vontade, a vacina. Neste sentido, o Relator, Min. Lewandowski, em seu voto fez referência ao seguinte precedente jurisprudencial da corte que compõe:

INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE EXAME DNA CONDUÇÃO DO RÉU DEBAIXO DE VARA. Discrepa, a mais não poder, de garantias constitucionais implícitas e explícitas - preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica e direta de obrigação de fazer - provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, debaixo de vara, para coleta de matéria indispensável à feitura de exame de DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico-instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde de questões ligadas à prova dos fatos (HC 71.373-4/RS, Redator para o acórdão Ministro Marco Aurélio) (STF, 2020).

Conforme dito, o princípio em apreço concebe o homem como fim das decisões políticas. Ocorre que outra grande camada da sociedade se posiciona a favor da vacinação em massa, como medida a ser tomada em combate ao Coronavírus. Como ponderar a negativa de alguns de se vacinar e o desejo necessidade de uma maioria de ver todos imunizados, mormente quando se trata de pandemia causada por um vírus com alto nível de contágio? Conforme dito a pouco, quando há conflito de normas constitucionais, sobre tudo versando sobre direitos e princípios fundamentais, deve-se aplicar técnicas de ponderação.

A dignidade da pessoa humana tem por finalidade a realização da pessoa humana, ou seja, que atinja a plenitude de sua existência, tendo em vista que são os destinatários da ordem jurídica (PIRES, 2014). Todavia, o ser humano vive em comunidade, e em diversos momentos do convívio social a plenitude de alguns só será alcançada com a limitação de direitos alheios. Neste contexto, tem-se como parâmetro a própria dignidade da pessoa humana, ponderando-se o alcance das limitações necessárias para a convivência harmônica, e que não subtraiam do sujeito seu poder de autodeterminação:

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício de direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos (MORAES, 2005, p. 16).

Em suma, a dignidade da pessoa humana legitima a limitação de direitos, quando necessária à preservação da dignidade alheia. Não muito além, serve de parâmetro para impedir que a mesma limitação fira o direito daquele que a sofre, pois a dignidade humana é um valor preenchido a piori, isto é, todo ser humano tem dignidade só pelo fato de já ser pessoa (NUNES, 2011, p. 231); dignidade da pessoa humana é inerente ao homem.

É de se observar que o debate acerca do limite de limitações é afeto à chamada teoria dos limites dos limites, oriunda do direito alemão (schranken-scharanken), em que se busca identificar parâmetro acerca do alcance permitido das limitações de direitos. Segundo Medina:

Embora seja difícil definir os limites de cada um dos direitos fundamentais, afirma-se, na doutrina, que os direitos fundamentais contêm um porção intocável, que não pode ser sacrificada em nenhuma hipótese. A esta porção costuma-se denominar conteúdo essencial ou núcleo intangível (2013, p. 61).

Mendes e Blanco, precursores desta teoria no Brasil, lecionam que esses limites, que decorrem da própria Constituição, referem-se tanto à necessidade de proteção de um núcleo essencial do direito fundamental quanto à clareza, determinação e generalidade e proporção das restrições impostas (2015, p. 211).

Ocorre a Constituição Federal não previu qual seria o núcleo intangível dos direitos fundamentais, que não pudesse ser limitado. O que se verifica é que embora omissa no texto constitucional, a ideia de um núcleo essencial decorre do próprio modelo garantístico utilizado pelo legislador constituinte (MENDES; BRANCO, 2015, p. 215), e, conforme exposto a pouco, de todas as garantias previstas na Constituição Federal nenhuma deve se sobrepor à dignidade da pessoa humana. Ela é a viga-mestra do ordenamento jurídico, colocando o homem no centro da ordem jurídica. Assim, conclui-se que nenhum direito fundamental poderá ser limitado quando a limitação afrontar a dignidade da pessoa humana.

Mas como se definir, em concreto, se as limitações feriram o núcleo intangível dos direitos fundamentais? Há de se observar que se trata de ponto sensível, no que toca ao alcance das limitações a se impor em concreto, que demanda cautela e racionalidade por parte do interprete, que com técnica deve se pautar em premissas hermenêuticas.

A doutrina aponta alguns métodos e princípios da hermenêutica constitucional. A seguir serão abordados aqueles pertinentes a nortear a solução da controvérsia envolvendo a vacinação obrigatória, entre os que querem e os que não querem se vacinar.

Inicialmente, deve-se interpretar a questão a partir do método sistemático. Por este critério, nunca se deve interpretar uma norma constitucional isoladamente. Sempre devemos interpretar a norma constitucional como parte de um ordenamento, como parte de um todo (PIRES, 2014, p. 311). Em outras palavras, por essa regra cabe ao intérprete levar em conta a norma jurídica inserida no contexto maior de ordenamento jurídico ou sistema jurídico (NUNES, 2011, p. 312), e, na realidade em estudo, no ordenamento ou sistema jurídico-constitucional.

É de se notar que este método de interpretação encontra amparo em um princípio da hermenêutica constitucional: unidade da Constituição. Segundo ele, a Constituição é um sistema integrado por diversas normas, reciprocamente, que, dessa feita, devem ser compreendidas na sua harmoniosa globalidade (ARAÚJO; DAVID JÚNIOR, 2017, p. 126). Em suma, a interpretação constitucional deve ser realizada de maneira a evitar a contradição entre suas normas (MORAES, 2005, p. 10).

A conjugação deste princípio com o método sistemático aduz que as normas constitucionais não devem ser interpretadas isoladamente, tendo em vista que fazem parte de um todo, de um sistema, em que todas as normas possuem supremacia, e, portanto, não podendo uma excluir a aplicação da outra (KELSEN, 2009).

