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Gerente de abrigo é condenada por recusar atendimento a crianças resgatadas pelo Conselho Tutelar

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Em razão de denúncia de abandono, cinco crianças foram retiradas de seu lar e conduzidas por conselheiros tutelares a uma unidade pública de acolhimento, mas a gerente do espaço se recusou a recebê-las, alegando necessidade de ordem judicial. Denunciada, foi condenada pela Justiça pela infração administrativa do art. 249 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que se entendeu aplicável não somente aos pais, mas a toda a sociedade.

Processo nº.

AUTOS DE INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA

Representante: Conselho Tutelar do Bengui e de Outeiro

Representada:Gerente do Espaço de Acolhimento

O Direito contemporâneo deve ser entendido como o resultado da interpretação normativa aplicada ao caso concreto, donde se pode concluir que para cada fato existe um sentido próprio da lei, único e exclusivo, que porá fim ao litígio, fazendo eclodir a verdadeira Justiça. (N.A.)


SENTENÇA

Tratam os autos de representação formulada pelos senhores E. e A., respectivamente, Conselheiros Tutelares, com suporte no artigo 136, inciso III, alínea b do ECA, contra a Gerente do Espaço de Acolhimento.

Em síntese, aduziram os representantes que no dia___de___ de 2010, por volta de ___ horas, lhes foram apresentadas no Plantão dos Conselhos Tutelares, ___ neste Distrito, por uma guarnição do CIEPAS II, as crianças E. (DN ____ – 6 anos); L. (DN ____ – 4 anos); e os trigêmeos L., L. e L. (DN _____ – 2 anos), filhos de ____ e de ____, que residem no Conjunto __ Coqueiro, Belém.

Segundo o relato, as crianças teriam sido encontradas sob a responsabilidade de dois adolescentes de nome E. (15 anos) e A. (14 anos) e que a genitora mantém relacionamento afetivo com aquele. No local, teria sido constatada a negligência da mãe para com os filhos. A adolescente A. referiu, inclusive, que passam fome e quem são maltratadas. As crianças estavam sujas, maltrapilhas, com fome; os trigêmeos estavam com diarreia e todas as crianças apresentavam feridas pelo corpo, além de aparente estado de desnutrição. A criança L. referiu que "apanha" da mãe, do padrasto adolescente e que A. também é agredida por E.

A Conselheira E. recebeu as crianças e repassou a situação para as conselheiras E. e S., que estavam assumindo o plantão.

A genitora não foi mais encontrada na residência e as crianças nada referiram acerca de existência de outros parentes.

Os infantes foram levados ao Abrigo ____ e no local foram atendidas pela enfermeira L., que recusou recebimento delas porque "haviam mudado as normas" (sic) para o acolhimento. Mesmo após ter argumentado com a servidora, não foram atendidas. Na oportunidade, S. saiu para levar a adolescente A. para a Casa de Passagem, enquanto E. permaneceu no local com as crianças.

Em ato contínuo, a enfermeira do espaço entrou em contato com a gerente e a mesma confirmou que não receberia as crianças porque seria necessário um estudo de caso do Conselho Tutelar e que fosse feito o levantamento da rede parental das crianças, o que não poderia ser feito, pois ali estavam cinco crianças famintas e necessitando de descanso, isto por volta de 22:30 horas, e que já haviam estado na residência delas.

Após a interferência do Conselheiro M. da Casa de Passagem, novamente foram as crianças rejeitadas pela enfermeira, que se recusou a assinar o documento.

Em novo contato com a gerente, as crianças foram novamente rejeitadas, ao argumento de que estava respaldada na nova lei de adoção e que precisava de um pedido do Juiz para o abrigamento (sic).

Infelizmente, não tendo outra opção, ante a recusa do acolhimento pela gerente, as crianças passaram a noite inteira no interior do Conselho Tutelar, tendo aquela orientado sua funcionária a não assinar a requisição.

O fato foi registrado na Seccional de Icoaraci, primeiramente, pelo abandono das crianças e também pelo descumprimento injustificado da requisição por parte da diretora do abrigo.

Por volta de 2 horas da manhã, estiveram na residência da genitora e não a encontraram.

