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Responsabilidade do administrador pela má gerência da sociedade

24/06/1998 às 00:00
Leia nesta página:

Sentença em ação de responsabilidade civil movida pela empresa contra o administrador, que teria dissolvido o patrimônio da sociedade.

VIGÉSIMA NONA VARA CÍVEL
Processo n. 15.403/94
Autora: SANTA ELMIRA COMÉRCIO E INDÚSTRIA S/A
Réu: GILBERTO MAURÍCIO PRADEZ DE FARIA

VISTOS ETC...

SANTA ELMIRA COMÉRCIO E INDÚSTRIA S/A propôs em face de GILBERTO MAURÍCIO PRADEZ DE FARIA a presente ação, de rito ordinário, pedindo seja este condenado a pagar-lhe o valor das perdas e danos que ao patrimônio social deu causa, quando administrador da sociedade.

Disse que o patrimônio da sociedade era constituído exclusivamente de imóveis, representados por 5 terrenos no Município de Teresópolis, uma fazenda no Município de Cantagalo e um apartamento na Praia do Flamengo (RJ), e que, autorizada a alienação desse patrimônio pela AGE de 22/08/91, pelo preço mínimo de 860.329 BTNs conforme deliberação da AGE anterior de 22/06/90, o réu vendeu os referidos imóveis com prejuízo de quase US$ 500,000.00 Disse mais que outras irregularidades praticadas pelo réu foram encontradas por uma auditoria feita após a destituição do mesmo em 10/09/93, entre elas:

(1) a despesa de Cr$ 66.000.000,00 para o estudo da viabilidade e reforma de 9 casas de colonos situadas na Fazenda, tendo como beneficiária uma empresa da cidade do Rio de Janeiro, correspondendo a 68,74% do preço de venda da mesma Fazenda;

(2) o dispêndio de Cr$ 7.000.000,00, em 21/09/91, pela contratação de serviços de terraplenagem e reabertura de estrada, que não se deu;

(3) o dispêndio, em 19/03/92, de Cr$ 20.000.000,00 com pulverização de 60 alqueires de lavoura, sem que lavoura houvesse na Fazenda;

(4) a despesa, em 06/04/92, de Cr$ 3.200.000,00 com o recondicionamento de geradores na cidade do Rio de Janeiro, em opção pouco recomendável;

(5) a aquisição de um SANTANA QUANTUM de uma empresa do próprio réu por Cr$ 12.490.000,00, que necessitou de reparos no valor de Cr$ 900.000,00 logo após, e veio a ser vendido 7 meses depois por Cr$ 12.000.000,00;

(6) a inexistência do saldo de caixa, quando destituído, na quantia de Cr$ 638.097.060,13.

Instruem a inicial os documentos de fls. 13/80, estando as custas pagas conforme guias de fls.81/82.

Citado, o réu ofereceu contestação, sustentando que nenhum prejuízo causou à autora, pois: (1) diferentemente do que afirma a autora, não fora fixado preço mínimo para a venda dos imóveis; (2) o apartamento da Praia do Flamengo se encontrava fechado, em péssimo estado de conservação, somente gerando despesas; (3) a Fazenda, localizada em Cantagalo, precisava de reformas; (4) os terrenos de Teresópolis não se situavam em área nobre; (5) os acionistas LYA STELLA STALLONE e PAULO MORAES firmaram todos os contratos como testemunhas; (6) todas as obras registradas nos livros da sociedade se cumpriram, até mesmo a do gerador que já apresentava defeito na administração de LYA STALLONE, corrigido no Rio por falta de empresa especializada em Cantagalo; (7) a pulverização de 60 alqueires da Fazenda tinha o propósito do melhor aproveitamento das terras; (8) a aquisição do automóvel se concretizou, em out/91, por Cr$ 6.340.000,00, preço do mercado, e não - por Cr$ 12.490.000,00; e (9) quanto à ausência de valores em caixa, ao deixar a administração da sociedade, tal fato se deve aos pagamentos diversos e à distribuição de lucros.

Com a contestação vieram os documentos de fls.95/149.

Réplica às fls. 154/159.

Saneador às fls. 160, deferindo prova pericial de engenharia.

Laudo do Senhor Perito às fls. 203/286, com o qual concordou a autora às fls. 297 e dele discordou o réu às fls.299/301, resultando o esclarecimento de fls. 303/306.

