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Inexigibilidade de conduta diversa. Natureza: causa supralegal de exclusão da culpabilidade

Inexigibilidade de conduta diversa. Natureza: causa supralegal de exclusão da culpabilidade

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1. Dotado das capacidades de entender e querer, sabendo ou podendo alcançar o conhecimento da ilicitude do fato, o homem detém o "poder-agir-de-acordo" com o Direito (a cláusula, embora acolhida pela quase totalidade dos autores brasileiros, tem sido posta em dúvida por algumas tendências, assunto que será objeto de outro texto), pois livre na elaboração e atuação da vontade, e deve, como conseqüência jurídica, motivar a conduta em conformidade com o sentido protetivo da norma. É o que a ordem jurídica lhe "exige".

Porém, se apesar de possuir saúde mental que o capacite de entender e querer, e embora consciente de que faça algo juridicamente proibido, mesmo assim realize o fato típico e antijurídico, mas unicamente por causa de fatores externos, tais de anormalidade, que lhe retiram a liberdade para poder-agir-de-acordo com a norma, a "culpabilidade", terceiro elemento, atributo ou predicado da infração penal (há discussão meramente "acadêmica" a respeito: se é elemento ou predicado; se é parte ou dimensão do crime), é excluída.

Nosso Código não a prevê como causa geral de exclusão da culpabilidade, embora esteja presente nas raízes das exculpantes da coação moral irresistível e da obediência hierárquica.

A doutrina penal costuma referir-se ao caso designado por "cavalgadura que não obedece às rédeas" como o primeiro pronunciamento judicial sobre a inexigibilidade. O Tribunal do Reich reconheceu a inexigibilidade de conduta diversa em favor do cocheiro que, sob a ameaça de despedida do emprego, feita pelo patrão, atendeu à sua ordem para utilizar em determinado serviço ressabiado e desobediente cavalo, mesmo prevendo a possibilidade de problemas na condução do animal, que terminou por sair com o cavalo e este, não lhe obedecendo os comandos, atropelou e feriu um pedestre. Reconhecido o princípio para o fato culposo, logo foi aplicado também aos fatos dolosos (Fernando Galvão, Estrutura Jurídica do Crime, pág. 426).


2. Ao apresentá-la como "causa de exclusão da culpabilidade", e a censura penal é dos mais densos temas na dogmática penal, permite-se objeção doutrinária, e de excelente procedência.

Johannes Wessels e Hans Welzel, dentre outros, notadamente germânicos, diferenciam "causas de exclusão da culpabilidade" das "causas de exculpação".

Causas de "exclusão", porque com a sua ocorrência faltam elementos fundamentadores da culpabilidade, são a "inimputabilidade" e o "erro de proibição inevitável".

Causas de exculpação, que não afetam a estrutura mas produzem forte atenuação do conteúdo da culpabilidade, tornando-a inexpressivo juízo de censura para alcançar as últimas fronteiras da punibilidade, são as situações frequentemente deduzidas do pensamento fundamental da inexigibilidade de conduta adequada à norma: coação moral irresistível, excesso exculpante na legítima defesa, estado de necessidade exculpante etc (Wessels, "Direito Penal, Parte Geral", pág. 91).


3. Mas os autores brasileiros, como de resto a maioria dos doutrinadores ocidentais, não seguem esta diferenciação. Portanto, entre nós, na busca da sua natureza jurídica, a "inexigibilidade de conduta diversa" é uma "causa de exclusão da culpabilidade". Melhor seria dizê-la, aliás, mais do que uma exculpante, mas denominador comum de todas as excludentes da culpabilidade, pois os elementos essenciais ao juízo de censura penal decorrem da premissa fundamental de que a ordem jurídica pode exigir do agente comportamento diverso (Zaffaroni), sendo que a exculpação sempre evidencia a inexigibilidade da prática de outro comportamento e decorre do fato de que o direito penal somente pode exigir do indivíduo o que lhe seja faticamente possível (Fernando Galvão, Estrutura Jurídica do Crime, pág. 425).


4. Como "causa primária", verdadeiro "princípio" de direito penal, subjacente às demais exculpantes, prescinde de lei, podendo incidir tanto quando prevista (ex: coação moral irresistível) como quando não tipificada pela legislação (ex: excesso exculpante na legítima defesa).

Considerada e compreendida como um "sentimento inerente à condição humana trazido à ciência penal através da teoria normativa da culpabilidade" (Joe Tennyson Velo, "O juízo de censura penal" - o princípio da inexigibilidade de conduta diversa e algumas tendências), constituindo-se em um princípio jurídico com bases éticas, filosóficas, psicológicas e morais, a inexigibilidade não tem lei que a delimite, demandando, do Direito Penal, uma fundamentação axiológica, aberta, e não empírico-analística, fechada.

Em uma concepção normativa pura de culpabilidade, em que a "exigibilidade de conduta diversa" é o real fundamento do juízo de censura, não estando vinculada a conclusões lógicas, mas em valoração do comportamento humano sob as diferentes faces da ética, da filosofia, da moral e do direito, não há como negar-se a supralegalidade da "inexigibilidade" como exculpante.

