Apelação Criminal n. 356.212, Belo Horizonte
2.ª Câmara Criminal
Apelante: Ministério Público
Apelados: H.H.B. e H.P.A.H.
Data do julgado: 14 de maio de 2002
Relator: Juiz Antônio Armando dos Santos
2.º Vogal: Juiz Alexandre Victor de Carvalho
Unânime.
Excertos do acórdão.
"VOTOS – O Exmo. Sr. Juiz Antônio Armando dos Anjos: Quanto aos fatos, narra a denúncia de f. 2-6 que os réus agiram de forma negligente ao administrar a unidade industrial da M., situada no Barreiro, local em que foram vítimas os menores D.S.V., M.J.F.L., e C.R.S., lesionados por queimaduras de 2.º e 3.º graus, sendo que o último, não resistindo aos ferimentos, veio a falecer. Segundo a inicial acusatória, aos 26.7.1996, D.S.V., de dez anos, adentrou o terreno da empresa dos réus, objetivando resgatar uma ‘pipa’, o mesmo ocorrendo com os menores M.J.F.L. e C.R.S. em data de 31.7.1996. Não obstante o terreno ser de grande perigo, já que formado por rescaldo (moinha) de carvão incandescente – derivado do processamento de ferro gusa – o local não era devidamente sinalizado ou vigiado, possibilitando a entrada de estranhos na empresa, como ocorreu com os menores. Adentrando o terreno, as vítimas menores se depararam com uma camada de significativa espessura sobre o solo, mas em combustão espontânea em seu interior, que foi a causa eficiente para as queimaduras experimentadas.
(...)
Em suma, é o relatório.
(...)
O Exmo. Sr. Juiz Antônio Armando dos Anjos:
NO MÉRITO
(...)
A partir dos elementos fáticos destacados pelo Parquet, postos à análise segundo um ponto de vista meramente lógico-formal das categorias dogmáticas do Direito Penal, poder-se-ia sustentar a tese condenatória pretendida. Todavia, o conjunto de elementos fáticos apurados, aliado a uma visão problemática – e não sistemática – das categorias penais, conduz a manutenção da decisão vergastada.
É de sabença comezinha que o crime culposo sempre ocupou posição secundária na Teoria do Crime, restando, assim, nas palavras de Fábio Roberto D´Ávila, ‘à margem da dogmática jurídico-penal’. Entretanto, a evolução das relações sociais, conduzidas pelo próprio avanço tecnológico do homem, culminou no aumento de situações de perigo, reflexo de uma sociedade mecanizada e em constante transformação. Neste contexto, a atual visão do crime culposo, fruto da Teoria Finalista da Ação – mostra-se inapropriada a reger inúmeras relações jurídicas do mundo cotidiano, pois estando presa a um conceito puramente lógico, acaba por relegar a um segundo plano o ideal de Justiça, fim último da Ciência Jurídica. Com efeito, o estudo das teorias do crime anteriormente elaboradas (causalismo, neokantismo, finalismo) apenas se preocuparam com a construção de um sistema jurídico-penal lógico (fechado), de modo a fornecer aos operadores do Direito um instrumento para aplicação da lei penal. Ora, na Teoria Causal de Ação, a tipicidade era formal. Assim, a mera subsunção do fato praticado ao modelo legal de crime implicaria na tipicidade da conduta, sem se avaliar nenhum outro elemento. Isto porque, enquanto fruto de um Positivismo Científico (ou empírico), o Causalismo tinha por finalidade garantir o máximo de segurança jurídica, mediante a objetividade e o formalismo nos conceitos das categorias dogmáticas do crime. Entretanto, esta visão estritamente formal deixava de explicar satisfatoriamente inúmeras situações práticas, conduzindo, em muitos casos - principalmente naqueles desprovidos de previsibilidade do sinistro – a decisões injustas.
No atual sistema – Finalista – o rigor formal foi amenizado sem, contudo, implicar em significativas mudanças. Isto porque a tipicidade exigia, além da subsunção formal, a falta de adequação social da conduta praticada, sendo este critério avaliado a partir do consenso comum do que seria certo – ou errado – em um comportamento.
Reflexo desta visão lógico-formal das categorias penais consistiu na adoção pelas legislações penais da chamada Teoria da Equivalência dos Antecedentes Causais, ou teoria da conditio sine qua non, desenvolvida por Julius Glaser, visando solucionar o processo de imputação nos crimes materiais. Segundo esta teoria, o resultado lesivo só é imputado a quem lhe deu causa, considerando-se esta toda ação ou omissão sem a qual o evento final não teria ocorrido. Logo, a mera relação de causalidade naturalística entre o fato e o resultado mostrar-se-ia suficiente ao processo de imputação e conseqüente responsabilização penal.