Às fls. 318/355, laudo do assistente técnico do réu, sobre o qual disse a autora às fls.357/358.

Admitida a perícia contábil, seguiu-se o laudo do Senhor Perito às fls.442/521, com a manifestação das partes (fls.524 e 526), laudo do assistente técnico do réu às fls.530/536, e, posteriormente, esclarecimento do Senhor Perito sobre a impugnação do réu.

AIJ conforme termo de fls.559.

Alegações finais às fls.581/583 e 585/589.

É o relatório do necessário. DECIDO.

De início, forçoso registrar que a sociedade-autora não tinha, e não tem, entre seus objetivos a compra-e-venda de imóveis. De conformidade com o art. 2º de seus estatutos, o objetivo da sociedade é o comércio, a indústria, a importação e a exportação de produtos agropecuários e correlatos, excetuando-se os que dependem de legislação especial, e, outrossim, quando houver interesse, participar de outras sociedades.

A compra-e-venda de bens integrantes do ativo fixo da sociedade-autora era, portanto, ato fora de sua atividade mercantil.

Disse a autora, e não contestou o réu, que a sociedade fora constituída por familiares. Cuidava-se, e cuida-se, de sociedade anônima fechada familiar, em que todos os acionistas se conhecem e sabem das limitações de cada um.

Pela prova produzida, em seu conjunto, restou demonstrado que os acionistas da sociedade-autora, reunidos em assembléia-geral, no dia 22/06/90, resolveram fixar um valor global para os imóveis pertencentes a seu ativo e, assim o fizeram, em 860.329 BTNs (fls.20/21) (1). Um ano depois (22/08/91), os mesmos acionistas, também reunidos em assembléia-geral, autorizaram, por unanimidade, a venda dos bens da companhia, mas nada disseram, desta vez, a respeito do preço pelo qual tais bens deveriam ser alienados, nem das condições a estabelecer para cada alienação (2).

Em interpretação conveniente, argumenta a autora que a autorização dada para a venda de seus bens estava condicionada ao preço mínimo assinado na assembléia anterior.

Não me parece, no entanto, que essa interpretação restritiva seja a melhor até porque, quisessem os acionistas criar restrições à venda dos imóveis, teriam registrado em ata tais restrições, ainda mais levando em consideração a situação fática existente, mais tarde retratada no relatório da então Diretora Superintendente LYA STALLONE (fls. 573/577), que evidencia a imprestabilidade da definição dos valores para os imóveis procedida na assembléia de junho/90.

Pelo mencionado relatório, a sociedade atravessava dificuldades financeiras, como de resto todo o mercado, em razão dos planos Collor I e II, não podendo dispor de recursos sequer para colocar em condições de habitabilidade o imóvel da Praia do Flamengo e tendo de conseguir com o réu adiantamentos de forma a atender às despesas da fazenda.

Consta do relatório:

Tenho procurado vender a fazenda através de corretores e amigos.

A nossa família avalia esse imóvel em US$ 350,000.00 porém os diversos corretores não fazem a mesma avaliação (...)

É preciso lembrar que as dificuldades do mercado são grandes em virtude do plano Collor I agravado pelo Collor II (...)

Para manter a fazenda funcionando tenho pedido ajuda financeira a você meu irmão (Gilberto Maurício) e ao longo dos meses depois que eu assumí em Junho 18/90, venho vendendo paulatinamente implementos agrícolas (motor e 2 tratoritos) por Cr$ 100.000,00 que estavam fora de uso e se estragando (...)

Despedimos o administrador Adílson. Com ele saíram mais sete empregados que tivemos que indenizar (...)

Estamos preparando a fazenda para vendê-la por que está mais do que constatado que a nossa fazenda continua precisando de limpeza(...)

Com a morte súbita do (novo) administrador a recusa em continuar a tirar leite pelo Paulino fomos forçados a ir vendendo o gado restante de acordo com as necessidades financeiras de manter a fazenda e o apartamento que nos custa condomínio, administradora, light e Ceg, impostos IPTU e DPU e faxineira em média de 2 em 2 meses.

A usina elétrica (...) necessita de uma reforma grande para poder continuar a ser utilizada.

