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Possui o Ministério Público legitimidade para ajuizar ação de indignidade?

Leia nesta página:

A Lei 13.532/2017, quando faz referência à legitimidade do Ministério Público, ela se limita apenas ao inciso I do art. 1.814 do Código Civil, que é justamente o que versa sobre indignidade nos casos que envolvem homicídio doloso na sua forma consumada ou tentada, não se estendendo às demais hipóteses previstas nos incisos II e II.

1- Introdução:

O Ministério Público é um órgão que possui relevante papel social, afinal, como diz a própria Constituição da República de 1988, incumbe-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Diante desse relevante papel que tem no ordenamento jurídico atual, surgem questionamentos acerca da vasta atuação deste eminente órgão, como a pergunta mencionada no título deste trabalho. Desta forma, o presente artigo tem por finalidade fazer uma breve abordagem histórica sob o aspecto doutrinário, jurisprudencial e legislativo acerca da possibilidade de o Ministério Público poder ajuizar ação de indignidade.


2- Análise do tema:

2.1- Conceito de indignidade:

Antes de tratarmos da legitimidade do Ministério Público, faz-se necessária a abordagem do conceito de indignidade. Assim, valemo-nos das lições do brilhante autor Paulo Nader que diz ser indignidade a situação jurídica em que se encontra o sucessível, condenado à perda do direito de suceder, pela prática de danos graves contra o autor da herança ou a membros de sua família. (NADER, 2016, p. 131).

No mesmo sentido diz o professor Orlando Gomes que se considera indigno o herdeiro que cometeu atos ofensivos à pessoa ou à honra do de cujus, ou atentou contra a liberdade de testar, reconhecida a indignidade em sentença judicial. (GOMES, 2012, p. 32).

Observa-se que os conceitos abordados pelos autores refletem justamente o que diz o art. 1.814 do Código Civil ao considerar como excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários que pratiquem atos previstos em seu rol exaustivo. Vejamos o rol:

Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:

I - que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;

II - que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;

III - que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.

Veja, portanto, que conseguimos abordar o conceito de indignidade trazendo a posição da doutrina e da legislação, o que nos permite ir ao próximo ponto, que é o da legitimidade do Ministério Público para a propositura da ação de indignidade.

2.2- A legitimidade do Ministério Público sob o aspecto doutrinário e jurisprudencial

Antes do surgimento da Lei 13.532/17 a doutrina e a jurisprudência discutia a legitimidade do Ministério Público para propor ação de indignidade quando herdeiros sequer se manifestavam no sentido de propor ação de indignidade ou até mesmo quando no caso sequer tinha a existência de outros herdeiros, como no caso de filho único. Vários autores civilistas discutem o tema fazendo com que surjam opiniões doutrinárias em sentidos opostos.

Dentre os que não admitem a legitimidade do Ministério Público estão aqueles que dizem a herança ter caráter eminentemente privado, versando sobre interesse disponível, o que não daria espaço para que o referido órgão pudesse propor a ação, pois ele, em tese, só teria legitimação para atuar estando diante de interesses individuais indisponíveis. Neste grupo se insere o autor Salomão de Araújo Cateb que traz sua posição em sua obra ao citar o caso de Suzana Richtofen e os possíveis legitimados para propor a ação, excluindo o órgão ministerial dentre os possíveis legitimados em seu exemplo:

Causou assombro o assassinato do casal Manfred Albert e Marisia von Richtofen, ocorrido em 31 de outubro de 2002. O bárbaro homicídio, apurado pela Polícia, confirmou que a própria filha, Suzane Louise, de 19 anos, participou, juntamente com seu namorado e mais outro personagem, do crime praticado. Noticiaram os jornais que, após o fato, o casal dirigiu-se para um motel. Difícil, sob o aspecto psicológico, definir a ação criminosa da filha. Por outro lado, na área do Direito Civil, poderá a filha ser excluída do processo sucessório, por indignidade, na forma do art. 1.814, desde que seu irmão, único herdeiro, postule a ação ordinária incriminando a irmã criminosa. Em caso de falecimento do irmão de Suzane e, inexistindo descendentes ou ascendentes, o direito de propositura da ação é transmitido para os colaterais e, na inexistência desses, poderá o Município vir a propor a ação. (CATEB, 2012, p. 95).

No entanto, apesar dessa parcela da doutrina entender deste modo, a doutrina majoritária sempre se posicionou favoravelmente em conferir legitimidade ao órgão ministerial. Dentre os principais fundamentos utilizados estão o de que o referido órgão possui atribuição de manter a ordem pública.

Inclusive, o autor Silvio de Salvo Venosa exemplifica em sua obra situação hipotética em que se torna imprescindível a atuação do Ministério Público para propor a ação de indignidade. Veja-se o exemplo proposto pelo autor:

Imagine-se a situação de um parricídio praticado por filho único, único herdeiro. Não havendo outros herdeiros que possam promover a ação, o homicida será herdeiro. Essa situação atenta contra a Moral e a Lógica do Direito. Desse modo, há que se entender que o Estado possui legitimidade, como derradeiro herdeiro que é, ainda que tecnicamente não o seja, para promover a ação de indignidade. (VENOSA, 2013, p. 57).

No mesmo sentido de Silvio de Salvo Venosa, tem-se uma vasta lista de autores que também seguem a posição de se conferir legitimidade ao Ministério Público, dentre eles estão nessa lista Cristiano Pereira M. Garcia, Zeno Veloso, Flávio Tartuce e Maria Berenice Dias.

