III – A conduta da representada face a norma legal
Primeiramente, da percuciente análise dos fatos e da prova dos autos, é evidente, desde logo, que a dirigente/representada descumpriu e deixou de observar, deliberadamente, as seguintes normas:
a)princípio da proteção integral, previsto no artigo 227 da CF e artigo 4º do ECA, que estabelece a primazia em favor das crianças e adolescentes em todas as esferas de interesse. Tal princípio não comporta indagações ou ponderações sobre o interesse a tutelar em primeiro lugar, já que a escolha foi realizada pela criança através do legislador constituinte. Leva em conta também a condição de pessoa em desenvolvimento, pois a criança e o adolescente possuem uma fragilidade peculiar de pessoa em formação, correndo reais riscos que os adultos, por exemplo. A prioridade deve ser assegurada por todos: família, comunidade, sociedade em geral, Poder Público. A primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, assegurada a crianças e adolescentes é a primeira garantia de prioridade estabelecida no parágrafo único do art. 4º da Lei n. 8069/90. Na prestação de serviços públicos e de relevância pública, crianças e jovens também gozam de primazia. Sob este ângulo de visão, a representada simplesmente "sepultou" a garantia da proteção integral, tão arduamente conquistada;
b)o melhor interesse, princípio orientador tanto para o legislador como para o aplicador, determinando primazia das necessidades da criança e do adolescente como critério de interpretação da lei, deslinde de conflitos, ou mesmo para elaboração de futuras regras. Assim, na análise do caso concreto, acima de todas as circunstancias fáticas e jurídicas, deve pairar o princípio do melhor interesse, como garantidor do respeito aos direitos fundamentais titularizados por crianças e jovens. Indispensável que todos os atores da área infanto-juvenil tenham claro para que si que o destinatário final de sua atuação e a criança e o adolescente. Para eles é que se tem que trabalhar. É o direito deles que goza de proteção constitucional em primazia, ainda que colidente com o direito da própria família. É, pois, o norte que orienta todos aqueles que se defrontam com as exigências naturais da infância e juventude. Materializá-lo é dever de todos. A representada, pelo visto, também feriu de morte tal princípio, quando descumpriu e obstaculizou a ação do Conselho Tutelar na proteção dos direitos das crianças, fazendo prevalecer interesses pífios, secundários, menores e burocráticos;
c)ofendeu direitos fundamentais dos infantes, pois com tal conduta, a dignidade humana de cinco (5) crianças foi postergada. Negou-se-lhes o direito ao abrigo, na exata acepção da palavra. Depois, à alimentação e à saúde. Naquela noite tenebrosa para as crianças, proporcionada pela representada (como mandante) e pela servidora/enfermeira (como executora), além do abandono e da vulnerabilidade social causados pelos genitora, ainda foram vítimas da insensatez, do descaso e do menosprezo do Estado, principal ator e executor da decantada proteção integral e, pasmem – pelo celular! Os menores, ante a recusa da representada, precisando de atendimento médico e com fome, foram literalmente sentenciados a "dormir" nas dependências do Conselho Tutelar, no chão e com pouco alimento, pela irresponsabilidade da representada. Que pobres crianças: abandonadas pelos genitores e rejeitadas pelo Estado. A repulsa a essa insanidade é inevitável!;
d)o art. 5º do ECA: "Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou imissão aos seus direitos fundamentais". A negligência, a violência psicológica e a opressão são patentes, que nem precisam de maiores esclarecimentos (art. 15, ECA);
e)violação a integridade física, psíquica e moral das crianças (art. 17, ECA);
f)deixou de zelar pela dignidade das crianças e não os colocou a salvo de tratamento desumano e vexatório e constrangedor (art. 18, ECA), quando poderia muito bem fazê-lo. Sem dúvida é desumano, vexatório e constrangedor permitir-se que os infantes passassem a noite no chão do Conselho Tutelar;
g) descumpriu o preceito contigo no art. 70 do ECA, sujeitando-se à responsabilidade pessoal;
h) dever de acolhimento dos menores (inc. IV do art. 90, ECA) e, por fim,
i) descumprimento de legítima requisição de acolhimento das crianças por membros do Conselho Tutelar, ex vi da autorização legal prevista no inciso I, do art. 136 c/c o inciso VII do art. 101, do ECA.
