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A revogação do espírito da Lei Federal 8.429/92

A revogação do espírito da Lei Federal 8.429/92

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O Estado, ao flexibilizar um importante instrumento de proteção da moralidade administrativa, acabou por violar o princípio da proporcionalidade em sua vertente da vedação da proteção deficiente.

 

A Constituição da República, em seu artigo 37, § 4º, determina que os atos de improbidade administrativa importarão na suspensão dos direitos políticos, na perda da função pública, na indisponibilidade dos bens e no ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas na lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

Nesse diapasão, foi editada a Lei Federal nº 8.429 de 1992, a qual dispõe sobre as sanções aplicáveis em virtude da prática de atos de improbidade administrativa, de que trata o § 4º do art. 37 da Constituição Federal, e dá outras providências.

Ocorre que, no ano de 2021, a Lei Federal nº 14.230 alterou quase que integralmente a Lei de Improbidade Administrativa.

A alteração foi tão substanciosa que alguns doutrinadores afirmam que houve a publicação de uma nova de lei de improbidade.

Nesse sentido, conforme salientaram os Procuradores Rafael Carvalho Rezende Oliveira e  Erick Halpern[1],

 

Em resumo, a Reforma legislativa representa uma descaracterização da redação originária do texto legal, com a modificação de quase todos os dispositivos da Lei 8.429/1992. Formalmente, restou preservada a numeração da Lei 8.429/1992. Contudo, sob o aspecto material, o conteúdo da Lei de Improbidade Administrativa foi intensamente alterado. Trata-se, de fato, de uma nova Lei com a mesma numeração. (g. n.)

 

De nossa parte, ousamos dizer que houve um retrocesso no tema da defesa do erário contra os maus gestores públicos.

A primeira constatação, mais notável, foi o fato de que houve a extirpação da figura do ato culposo de improbidade administrativa, previsto originalmente no artigo 10 da lei.

O segundo ponto de relevo foi o de que houve o endurecimento dos requisitos para a configuração do ato doloso, não bastando mais a voluntariedade do agente público, mas também a vontade livre e consciente de alcançar alguns dos resultados típicos previstos na lei (art. 1º, § 3º).

Por outro lado, conforme o artigo 18, inciso I, do Código Penal brasileiro, o crime doloso se configura quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.

Destarte, ao que tudo indica, ficou mais fácil o agente público improbo ser condenado na esfera penal do que na esfera civil da improbidade administrativa, haja vista que basta o dolo genérico em alguns tipos penais!

De outro vértice, para demonstrarmos que ocorreu a fragilização da defesa do patrimônio público, destacaremos um caso interessante julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo na apelação cível nº 1004634-82.2017.8.26.0533, conforme a ementa que segue, verbis:

 

MANDADO DE SEGURANÇA. Procuradores Municipais de Santa Bárbara D ́Oeste. REFIS municipal. Redução dos honorários de sucumbência. Normas locais que prevêem expressamente que os honorários de sucumbência não constituem verba da Prefeitura. Assunto de interesse local. Art. 30, I, da CF/88. Não pode a Prefeitura transigir sobre aquilo que não lhe pertence, assim entendidos os honorários já arbitrados em decisão judicial. Precedentes desta E. Corte em feitos oriundos da mesma comarca. Sentença reformada. Recurso conhecido e provido em parte.

 

No caso em apreço, a Secretaria Municipal de Fazenda decidiu, sem nenhum embasamento legal ou jurídico, pelo desconto dos honorários dos advogados públicos no programa REFIS, causando danos ao erário municipal, haja vista a condenação do município a indenizar os autores pelos prejuízos suportados.

Nesse diapasão, conforme o artigo 28 da LINDB (Decreto-lei nº 4.657/42), o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

Ora, tal erro grosseiro praticado pelo agente político municipal, nos termos da redação originária da Lei de Improbidade, poderia ser facilmente classificado como ato de improbidade que causou prejuízo ao erário, na modalidade culposa, ou até mesmo atentatório contra os princípios administrativos, haja vista a ausência de sustentação legal.

Contudo, na nova redação da lei 8.429/92, não basta a voluntariedade do agente, mas também vontade livre e consciente de praticar a conduta improba, além de que o rol do artigo 11 tornou-se taxativo.

Agora, a dificuldade maior fica por conta da comprovação do dolo específico pelo autor da ação de improbidade, seja o Ministério Público, seja a própria Fazenda Pública[2].