O Conselheiro M., pelo celular da instituição, de novo, falou com a gerente, relatando os novos fatos, obtendo nova recusa, já agora porque o CIEPAS não poderia ter trazido as crianças; porque não tinha documentos etc, entre outros absurdos.

Conclusão: "As crianças permaneceram no Conselho Tutelar com muita dificuldade..."

Por derradeiro, disseram, ainda, que "em de de 2010, por volta das 12:00 horas, novamente recebemos a criança, de nome E., o qual foi trazida pela guarnição do CIEPAS em virtude de estar sozinha em sua residência" e que a sua genitora é usuária de drogas. A criança foi abrigada no Lar da Tia Socorro, haja vista que eram 17:30 horas e pelo fato de nova recusa da gerente e para evitar que tivesse que fazer nova peregrinação em busca de um local para que a criança pudesse ter seus direitos garantidos.

Através do despacho de fls. 06 determinei a juntada de cópia autêntica do Ofício nº /2010-CT VII, de ___, com os documentos acostados, bem como cópia dos autos de situação de risco nº _____ requerido pelo MPE, envolvendo as crianças citadas, o que consta das fls. 07 a 45.

A requerida foi devidamente notificada às fls. 47 e ofereceu resposta escrita.

Em sua defesa (fls. 49/54), a representada, sem advogado, arguiu, preliminarmente, que o espaço de acolhimento é uma unidade administrativa vinculada a Secretaria de Estado, órgão integrante da Administração Direta do Poder Executivo do Pará, criada pela Lei nº 7028/2007 e que, por isso, deveria ser notificada a Procuradoria Geral do Estado do Pará. No mérito, confirmou a Sra. Gerente/representada que recebeu uma ligação via celular da instituição às 22h45min da Técnica de Enfermagem N. informando que lá estavam cinco (5) crianças que foram apresentadas pela Conselheira E. para abrigamento e que estavam seminuas, sujas e com fome. Prosseguindo, disse que conversou com a conselheira pelo telefone e explicou a ela que precisava de mais informações para o acolhimento entre outras admoestações. Afirma que explicou a ela as novas regras para o acolhimento institucional trazidas pela Lei nº 12.010/2009, advertindo para que ela trouxesse por escrito o motivo que justificasse a retirada das crianças da família pelos policiais do CIEPAS e que depois também falou com o conselheiro M., que alegou não ser de sua competência tal procedimento. Já por volta de 3 horas do dia ____, o conselheiro lhe telefonou para dizer que esteve no endereço da mãe e não a encontrou, ao que lhe respondeu, que somente com o relatório da situação constando o endereço completo da responsável, receberia as crianças. Concluiu que no dia __ de ______ de 2010 as crianças foram acolhidas por ordem judicial; que já estava providenciando o necessário estudo social; que talvez tenha agido com excesso de cautela; que o espaço estava superlotado naquele dia e que realmente as crianças já tinham passagem anterior de acolhimento em 2008. Ao derradeiro, entendendo que as crianças já estavam acolhidas, pediu a extinção do feito pela perda do objeto, deixando de arrolar qualquer documento.

Instrução e julgamento às fls. 55 a 60 e 65 a 68.

Alegações finais da requerida às fls. 70 a 73, onde, ao contrário de sua "defesa" inicial, já arguiu que o motivo do não-acolhimento teria sido a superlotação naquele dia e que estavam em obras, pugnando, por derradeiro, pela improcedência da representação.

O representante do Ministério Público Estadual, nas fls. 74 a 76, manifestou-se pela procedência da representação por infração ao artigo 249 do ECA.

A requerida é primária.

É o relatório. Decido.

Tratam os autos de apuração de infração administrativa prevista no artigo 249 do ECA, consubstanciada na negativa de acolhimentos institucionais de cinco (5) menores, requisitados pelo Conselho Tutelar, no dia ___ de ____ de 2010, para o espaço de acolhimento, por parte de sua Gerente.


I – Algumas considerações preliminares

Com apoio no magistério de Patrícia Ramos (1), observo:

Daniel Ferreira, ao conceituar as infrações administrativas, nos traz a seguinte definição: 'comportamento voluntário, violador da norma de conduta que o contempla, que enseja a aplicação, no exercício da função administrativa, de uma direta e imediata consequência jurídica, restritiva de direitos, de caráter repressivo'.

