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Trabalho de tripulantes estrangeiros em águas brasileiras: passaporte de turista não é suficiente

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01/01/2003 às 00:00
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OPINIÃO JURÍDICA

          Gravita a controvérsia em torno da interpretação do § 1 °, artigo 9 ° da Resolução Normativa,de 24 de novembro de 1998, da lavra do Conselho Nacional de Imigração que, lida num contexto nomodinâmico, parece contrastar a literalidade do texto da Lei -geratriz.

          Os insignes Magistrados que se pronunciaram sobre a quaestio fizeram-no pelo prisma da legalidade, firmes na harmonia e completude do ordenamento jurídico; na segunda sentença que analisamos, de fls. 76, sua Excelência declina o Princípio da Supremacia do Interesse Público, o que traduz o abandono de uma postura meramente legalista (" bouche de la lois " ) pela de Agente Político do Estado Democrático de Direito; neste a ótima concretização da norma insere a dimensão axiológica dos Princípios na aferição da validade das normas.

          A concessão das liminares se processou a partir do reconhecimento da competência do Conselho Nacional de Imigração para, agindo no pretenso vacuum legis, determinar aos agentes administrativos que se abstenham do cumprimento de rotina que há décadas era seguida, nos termos do Estatuto dos Estrangeiros e dos preceitos da Segurança Nacional y comprises .

          Ocorre, contudo, a nosso ver, que o Princípio da Legalidade insculpido no artigo 37 da Charta do Brasil impede que os agentes administrativos deixem de exercitar os poderes ou de cumprir os deveres que a Lei lhes impõe, segundo o escólio do saudoso Mestre Hely.

          Nesse sentido, em nenhum dos casos analisados obraram os agentes públicos da Polícia Federal em abuso, seja por excesso, seja por desvio de poder. Na verdade, como afirma o genial Francisco Cavalcante Pontes de Miranda, mencionado às folhas 21:

          "Abuso de poder é o exercício irregular de poder. Usurpa poder quem sem obter, procede como se o tivesse. A falsa autoridade usurpa-o; a autoridade competente não usurpa se de certo modo exorbita, abusa do poder"

          Pelo contrário:os regimes jurídicos eximem o agente de cumprir as ordens manifestamente ilegais até mesmo quando promanadas de seus superiores hierárquicos; considerado o Princípio da Proporcionalidade ,em consonância com o elevado grau de conhecimentos dos Delegados da Polícia Federal, destes se exige o descortino necessário para interpretar a lei de modo a afastar preceitos infralegais que a contrariem, principalmente se exarados de instâncias administrativas alheias à sua subordinação hierárquica.

          A Lei,malgrado seja a manifestação imediata do Direito, não é a única. Contudo, é de se inferir, maxime, em sede de Direito Administrativo, a aplicação plena do disposto no inciso II, artigo 5 ° da Carta do Brasil (18): só a Lei, assim entendida como ato legislativo emanado dos órgãos de representação popular , cria direitos e impõe obrigações positivas ou negativas. (19) Decreto não cria direitos,sujeição ou obrigações. Portaria não cria direitos, sujeição ou obrigações. Só a Lei permite adentrar-se a esfera jurídica de outrem.

          Por conseqüência, não há " direito líquido e certo " que contrarie a Lei, sendo vedado, por óbvio, o bill of attainder e a lex ex post facto.

          A aparente antinomia configurada no caso sub judice é , em última instância, de ser resolvida no plano hierárquico: lex superior derogat inferiori. No caso, a Resolução não pode dispor praeter legem , muito menos contra legem: a fúria legisferante da Chefia do Poder Executivo, caracterizada nas miríades de Medidas Provisórias não pode se espraiar aos escalões inferiores.

          Antes mesmo de interpretar a Resolução,pois, mister atentar para o texto da Lei.

          Assim, é requisito básico para a entrada no país a apresentação do passaporte ( art. 54 da Lei ) com o competente visto (art. 2 ° da Lei).