Nada obstante, alguns juristas consideram positiva a reforma, como Guilherme Barcelos. Eis trecho de seu artigo[3]:

 

Essa inovação legislativa é um grande avanço, penso, como que a materializar a colocação das coisas em seu devido lugar, de modo a vencer, mesmo que de maneira tardia, aquilo que Rodrigo Valgas dos Santos inteligentemente convencionou chamar de "Direito Administrativo do Medo"[2]. Houve, nas décadas pós lei de improbidade, uma grande banalização do instituto, sendo que um manancial de ações foi proposto, não raro, com o objetivo puro e simples de obter ressarcimentos aos cofres públicos, ou mesmo com o fim de ver punido aquele agente incompetente, mas não corrupto, por eventuais equívocos no curso da administração. Isso trouxe, aliás, consequências no curso das administrações, afinal, submetidos a um alto risco decisório, gestores passaram a atuar não na busca do interesse público, mas visando sua autoproteção (a obra de Rodrigo explora magistralmente o fenômeno). (g. n.)

 

Aliás, o próprio Superior Tribunal de Justiça, em julgados da lavra do saudoso Teori Albino Zavascki, já salientava, conforme demonstra seu voto-vista, a imprescindibilidade do elemento subjetivo da conduta para a configuração do ato de improbidade verbis:

 

ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE IMPROBIDADE. LEI 8.429/92. ELEMENTO SUBJETIVO DA CONDUTA. IMPRESCINDIBILIDADE. 1. A ação de improbidade administrativa, de matriz constitucional (art. 37, § 4º e disciplinada na Lei 8.429/92), tem natureza especialíssima, qualificada pelo singularidade do seu objeto, que é o de aplicar penalidades a administradores ímprobos e a outras pessoas - físicas ou jurídicas - que com eles se acumpliciam para atuar contra a Administração ou que se beneficiam com o ato de improbidade. Portanto, se trata de uma ação de caráter repressivo, semelhante à ação penal, diferente das outras ações com matriz constitucional, como a Ação Popular (CF, art. 5º, LXXIII, disciplinada na Lei 4.717/65), cujo objeto típico é de natureza essencialmente desconstitutiva (anulação de atos administrativos ilegítimos) e a Ação Civil Pública para a tutela do patrimônio público (CF, art. 129, III e Lei 7.347/85), cujo objeto típico é de natureza preventiva, desconstitutiva ou reparatória. 2. Não se pode confundir ilegalidade com improbidade. A improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Por isso mesmo, a jurisprudência dominante no STJ considera indispensável, para a caracterização de improbidade, que a conduta do agente seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92, ou pelo menos culposa, nas do artigo 10 (v.g.: REsp 734.984/SP, 1 T., Min. Luiz Fux, DJe de 16.06.2008; AgRg no REsp 479.812/SP, 2ª T., Min. Humberto Martins, DJ de 14.08.2007; REsp 842.428/ES, 2ª T., Min. Eliana Calmon, DJ de 21.05.2007; REsp 841.421/MA, 1ª T., Min. Luiz Fux, DJ de 04.10.2007; REsp 658.415/RS, 2ª T., Min. Eliana Calmon, DJ de 03.08.2006; REsp 626.034/RS, 2ª T., Min.João Otávio de Noronha, DJ de 05.06.2006; REsp 604.151/RS, Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 08.06.2006). 3. É razoável presumir vício de conduta do agente público que pratica um ato contrário ao que foi recomendado pelos órgãos técnicos, por pareceres jurídicos ou pelo Tribunal de Contas. Mas não é razoável que se reconheça ou presuma esse vício justamente na conduta oposta: de ter agido segundo aquelas manifestações, ou de não ter promovido a revisão de atos praticados como nelas recomendado, ainda mais se não há dúvida quanto à lisura dos pareceres ou à idoneidade de quem os prolatou. Nesses casos, não tendo havido conduta movida por imprudência, imperícia ou negligência, não há culpa e muito menos improbidade. A ilegitimidade do ato, se houver, estará sujeita a sanção de outra natureza, estranha ao âmbito da ação de improbidade. 4. Recurso especial do Ministério Público parcialmente provido. Demais recursos providos. (REsp nº 827.445-SP)

 

No entanto, no âmbito do STJ, admitia-se a modalidade culposa para a configuração do dano ao erário, situação não mais possível à luz da nova legislação.