Na definição clássica de Hely Lopes Meirelles, 'poder de polícia é a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado.' (…)

Pode-se afirmar, assim, que infrações administrativas são condutas contrárias a preceitos normativos que estabelecem uma ingerência do Estado na vida do particular, seja pessoa física ou jurídica, com vistas à proteção de interesses tutelados pela sociedade, com sanções de cunho administrativo, ou seja, restritivas de direitos mas não restritivas de liberdades, geralmente importando num pagamento de uma multa pecuniária, suspensão do programa ou da atividade, fechamento de estabelecimento, apreensão do material inadequado ou simples advertência.' (…)

Logo, acontecendo determinado ato ou fato deve ocorrer determinada consequência prevista, sob pena de sanção. Depreende-se ser a sanção nada mais que uma consequencia destinada a um sujeito em função de uma atitude de descumprimento da conduta esperada perante o ordenamento jurídico.

O objetivo das sanções, tanto criminais como administrativas, é intimidar potenciais infratores (prevenção geral) e punir aquele que descumpriu o mandamento normativo, para que não rescinda (prevenção especial). (…)

As infrações administrativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, dessa forma, são expressão do poder de polícia do Estado. (…)

Assim, as infrações administrativas previstas nos artigos 245 a 258 do Estatuto da Criança e do Adolescente têm natureza administrativa, mas, (…) o procedimento de apuração das mesmas é formalmente judicial (arts. 194 a 197 do Estatuto), de natureza contenciosa, aplicando-se subsidiariamente as normas gerais previstas na legislação processual (art. 152), sendo obrigatoriamente submetido ao julgamento do Juiz da Infância e Juventude, que, ao acolher a pretensão estatal, aplicará as sanções cabíveis, no exercício de uma função híbrida: jurisdicional e administrativa.

Ainda com respaldo da insigne articulista (2007, p. 396), sobre os princípios gerais das infrações administrativas, importante ressaltar que, de modo geral, são eles os próprios do direito administrativo, tangenciando o direito penal e o direito processual. Especificamente, contudo, de forma concisa, devem ser observados os seguintes:

a) PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL, previsto no artigo 227 da CF e artigo 1º do ECA. Tendo em vista tal mandamento, as infrações administrativas devem ser interpretadas no sentido de resguardar ao máximo a intenção do legislador de proteger as pessoas humanas em desenvolvimento. O princípio exige que tanto a família, quanto a sociedade e o Estado zele pelos direitos e cuidados inerentes à formação de crianças e adolescentes, estando ou não em situação de risco pessoal ou social. Impõe, por fim, que sejam as infrações administrativas interpretadas de forma a resguardar os interesses de crianças e adolescentes de maneira sistematizada e completa;

b) PRINCÍPIO DA PRIORIDADE ABSOLUTA, contido no artigo 227 da CF e artigo 4º do ECA. Significa dizer que os interesses de crianças e adolescentes estão acima de quaisquer outros interesses e devem ser tratados com absoluta prioridade, seja pela família, pela sociedade ou pelo próprio Estado, conforme previsão constitucional explícita. Havendo, pois, conflito de interesses, deve prevalecer os das crianças e adolescentes, por serem prioritários;

c)PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. A infração administrativa deve sempre estar prevista em lei, pois se trata de restrição a liberdades e direitos individuais, inclusive com aplicação de pena. Está sob o manto da reserva legal (incisos II, XXXIX e XLVI, do artigo 5º da CF). A definição do fato como infração administrativa e a pena a ele cominada decorre somente da lei, daí resultando que elas não podem ser criadas por decreto, regulamento ou portaria, esta, nem que seja expedida pelo Juiz da Infância e da Juventude;

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Nesse diapasão, devo anotar que, não obstante o princípio citado, existem infrações administrativas previstas em lei que são complementadas por outros atos normativos, sendo o que ocorre, p. ex., com a prevista no artigo 252 do ECA que remete o intérprete ao "certificado de classificação", documento elaborado pelo Ministério da Justiça (vide ainda os dos artigos 258 e 149 do ECA).