Outro método interpretativo aplicável é o critério lógico, em que se busca a harmonia e razoabilidade na interpretação da norma (PIRES, 2014, p. 312). Ilustrando, basta se rememorar o exemplo trazido a pouco: não é possível acorrentar um cidadão e lhe aplicar, contra vontade, a vacina. Todavia, em uma pandemia, ocasionada por um vírus mortífero, cujo contágio se dá pelo simples contato humano, é logico que todos sejam vacinados.

Em sim suma, a interpretação lógica leva em consideração os instrumentos fornecidos pela lógica para o ato de intelecção, que, naturalmente, estão presentes no trabalho interpretativo (NUNES, 2011, p. 310).

Deve também o intérprete se valer do método hermenêutico-concretizador, proposto por Hans-Georg Gadamer, tal qual delineado nos ensinamentos de J. J. Gomes Canotilho, parte da norma constitucional como elemento primário do processo de interpretação (ARAÚJO; NUNES JÚNIOR, 2017, p. 122). O interprete, nesse método, atua num verdadeiro círculo hermenêutico, porque seu pensamento vaivém, até encontrar a saída para o problema (BULOS, 2012, p. 455).

Cuida-se de ferramenta hermenêutica, em muito, relevante, pois ao colocar a Constituição em primeiro plano, na interpretação, garante-se que todas as soluções da problemática orbitarão no entorno dela.

Ademais, deve se proceder a partir do chamado método normativo-estruturante, proposto por Frederick Müller, segundo o qual o intérprete constitucional não pode separar o programa normativo, inserido nas constituições, da realidade social (BULOS, 2012, p. 455).

Cuida-se de técnica hermenêutica salutar, mormente nos dias de hoje, tendo em vista o cenário político polarizado em que o Brasil se encontra, sobretudo no que toca às medidas de combate ao Coronavírus, isto porque em um extremo há políticos defendendo, desde o início do contexto pandêmico, a vacinação em massa e a tomada máxima de medidas de segurança, ao passo que outros sustentam discursos negacionistas, no que toca ao real perigo de se contrair a Covid-19. Assim, espelhando-se em seus líderes políticos, uma parcela do povo defende a bandeira da vacinação em massa, em todos, visando combater a proliferação viral, ao passo que outra parcela, seguindo o negacionismo dos seus políticos de identificação, negam-se a se vacinar.

É sabido que desde Kelsen (2009) é irrefutável a ideia de supremacia constitucional, ou seja, no território brasileiro, nada, ninguém, poderá se sobrepor à Constituição Federal, expressão máxima da soberania estatal. E, é por isso que ao se aplicar o método normativo-estruturante deve se ter as cautelas decorrentes do princípio hermenêutico da prevalência da Constituição, segundo o qual:

Dentre as inúmeras possibilidades interpretativas delineadas na moldura normativa dos preceitos constitucionais, o intérprete deve escolher aquela que esteja em perfeita sintonia com o texto e o contexto da carta maior. Exemplo: em nome da prevalência da Carta de 1988, o pórtico da dignidade da pessoa humana tem embasado diversas decisões judiciais, preferidas pelo Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e Tribunais de Justiça dos Estados (BULOS, 2012, p. 459).

O interprete há, outrossim, de aplicar o método de comparação constitucional, proposto por Peter Häberle, que alia os métodos gramatical, lógico, histórico e sistemático, proposto por Savigny, ao Direito Comparado, de modo a buscar em vários ordenamentos jurídicos, a melhor direção interpretativa nas normas constitucionais de um Estado (BULOS, 2012, p. 455).

Em tópico específico, será abordada a jurisprudência alienígena, refletindo a problemática ora estudada à luz do direito comparado, e, como se demonstrará, a temática da vacinação obrigatória já é pauta de debates jurídicos e políticos em diversos outros ordenamentos.

Princípio interpretativo de extrema valia, aplicável a toda hermenêutica constitucional é o da máxima efetividade ou eficiência, segundo o qual a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe conceda (MORAES, 2005, p. 10). A palavra de ordem é conferir às normas uma interpretação que as leve a uma realização prática, fazendo prevalecerem os fatos e os valores nelas consignados (BULOS, 2012, p. 458).

É fato irrefutável que em todo suporte fático se deve buscar a máxima efetividade constitucional. Todavia, análise hermenêutica encontra maior complexidade nos casos em que há conflitos entre direitos e princípios fundamentais, como é o no presente, pois de um lado há a liberdade daqueles que desejam não se vacinar e do outro o direito à saúde e à vida daqueles que desejam a vacinação em massa, visando a imunidade geral e o consequente fim da pandemia. Diante deste delicado conflito de preceitos constitucionais, deve-se prestigiar o princípio da harmonização ou cedência recíproca:

No choque entre normas constitucionais ou princípios, um jamais pode ser excluído por outro. Deve haver o sacrifício do maior ou menor de um em favor do outro, mas jamais a exclusão de um princípio por outro, ou a exclusão de uma norma constitucional por outra. Deve-se buscar um ponto de convivência. Exemplo: direito de ir e vir e direito passeata (ambos no art. 5º, XV e XVI) o Judiciário resolverá a questão ponderando, e um dos direito deverá ceder diante do outro, sem ser excluído (PIRES, 2014, p. 315).

Vislumbra-se que no julgado em tela o Supremo Tribunal Federal, ora intérprete, decidiu segundo o princípio da cedência recíproca, firmando precedente com harmonia constitucional, pois decidiu pela possibilidade de vacinação obrigatória, ou seja, impondo consequências aos que se negarem, todavia, decidiu também que forçar alguém a se vacinar contraria a Constituição Federal.