Por conseguinte, o que podemos constatar com base no caso concreto supracitado, é que o propagado direito administrativo do medo não foi suficiente para coibir práticas desastrosas contra o patrimônio público.

Muito pelo contrário, se trata mais de uma falácia daqueles que desconhecem a realidade presente nas repartições públicas, onde o gestor é muitas vezes movido por interesses mesquinhos ou egoístas, prática corriqueira em municípios menores, em evidente violação à moralidade administrativa.

Nessa senda, conforme escreveu o saudoso Hely Lopes Meirelles, certamente o maior administrativista do país, a moralidade administrativa[4]

 

Constitui, hoje em dia, pressuposto de validade de todo ato da Administração Pública (CF, art. 37, caput). Não se trata diz Hauriou, o sistematizador de tal conceito da moral comum, mas sim de uma moral jurídica, entendida como o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração. Desenvolvendo sua doutrina, explica o mesmo autor que o agente administrativo, como ser humano dotado de capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o honesto do desonesto. E, ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto. Por considerações de Direito e de Moral, o ato administrativo não terá que obedecer somente à lei jurídica, mas também à lei ética da própria instituição, porque nem tudo que é legal é honesto, conforme já proclamavam os romanos: non omne quod licet honestum est. A moral comum, remata Hauriou, é imposto ao homem para sua conduta externa; a moral administrativa é imposta ao agente público para sua conduta interna, segundo as exigências da instituição a que serve e a finalidade de sua ação: o bem comum.

 

Por esses motivos, agindo de forma negligente, imprudente, imperita ou dolosa, o agente público está a desrespeitar o princípio constitucional da moralidade administrativa, do qual decorre o dever de probidade dos servidores públicos.

Finalizando, conforme asseverou o Ministro da Suprema Corte Luis Roberto Barroso, o princípio da proporcionalidade possui duas vertentes[5]:

 

Uma observação complementar: quando atua como mecanismo de controle das restrições a direitos fundamentais, uma das manifestações do princípio da proporcionalidade consiste na vedação do excesso, como visto acima. Porém, ao lado dos deveres de abstenção e de autocontenção, o Estado também tem deveres de atuação para a defesa e promoção dos direitos fundamentais. Nesses casos, o princípio da proporcionalidade se manifesta sob a forma de vedação da proteção deficiente, exigindo do Estado comportamentos mínimos obrigatórios. Em outras palavras: os direitos fundamentais impõem (i) obstáculos à atuação do Estado hipótese em que a proporcionalidade funciona como régua para medir a constitucionalidade das medidas restritivas ao seu âmbito de proteção; e (ii) deveres de atuação do Estado situação em que a proporcionalidade opera como medida de fiscalização da omissão ou da atuação deficiente ou insuficiente. Também nesta segunda hipótese se aplica o teste tríplice da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, para aferir o impacto da medida que se quer exigir. O princípio da proporcionalidade, portanto, apresenta-se com dupla face, vedando tanto o excesso quanto a insuficiência. (g. n.)

 

Portanto, o Estado, ao flexibilizar um importante instrumento de proteção da moralidade administrativa, acabou por violar o princípio da proporcionalidade em sua vertente da vedação da proteção deficiente, deixando desprotegido o patrimônio público de gestores levianos.

Concluindo, reputamos inconstitucional a alteração promovida na Lei Federal nº 8.429/92 pela Lei Federal nº 14.230/2021, face a violação dos princípios constitucionais da moralidade e da proporcionalidade.

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARCELOS, Guilherme. A Nova Lei de Improbidade e a "doutrina Teori". Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-abr-05/guilherme-barcelos-lia-doutrina-teori Acesso em: 30/7/2022.

BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 9ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 44ª Ed. - São Paulo: Malheiros, 2020.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende e  HALPERN, Erick. A retroatividade da lei mais benéfica no Direito Administrativo Sancionador e a reforma da Lei de Improbidade pela Lei 14.230/202. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2021/11/08/reforma-da-lei-de-improbidade/ Acesso em: 30/7/2022.

 


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Informações sobre o texto

"A corrupção encontra terreno fértil em Estados que apresentam pouca ou nenhuma transparência e não conseguem impor a necessária responsabilidade democrática aos detentores do poder" Guilherme Cunha Werner

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORMENA, Celso Bruno. A revogação do espírito da Lei Federal 8.429/92. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6972, 3 ago. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99454. Acesso em: 24 abr. 2024.