Foi em razão de tão graves fatos que a representada foi afastada liminarmente da função de Gerente do espaço de acolhimento, por decisão por mim proferida nos autos do processo nº ___________.
Com efeito, nada obstante o entendimento doutrinário e jurisprudencial, sobre a quem se aplicaria a sanção prevista no artigo 249 do ECA, ou seja, apenas aos pais, tutores e guaidãos, ouso discordar, ao fundamento de que a parte final do dispositivo não se refere claramente que a determinação da autoridade judiciária ou do Conselho Tutelar deva ser dirigida àquelas pessoas.
O dispositivo em comento, ao meu sentir, por não dizer expressamente que a determinação seria aquela dirigida aos pais, tutores e guardiãos, apenas com relação aos deveres inerentes ao poder familiar, leva-me a interpretar a lei de forma diferenciada e mais apropriada ao caso concreto, missão que é constitucionalmente afeta ao Poder Judiciário, na qualidade de legítimo e único intérprete do direito positivo. Onde a lei não restringiu, não cabe ao intérprete fazê-lo.
O sentido normativo que emerge da lei também visa alcançar o descumprimento de toda e qualquer determinação da autoridade judiciária e do Conselho Tutelar quando estes têm por finalidade resguardar, garantir e assegurar a efetivação de algum(ns) dos direitos da infância e da juventude, vítimas, in casu, de vulnerabilidade social, tendo em vista o princípio constitucional da proteção integral e da prioridade absoluta.
Esta é a exegese que se deve extrair do dispositivo legal face às normas e princípios inseridos na Constituição Federal e que bem se amolda ao caso concreto e lhe dá a justa solução, sob pena de se estar cometendo um mal maior do que o fora praticado pela requerida!
Como disse alhures, todo o arcabouço jurídico que envolve a proteção aos direitos da criança e dos adolescentes, tem que ser interpretado levando-se em conta a efetivação daquela proteção integral, a prioridade absoluta daquelas pessoas em desenvolvimento e, principalmente, a dignidade da pessoa humana. É com esse viés que a norma do artigo 249 do ECA deve ser interpretada. A mudança desse paradigma é urgentíssima!
De outra banda, não vislumbro nenhum conflito aparente entre os princípios da legalidade e o da proteção integral ou o da prioridade absoluta, até porque, a rigor, não existem conflitos entre princípios constitucionais, antes, há uma perfeita integração entre eles ou mesmo uma complementariedade.
No caso dos autos, valendo-me do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade; do livre convencimento responsável do juiz; da supremacia absoluta da Constituição Federal; da interpretação que tem por escopo a efetividade dos direitos fundamentais; que a sentença é o resultado da interpretação dinâmica dos fatos à luz dos valores, princípios e regras jurídicas, a ser desenvolvida pelo juiz, não seguindo uma lógica formal (produto de um raciocínio matemático ou silogístico) nem com o intuito de se criar um preceito legal casuístico e dissociado do ordenamento jurídico, mas, dentro das amplas molduras traçadas pela Constituição, permitir, mediante a valoração específica do caso concreto, à solução mais justa dentre as possíveis; a supremacia dos princípios sobre as normas e que só o caso concreto tornará possível pela argumentação jurídica, dizer o que deve ser entendido por dignidade humana e qual será seu conteúdo e significado na resolução do conflito entre direitos contrapostos etc, é evidente que devem prevalecer os princípios da proteção integral, da prioridade absoluta e, em última análise, o próprio princípio da dignidade da pessoa humana, este, como ideal de todo Estado Democrático de Direito, base de todos os direitos constitucionais consagrados.
A optar-se pela interpretação contrário, qual seja o entendimento de que a norma não se aplica a conduta da representada, estar-se-ia, literalmente, a legalizar e a conceder "ares de licitude" a uma conduta por demais ofensiva a vários princípios e preceitos legais previstos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, como já exaustivamente declinado nesta decisão, cedendo lugar à instauração do caos, que não ajudaria em nada a própria efetivação dos direitos de que são credores aquelas pessoas em desenvolvimento e totalmente incapazes de esboçar qualquer defesa ou reação, sendo correta a assertiva de que não pode haver recusa a requisição de acolhimento do Conselho Tutelar quando em caráter emergencial e excepcional. Tanto é assim, que as crianças, mesmo com as alegações de falta de espaço e de superlotação, foram devidamente acolhidas após ter sido por mim determinado.
