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União homoafetiva:

mulher pode visitar o filho biológico da ex-companheira

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Em processo sobre união homoafetiva, o TJ-RS denegou recurso interposto pela mãe biológica para negar o direito de visitas de seu filho à sua ex-companheira.

Agravo de Instrumento Nº 70018249631
Sétima Câmara Cível
Comarca de Porto Alegre
BIA (*) M.F. - AGRAVANTE
IVANI (*) M.F. - AGRAVADO


Filiação homoparental. direito de visitas.

            Incontroverso que as partes viveram em união homoafetiva por mais de 12 anos. Embora conste no registro de nascimento do infante apenas o nome da mãe biológica, a filiação foi planejada por ambas, tendo a agravada acompanhado o filho desde o nascimento, desempenhando ela todas as funções de maternagem. Ninguém mais questiona que a afetividade é uma realidade digna de tutela, não podendo o Poder Judiciário afastar-se da realidade dos fatos. Sendo notório o estado de filiação existente entre a recorrida e o infante, imperioso que seja assegurado o direito de visitação, que é mais um direito do filho do que da própria mãe. Assim, é de ser mantida a decisão liminar que fixou as visitas.

            Agravo desprovido.


ACÓRDÃO

            Vistos, relatados e discutidos os autos.

            Acordam os Desembargadores integrantes da Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em desprover o agravo de instrumento interposto, cassando a decisão liminar.

            Custas na forma da lei.

            Participaram do julgamento, além da signatária (Presidente), os eminentes Senhores Des. Luiz Felipe Brasil Santos e Des. Ricardo Raupp Ruschel.

            Porto Alegre, 11 de abril de 2007.

            DES.ª MARIA BERENICE DIAS,

            Presidenta e Relatora.


RELATÓRIO

            Des.ª Maria Berenice Dias (Presidenta e RELATORA)

            Trata-se de agravo de instrumento interposto por Bia M.F., em face da decisão da fl. 54, que, nos autos da ação declaratória movida por Ivani M.F., regulamentou liminarmente a visita da agravada ao filho Bruno (*).

            Alega que é mãe biológica de Bruno, o qual foi concebido por meio de fertilização in vitro após inúmeras tentativas para engravidar. Aduz que durante o relacionamento, ao contrário da recorrida, sempre esteve determinada em ser mãe. Destaca que, após uma série de desentendimentos, procurou sem sucesso uma terapeuta, na tentativa de reconciliação. Argumenta que após comunicar o término do relacionamento e dizer que já possuía outra companheira, a recorrida passou a apresentar comportamento agressivo, fazendo inclusive escândalos e perturbando os vizinhos. Enfatiza que todas as despesas do infante são por ela custeadas. Sustenta que a decisão ora hostilizada é suscetível de causar lesão grave e de difícil reparação, já que o relacionamento afetivo que manteve com a agravada, não traz como conseqüência jurídica o direito de visitas. Esclarece que após o término do relacionamento, como o menino estava muito próximo da agravada, permitiu que ela permanecesse em sua companhia por algumas horas durante o sábado, contudo, por orientação de uma psicóloga, não mais permitiu os encontros. Requer o provimento do recurso interposto para que seja suspenso o direito de visitas da recorrida ao infante (fls. 2-20).

            O Desembargador-Plantonista deferiu o pedido liminar (fls. 76-79).

            A parte agravada, em contra-razões, destacou a existência de um relacionamento afetivo entre as partes por um período de doze anos. Sustenta que não se pode falar em ausência de laços parentais e afetivos, uma vez que o filho foi planejado pelo casal. Pugna pelo desprovimento do recurso interposto (fls. 91-96).

            A Procuradora de Justiça opinou pelo conhecimento e desprovimento do recurso interposto (fls. 161-166).

            É o relatório.


VOTOS

            Des.ª Maria Berenice Dias (presidenta e RELATORA)

            Pretende a recorrente reformar a decisão que, nos autos da ação de reconhecimento e dissolução de união homoafetiva cumulada com reconhecimento de filiação socioafetiva e regulamentação de visitas ajuizada pela agravada.,fixou visitas ao infante nos sábados das 14h às 18h, em finais-de-semana alternados (fl. 59),

            As litigantes mantiveram união homoafetiva por mais de doze anos e no oitavo ano da união resolveram ter um filho. O infante foi concebido por meio de fertilização in vitro, concretizada por meio de doação de esperma de um amigo do casal.

            O menino Bruno conta, atualmente, quatro anos de idade (fls. 60). Embora seu registro de nascimento conste apenas o nome da mãe biológica, patente que no seu histórico de vida e na sua formação psicológica encontram-se manifestados o afeto sentido pelos carinhos por Ivani, a quem o infante chama carinhosamente de "Ive".

            Na própria capa da filmagem do nascimento do infante encontram-se a genitora e a recorrida (fl. 105).

            No filme do nascimento de Bruno, juntado nas fls. 107, é que a filiação homoparental mais se evidencia. A agravada ficou ao lado da recorrente durante todo o parto. Logo após o nascimento, enquanto o menino ainda chorava, Ivani começa a contar-lhe uma história (que, segundo ela, contava junto à barriga da agravante durante a gestação – fl. 106) e este imediatamente pára de chorar. Em seguida, quem mostra Bruno aos familiares é Ivani. Correspondência eletrônica enviada pela recorrente a uma amiga, comunicando o nascimento do menino, está assinado: Bia, Ive e Bruno (fl. 114).