Por fim, merece atenção o princípio hermenêutico da proporcionalidade. Em verdade, o referido merece especial tratamento, tendo em vista que tem sido, reiteradas vezes, utilizado pelos tribunais de sobreposição em suas atuações exegéticas. Nas lições de Araújo e Nunes Júnior:

O princípio da proporcionalidade é aquele que orienta o intérprete na busca da justa medida de cada instituto jurídico. Objetiva a ponderação entre os meios utilizados e os fins perseguidos, indicando que a interpretação deve pautar o menor sacrifício ao cidadão ao escolher dentre os vários possíveis significados da norma (2017, p. 130).

Em suma, conclui-se que o também denominado de princípio da razoabilidade, busca a justa medida (PIRES, 2014, p. 314) em concreto. Por esta razão é fato que se trata de princípio de grande relevância na hermenêutica constitucional, mormente porque os conflito de normas constitucionais são resolvidos à luz da ponderação, e ele é o princípio da ponderação e da harmonização. Busca-se a justiça, o bom senso, a equidade, a prudência e a moderação. Dever-se-á buscar, sempre, o menor sacrifício para o cidadão na interpretação de uma norma constitucional (PIRES, 2014, p. 315).

O princípio em apreço é a chave que abre todas as passagens ou pelo menos quase todas, pois há quem defenda que os conflitos de pretensões de entes federados devem ser apreciados à luz do pacto federativo e não da proporcionalidade (MENDES; BRANDO, 2015) do caminho da hermenêutica constitucional, haja vista que seu escopo, sua essência, é nortear a ponderação, buscando a solução mais razoável.

Trata-se de lógica universal, que se encontra enraizada no discurso jurídico, independente de qual ordenamento esteja em análise; exemplificando, o que o Supremo Tribunal entender como proporcional em determinado julgado deve o ser em qualquer outro local do mundo:

Assenta Schlink que o significado central do princípio da proporcionalidade foi demonstrado no âmbito do discurso jurídico, que ultrapassaria as fronteiras entre as diversas ordens jurídicas. Como exemplo, menciona o professor alemão que a Cardozo Law School realizou, em 1996, um seminário com a presença de sete juízes de Cortes Superiores e Cortes Constitucionais de sete diferentes países, no qual se examinou um caso fictício em um país igualmente fictício. Schlink destava que os sete juízes integrantes desse tribunal fictício encontraram rapidamente uma língua comum a língua do princípio da proporcionalidade com a indagação sobre a legitimidade dos objetivos do legislador e sobre a necessidade das restrições impostas à liberdade dos cidadãos para a consecução daqueles objetivos (MENDES; BRANCO, 2015, p. 219).

Conforme dito, em tópico posterior será objeto de reflexão a jurisprudência internacional sobre a temática ora tratada, e, como se verá, a decisão do Supremo Tribunal Federal é no mesmo sentido que precedentes firmados por cortes diversas, em locais diversos, haja vista que além da temática há outro ponto em comum em todos os julgados: a proporcionalidade como norte hermenêutico.

Em suma, o princípio da proporcionalidade é a língua universal da hermenêutica constitucional.

Percebe-se que o princípio da proporcionalidade anda de mãos dadas com o método da interpretação lógica da constituição, pois se busca, em um plano fático, o logicamente razoável, partindo-se do fato concreto.

É de se notar que os métodos e princípios da hermenêutica constitucional se entrelaçam, um não excluindo outro; pelo contrário, a aplicação de um, no mais das vezes, exige a complementação de outro. Podemos destacar o diálogo entre o princípio da razoabilidade ou proporcionalidade e o método lógico.

O jurista Luis Recasens Siches, que em vida foi docente na Universidade Nacional Autônoma do México, em suas lições propunha a ideia da lógica do razoável:

Era de sua busca a integração do valor histórico da existência humana como pressuposto de uma Teoria dos Valores. Em frontal oposição ao que recitava o positivismo jurídico no qual foi formado e que predominava ao seu tempo, Siches recusa o entendimento e a postura tomada pelo dedutivismo, postura essa segundo a qual os casos problemáticos devem ser julgados de acordo com o suposto grau de adequação às normas substantivas preestabelecidas. A lógica tradicional é ultrapassada. Tal lógica, também chamada de lógica formal, com base racional matemática, é ultrapassada, pois não possui elementos suficientes para ser utilizada na aplicação do direito, podendo levar a absurdos. Veja-se a seguinte proposta de Gustav Radbruch, o clássico exemplo do urso na Estação Ferroviária. Em uma estação ferroviária havia um cartaz que dizia: é proibida a entrada de cães. Um homem cego não pode entrar com seu cão guia, então outro homem tentou entrar com um urso e também foi impedido. Iniciou-se um conflito, pois o homem que vinha com o urso afirmava que a restrição não se aplicava a ele, já o cego dizia que era um absurdo não poder entrar com seu cão. Caso aplicássemos a lógica tradicional para o exemplo exposto, o homem com o urso teria sua entrada franqueada, ao passo que o senhor cego seria impedido de ingressar na estação. Notem que esse disparate nos convida a uma superação, em alguns casos, da lógica formal para uma lógica do razoável, justamente a proposta do referido autor (GONZAGA, 2017, p. 6-7).

Retornando à vacinação obrigatória, mostra-se logicamente razoável a imposição de medidas coativas para que os relutantes se vacinem, pois assim se garante, à sociedade como um todo, a preservação da saúde pública, sem ferir direitos fundamentais que façam parte do núcleo intangível, que não poderia ser violado.

Ademais, destaca-se que os direitos fundamentais, em regra, são relativos, ou seja, não podem ser exercidos de modo irrestrito e absoluto (PIRES, 2014). Tal atributo garante a supremacia constitucional, pois se os direitos fundamentais fossem absolutos o exercício de um, naturalmente, excluiria outro, o que não ocorre, pois como visto o conflito de dispositivos constitucionais, sobretudo princípios e direitos fundamentais, resolve-se por ponderação.