O certo, portanto, com apoio em todos os ensinamentos e argumentos doutrinários citados, é que a conduta da representada foi típica, pois se enquadra perfeitamente no artigo 249 do ECA, parte final, vez que, descumpriu dolosamente determinação formal de acolhimento institucional de cinco (5) crianças, emanada do Conselho Tutelar (artigo 93; inciso I, do art. 136 c/c o inciso VII do art. 101, do ECA), o que em tempo algum e sob qualquer motivo poderia fazer! A prioridade absoluta e a proteção integral não permitem...
Ademais a representada confessou, as testemunhas confirmaram e os documentos que se encontram nos autos corroboram tal assertiva.
Antes de encerrar, entretanto, cabe a este magistrado deliberar e decidir sobre a preliminar arguida pela requerida.
Aduziu ela que o citado espaço é uma unidade administrativa ligada a Secretaria de Estado e, por isso, caberia à Procuradoria Geral do Estado do Pará defendê-la e também figurar no polo passivo. Nada mais inconcebível do que isto. É lógico que a infração administrativa é dirigida a pessoa física do agente e somente ele pode prestar contas de sua conduta, na forma do artigo 192 do ECA. Assim, a preliminar deve ser rejeitada.
Quanto às outras arguições expendidas pela Gerente daquele espaço de acolhimento, estas, em confronto com as provas dos autos e a fundamentação desta sentença, também devem ser totalmente rejeitadas, o que faço agora.
IV – Aplicação da pena de multa
Considerando que é cediço que o réu em processo judicial se defende de fato(s) conforme narrado(s) na inicial (representação) e não da tipificação atribuída a ele(s), o que não ofende os princípios do contraditório e da ampla defesa, nestes autos, da negativa de acolhimento institucional de cinco (5) crianças, forçoso reconhecer a ocorrência de cinco infrações administrativas praticadas pela requerida, correspondente ao número de infantes rejeitados.
No que diz respeito a dosimetria da pena pecuniária, sendo a requerida primária, creio que deva ela permanecer no mínimo legal.
V – Conclusão
Pelo exposto e o mais que dos autos consta, JULGO PROCEDENTE a representação de fls., para, em consequência, aplicar a requerida _______ a multa correspondente a três (3) salários mínimos vigentes no País, por cinco (5) vezes, ou seja, uma para cada acolhimento requisitado e não atendido, corrigida monetariamente e com juros, até a data de seu efetivo pagamento, devidamente recolhidas ao Fundo Municipal gerido pelo CMDCA, por infração ao artigo 249 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Sem custas e honorários.
P. R. I. C.
Icoaraci, de agosto de 2010
ANTÔNIO CLÁUDIO VON LOHRMANN CRUZ
Juiz Titular da 3a. Vara Cível Distrital de Icoaraci – Infância e Juventude
NOTAS
MACIEL, Kátia regina Ferreira Lobo Andrade (Org.) et al. Curso de Direito da Criança e do Adolescente – Aspectos Teóricos e Práticos, 2a. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen, 2007, p. 393 a 396.
DIDIER JR, Fredie (Org.) et al. Teoria do Processo – Panorama Doutrinário Mundial, vol. 2. Salvador: Editora Jus Podivm, 2010. p. 137 a 147
MARCATO, Ana; DIDIER JR (Org), p. 47 e 48
ÁVILA, Humberto. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. I n. 4, julho, 2001. Disponível em: <https://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 24 de maio de 2010.
________________. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 11, setembro/outubro/novembro, 2007. Disponível em: <https://www.direitodoestado.com.br/rere.asp>. Acesso em: 24 de maio de 2010.
CAMBI, Eduardo. Panótica, Vitória, ano 1, n. 6, fev. 2007, p. 1-44. Disponível em: <https://panotica.org>. Acesso em: 24 de maio de 2010.