O fato leva-nos à distinção entre interpretação extensiva ou analógica e a analogia. A interpretação extensiva não fere o princípio da legalidade, pois é a própria lei que determina a extensão de seu conteúdo para casos analógicos. A própria lei pretende que a ausência de previsão legislativa seja suprida pela analogia (arts. 247, 253, 250, 255 e 256). Contudo, a analogia se utiliza e aplica um conteúdo de uma lei a casos não abrangidos por ela, para suprir lacunas. A diferença, pois, reside na voluntas legis.

d) PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS. Emerge das regras gerais do direito administrativo, onde há a presunção de legitimidade do ato administrativo em favor da Administração Pública. Logo, legítimo o auto lavrado por agente público no exercício de suas funções;

e) PRINCÍPIO DA OBJETIVIDADE. Significa dizer que, para configuração da infração administrativa, não se deve exigir a ocorrência de dolo ou culpa, salvo quando a própria lei dispõe o contrário. Em razão da objetividade as infrações administrativas não admitem tentativa. A única infração que exige o elemento subjetivo é a prevista no artigo 249 do ECA;

f) PRINCÍPIO DA INDEPENDÊNCIA DAS SANÇÕES ADMINISTRATIVAS. As sanções administrativas independem entre si, como também são independentes das sanções penais e civis eventualmente existentes. Um mesmo fato pode representar um crime, uma infração administrativa e ainda gerar o dever de indenizar o dano cometido. Não há bis in idem;

g) PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE (art. 5º, incisos XXXIII e XXXIV e no art. 37 da CF);

h) PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. Decorre do art. 5º, incisos LIII e LIV da CF. Somente a autoridade competente pode punir o infrator, respeitado o devido processo legal. O procedimento para apuração é o previsto nos artigos 194 e 197 do ECA;

i)PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. Assegurasse ao infrator, por força do inciso LV do art. 5º da CF, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos necessários a eles inerentes.

Com relação à multa, tanto a doutrina quanto a jurisprudência são uníssonas no sentido de que ela deve ser fixada em moeda corrente correspondente ao valor do salário mínimo da data da sentença, corrigido monetariamente e com juros até a data do efetivo pagamento (RE nº 396883-1, STF, DJ 04.05.04), devidamente recolhida ao Fundo Municipal gerido pelo CMDCA (Resp. 564.722-ES; Resp. 2003/0125821-7, j. em 21.10.04, STJ).


II – O tipo do artigo 249 do ECA

Diz a representação que a requerida infringiu o disposto no artigo 249 do ECA, vazado nos seguintes termos:

Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres inerentes ao poder familiar ou decorrentes de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar. (sublinhei)

O núcleo do tipo, como está claro, se revela no descumprimento dos deveres do poder familiar (pais), tutela (tutores) ou guarda (guardiãos), ou determinação judicial ou do Conselho Tutelar.

Exige, ainda, ao contrário de todas as outras infrações do ECA, o elemento subjetivo do agente, consubstanciado no dolo ou culpa.

Resta-me, assim, colher elementos dos autos para a devida aplicação do direito posto e do sentido legal que deve ser extraído da norma, com a necessária e a devida aplicação dos princípios que norteiam o Direito da Infância e da Juventude.

Antes, porém, por interessar profundamente à boa exegese da lei, devo trazer à colação a importante lição do processualista Dhemis Cruz Madeira (2), in verbis :

Hodiernamente, os operadores jurídicos brasileiros se deparam com um sério dilema, qual seja, o de interpretar e aplicar leis infraconstitucionais ultrapassadas e que foram, em sua maior parte, confeccionadas antes do atual modelo democrático-constitucional.

(grifei) (…)

Na atualidade, o texto constitucional tem a função de abrigar e proteger, normativamente, as instituições jurídicas soerguidas pela vontade popular. Com isso, pode-se dizer que a Constituição estampa co-instituições jurídicas, abrigando também institutos e princípios, articulando-os entre si, fazendo com que ditas figuras, em decorrência de sua elevada posição normativa e hierárquica, sirvam de parâmetro para outras instituições, institutos, princípios e regras previstas nas leis infraconstitucionais. No atual modelo deve o intérprete saber que o ordenamento jurídico é um todo e que a leitura de um texto de lei passa, impreterivelmente, pela lupa constitucional. (grifei) (…)

Não obstante as diversas definições de norma jurídica, no atual sistema, mostra-se mais acertado compreendê-la como gênero do qual são espécies as regras e os princípios. Daí o porquê de, na atualidade, falar-se em normas-disposições (regras jurídicas) e normas-princípios (princípios jurídicos).