Esta premissa é de imensa relevância à análise da obrigatoriedade de vacinação, pois, de fato, toda pessoa, em um Estado de Direito, fundado na dignidade da pessoa humana, goza de liberdade. Todavia, esta não é absoluta, tendo em vista que a própria Constituição Federal (BRASIL, 1988), no seu art. 5º, inciso II, prevê que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Neste sentido, deve-se destacar que a Lei em sentido formal n. 13.979/2020, que dispõe sobre medidas de combate à pandemia da Covid-19, prevê em seu art. 3º, inciso III, alínea d:

Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas:

(...) III - determinação de realização compulsória de:

(...) d) vacinação e outras medidas profiláticas (BRASIL, 2020).

Vislumbra-se, analisando isoladamente o caso em concreto, que é legítima a imposição de vacina obrigatória, tendo em vista que a limitação a direito fundamental se perfez nos conformes da Constituição Federal imposição de obrigação por meio de lei e de modo proporcional a não ferir o núcleo intangível da pessoa humana. Não obstante, quando se aprecia a obrigatoriedade de vacinação tendo por contraponto outros preceitos constitucionais, fortalece-se a legitimidade da limitação.

Muito se cuidou, até o presente momento, na dignidade daqueles a quem se impõe a obrigatoriedade de se vacinar. Entretanto, na ponderação deve se apreciar a dignidade dos demais membros da sociedade, que assim como aqueles são detentores de direitos fundamentais, a começar pela vida.

Não se pode discutir, juridicamente, a pandemia do Coronavírus sem se voltar ao direito constitucional à vida, tendo em vista que até a presente data mais de 500 mil pessoas morreram, em território brasileiro, em decorrência da Covid-19 (MAZUI, 2021).

Realizando-se a ponderação entre a liberdade que é relativa de se vacinar, sob pena de sofrer sanções e a vida, esta indiscutivelmente prevalece, pois se trata de pressuposto elementar de todos os demais direitos fundamentais:

A existência humana é o pressuposto elementar de todos os demais direitos e liberdades dispostos na Constituição. Esse direitos têm nos marcos da vida de cada indivíduos os limites máximos de sua extensão concreta. O direito à vida é a premissa dos direitos proclamados pelo constituinte; não faria sentido declarar qualquer outro se, antes, não fosse assegurado o próprio direito de estar vivo para usufruí-lo. O seu peso abstrato, inerente à sua capital relevância, é superior a todo outro interesse (MENDES; BRANCO, 2015, p. 255).

Sobre o direito à vida, insta observar que não se trata apenas do direito de nascer, mas também de se ter a vida e vive-la com qualidade e dignidade (MEDINA, 2013). Logo, em prestigio a ele deve o Estado implementar medidas de combate ao mortífero vírus, que tantas vidas vem ceifando ao longo da pandemia.

Além do direito à vida, percebe-se que a pandemia do Coronavírus traz ao debate jurídico o direito à saúde, que se encontra previsto no art. 6º, da Constituição Federal (BRASIL, 2017), com status de direito fundamental.

Há um real prestigio do Poder Constituinte pátrio ao direito à saúde, tanto é que:

A Constituição de 1988 é a primeira Carta brasileira a consagrar o direito fundamental à saúde. Textos constitucionais possuíam apenas disposições esparsas sobre a questão, como a Constituição de 1824, que fazia referência à garantia de socorros públicos (art. 179, XXXI) (MENDES; BRANCO, 2015, p. 660).

Depreende-se que o direito à saúde não é apenas um direito fundamental decorrente do direito à vida; trata-se de verdadeiro direito autônomo, cuja proteção é essencial à existência humana, haja vista que ninguém vive, ou vive com plenitude, sem saúde. Logo, diante de uma pandemia decorrente de um vírus que compromete, em muito, a saúde física e emocional dos infectados, levando-os à experimentar dores e sofrimentos agudos, que podem ter por consequências o óbito ou sequelas permanentes, deve o poder público agir visando garantir aquela.

É de se observar que, novamente, há conflito de direitos fundamentais: de um lado a liberdade de alguns de escolherem ou não se vacinarem, e de outro a saúde, tanto individual quanto pública. Vislumbra-se que a decisão dada pelo Supremo Tribunal Federal ao conflito, por meio da ponderação, prestigia o princípio da razoabilidade, tendo em vista que permite a imposição de medidas sancionatórias proporcionais àqueles que deixam de se vacinar, preservando o núcleo intangível dos direitos fundamentais, e também tutela o direito à saúde, individual e pública.

Fator que deve ser levado em conta, na ponderação entre liberdade de se vacinar e direito à saúde é o duplo aspecto inerente a esta: o interesse individual e o interesse público.

Ponderação é o sopesar, em concreto, direitos e princípios fundamentais em conflito, e à luz da proporcionalidade auferir qual deve prevalecer; e, inexiste dúvidas de que o fato da saúde ter aspecto individual e coletivo, público e privado, pesa na balança da ponderação.

A doutrina do direito administrativo classifica interesse público em primário e secundário:

O interesse primário é composto pelas necessidades da sociedade, ou seja, dos cidadãos enquanto partícipes da coletividade, não se confundindo com a vontade da máquina estatal, a qual configura o interesse secundário. Isso decorre do fato de que, não obstante sempre atue visando satisfazer as necessidades da coletividade, o poder público tem personalidade jurídica própria, e, por isso, tem os seus interesses individuais, como é o caso da instituição de tributos, com a intenção de arrecadar valores para a execução da atividade pública (CARVALHO, 2020, p. 63-64).

Em suma, há dois interesses públicos, que podem se voltar à direções diversas. Entretanto, não é o presente caso, pois tanto a sociedade clama por medidas de combate ao Coronavírus, visando evitar o contágio daqueles que a formam, bem como o Estado, tendo em vista que é o incumbindo de concretizar o direito fundamental social à saúde, em muito fragilizado pelo triste contexto pandêmico vivido nos dias de hoje.