          O visto é concedido (art. 9 °) (20), pela autoridade consular, i.e., afeta ao Ministério das Relações Exteriores (art. 26 da Lei). Não há previsão legal para delegação de competência. Delegata potestas delegari non potest. Não há norma expressa autorizadora e, portanto, o órgão colegiado não pode avocá-la. Merece registro que o Legislador explicitou a delegação de competência, no âmbito do mesmo órgão, no artigo 139 da Lei.

          As exigências estabelecidas pelo Conselho Nacional de Imigração para concessão de visto são apenas parte do elenco que é integrado, também, pelas do artigo 2 °, 3°, 7 ° dentre outros e, são, portanto instrutivas para a concessão do visto, pelo Ministério das Relações Exteriores. Trata-se de ATO COMPLEXO, demandando a interveniência de dois órgãos, sem o que o ato não se completa, não existe e não pode gerar efeitos. Do mesmo modo o indicativo do Ministério do Trabalho não é absoluto, não configura ATO SIMPLES,nem derroga o controle a priori,a ser efetuado nos consulados, inclusive no que tange à documentação profissional marítima dos interessados.

          Mister a atenção que merece tal controle, a uma, para o cumprimento das Convenções Internacionais Marítimas (STCW, e.g.) de que o Brasil é signatário, com repercussões seriíssimas no meio ambiente; a duas pela relevância que assume a SEGURANÇA NACIONAL após os eventos terroristas de onze de setembro de 2001 que conduziram a maior potência mundial ao esforço de guerra.

          Também a dispensa de visto, pelo Poder Executivo, se processa pela via do acordo internacional (artigo 130),com o referendo do Congresso Nacional, nos termos do inciso I, artigo 49, da Magna Charta ou nas demais hipóteses estatuídas em Lei.

          Em nenhum momento os estrangeiros mostraram o visto temporário, mas o protocolo de solicitação de visto temporário emitido pelo Ministério do Trabalho"( fls 110 ). A Lei exige o visto temporário. Ninguém adentra, por exemplo, o território norte- americano com um protocolo de solicitação de visto. Logo, o "direito líquido e certo"que o Impetrante esgrima nada mais é que uma "expectativa de expectativa de direito", nos termos do artigo 26 da Lei:

          Lei n° 6.815, de 19 de agosto de 1980 [Estrangeiro]

          --------------------------------------------------

          Art. 26 - O visto concedido pela autoridade consular configura mera expectativa de direito, podendo a entrada, a estada ou o registro do estrangeiro ser obstado ocorrendo qualquer dos casos do art. 7°, ou a inconveniência de sua presença no território nacional, a critério do Ministério da Justiça.

          Não há previsão legal para a transformação do visto de turista para temporário. Pelo contrário, há vedação legal para que o estrangeiro que entre no país na condição de turista se engaje como tripulante de navio (art.105). A exceção corre por conta de navio de longo curso, da bandeira do país, que demande rumo do exterior em viagem que não retorne ao Brasil. Portanto vedada a permanência em águas brasileiras, seja na navegação de cabotagem seja no off shore.

          Em nenhum momento o impetrante fez prova do pavilhão que a embarcação arvora, nem que o navio se retirava de águas nacionais ,para se enquadrar na moldura do permissivo legal do artigo 105 (21).

          A análise focada no ordenamento legal não se esgota. Uma análise mais detalhada, mesmo pela estrita ótica da dogmática jurídica aponta que não merecem prosperar as concessões das liminares.

          Os artigos da Resolução Normativa referidos nos autos não podem conduzir a interpretação que contrarie a letra ou o espírito da Lei. Nem pode a Resolução substituir, derrogá-la, como reiteradamente explica a Doutrina e como resta cristalino no artigo 87 da Carta da República:

          Parágrafo único. Compete ao Ministro de Estado, além de outras atribuições estabelecidas nesta Constituição e na lei:

          --------------------------------------------------

          I - exercer a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência e referendar os atos e decretos assinados pelo Presidente da República;

          II - expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos;

          Assim, a Resolução não pode ser lida de modo nomostático ,nem a fixação em um de seus artigos pode ser feita sem a apreciação dos demais.