Na sempre preciosa lição de Bettiol, e sobre o tema sua doutrina é das mais respeitadas, o homem rompe sempre o córtex da legalidade formal para referir-se a valores que superam a vicissitude histórica e refogem a qualquer relativismo, em um direito "aberto", que se deve reconhecer. A doutrina da não exigibilidade é uma válvula que permite a um sistema de normas respirar em termos humanos ("Direito Penal", vol. II, pág. 144).

No Brasil, são favoráveis à supralegalidade, dentre outros autores, Aníbal Bruno, Assis Toledo, Frederico Marques, Joe Tennyson Velo, José Paulo da Costa Jr e Luiz Alberto Machado. Contrários, podem ser lembrados Alcides Munhoz Neto, Cirino dos Santos e Manoel Pedro Pimentel.

Com as ressalvas de que não pode haver censura penal quando a possibilidade de agir é apenas hipotética e de que é sempre louvável a tendência da doutrina de humanizar a legislação penal, estendendo consideravelmente o elenco das causas que excluem a punição, mas que isto deve ser feito de modo a conceder a todos os cidadãos, indistintamente, que tenham preenchido os requisitos legais, os direitos daí advindos (tradução da obra de Wessels, "Direito Penal", pág. 96), Juarez Tavares, na mesma linha de pensamento esposada por Johannes Wessels (de acordo com o qual a inexigibilidade não deve ser reconhecida como causa supralegal de exculpação, embora possua grande significado como "princípio regulador" em determinados casos, especialmente nos crimes culposos e omissivos, onde importa determinar justamente os limites dos deveres de cuidado e de agir – "Direito Penal", Parte Geral, pág. 97) e Jescheck, discorda da aplicação generalizada do princípio da inexigibilidade de conduta conforme à norma, embora seja taxativo no sentido de que "este princípio, na verdade, informa a culpabilidade, e funciona como critério regulador nos delitos culposos, só podendo ser aplicado a casos não previstos em lei através da "analogia in bonam partem", sem que possa ser tomado em sentido genérico de exculpação, menos pela possibilidade de escape que proporciona aos acusados, mas pela imprecisão de seu âmbito de incidência. Não fica o cidadão desprotegido tão-só com a negativa desse princípio, como regra geral de exculpação. Mais desprotegido ficará, quando se reconhecer em seu favor uma aparência de direito, somente declarável através de juízo discricionário e por que não arbitrário do julgador. Este fato torna-se ainda mais evidente, quando vemos que o problema da inexigibilidade de outra conduta é solucionado sem qualquer referência legal, nem limitações ou parâmetros, que possam comportar, ao menos, uma interpretação. Nem doutrinariamente se tem noticia das determinações para seu equacionamento. Embora se possa verificar que toda culpabilidade está baseada na possibilidade ou impossibilidade de prever e evitar o resultado por parte do agente, dando lugar à conclusão de que, se tal for evitável, se poderia agir de outra forma, a assunção de um princípio genérico de inexigibilidade foge à elaboração sistemática da norma e seus efeitos. A inexigibilidade vem sempre associada a outros critérios, como informador de sua constituição e parece que esse é seu verdadeiro papel ou função dentro da teoria do delito. Essa posição se torna ainda mais saliente nos delitos negligentes do que nos crimes dolosos, pela simples razão da diferença de estrutura normativa, como da distinção da ação típica. Não significa isto, por sua vez, como pretendem alguns, que esse princípio possa aqui servir como causa geral de exculpação" ("Direito Penal da Negligência, págs. 184-185).

Dentre os europeus, a favor, Bettiol ("Direito Penal", vol. II, pág. 141), Mir Puig ("Derecho Penal", pág. 644) e Eduardo Correa ("Direito Criminal", vol. II, pág. 453 e segs.). Contra, além de Wessels, Stratenwerth e Baumann, Hans Jescheck, baseado no CP alemão, que proscreve aos agentes de crimes dolosos o reconhecimento de outras causas de exculpação além das expressamente previstas, e pelo entendimento de que as hipóteses legais representam, conforme clara sistemática da lei, preceitos excepcionais não suscetíveis de aplicação extensiva, assim se manifesta em oposição à supralegalidade: "En las situaciones dificiles de la vida, la comunid deve poder reclamar la obediencia al Decrecho aunque ello suponga exigir al adectado un importante sacrificio. La exigibilidad constituye en ciertos supuestos un "principio regulativo", pero ni siquiera entonces puede entenderse como una causa general de exculpación supralegal (Tratado, vol. V, pág. 688, tradução de Mir Puig).