Retornando à balança da ponderação, a duplicidade de interesses públicos convergindo à tutela da saúde, durante a pandemia da Covid-19 fortalece, ainda mais, o fundamento da prevalência daquela em detrimento da liberdade individual de se vacinar ou não.

Enfim, conclui-se que o pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADIs n. 6586 e 6587 (STF, 2021), decidiu com razoabilidade, no sentido de que é constitucional a imposição de vacinação obrigatória, em combate ao Corona Vírus, tendo em vista a prevalência dos direitos fundamentais à vida e à saúde, este último em sua dimensão individual e coletiva, em detrimento da liberdade individual, mormente quando a obrigatoriedade reside em imposição de sanções proporcionais, pela não vacinação, que não ferem o núcleo intangível de direitos fundamentais.


A VACINAÇÃO EM INCAPAZES NA PANDEMIA DO CORONAVÍRUS

Conforme visto, o Supremo Tribunal Federal (2021) entendeu que é constitucional a imposição da obrigatoriedade de se vacinar contra o Coronavírus, sob pena de sanções proporcionar, e, que, esta obrigatoriedade não se confunde com vacinação forçada. Todavia, aspecto problemático reside na vacinação de crianças e demais incapazes, perante a lei, desprovidos de autonomia, absoluta ou relativa, para tomada de decisões.

Há quem defenda (SIGOLLO, 2021) que o teor da decisão a pouco referida se aplica aos pais e demais representantes legais, analogicamente, no sentido de que cabe a eles decidir se suas crianças e adolescentes serão vacinados, e, tratando-se de obrigatoriedade, sofrerão as mesmas consequências impostas caso se neguem a fazê-lo.

Vislumbra-se que este posicionamento, em parte, encontra-se dentro dos limites da razoabilidade, tendo em vista que o Código Civil (BRASIL, 2002) prevê em seu art. 1634, inciso VII, que é dever dos pais, em relação aos filhos: representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento. Além disso, o mesmo dispositivo legal dispõe do mesmo modo, mas com devidas especificidades, sobre às relações jurídicas envolvendo demais incapazes, menores de 18 anos submetidos à tutela, e maiores de 18 anos, submetidos à curatela.

Todavia, a questão da vacina obrigatória não tem fim nela mesma, sendo mero plano de fundo de questões jurídicas em muito delicadas, como a dignidade da pessoa humana, o direito à vida, o direito à saúde, em suas dimensões individuais e coletivas; vislumbrar a questão da vacinação de crianças e de demais incapazes à luz destas questões sobrevêm complicadores que levam ao seguinte questionamento: pode um pai, tutor ou curador dispor daqueles direitos em nome dos incapazes que estejam sob seu poder? E, pode o Estado intervir nesta problemática jurídica, afeta ao planejamento familiar?

O segundo questionamento é de fácil resposta, tendo em vista que a própria Constituição Federal (BRASIL, 1988), em seu art. 227, caput, prevê ser dever não apenas da família, mas também da sociedade e do Estado assegurar saúde às crianças e adolescentes. No mesmo sentido, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (BRASIL, 2015) prevê que são direitos fundamentais da pessoa com deficiência, que devem ser concretizados pelo poder público a vida (art. 10) e a saúde (art. 18).

Em suma, conclui-se que o Estado pode e deve interver na questão da vacinação obrigatória de crianças e demais incapazes, devendo buscar a melhor solução jurídica, à luz da Constituição Federal.

Em recurso Extraordinário, com repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal (2021) decidiu que não podem os pais deixarem de vacinar os filhos, por razões de convicção político-filosóficas:

Ementa: Direito constitucional. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Vacinação obrigatória de crianças e adolescentes. Ilegitimidade da recusa dos pais em vacinarem os filhos por motivo de convicção filosófica.

1. Recurso contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) que determinou que pais veganos submetessem o filho menor às vacinações definidas como obrigatórias pelo Ministério da Saúde, a despeito de suas convicções filosóficas. 2. A luta contra epidemias é um capítulo antigo da história. Não obstante o Brasil e o mundo estejam vivendo neste momento a maior pandemia dos últimos cem anos, a da Covid-19, outras doenças altamente contagiosas já haviam desafiado a ciência e as autoridades públicas. Em inúmeros cenários, a vacinação revelou-se um método preventivo eficaz. E, em determinados casos, foi a responsável pela erradicação da moléstia (como a varíola e a poliomielite). As vacinas comprovaram ser uma grande invenção da medicina em prol da humanidade. 3. A liberdade de consciência é protegida constitucionalmente (art. 5º, VI e VIII) e se expressa no direito que toda pessoa tem de fazer suas escolhas existenciais e de viver o seu próprio ideal de vida boa. É senso comum, porém, que nenhum direito é absoluto, encontrando seus limites em outros direitos e valores constitucionais. No caso em exame, a liberdade de consciência precisa ser ponderada com a defesa da vida e da saúde de todos (arts. 5º e 196), bem como com a proteção prioritária da criança e do adolescente (art. 227). 4. De longa data, o Direito brasileiro prevê a obrigatoriedade da vacinação. Atualmente, ela está prevista em diversas leis vigentes, como, por exemplo, a Lei nº 6.259/1975 (Programa Nacional de Imunizações) e a Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Tal previsão jamais foi reputada inconstitucional. Mais recentemente, a Lei nº 13.979/2020 (referente às medidas de enfrentamento da pandemia da Covid-19), de iniciativa do Poder Executivo, instituiu comando na mesma linha. 5. É legítimo impor o caráter compulsório de vacinas que tenha registro em órgão de vigilância sanitária e em relação à qual exista consenso médico-científico. Diversos fundamentos justificam a medida, entre os quais: a) o Estado pode, em situações excepcionais, proteger as pessoas mesmo contra a sua vontade (dignidade como valor comunitário); b) a vacinação é importante para a proteção de toda a sociedade, não sendo legítimas escolhas individuais que afetem gravemente direitos de terceiros (necessidade de imunização coletiva); e c) o poder familiar não autoriza que os pais, invocando convicção filosófica, coloquem em risco a saúde dos filhos (CF/1988, arts. 196, 227 e 229) (melhor interesse da criança). 6. Desprovimento do recurso extraordinário, com a fixação da seguinte tese: É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações, ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar (STF, 2021).