As estradas e pontes a casa sede, as diversas casas de colonos, o curral e o galpão (paiol) também precisam de conservação urgente(...)

..............

Terrenos em Terezopolis.

(...) A região é de pequenos agricultores mas nossa terra é fraca. Há algum plantando sem a nossa ordem.

Praia do Flamengo.

O apto. 601 da Praia do Flamengo foi recebido em agosto/1990 pelo Sérgio em péssimo estado de conservação.

Verifiquei então faltarem até maçanetas das portas do qto. suíte.

Pintaram por cima do papel de parede(...)

Quanto a parte de serviço, área, banheiro, 3 quartos de empregada estavam muito estragados faltando luminárias e azulejos(...)

Nos banheiros sociais o mesmo problema se apresenta(...)

A partir de março verificamos que o valor em US dolar estava absurdamente elevado para um imóvel na Praia do Flamengo no local menos nobre e com mais de 30 anos de construído e com problemas hidráulicos apontados por diversos pretendentes(...)

Diante disso e da experiência recolhida na época dos fatos , a conclusão a que chego é a de que os acionistas, pressionados por falta de recursos, optaram pela venda do ativo fixo da sociedade-autora como forma de suprir as disponibilidades de caixa de cada um, zeradas pelo confisco do plano Collor, sobrepondo o interesse particular ao coletivo e não medindo as consequências do ato, consequências estas desfavoráveis a eles que agora tentam reparar.

O laudo do Sr. Perito de fls. 204/306, realizado em outra conjuntura (3), atesta apenas a venda dos imóveis da sociedade-autora por preço inferior ao que, em condições normais, poderiam ser alienados, não levando em conta fatores externos preponderantes ao tempo do negócio jurídico, o que o torna imprestável nesse capítulo.

Além do mais, difícil admitir que em uma sociedade anônima fechada, os atos preparatórios de alienação do patrimônio não fossem de todos os acionistas conhecidos, particularmente autorizada a venda por unanimidade e o patrimônio tendo origem familiar. Para mim, todos sabiam e sabiam igualmente do despreparo do administrador, médico, não afeito ao comércio, assumindo com isso o risco da indicação para a presidência da companhia.

A responsabilidade civil dos administradores somente surge com a violaçào dos deveres impostos por lei ou pelos estatutos, pois a direçào da sociedade é obrigada a executar as medidas deliberadas pela assembléia geral dentro de sua competência. Se o administrador obra em nome da sociedade, praticando ato regular de gestão, não será pessoalmente responsável pelos atos que praticar, ainda que o resultado produzido não seja o esperado pela `maioria controladora.

Exige-se culpa ou dolo do administrador para ser ele responsabilizado pelos prejuízos causados à sociedade, originários de ato de gestão seu. Seriam atos praticados com excesso ou abuso de poder, ou ainda fora do estatutos da companhia.

Há ainda que se considerar o princípio contido na business judgment rule, copiada pelo direito brasileiro, que imuniza os administradores contra a responsabilidade quando a transação: (a) se circunscreve dentro dos limites dos poderes da companhia; e (b) envolve o exercício do dever de diligência e fiel observância do dever de lealdade (4)

No caso da venda dos imóveis da companhia-autora, o réu cumpria deliberação assemblear e não me convenci de que tenha faltado com os deveres de diligência e lealdade, impelido pelas circunstâncias que envolviam o atendimento ao interesse de evitar que a sociedade sucumbisse na insolvência à vista.

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Igual sorte não assiste ao réu no que concerne:

(1) à despesa de Cr$ 66.000.000,00 para o estudo da viabilidade e reforma de 9 casas de colonos situadas na Fazenda;

(2) ao dispêndio de Cr$ 7.000.000,00, em 21/09/91, pela contratação de serviços de terraplenagem e reabertura de estrada;

(3) ao dispêndio, em 19/03/92, de Cr$ 20.000.000,00 com pulverização de 60 alqueires de lavoura;

(4) a despesa, em 06/04/92, de Cr$ 3.200.000,00 com o recondicionamento de geradores na cidade do Rio de Janeiro, em opção pouco recomendável;

(5) à inexistência do saldo de caixa, quando destituído, na quantia de Cr$ 638.097.060,13.

E isso por restar demonstrado, através do confronto das perícias realizadas, tanto de engenharia na Fazenda da sociedade-autora (fls.203/286) quanto de contabilidade na escrita desta (fls.442/521), o pagamento desses serviços não-prestados.