A norma jurídica é aquela que abriga a logicidade do sistema jurídico, fixando os padrões hermenêuticos de licitude que, por sua vez, em nosso sistema, só pode ser extraído interpretativamente do texto normativo (lei).

Por esse prisma, tanto as regras, quantos os princípios delineados constitucionalmente possuem características normativas e de imperatividade no sistema.

Segundo tal raciocínio, após a lição de Rosemiro Pereira Leal, pode-se falar que os direitos fundamentais, que também possuem caráter normativo e vinculante no sistema, são auto-executivos (líquidos) e infungíveis (certos). Independentemente da forma como se apresentam (como regras, princípios, instituições ou institutos jurídicos) é inequívoco que, após a observância do devido processo legal constituinte popular, tais direitos fundamentais são abraçados pelo pré-acertamento cognitivo-constitucional, daí o porquê de serem apontados como coisa julgada constituinte.

Uma vez ultrapassadas as definições dos jurisnaturalistas e dos positivistas, os princípios jurídicos, principalmente quando alçados à esfera constitucional, atuam 'como normas estruturantes do sistema e como referencial hermenêutico dos textos infra-constitucionais. (sic)

Os princípios constitucionais, vale insistir, não possuem somente uma função supletiva do direito, mas também e principalmente, uma função interpretativo-normativa.

Nesse jaez, em decorrência do Princípio da Supremacia da Constituição, as normas constitucionais (em sentido amplo) servem de parâmetro condutor e demarcador do próprio discurso normativo, não se apresentando como topoi ou fórmulas, mas, sim, como conteúdo-base do discurso normativo que se ofertam à crítica e à testificação processual irrestrita.

Destarte, ao viger uma lei (que deverá passar pela regência principiológica do devido processo legislativo), a mesma não é capaz de se auto-legitimar, razão pela qual anseia por um controle popular (discursivo e processualizado). Nessa esfera, os argumentos e alegações dialógicos são circunscritos pelas normas constitucionais, as quais traçam as bases e os limites do discurso jurídico que, no Direito Democrático, clama por um medium linguístico. (…)

Aliás, se ausente o norte constitucional, o pensar jurídico tornar-se-ia extremamente penoso numa sociedade 'sem centro', ou seja, numa sociedade pluralista em que há diversas noções de moral, ética, felicidade e bem-estar. O texto constitucional é, justamente, o articulador (não-mítico) dos objetivos comuns (falseáveis e abertos à crítica), institucionalizando os procedimentos comunicativos de construção das decisões, o que torna o discurso jurídico linguisticamente viável. (MADEIRA; DIDIER JR(Org), 2010, p. 137 a 147)

No mesmo sentido Ana Marcato (3) salienta que "a Constituição brasileira, assim como a portuguesa, adota uma sistema normativo 'aberto', ou seja, trata-se de Constituição dogmática, escrita, na qual convivem regras e princípios", concluindo que os "estudiosos são adeptos da separação qualitativa entre normas e princípios, muito embora trilhem caminhos diversos para alcançar suas respectivas conclusões." (MARCATO; DIDIER JR (Org), 2010, p. 47 e 48).

O mestre Humberto Ávila(2001, p. 21) (4), em seu renomado artigo "A Distinção entre Princípios e Regras e a Redefinição do Dever de Proporcionalidade", refere que é crescente a aplicação no Direito brasileiro do chamado "princípio da proporcionalidade", principalmente pelo Supremo Tribunal Federal em vários julgados de relevância prática.

Após discorrer sobre o princípio, arremata com a sabedoria que lhe é peculiar, que se pode definir "princípios" como

normas que estabelecem diretamente fins, para cuja concretização estabelecem com menor exatidão qual o comportamento devido (menor grau de determinação da ordem e menor generalidade dos destinatários), e por isso dependem mais intensamente de sua relação com outras normas e atos institucionalmente legitimados de interpretação para a determinação da conduta devida.