Conforme já abordado, conflitos de normas constitucionais, sobretudo direitos e princípios fundamentais, são resolvidos a partir de técnicas de ponderação, em que o intérprete desce ao caso concreto, e verifica, a partir da hermenêutica constitucional, qual dos valores conflitantes deve prevalecer. No tópico anterior se concluiu que o a vida, a saúde, individual e coletiva, devem prevalecer sobre a liberdade de se vacinar. Não muito além, deve o mesmo raciocínio ser estendido à obrigatoriedade de vacinar os incapazes, devendo os mesmos valores preponderar sobre a liberdade de convicção político-filosófica dos pais ou representantes legais. Deste modo, caso sigam determinada filosofia de vida, como, por exemplo, o veganismo, ou se filiem à determinado pensamento político, mesmo assim terão que vacinar os incapazes. Consigna-se que além daqueles valores preponderantes, há o reforço da garantia constitucional da proteção integral à criança e ao adolescente, devendo lhes garantir saúde, nos termos do art. 227, caput, da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

Deve ser ressaltado que há quem defenda que, quanto à vacinação obrigatória, o menor tem autonomia de optar por se vacinar ou não, mesmo que contra a vontade de seu representante legal:

Crianças e adolescentes têm o direito de se vacinarem, se essa for a sua decisão e ainda que não seja o desejo de seus pais e/ou mães, e quando essa decisão for possível de ser realizada pelas diretrizes das autoridades em vigilância sanitária. Cuida-se de efetivação da proteção integral e do direito de escuta, temas que estão exigindo uma reformulação teórica para que se reconheça a real posição jurídica de adolescentes enquanto sujeitos de direito (CRUZ, 2021).

Em que pese merece ser reconhecida toda forma de prestigio à opinião do infante, sobretudo no que toca à questões existenciais, não se entende o posicionamento acima como o melhor raciocínio, haja vista que a vida e a saúde compreendem temáticas em muito sensíveis, que não devem ser decididas por quem não tem capacidade para gerir suas vida; seria um imenso contrassenso vedar que um menor de 16 anos, considerado pelo Código Civil (BRASIL, 2002) absolutamente incapaz, realize, por exemplo, uma transação comercial, mas autorizá-lo a decidir sobre se vacinar ou não, quando esta decisão pode custar sua vida.

Insta salientar que este debate reside no âmbito das liberdades constitucionais, isso porque no plano infraconstitucional há expressa previsão, no art. 14, §1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), que é obrigatória a vacinação de crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.

Entende-se, aqui, que a melhor conclusão é no sentido de que nem os representantes legais e nem os infantes podem decidir por vacinar ou não, em meio ao contexto pandêmico do Coronavírus. Aplica-se o mesmo raciocínio firmado na jurisprudência e na doutrina, em relação à transfusão de sangue em pessoas incapazes. Segundo o enunciado n. 403, da V Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal:

O Direito à inviolabilidade de consciência e de crença, previsto no art. 5º, VI, da Constituição Federal, aplica-se também à pessoa que se nega a tratamento médico, inclusive transfusão de sangue, com ou sem risco de morte, em razão do tratamento ou da falta dele, desde que observados os seguintes critérios: a) capacidade civil plena, excluído o suprimento pelo representante ou assistente; b) manifestação de vontade livre, consciente e informada; e c) oposição que diga respeito exclusivamente à própria pessoa do declarante (CJF, 2012).

Embora se trate de problemática diversa, a lógica é o mesma: de fato a Constituição Federal garante a proteção à Liberdade de Convicção político-filosófica, a liberdade de crença religiosa, etc., e por essa razão é permitido a determinado sujeito escolher se determinar conforme sua convicção ou credo, mesmo que isso custe sua saúde ou sua vida. Todavia, só poderá fazê-lo desde que escolha por si, e que tenha capacidade para tanto. Assim, pais ou tutores podem escolher se vacinar ou não, mas o mesmo não podem fazer pelos seus infantes. O mesmo raciocínio vale ao curador em relação ao curatelado, tendo em vista que o art. 1774, do Código Civil prevê que se aplicam à curatela as disposições concernentes à tutela, com as devidas especificidades prescritas no referido diploma legal (BRASIL, 2002).

Se a Constituição garante a proteção integral às crianças e aos adolescentes, impondo como dever do Estado assegurar àqueles a vida e a saúde, não é proporcional se admitir, em qualquer contexto, que deixem de ser vacinados contra um vírus mortal, por vontade própria, tendo em vista que são incapazes de se determinar, e, por vontade de seus representantes legais, isto porque, como visto anteriormente, os direitos fundamentais possuem um núcleo que é inviolável, e não há direito fundamental mais intangível que a vida, tendo em vista que é ela a razão de existir dos demais.


A VACINAÇÃO OBRIGATÓRIA E O DIREITO COMPARADO

Peter Häberle propõe o método comparativo de interpretação constitucional, segundo o qual se alinha os métodos clássicos de hermenêutica, interpretando-se a Constituição pátria em contraponto com demais ordenamentos jurídicos (BULOS, 2012). Trata-se de ferramenta exegética muito relevante ao presente estudo, tendo em vista que a seguir se demonstrará que a questão da vacinação obrigatória é debate jurídico recorrente, em diversos outros ordenamentos jurídicos.