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Para pacificar o tema, logo na I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, coordenada pelo eminente Professor Gustavo Tepedino, ficou definido no Enunciado de nº 116 que “O Ministério Público, por força do art. 1.815 do novo Código Civil, desde que presente o interesse público, tem legitimidade para promover ação visando à declaração da indignidade de herdeiro ou legatário”.

Assim, demonstrou-se com toda essa abordagem, que, mesmo antes do advento da Lei 13.532/2017 o Ministério Público já possuía legitimação extraordinária para ingressar com ação de indignidade, pois o órgão estaria agindo para defender a ordem pública, e não interesse meramente privado entre parentes. Deste modo, afigura-se perfeitamente possível a sua legitimidade tanto em sede de entendimento doutrinário, como jurisprudencial no âmbito do Superior Tribunal de Justiça ao aprovar o Enunciado nº 116 da I Jornada de Direito Civil.

2.3- A legitimidade do Ministério Público após o advento da Lei 13.532/2017

A Lei 13.532/2017, publicada em 08 de dezembro de 2017, modificou o Código Civil brasileiro acrescentando ao art. 1.815 o §2º, dizendo ter o Ministério Público legitimidade para demandar a exclusão do herdeiro ou legatário que houver sido autor, coautor ou partícipe de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente. Neste sentido frisamos o texto ipsis litteris:

Art. 1.815. A exclusão do herdeiro ou legatário, em qualquer desses casos de indignidade, será declarada por sentença.

§ 1o Parágrafo único. O direito de demandar a exclusão do herdeiro ou legatário extingue-se em quatro anos, contados da abertura da sucessão.             

§ 2o  Na hipótese do inciso I do art. 1.814, o Ministério Público tem legitimidade para demandar a exclusão do herdeiro ou legatário.                

Observa-se que a Lei 13.532/2017 quando faz referência à legitimidade do Ministério Público, ela  se limita apenas ao inciso I do art. 1.814 do Código Civil, que é justamente o que versa sobre indignidade nos casos que envolvem homicídio doloso na sua forma consumada ou tentada, não se estendendo às demais hipóteses previstas nos incisos II e II. Veja que o Enunciado nº 116 da I Jornada de Direito Civil não limita a atuação do órgão ministerial apenas ao inciso I.

Diante deste fato, mesmo após o advento da Lei 13.532/2017, conferindo legitimidade ao órgão ministerial, podem surgir questionamentos quanto à possibilidade ou não de se estender a legitimidade do Ministério Público aos demais casos previstos nos incisos II e III do art. 1.814, desde que esteja presente o interesse público. Ao nosso ver, não parece haver óbice a esta possibilidade, tendo em vista o interesse público ser amplo e abstrato de modo a abarcar situações muita das vezes inimagináveis, daí o texto do Enunciado nº 116 ser mais acessível à atuação do Ministério Público, pois não restringe apenas ao inciso I do art. 1.814. 

Outro fator que deve ser posto à baila é que mesmo diante da positivação da legitimidade do Parquet podem surgir questionamentos acerca da inconstitucionalidade da lei, utilizando-se dos mesmos argumentos que já vinham sendo sustentados antes mesmo da publicação desta lei, qual seja o de se tratar de interesse eminentemente privado e que não possibilita espaço para intervenção estatal.

Este argumento contrário à atuação do Ministério Público não parece ser o melhor entendimento, não devendo ser acolhido, pois como já dito, sabemos da importância que o Ministério Público exerce no ordenamento jurídico, e o surgimento desta alteração legislativa, em que pese ter vindo com atraso, trouxe uma importância imensa do devido reconhecimento que o Ministério Público merece como órgão de função essencial à justiça e de defensor da ordem pública que é.


3- Conclusão:

Diante do exposto, observa-se a importância da alteração legislativa ao positivar o que já se entendia pacificamente no âmbito doutrinário e jurisprudencial. O advento da Lei 13.532/17 trouxe em seu bojo o reconhecimento do papel institucional que o Ministério Público exerce hodiernamente em decorrência de uma construção histórica positiva, de um órgão que vem ganhando o seu merecido espaço como guardião do ordenamento jurídico.


Referência bibliográfica:

CATEB, Salomão de Araújo. Direito das sucessões/ Salomão de Araujo Cateb.- 7. Ed. - São Paulo: Atlas, 2012.

GOMES, Orlando. Sucessões/Orlando Gomes- 15. ed. rev. e atual./ por Mario Roberto Carvalho de Faria- Rio de Janeiro, 2012.

NADER, Paulo. Curso de direito civil, v. 6: direito das sucessões/Paulo Nader. – 7. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2016.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões/Silvio de Salvo Venosa. -13.ed.- São Paulo: Atlas, 2013.- (Coleção direito civil; v. 7)

Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 12 de dez. 2017.

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm . Acesso em: 12 de dez. 2017.

Enunciados das Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/755> Acesso em: 12 de dez. 2017.

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Sobre os autores
João Gabriel Cardoso

Delegado de Polícia Civil da Polícia Civil do Estado do Ceará. Professor de Direito Penal. Coautor do livro "Direito Penal das Minorias e dos Grupos Vulneráveis" pela Editora Juspodvm. Autor de diversos artigos jurídicos por Revistas Especializadas. Especialista em Direito Administrativo pela Faculdade de Ciências Wenceslau Braz.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Maria Beatriz Macedo Brito ; CARDOSO, João Gabriel. Possui o Ministério Público legitimidade para ajuizar ação de indignidade?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6104, 18 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/noticias/62824. Acesso em: 22 nov. 2024.

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