Já as "regras" podem ser definidas como

normas que estabelecem indiretamente fins, para cuja concretização estabelecem com maior exatidão qual o comportamento devido (maior grau de determinação da ordem e maior especificação dos destinatários), e por isso dependem menos intensamente de sua relação com outras normas e de atos institucionalmente legitimados de interpretação para a determinação da conduta devida.

Chama a atenção, contudo, para o que interessa não é a definição do legislador, mas a estrutura normativa da norma a ser interpretada, arrematando que

a definição de princípios como normas imediatamente finalísticas e mediatamente de conduta explica sua importância relativamente a outras normas que compõem o ordenamento jurídico. Possuindo menor grau de determinação do comando e maior generalidade relativamente aos destinatários, os princípios correlacionam-se com um menor número de normas (princípios e regras), na medida em que esses se deixam reconduzir ao conteúdo normativo dos princípios. Isso explica a hierarquia sintática e semântica que se estabelece entre princípios e demais normas do ordenamento e, consequentemente, a importância dos princípios na interpretação e aplicação do Direito. (p. 23)

Em outro trabalho intitulado "Repensando o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular" (5), o brilhante jurista Humberto Ávila também afirma que

a norma é o conteúdo de sentido de determinada prescrição normativa, em função do qual é delimitado o que um dado ordenamento jurídico determina, proíbe ou permite. A norma-princípio tem fundamento de validade no direito positivo, de modo expresso ou implícito. Caracteriza-se estruturalmente por ser concretizável em vários graus: seu conteúdo depende das possibilidades normativas advindas dos outros princípios, que podem derrogá-lo em determinado caso concreto. Daí dizer-se que os princípios, à diferença das metas-normas de validade, instituem razões prima facie de decidir. Os princípios servem de fundamento para a interpretação e aplicação do Direito. Deles decorrem, direta ou indiretamente, normas de conduta ou instituições de valores e fins para a interpretação e aplicação do Direito. (grifei)

Conclusões importantes e imprescindíveis ao feito também podem ser colhidas de brilhante estudo da lavra do insigne Mestre Eduardo Cambi (6), intitulado "Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo", na síntese a seguir proposta:

1.reconhecimento do princípio basilar da supremacia da Constituição Federal sobre qualquer outra norma;

2.ao Poder Judiciário cabe, como intérprete da lei, realizar o controle difuso de constitucionalidade, "visando dar efetividade aos direitos fundamentais " (inc. XXXV do artigo 5º, CF);

3.pelo reconhecimento da supremacia, nenhuma lei ou ato administrativo, poderá ferir a norma constitucional, sob pena de ser declarada inválida pelo controle de constitucionalidade;

4.o "princípio do livre convencimento do juiz" (art. 131, CPC) é mitigado pelo senso de responsabilidade, norteado pelos padrões de justiça e pelos limites econômicos e políticos plasmados na Constituição, além de serem buscados, mediante um processo justo, com ampla participação e controle das partes. A expansão ou a restrição da jurisdição constitucional deve ser vista, no contexto de um pêndulo, que vai da autocontenção ao ativismo judicial;

5.a atuação do Poder Judiciário, contudo, não deve ser alternada ao "sabor dos ventos", casuisticamente pendendo ora para a autoconcentração ora para o ativismo;

6.a reserva do possível e a reserva de consistência são dois marcos limitativos, entre outros, para a atuação jurisdicional;

7.o pós-positivismo jurídico resgata a força normativa dos princípios constitucionais, bem como a moderna hermenêutica jurídica, que ressalta sempre o papel criativo do intérprete, reforçado pelas técnicas legislativas que cada vez mais adotam cláusulas gerais (como as da boa-fé e das funções sociais do contrato e da propriedade), permitem concluir que o juiz, ao atribuir sentido ao texto da Constituição ou da lei, constrói a norma jurídica no caso concreto;

8.a sentença é, pois, o resultado da interpretação dinâmica dos fatos à luz dos valores, princípios e regras jurídicas, a ser desenvolvida pelo juiz, não seguindo uma lógica formal (produto de um raciocínio matemático ou silogístico) nem com o intuito de se criar um preceito legal casuístico e dissociado do ordenamento jurídico, mas, dentro das amplas molduras traçadas pela Constituição, permitir, mediante a valoração específica do caso concreto, à solução mais justa dentre as possíveis;