Os dados que serão expostos é fruto de pesquisa documental, sobretudo no banco de dados de jurisprudência internacional do Supremo Tribunal Federal (2020).

Inicialmente, merece destaque o caso Zucht v. King, 260 U.S. 174 (1922), em que a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu que poderia uma escola do Estado do Texas se recusar a receber alunos não vacinados (STF, 2020).

A mesma corte, no caso Jacobson v. Massachusetts, 197 U.S. 11 (1905), reconheceu que cidade de Cambridge, no Estado de Massachusetts, poderia multar os residentes que se recusassem a receber a vacina contra varíola (STF, 2020).

Por fim, a Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso Compagnie Francaise de Navigation a Vapeur v. Louisiana Board of Health,186 U.S. 380 (1902) considerou válida leis de quarentena como exercício razoável do poder de polícia (STF, 2020).

Mais recente e igualmente relevante é o julgado da Suprema Corte do Reino Unido, que em 2017 considerou justificada a interferência do Estado no direito da mãe de ter respeitada sua vida familiar diante do interesse de proteger a saúde da criança e vaciná-la (STF, 2020).

Em 2018, a Corte Constitucional da Itália entendeu pela possibilidade da imposição de vacina obrigatória:

Tribunal decidiu que as disposições urgentes eram adequadas, dada a natureza preventiva das vacinações e o declínio do nível de cobertura na Itália. Em segundo lugar, o Tribunal esclareceu que a escolha de tornar a legislação mais rígida para obrigar a vacinação não era exagerada, uma vez que, na prática médica, recomendação e obrigação são conceitos conjugados, e uma mudança desta para a primeira é justificada pelas crescentes preocupações sobre a cobertura de vacinas. Terceiro, afirmou que exigir um certificado para se matricular na escola e impor multas era razoável, até porque o legislador havia previsto medidas iniciais que incluíam reuniões individuais com pais e responsáveis para informá-los sobre a eficácia da vacina. Por fim, observou que as condições epidemiológicas devem ser monitoradas constantemente e que no futuro, dependendo dos achados relevantes, será possível experimentar a redução de certas vacinas de obrigatórias para sugeridas (STF, 2020).

Em 11 de maio de 2020, no BvR 469/20, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha reconheceu a constitucionalidade de diploma normativo que obrigava a vacinação, contra o sarampo, em crianças, afirmando que o objetivo da Lei é, em particular, a proteção da vida e da integridade física, para a qual o Estado, em princípio também tem o dever de proteger sob os direitos fundamentais do art. 2 (2) S. 1 da Grundgesetz (STF, 2020).

Em 2011, a Corte Constitucional da República Checa decidiu que:

1. A obrigação de vacinação é uma restrição admissível aos direitos fundamentais do indivíduo a quem é imposta, uma vez que é inevitável e necessária para proteger a saúde pública e os direitos e liberdades de outrem.” 2. “No entanto, em certas circunstâncias e motivos excepcionais, um indivíduo pode recusar-se a submeter-se à vacinação obrigatória. A obrigação pode não ser cumprida e ele ou ela não estará sujeito a sanções. Uma abordagem contrária representaria uma violação do direito de expressar livremente a sua religião ou fé ao abrigo da Carta dos Direitos Fundamentais e das Liberdades Básicas (STF, 2020).

Destaca-se, também, o julgado n. I. ÚS 1253/14, de 22 de dezembro de 2015, em que a mesma corte estabeleceu exceção à regra do dever geral dos pais de vacinar os filhos, em circunstâncias específicas, como o caso de reações adversas, decorrentes da aplicação (STF, 2020).

No mesmo ano, em 27 de janeiro de 2015, a Corte Constitucional da República Checa rejeitou pedido de anulação do art. 50, da Lei de Proteção à Saúde Pública, daquele país, que previa que creches só poderiam admitir a frequência de crianças com a vacinação obrigatória em dia (STF, 2020).

Em 12 de fevereiro de 2004, no U-I-127/01, a Corte Constitucional da Eslovênia decidiu que “os benefícios da vacinação obrigatória para a saúde dos indivíduos e dos membros da comunidade em geral excedem as consequências da interferência com os direitos constitucionais dos indivíduos” (STF, 2020).

Em 8 de outubro de 2014, no U.br.30/2014, a Corte Constitucional da Antiga República Iugoslava da Macedônia considerou que “a obrigação de se submeter à vacinação obrigatória é uma restrição permissível aos direitos fundamentais de um indivíduo, porque é necessária para proteger a saúde pública e os direitos e liberdades de terceiros” (STF, 2020).

Em 2007 a Corte Constitucional da Hungria firmou precedente no sentido de que “a proteção da saúde das crianças e a proteção contra as doenças contagiosas justificam a vacinação obrigatória para determinadas faixas etárias do ponto de vista constitucional” (STF, 2020).

Em 10 de dezembro de 2015 a Corte Constitucional da Colômbia entendeu que a vacinação de crianças, contra a vontade dos pais, viola princípios da Constituição Colombiana (STF, 2020).

Merece destaque precedente da mesma corte, de 25 de setembro de 1996, que decidiu pela constitucionalidade da intervenção cirúrgica em menores testemunhas de jeová, próximos de atingir a maioridade – e capacidade civil –, mesmo que contra a vontade deles, quando há consentimento do pai para realização do procedimento:

Quando se trata de intervenções ou tratamentos urgentes e necessários que visem a preservação da vida do menor que está prestes a atingir a maioridade, dada a "extrema" gravidade do seu estado de saúde, impor a decisão do pai, mesmo contra a vontade do filho caçula, no sentido de autorizar a ciência a recorrer e aplicar os procedimentos ao seu alcance para salvar sua vida, não implica usurpar ou interferir em sua autonomia, mas sim viabilizar uma possibilidade de cunho científico que contribui para a preservação de sua vida, dever e direito do pai e obrigação do Estado (STF, 2020).

