Posicionamento oficial referente à Portaria 116 do Ministério do Trabalho e Previdência Social.

Exame toxicológico de larga janela de detecção

04/12/2015 às 18:29
Leia nesta página:

Posicionamento da Associação Nacional de Medicina do Trabalho contra a adoção do teste toxicológico de "larga janela de detecção" para motoristas profissionais na ocasião da admissão e "desligamento". Dilemas éticos e jurídicos.

Posicionamento oficial da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT) referente à Portaria 116 do Ministério do Trabalho e Previdência Social, publicada em 16 de novembro

            A Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT) vem a público manifestar-se sobre a Portaria nº 116 do Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS), publicada no Diário Oficial da União no último dia 16 de novembro (veja o texto aqui). A portaria cria o anexo “Diretrizes para realização de exame toxicológico em motoristas profissionais do transporte rodoviário coletivo de passageiros e do transporte rodoviário de cargas”.

            O uso de álcool e outras drogas entre trabalhadores, incluindo motoristas profissionais, não é um tema novo. Trata-se de um problema de saúde pública, com impactos sociais e econômicos bem conhecidos por toda a sociedade. A ANAMT entende que a prevenção do uso nocivo dessas substâncias é um desafio a ser enfrentado por todos, incluindo os profissionais de saúde que atuam na prevenção e na promoção da saúde dos trabalhadores. Entende também que a dependência química é uma condição clínica passível de tratamento e que é possível recuperar dependentes, reabilitá-los e apoiá-los para que retomem suas atividades normais, incluindo o trabalho – elemento fundamental de inclusão social.

            Neste contexto, parece legítimo que o poder público procure estabelecer normas mais rígidas para prevenir esse quadro. Para isso, naturalmente, é preciso que haja rigor técnico e ético. A ANAMT entende que os últimos acontecimentos, que culminaram com a publicação dessa Portaria, não zelaram pela técnica ou pela ética necessárias para tratar de um tema tão importante quanto complexo. Assim, vejamos:

Quando, em 2013, o Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) publicou resolução para a adoção de testes toxicológicos na renovação de Carteira Nacional de Habilitação nas categorias C, D e E (veja o texto completo aqui), vários segmentos sociais alertaram para a limitação do uso de testes de larga janela de detecção de drogas (cabelos, pelos, unhas). Entre estas manifestações, está a do próprio Ministério da Saúde, que alertou em nota oficial que “vincular a habilitação de motoristas à realização de exames desta natureza [...] não identifica o risco imediato do motorista profissional de dirigir sob a influência de drogas e outras substâncias psicoativas, nem proporciona medidas de intervenção imediata”. Leia a nota na íntegra nesta reportagem.

Não obstante os alertas dos profissionais da saúde, a resolução foi suspensa provisoriamente para ser regulamentada pela Lei nº 13.103/2015 que alterou a Consolidação das Leis do Trabalho, com atenção especial ao artigo 168, que trata dos testes toxicológicos de larga janela de detecção nos exames admissionais e demissionais de motoristas profissionais. Novas manifestações alertaram sobre a inconsistência técnica da proposta.

Considerações da ANAMT

Movida pela indignação dos profissionais excluídos deste debate e com a certeza de que a não participação desses compromete a efetividade da proposta do governo, a Associação Nacional de Medicina do Trabalho apresenta seus argumentos e seu posicionamento.

  1. A importância da prevenção primária, secundária e terciária

A ANAMT defende a importância da prevenção primária, incluindo ações de promoção da saúde, educação sobre o uso nocivo de álcool e drogas, além de outros fatores de risco para motoristas profissionais, como os distúrbios do sono e a fadiga, tão importantes na gênese de acidentes. Ainda, o direito de que todos os trabalhadores, inclusive aqueles que têm dependência química a essas substâncias, tenham acesso a programas de reabilitação, para que esses indivíduos superem sua condição e retomem suas atividades cotidianas e seu trabalho. Tanto a prevenção primária quanto a terciária não foram contempladas na Lei 13.103/2015 ou na Portaria 116/MTPS.

Em relação à prevenção secundária, onde se estabelece o diagnóstico e o tratamento precoce, vale dizer que existem outras formas de detecção do uso nocivo de álcool e outras drogas que não foram contempladas pela atual proposta do governo. Estas formas tendem a ser tão ou mais eficientes do que a proposta dos testes de larga janela de detecção. Vejam alguns exemplos a seguir:

  • Proposto pela Organização Mundial de Saúde e validado no Brasil em 2004, o teste de triagem do envolvimento com álcool, tabaco e outras substâncias (ASSIST) poderia ser incentivado e utilizado por médicos e outros profissionais de saúde como ferramenta de rastreamento. Acesse o teste, em português, neste link.
  • Testes de detecção do uso precoce e que efetivamente identificam o comprometimento da capacidade de dirigir ou operar equipamentos no momento de sua realização poderiam ser propostos no lugar dos testes de larga janela de detecção. O teste de saliva, por exemplo, que indicam a presença de substâncias usadas recentemente, seria uma melhor ferramenta e pode ser comparada aos testes de ar expirado (“bafômetro”), utilizados com sucesso para a detecção do consumo de álcool.
  1. Os testes de detecção de drogas e suas limitações técnicas

Há quase duas décadas, inúmeras empresas têm adotado os testes de detecção de álcool e outras drogas no ambiente de trabalho. A maioria delas utiliza urina ou saliva como amostra para a detecção de drogas. Existem duas limitações a serem consideradas nestes testes. Uma é a dificuldade para obtenção de amostra no caso da urina. Isso tem levado autoridades de diferentes países a adotar o teste com a saliva para situações nas quais o teste precisa ser feito no local, como é o caso dos testes feitos pela polícia rodoviária norte-americana. Outra limitação é que os testes de urina ou saliva podem não detectar o uso pregresso há vários dias ou semanas, porém são os mais indicados para identificar o uso recente. A tecnologia para análise de ambas as amostras está disponível no Brasil.