9.a nova interpretação constitucional não abandonou os elementos clássicos, mas revitalizou a hermenêutica jurídica ressaltando a prevalência da teoria dos princípios sobre a das normas. Assim, é possível ajustar a Lei Fundamental às circunstâncias do caso concreto, permitindo solucionar as complexas colisões entre direitos fundamentais e, assim, levar a sério a Constituição;

10.na vigorante dogmática de interpretação constitucional, prevalecem os princípios da unidade da Constituição; do efeito integrador; da máxima efetividade; da conformidade funcional; da concordância prática ou da harmonização; da força normativa da Constituição e o das leis conforme a Constituição;

11.devem ser observados, ainda, o princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade, que decorre da garantia do devido processo legal em sentido substancial (substantive due process of law), incorporado à Constituição de 1988, pelo qual o intérprete deve verificar: a) a adequação dos meios aos fins; b) a necessidade ou a exigibilidade da medida, isto é, os meio utilizados para a obtenção dos fins visados devem ser os menos onerosos possíveis, devendo ser considerada inconstitucional a lei, por violação ao princípio da proporcionalidade, se houve, inequivocamente, outras medidas menos lesivas; c) a verificação da proporcionalidade em sentido estrito, vale dizer, há que se proceder a uma relação de custo-benefício entre as desvantagens dos meios (prejuízos a serem causados) e às vantagens dos fins (resultados a serem obtidos);

12.na solução de conflitos entre direitos fundamentais ou na colisão de princípios, assume grande importância operacional o valor da dignidade da pessoa humana, pois está na base de todos os direitos constitucionalmente consagrados. É o vetor-mor da hermenêutica jurídica;

13.só o caso concreto tornará possível pela argumentação jurídica, dizer o que deve ser entendido por dignidade humana e qual será seu conteúdo e significado na resolução do conflito entre direitos contrapostos.

O neoprocessualismo, como se observa das conclusões acima sugeridas, tem sua base axiológica na Carta da Republica, na medida em que nela se encontram contemplados os mais importantes direitos materiais e processuais (fenômeno da constitucionalização do direito infraconstitucional).

A lei perdeu sua posição central como fonte do direito, passando a se submeter integral e invariavelmente aos preceitos constitucionais, não valendo, por si só, mas somente se conformada com a Constituição e, especialmente, se adequada aos direitos fundamentais.

A repulsa da Constituição sobre a lei e a repulsa à neutralidade da lei e da jurisdição encontram no art. 5º, inciso XXXV da CF/88 um importante alicerce teórico. Ao se incluir no rol deste mesmo artigo a impossibilidade da lei excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameça ao direito, consagrou-se, não apenas a garantia de inafastabilidade da jurisdição (acesso à justiça), mas um verdadeiro direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, célere e adequada (acesso à ordem jurídica justa). (Marinoni apud Cambi, 2007, p. 47)

Nesse contexto, emergem da normativa constitucional os seguintes postulados e princípios aplicáveis à dogmática processual, entre outros:

a) direito fundamental à ordem jurídica justa, direito fundamental ao processo justo e a visão publicista do processo;

b) direito fundamental à tutela jurisdicional, instrumentalidade do processo e a construção de técnicas processuais adequadas à realização dos direitos materiais.

Adverte, contudo aquele articulista, para o grande desafio do neoprocessualismo, imposto pela constitucionalização das garantias processuais fundamentais, é conciliar a instrumentalidade do processo, ampliada na perspectiva dos direitos fundamentais (art.s 5º, inc. XXXV e LXXVIII), com o garantismo, cabendo ao intérprete-juiz tão meritória missão.

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Sobre o autor
Antonio Cláudio Von Lohrmann Cruz

Juiz de Direito de 3ª Entrância, titular da 3ª Vara Cível Distrital de Icoaraci, Belém (PA). Membro da Comissão Estadual Judiciária de Adoção Internacional (CEJAI) do Pará.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Antonio Cláudio Von Lohrmann. Gerente de abrigo é condenada por recusar atendimento a crianças resgatadas pelo Conselho Tutelar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2592, 6 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/17122. Acesso em: 22 dez. 2024.

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