Pela suposta reforma de 9 casas de colonos e serviços de terraplenagem, que a perícia de engenharia afirma não terem sido realizados, os lançamentos gráficos na escrita apontam uma despesa de Cr$117.674.266,77 (Cr$ 7.000.000,00 em 04/10/91; Cr$ 6.000.000,00 em 20/05/92 e Cr$ 97.753.242,52 no período de 28/06/92 a 05/12/92, conforme demonstrativos de fls.487/489).

A convicção de que os serviços de pulverização de 60 alqueires de lavoura e de reforma de geradores não se verificaram reside na circunstância de, quanto ao primeiro, inexistir área de cultivo na Fazenda da companhia (5) e a empresa contratada, sem licença desde 1988, explorar apenas transporte de passageiros (6); e, quanto ao segundo, de a Nota Fiscal de Serviço de frete emitida para acompanhar o equipamento ao conserto apontar desde logo o número da Nota Fiscal de retorno, a ser emitida 30 dias após (fls.519).

Já no que concerne ao saldo de caixa, valor não encontrado pelo sucessor do réu na administração da sociedade-autora, o Senhor Perito chega ao resultado de Cr$ 640.631.426,02 , cuja falta o réu não consegue justificar.

Justificou o réu, no entanto, a diferença entre o preço de venda e de mercado do SANTANA QUANTUM GLS, de licença VI-6363.

Cabe, assim, ao réu repor esses valores ao patrimônio da sociedade, porque evidenciados o prejuízo, o nexo causal e, mais do que isso, a sua má-fé. A responsabilidade do réu decorre da regra contida no art.158 da Lei 6404.

Deve, então, o réu à companhia-autora:

Cr$ 7.000.000,00

desde 04/10/91

6.000.000,00

20/05/92

97.753.242,52

05/12/92

20.000.000,00

19/03/92

3.200.000,00

06/04/92

640.631.426,02

10/09/93

Deixo de considerar os valores na moeda atual apontados pelo Senhor Perito Contador por adotar este a TR como fator de correção monetária, que E. STF, em repetidas decisões, entendeu inaplicável aos cálculos de atualização da moeda.

DAÍ PORQUE JULGO PROCEDENTE, EM PARTE, A PRETENSÃO AUTORAL, PARA CONDENAR O RÉU A PAGAR À AUTORA A QUANTIA DE CR$ 774.584.668,54 (MOEDA DA ÉPOCA), A SER CORRIGIDA COM BASE NO IPC DA FGV DESDE O DESEMBOLSO DE CADA PARCELA CONFORME QUADRO ACIMA, E SOBRE AS QUAIS INCIDIRÃO JUROS DE 0,5% AO MÊS A PARTIR DA CITAÇÃO. CUSTAS E HONORÁRIOS CONSOANTE DISPÕE O ART.21 DO CPC.

P.R.I.

RIO DE JANEIRO, 30 DE ABRIL DE 1998

ANDRÉ CÔRTES VIEIRA LOPES
Juiz de Direito



NOTAS

  1. (...) A seguir foram discutidos e fixados os valores para os imóveis em o equivalente a 860.329 BTNFs.

  2. (...) A seguir foram discutidos e aprovados por unanimidade a venda dos bens da Cia., como segue: 1) apartamento Praia do Flamengo, 140 apt.601 - RJ; 2) fazenda da Cachoeira - Cantagalo - RJ; 3) terrenos em Teresópolis - Parque Barcelos - lotes 141, 142, 146, 147 e 148. A seguir a presidência da mesa fez uma exposição da situação atual da Cia., e ofereceu a quem quisesse fazer uso da palavra, não tendo ninguém se manifestado e nada mais havendo (...)

  3. Após os efeitos dos Planos Collor (1994)

  4. HENN, em Law of Corporations, pág.482

  5. fls. 458, sub-item 3.10,a

  6. fls. 459, sub-item 3.10,d

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Sobre o autor
André Côrtes Vieira Lopes

juiz de Direito no Rio de Janeiro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, André Côrtes Vieira. Responsabilidade do administrador pela má gerência da sociedade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. -1834, 24 jun. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/16334. Acesso em: 19 nov. 2024.

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