Os testes de larga janela de detecção propõem-se a identificar o uso pregresso em até 90 dias pela análise de cabelos ou pelos. No entanto, não são capazes de identificar o comprometimento da capacidade de dirigir no ato de sua realização. Assim sendo, um teste de larga janela de detecção não pode ser utilizado como critério de inaptidão. Além disso, estudos recentes colocam em dúvida a confiabilidade do teste para o uso de canabinóides (derivados da “maconha”), como o publicado em outubro passado pela renomada Revista Nature, disponível aqui. O estudo conclui que “canabinóides podem estar presentes no cabelo de indivíduos não usuários porque podem ser transferidos por mãos, sebo, suor de usuários ou mesmo pela fumaça do ambiente” (tradução livre para o português). O trecho original está disponível abaixo:

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“...Our studies show that all three cannabinoids can be present in hair of non-consuming individuals because of transfer through cannabis consumers, via their hands, their sebum/sweat, or cannabis smoke.”

  1. O dilema ético

Existe um contrassenso no texto proposto. Apesar da suposta garantia de confidencialidade, o trabalhador/motorista deverá apresentar relatório do teste válido ao empregador em um prazo de até 15 dias de sua realização. Certamente, a entrega deste relatório fere a confidencialidade.

Ainda, a recusa para a realização do teste será considerada infração passível de penalização. A existência de um banco de dados de motoristas reprovados poderá discriminar o trabalhador em futuros empregos, mesmo que ele tenha sido reabilitado com sucesso.

  1. Ambientes e processos de trabalho seguros e saudáveis

A atual proposta dos testes toxicológicos desvia a atenção da discussão para um problema maior e potencial causa do uso de substâncias que aumentem o tempo de vigília. É sabido que muitos motoristas usam os chamados “rebites” (anfetaminas) para darem conta das longas viagens que precisam fazer para cumprir os apertados cronogramas de entrega. Fica óbvia a necessidade da revisão dos fatores organizacionais da atividade, para que longas e exaustivas jornadas não sejam impostas a estes trabalhadores, muitas vezes sem intervalos adequados para o descanso.

A ANAMT defende um pacto maior envolvendo todas as partes interessadas com o objetivo de construir um modelo que, de fato, promova ambientes e processos de trabalho seguros e saudáveis. Que se resolva a questão da fadiga em sua raiz, ao invés de estabelecer normas que direcionem a culpa para os motoristas.

  1. Ônus para os trabalhadores

Não estando vinculada a nenhuma Norma Regulamentadora, a Portaria 116/MTPS fragiliza a posição dos trabalhadores. Se os testes toxicológicos não serão incluídos no Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional, não serão custeados pelo empregador. Além disso, no caso de necessidade de uma contraprova o custo é duplicado.

Não haverá controle do preço dos testes toxicológicos, visto que a Lei 13.103/2015 veta a fixação de preços pelo Departamento Nacional de Trânsito. Considerando que os testes serão realizados em laboratório norte-americano, é razoável supor que os valores sofrerão a variação cambial do dólar, onerando ainda mais os trabalhadores.

  1. A experiência de outros países

Muitos países têm propostas em defesa de um trânsito mais seguro para todos, em especial aqueles que assinaram o compromisso pela “Década de Ação pela Segurança no Trânsito”, proposta pela Organização das Nações Unidas (ONU). Nenhum país, no entanto, utiliza testes de larga janela de detecção. Nos Estados Unidos, por exemplo, o Departamento de Transportes (DOT, na sigla em inglês) propõe testes pós-acidentes, aleatórios ou devido à conduta suspeita. Neste caso, usa-se urina ou saliva para detecção de drogas e ar expirado para a detecção de álcool. Causa, portanto, um certo estranhamento a iniciativa proposta para a adoção de testes que serão realizados em laboratório norte-americano, visto que nem em seu próprio país esta prática tem sido adotada de maneira sistemática.

  1. Considerações finais

Frente ao exposto e considerando-se todas as inconsistências técnicas e éticas encontradas na atual proposta do governo, a ANAMT manifesta-se contra a atual proposta do CONTRAN, os artigos da Lei nº 13.103/2015 que tratam especificamente dos testes toxicológicos de larga janela de detecção e a recente Portaria nº 116/MTPS.

Sempre comprometida com a defesa da saúde e da segurança dos trabalhadores, a ANAMT defende a retomada de discussão sobre o tema e a mobilização da sociedade para que, de fato, sejam resolvidos os problemas relacionados aos acidentes de trânsito e aos agravos à saúde dos motoristas profissionais. Que as verdadeiras causas sejam atacadas. Que a prevenção do uso e o direito à reabilitação sejam considerados com sua devida importância. E, se testes de detecção do uso de drogas forem necessários, que esta recomendação seja feita com o apoio de profissionais de saúde habilitados para discutir a melhor proposta para o país.

Nós acreditamos e defendemos a ideia de que um tema de tamanha relevância para a sociedade seja debatido com o envolvimento de todas as partes interessadas. Sempre à luz do dia.

Dr. Zuher Handar

Presidente da ANAMT

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Sobre o autor
Vilma Leyton

Farmacêutica Bioquímica, mestre e doutora em toxicologia. Perita criminal toxicologista do IML de São Paulo por 30 anos (aposentada). Professora de Medicina Legal na Faculdade de Medicina da USP. Linhas de pesquisa: Álcool, drogas e violência. Toxicologia Forense. Diretora dos Departamentos de Álcool e Drogas e de Pesquisas da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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