Atualmente, vem tomando grande relevância na comunidade jurídica os estudos desenvolvidos pelo penalista alemão Claus Roxin, em que procurou dar às categorias do Direito Penal uma nova dimensão, sempre preocupada com os ideais de justiça. Para tal, reestruturou a concepção lógico-formal das categorias do Direito Penal tratadas nas anteriores teorias do crime, que, repita-se, apenas se preocupavam no regular e bom funcionamento do sistema penal, de modo que ele se desenvolvesse de forma lógica, ainda que as soluções não fossem justas. Entende Roxin que, se a justiça é o fim último do Direito, não há como prevalecer um raciocínio meramente sistemático defendido pelos sistemas penais pretéritos. Ao contrário, far-se-á justiça através de um raciocínio problemático - de análise caso a caso das situações postas à apreciação dos operadores do Direito. Para redefinir as categorias dogmáticas do Direito Penal (ação, tipicidade, ilicitude, culpabilidade), valeu-se de elementos valorativos de Política Criminal como critério reitor para a solução dos problemas vislumbrados. Neste norte, a reestruturação do elemento tipicidade merece destaque, pois nela houve considerável mudança na verificação do nexo de causalidade, sendo ali re-introduzido o conceito de imputação. Assim, a chamada Teoria da Imputação Objetiva fez superar o dogma causal, ao exigir para o tipo objetivo, além da conexão naturalística ação-resultado (causalidade natural), a necessidade que esta conexão, segundo valores de política criminal, sejam imputados ao autor como obra jurídica sua (casualidade típica). Esta modificação introduzida no âmbito da causalidade ajudou a acabar com o subjetivismo extremado do finalismo, que dava muita ênfase ao tipo subjetivo (dolo/culpa), através de uma maior valoração do tipo objetivo, notadamente incidente sobre o nexo de causalidade. Vê-se, pois, que o nexo de causalidade físico não mais implicaria, por si só, em nexo de causalidade jurídico.
Verificada a insuficiência, ou imperfeição, da causalidade natural como determinante da imputação, passou-se a analisar o tipo objetivo à luz de critérios teleológicos-normativos, complementares do tipo, e restritivos da causalidade. Trabalhou-se o conceito de causa dado pela Teoria da Relevância Típica (elaborada por Edmund Mezger), em que causa era concebida como ‘o evento em que o nexo causal era relevante para o tipo’.
Restou à Teoria da Imputação Objetiva, pois, definir quando o nexo causal seria relevante para o tipo. Concluiu-se que a relevância surgiria da análise do nexo de causalidade a partir de critérios valorativos (normativos) do ordenamento jurídico. Este, por sua vez, foi definido pelo Princípio do Incremento do Risco, aferido da ponderação entre os bens jurídicos e os interesses individuais, a partir da análise do risco que o segundo poderia causar ao primeiro.
Em síntese: para se falar em nexo de causalidade é necessário que, após a verificação da causalidade física, seja constatado que o agente criou um perigo relevante fora do âmbito do risco permitido.
A imputação objetiva, embora não prevista na codificação pátria, não tem sua aplicação vedada pelo ordenamento. Emerge como objeto de estudo em diversos países, sendo efetivamente aplicado. No Brasil, conta com crescente adesão dos estudiosos do Direito Penal, sendo que várias decisões dos Tribunais pátrios já se valeram de seus fundamentos, inclusive esta 2.ª Câmara Criminal.
Extrai-se, pois, a finalidade da imputação objetiva: analisar o sentido social de um comportamento, precisando se este se encontra, ou não, socialmente proibido e se tal proibição se mostra relevante para o Direito Penal. Portanto, para se ter a imputação objetiva será necessário, além da causalidade natural, a verificação da criação de um risco jurídico penalmente relevante, imputável no resultado e alcançado pelo fim de proteção do tipo penal. Criou-se, então, diversos critérios valorativos de natureza negativa que, uma vez verificados, excluiriam a imputação objetiva frente a não valoração da conduta como juridicamente relevante para o resultado, culminando na irrelevância jurídica do nexo causal para o tipo.
In casu, há a exclusão da imputação não só pela permissão do ordenamento jurídico ao risco criado, como também pelo fato de o resultado produzido não estar amparado pelo fim de proteção da norma de cuidado. Por fim, rompe-se o nexo de causalidade pelo consentimento das vítimas em sua autocolocação na situação de perigo.
DA INEXISTÊNCIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA PELA PERMISSÃO DO ORDENAMENTO AO RISCO CRIADO
A questão dos autos cinge-se à aferição da responsabilidade dos réus H.H.B. e H.P.A.H. pelas lesões causadas em D. e pelo óbito de C., pois mantendo postura omissa e negligente, não realizando o efetivo acondicionamento de material nocivo (moinha de carvão), tampouco o correto isolamento da área industrial – mediante vigilância, sinalização e cercamento do local – permitiram a entrada das vítimas em suas dependências e a ocorrência dos sinistros. Em que pese a postura dos réus – não acondicionamento do material nocivo – ter incrementado o risco para a produção dos resultados lesivos, verifica-se que as medidas adotadas para a destinação daquele material (moinha de carvão) encontrava-se em consonância com as regras administrativas, contando mesmo com a tolerância dos órgãos públicos quanto à solução traçada. É de se destacar que os lamentáveis acidentes apurados nestes autos ocorreram dentro dos prazos consignados no Termo de Compromisso para a acomodação dos indigitados resíduos sólidos, revelando que a empresa dos réus comportava-se dentro dos parâmetros estabelecidos pelos órgãos ambientais (itens 3.3 e 3.5, do quadro de f. 144).