Rebatendo à crítica de acordo com a qual a adoção da inexigibilidade como causa supralegal de exclusão da culpabilidade implicaria num enfraquecimento do direito penal e em prejuízo da certeza jurídica, diz Bettiol que "enfraquecido é apenas o que não pune quando existam todos os pressupostos de uma punição, entre os quais o da culpabilidade; quando porém a culpabilidade não subsiste porque não se podia esperar do agente uma motivação normal, seria uma heresia falar ainda de culpa e aplicar uma pena, pois, numa concepção teleológica do direito penal nem sempre os princípios e as regras gerais são passíveis daquele total enrijecimento que se manifesta numa concepção puramente formalista" (Direito Penal, vol. II, pág. 145), e, sobre a certeza jurídica, que resultaria elidida com o acolhimento da teoria da não exigibilidade, "não tem procedência porque a certeza jurídica, quando se coloca como obstáculo à livre irrupção de uma exigência psicológica e ética no setor das exculpantes, quando se entrepõe entre o réu e a sua liberdade, torna-se ela também um princípio formal e obstruidor. A certeza é o momento supremo do direito, e do direito penal em particular, mas não deve constituir um obstáculo ao processo de individualização e de humanizaçáo da culpa penal. A certeza não é critério formalista que possa ser invocado para enredar a vida, mas deve servir para dar um sentido e um significado à ação, a fim de preservá-la de qualquer perigo" (obra e pág. cits.).

A jurisprudência nacional, em que pese paradigmático aresto do STJ, relatado pelo Min. Assis Toledo, em processo do qual tivemos a honra em atuarmos como Ministério Público, oriundo de Pelotas, Rio Grande do Sul, ("Inexigibilidade de outra conduta. Causa legal e supralegal de exclusão da culpabilidade cuja admissibilidade no Direito brasileiro já não pode ser negada. Júri. Homicídio. Defesa alternativa baseada na alegação de não exigibilidade de conduta diversa. Possibilidade em tese, desde que se apresentem ao Júri quesitos sobre fatos e circunstâncias, não sobre mero conceito jurídico" (Quinta Turma, REsp 2492 /RS, j. 23.05.90, RT 660/358), persiste em desdenhar a excludente, quando não a rejeita (o próprio STF: "Teoria das causas supralegais de exclusão do crime ou de culpabilidade... Improcedência, também, da alegação de cerceamento de defesa. Em nosso sistema jurídico não é admissível a teoria das causas supralegais de exclusão de crime ou de culpabilidade. Correta pois, na formulação dos quesitos, a alusão ao estado de necessidade e não à inexigibilidade de conduta diversa." - Primeira Turma, rel. Min. Moreira Alves, HC-66192/MS, j. 21.06.88, DJU 25.11.88, p.31064).


5. Diante do exposto, em que pesem as dissonâncias interpretativas existentes, a natureza da "inexigibilidade de conduta conforme ao Direito" é de "causa de exclusão da culpabilidade".

Como princípio de Direito Penal, não se limita às hipóteses previstas em lei, quando é classificada como causa legal da exculpação. Também deve incidir nos casos em que inexistem dispositivos legais que a tipifiquem, pois, como primeira e mais importante causa de exclusão da censura penal, "deve ser reputada como causa supralegal, erigindo-se em princípio fundamental que está intimamente vinculado com o problema da responsabilidade pessoal e que, portanto, dispensa a existência de normas expressas a respeito" (Assis Toledo, Princípios Básicos, pág. 316).

Aos Tribunais, na tarefa concreta de interpretação e aplicação das normas, cabe a missão de compatibilizar ou preencher as deficiências e omissões legislativas, dando a cada um o que é seu, servindo o princípio da inexigibilidade para a integração do ordenamento jurídico, em uma "salutar válvula de segurança contra as injustiças a que pode conduzir um estreito positivismo legal" (Eduardo Correia, Direito Criminal, vo. II, pág. 454), sendo também o trabalho com exculpantes não previstas em lei uma necessidade inafastável, pois é praticamente impossível determinar-se uma medida-padrão utilizável para aferir a exigibilidade em todos os casos.


Autor

  • Carlos Otaviano Brenner de Moraes

    Participa com seus artigos das publicações do site desde 1999.

    Exerce advocacia consultiva e judicial a pessoas físicas e jurídicas, numa atuação pessoal e personalizada, com ênfase nas áreas ambiental, eleitoral, criminal, improbidade administrativa e ESG.

    Foi membro do MP/RS durante 32 anos, com experiência em vários ramos do Direito.

    Exerceu o magistério em universidades e nos principais cursos preparatórios às carreiras jurídicas no RS.

    Gerações de atuais advogados, promotores, defensores públicos, juízes e delegados de polícia foram seus alunos.

    Possui livros e artigos jurídicos publicados.

    À vivência prática, ao estudo e ao ensino científico do Direito, somou experiências administrativas e governamentais pelo exercício de funções públicas.

    Secretário de Estado do Meio Ambiente, conciliou conflitos entre os deveres de intervenção do Estado Ambiental e os direitos constitucionais da propriedade e da livre iniciativa; Secretário Estadual da Transparência e Probidade Administrativa, velou pelos assuntos éticos da gestão pública; Secretário Adjunto da Justiça e Segurança, aliou os aspectos operacionais dos órgãos policiais, periciais e penitenciários daquela Pasta.

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MORAES, Carlos Otaviano Brenner de. Inexigibilidade de conduta diversa. Natureza: causa supralegal de exclusão da culpabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 42, 1 jun. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/994. Acesso em: 26 abr. 2024.