 Trata-se julgado que extrapola a temática da vacinação obrigatória. Todavia, conforme já abordado no segundo tópico do presente estudo, aplica-se o fundamento da impossibilidade de recusa de transfusão sangue, em crianças testemunhas de jeová, pelos pais, nos termos do enunciado 403, da V Jornada de Direito Civil (CJF, 2012) à impossibilidade de recusa de vacinação em incapazes.  

Em 26 de outubro de 2017, a Corte Constitucional da Sérvia entendeu pela constitucionalidade da vacinação obrigatória. Segue trecho traduzido da decisão:

A vacinação obrigatória representa uma interferência no direito de um indivíduo à integridade física. É prescrito por lei e atende ao objetivo legítimo de proteção da saúde. Justifica-se por razões de saúde pública e pela necessidade de manter sob controle a propagação de doenças transmissíveis. O Estado dispõe de uma margem de apreciação no que diz respeito às medidas de saúde para a proteção da população contra as doenças transmissíveis (STF, 2020).

Por fim, destaca-se o acórdão n. 397/2014, do Tribunal Constitucional de Portugal:

O caso não é sobre vacinação obrigatória, mas tem a seguinte fundamentação: o direito à integridade pessoal não impede o estabelecimento de deveres públicos dos cidadãos que se traduzam em (ou impliquem) intervenções no corpo das pessoas (v. g., vacinação, colheita de sangue para testes alcoólicos, etc.), desde que a obrigação não comporte a sua execução forçada, sem prejuízo da punição em caso de recusa.

CONCLUSÃO

Os direitos fundamentais são relativos, ou seja, quando em conflito com outro deve-se, em concreto, analisar qual preponderará; este é o cerne da problemática que se refletiu até aqui, tendo em vista que de um lado reside a liberdade de se vacinar ou não e de outro o direito à saúde, individual e coletivo, e o direito à vida, haja vista que o Coronavírus é mortífero, já tendo levado, até o presente momento, mais de 500.000 Brasileiros à morte.

Quais das pretensões acima devem prevalecer? Trata-se de delicada indagação, tendo em vista que todas são constitucionalmente protegidas, como direitos fundamentais.

O Supremo Tribunal Federal, em louvável decisão, proferida no bojo das ações diretas de inconstitucionalidade n. 6586 e 6587, reconheceu a constitucionalidade da vacinação obrigatória, que implica na imposição do dever de se vacinar, sob pena de consequências jurídicas proporcionais, como o confisco de documentos, a vedação à frequentar lugares, imposição de multas, etc; vislumbra-se que não se trata de vacinação forçada, que seria, como o próprio nome sugere, imposta à força.

Conflito de direitos fundamentais são solucionados por meio da técnica de ponderação, em que o interprete se vale dos métodos e princípios hermenêuticos para chegar à solução do caso. Depreende-se, do até aqui refletido, que a decisão do Supremo Tribunal Federal é razoável, pois prestigia a liberdade do sujeito de negar se vacinar, tendo como consequência a imposição de consequências jurídicas. Igualmente, há o prestigio ao direito fundamental à saúde e à vida dos demais membros da comunidade, que clamam por medidas de enfrentamento ao Coronavírus.

A questão ganha contornos mais problemáticos no que se refere à vacinação de incapazes, sobretudo crianças, isto porque são legalmente desprovidos de capacidades para tomar decisões sobre si.

Há quem defenda que o mesmo raciocínio da decisão do Supremo Tribunal Federal se aplica analogicamente aos responsáveis legais, de modo que terão liberdade para negar vacinar os seus, porém, suportarão às consequências de seus atos; há quem faz a ponderação de que há um direito autônomo do incapaz de escolher ser vacinado, mesmo que dissentindo de seu representante legal.

A despeito disso, conclui-se que estes posicionamentos estão divorciados da razão, tendo em vista que a vida e a saúde são direitos fundamentais de tamanha sensibilidade que não pode um sujeito dispor em nome de outrem, mesmo se tratando de representante legal.

Na Constituição Federal é garantida a proteção integral à criança e ao adolescente, não sendo razoável qualquer interpretação hermenêutico-constitucional que afronte este preceito.

Deve-se aplicar, analogicamente, o enunciado n. 403, da V, da Jornada de Direito Civil (CJF, 2012), que dispõe sobre a recusa à transfusão de sangue, por paciente Testemunha de Jeová. Segundo o referido dispositivo, é possível a recusa, desde que o paciente seja capaz, e esteja, na ocasião, em gozo de suas faculdades mentais, e que o faça em nome próprio, e de modo declarado e informado.


REFERÊNCIA

ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Verbetim, 2017.

BRASIL. Constituição (1988). 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

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Autor

  • João Gabriel Fraga de Oliveira Faria

    Advogado (OAB/SP n. 394.378). Especialista em Direitos Fundamentais pela Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito Constitucional Aplicado. Cursou especialização em Direito Público. É especialista em Direito Empresarial. Fez especialização em Direito e Processo Civil. É presidente da comissão de Direito de Família da 52º Subseção da OABSP. Foi membro da diretoria do núcleo regional (Lorena/SP) do IBDFAM. E-mail para contato: [email protected].

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FARIA, João Gabriel Fraga de Oliveira. A vacinação obrigatória na pandemia do coronavírus. Hermenêutica constitucional e jurisprudência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6887, 10 maio 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97756. Acesso em: 27 abr. 2024.