            Assistir a fita não permite que se tenha qualquer dúvida da função materna exercida pela agravada, desde antes do nascimento de Bruno. Segundo os atuais estudos médicos, ainda no ventre, o filho ouve a voz dos pais, daí a recomendação para que eles conversem com seus filhos, mesmo antes do nascimento. Esta verdade resta evidenciada na filmagem, pois se acalmou o bebê ao ouvir a história que lhe contava a agrava antes de ter nascido.

            A recorrida participou de todos os momentos da vida do infante, desde as consultas da recorrente ao obstetra até as consultas pediátricas, conforme atestados juntados nas fls. 109-110. A prova é farta a evidenciar o dia-a-dia da família, passeando com o menino (fl. 98), em momentos de afetividade familiar (fl. 99), em viagens (fl. 101), comemoração de Natal (fl. 103) e nos aniversários (fl. 97, 100, 102). Em todos esses momentos lá estava a recorrida dedicando ao filho atenção, cuidado e afeto, participando ativamente na sua formação e desenvolvimento. Ivani ficava em companhia do infante inclusive quando a recorrente viajava a trabalho, conforme trechos de correspondências eletrônicas trocadas à época (fl. 128):

            (...) Sabe que te amo. Estou sentindo muito a tua falta. Conta p o bruno q perdi o vôo. Te amo.

            Ao contrário do alegado pela recorrente, comprovada está a contribuição de Ivani, não apenas afetivamente, mas também, de forma financeira, como por exemplo, com o pagamento do teste do pezinho (fl. 144), das vacinas (fls. 145-148) e inclusive do quarto do menino (fl. 149)

            Certo é que ambas abriram mão de projetos e horas de trabalho para constituírem uma família e passaram a conviver de forma mais próxima com o infante. Evidenciada está também a colaboração da recorrida, na formação psíquica do menino e, embora não sendo a mãe biológica, é sua mãe afetiva, estado de filiação que vem sendo prestigiada cada vez mais pela Justiça.

            Ao depois, consabido que o rompimento do vínculo de convívio, com quem a criança entretém estrito vínculo afetivo, pode gerar seqüelas de ordem psicológica. O sentimento de perda e abandono ao certo irá comprometer seu desenvolvimento saudável. O direito de visita é muito mais um direito do filho do que de qualquer de seus genitores. Assim, nada justifica a resistência da recorrente em afastar o filho de conviver com aquela que ele também considera sua mãe. Aliás, as visitas foram fixadas de forma muito acanhada, e a negativa da mantença do vínculo afetivo sugere simples sentimento de vingança.

            Ora, em tempos que a afetividade tornou-se uma realidade digna de tutela, não pode o Poder Judiciário afastar-se da realidade dos fatos. Como bem diz Giselda Hironaka, mudam os costumes, os homens e a história, só não muda a atávica necessidade de cada um de saber que, em algum lugar, se encontra o seu porto e seu refúgio, vale dizer o seio de sua família. (Família e casamento em evolução. Direito Civil: estudos. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 21).

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            Esta Câmara, que foi a pioneira no Brasil a admitir a adoção homoafetiva, não pode deixar de reconhecer que o vínculo de filiação, independente do sexo dos genitores, gera todos os deveres, mas também assegura todos os direitos decorrentes do poder familiar. Certamente o direito/dever de maior significado é o de convivência, que não pode ser excluído pela separação dos genitores.

            Assim já me manifestei no meu artigo Paternidade homoparental (disponível em www.mariaberenice.com.br – sem destaque no original):

            A paternidade é reconhecida pelo vínculo de afetividade, fazendo nascer a filiação socioafetiva. Ainda segundo Fachin, a verdadeira paternidade não é um fato da Biologia, mas um fato da cultura, está antes no devotamento e no serviço do que na procedência do sêmen.

            Se a família, como diz João Baptista Villela, deixou de ser unidade de caráter econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, o que imprimiu considerável reforço ao esvaziamento biológico da paternidade, imperioso questionar os vínculos parentais nas estruturas familiares formadas por pessoas do mesmo sexo.

            Não se pode fechar os olhos e tentar acreditar que as famílias homoparentais, por não disporem de capacidade reprodutiva, simplesmente não possuem filhos. Se está à frente de uma realidade cada vez mais presente: crianças e adolescentes vivem em lares homossexuais. Gays e lésbicas buscam a realização do sonho de estruturarem uma família com a presença de filhos. Não ver essa verdade é usar o mecanismo da invisibilidade para negar direitos, postura discriminatória com nítido caráter punitivo, que só gera injustiças.

            Sendo notório o estado de filiação existente entre a recorrida e o infante, imperioso ser assegurado o direito de visitação, sendo este um direito do filho. Assim, deve ser mantida a decisão que fixou liminarmente visitas ao infante Bruno nos sábados das 14h às 18h, em finais-de-semana alternados, de modo muito restrito, e que só não vai majorado por ausência de recurso da mão Ivani.

            Por tais fundamentos, o desprovimento do agravo se impõe, desconstituindo-se a decisão liminar proferida nesta sede.

            Des. Luiz Felipe Brasil Santos - De acordo.

            Des. Ricardo Raupp Ruschel - De acordo.

            DES.ª MARIA BERENICE DIAS - Presidente - Agravo de Instrumento nº 70018249631, Comarca de Porto Alegre: "DESPROVERAM. UNÂNIME."

            Julgador(a) de 1º Grau: GLADIS DE FATIMA FERRAREZE


          * Nota do Editor

          Os nomes das partes foram substituídos por nomes fictícios.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL,. União homoafetiva:: mulher pode visitar o filho biológico da ex-companheira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1394, 26 abr. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/16763. Acesso em: 19 abr. 2024.

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