Do exposto, vê-se que a postura da empresa dos réus estava amoldada às determinações dos órgãos competentes, que fiscalizando constantemente suas atividades, entendia possível não só a prorrogação de prazos para a destinação dos resíduos sólidos – em limites por ela estabelecidos – como também a continuidade das atividades industriais, mediante permissão provisória. Logo, embora se sustente que a postura da empresa tenha gerado um incremento no risco para o resultado materializado nos menores, certo é que as medidas então adotadas encontravam-se em perfeita consonância como as determinações administrativas competentes. Desta forma, surge o conflito, pois embora subsista a causalidade natural do evento, tem-se por prejudicada sua causalidade típica, pois não há como desvalorar uma conduta que se encontra em harmonia com as regras do sistema jurídico.
DA INEXISTÊNCIA DE IMPUTAÇÃO OBJETIVA PELO FATO DE O RESULTADO PRODUZIDO NÃO ESTAR AMPARADO PELO FIM DE PROTEÇÃO DA NORMA DE CUIDADO
O dever objetivo de cuidado exigido dos réus consistia na correta destinação ou armazenamento de resíduos sólidos derivados da produção de ferro gusa (moinha de carvão), até porque a inobservância deste dever permitiu a realização dos trágicos resultados apurados nas vítimas. Contudo, muito embora se tenha demonstrado que este dever objetivo fora cumprido de forma adequada e tolerável pelos órgãos competentes, vê-se que o destinatário do cuidado objetivo não eram as vítimas menores, mas sim a qualidade do meio ambiente como um todo. Pedindo vênia aos que entendem em contrário, tenho que a orientação traçada pelas normas administrativas destinavam-se ao resguardo do meio ambiente contra possíveis danos a serem causados à coletividade, v.g., a poluição do lençol freático da região. Logo, se o resultado fatídico apurado não se encontrava no fim imediato de proteção da norma de cuidado, impossível se mostra à imputação, sob pena de se resgatar o temível versari in re ilicita.
DA INEXISTÊNCIA DE IMPUTAÇÃO OBJETIVA PELA AUTOCOLOCAÇÃO DA VÍTIMA NA SITUAÇÃO DE PERIGO
Por fim, tenho que a imputação do resultado se mostra prejudicada, pois patente no caso em tela que as tenras vítimas se autocolocaram na situação de risco. Objetivando resgatar uma ‘pipa’, os menores adentraram as instalações da empresa dos apelados, vindo a sofrer as graves lesões (queimaduras e morte, respectivamente) em razão da existência de moinha de carvão no terreno da empresa. Ora, o comportamento das vítimas é que determinou a ocorrência do resultado lesivo, e não a suposta conduta omissiva dos apelados, não havendo que se falar em criação de risco por parte destes. Como verificado nas provas amealhadas, a empresa possui um muro divisório de quase três (3) metros de altura, dotado de arame-farpado em sua parte superior. Esta construção possui cerca de 1,5 Km de extensão, objetivando isolar a área da empresa da entrada de estranhos. Paralelamente à existência deste muro, o local possui placas de advertência, alertando com dizeres de ‘Perigo’ e ‘Proibida a entrada de estranhos’, contando com vigilância periódica de empresa terceirizada.
Neste ponto, oportunas se fazem em algumas considerações acerca do denominado ‘Princípio da Confiança’. Os apelados agiram segundo seu dever, procurando o isolamento da área do parque industrial, confiando que as medidas adotadas fossem suficientes a afastar os estranhos dos limites da empresa. Por sua vez, os menores infringiram o dever de respeitar a propriedade privada, embora advertidos não só pela existência das barreiras físicas (muros) e visuais (placas), como também pelas advertências verbais feitas pelos seus genitores, conforme apurado à f. 468.
Por todo o exposto, e diante das inúmeras peculiaridades do caso colocado à apreciação, entendo que a pretendida responsabilização dos apelados, com base em uma causalidade meramente naturalística, não espelha o ideal de Justiça perseguido pela sociedade e pelo Direito Penal.
Fiel a essas considerações e a tudo mais que dos autos consta, julgo parcialmente procedente o presente apelo tão-somente para, acolhendo a preliminar eriçada pelo Parquet, nos termos do art. 107, IV, do CP, declarar extinta a punibilidade dos réus H.H.B. e H.P.A.H. pelo crime de lesões corporais culposas, em tese, perpetrados contra a vítima M., por ausência de condição específica de procedibilidade da ação penal. Entretanto, entendendo que os lamentáveis acidentes somente ocorreram face dos comportamentos imprudentes das vítimas, no mérito mantenho incólume a r. sentença absolutória por seus próprios e jurídicos fundamentos. É como voto."