          O artigo 1 ° da Resolução se refere ao " estrangeiro tripulante de embarcação estrangeira que venha operar em águas jurisdicionais brasileiras,por força de contrato de afretamento, de prestação de serviços ou de risco, celebrado com empresa brasileira, observado o interesse do trabalhador nacional, poderá ser concedido visto temporário,previsto no inciso V, art. 13, da Lei 6.815/80, pelo prazo de até dois anos."

          Infere-se, pois, que o estrangeiro já seja tripulante da embarcação quando esta venha operar no Brasil. A interpretação possível é de que a Resolução cuida reingresso no país,em virtude do desembarque do tripulante.

          Do mesmo modo, na hipótese, a entrada no país se opera a partir da concessão de visto temporário, sendo vedado o ingresso de tripulante com visto de turista, pela impossibilidade jurídica da conversão desta modalidade em outra.

          O artigo 7 °da indigitada Resolução enuncia que "O Ministério do Trabalho comunicará as autorizações concedidas ao Ministério das Relações Exteriores para a emissão dos respectivos vistos,nos quais constarão referência expressa à presente Resolução Normativa", configurando a natureza de um ato complexo e não de um ato composto ou de ato simples.

          O artigo 10 se refere a visto temporário. Em nenhum momento há o permissivo da Resolução para ingresso de tripulante com visto de turista. E, ainda que houvesse, não seria válido, por incompatível com a norma superior, sem poder gerar efeito.

          Entendemos que as liminares hajam sido concedidas pela louvável preocupação dos iminentes Magistrados em salvaguardar a ordem econômica, a segurança e o meio-ambiente, que, primo ictu oculi, restariam ameaçadas ante a não efetivação da troca de guarnições.

          São portanto, razões que extrapolam a dogmática legal e adentram a dimensão axiológica dos Princípios e ensejam algumas considerações de ordem prática:em primeiro lugar, não é de sabença trivial, mas apenas dos que são afetos às lides do mar, que as trocas de guarnições são rotinas não adventícias que devem ser planejadas com a devida antecedência.Em segundo lugar, que ninguém é tripulante até que assine, a bordo, o rol de embarque o chamado "crew list ", o que, a rigor, estreita, ainda mais, o campo da Resolução indigitada.

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          Aequo modo, nenhuma embarcação será paralisada, por falta de movimentação de tripulante: primeiro porque seus substitutos existem no território do Brasil, mesmo os mais qualificados – se não existem, ad argumentandum tantum, é do interesse e da segurança nacional que sejam formados; segundo, porque muitos dos arrolados na lista da Impetrante podem ser tripulantes não graduados, de fácil substituição pelos nacionais.

          Importa, ainda, considerar os aspectos subjetivos da Lei, em especial, aqueles albergados no artigo 2°:

          "Na aplicação desta Lei atender-se-á precipuamente à segurança nacional, à organização institucional, aos interesses políticos, sócio-econômicos e culturais do Brasil, bem assim à defesa do trabalhador nacional."

          A mesma defesa do trabalhador nacional e do meio ambiente , que segue estatuída no artigo 170 da Constituição (22).

          Às fls. 10, depoente que ocupa cargo de Chefia do Setor de Imigração do Ministério do Trabalho informa que aquele órgão "não faz qualquer análise dos documentos apresentados pelas empresas que desejam o visto de trabalho para estrangeiros; que há presunção de que as empresas que ingressam com o pedido de autorização de trabalho para estrangeiros são conhecedoras da legislação "

          A fragilidade do sistema deve ser bastante conhecida dos estrangeiros para, ante tantas facilidades, agirem com desrespeitosa falta de planejamento na troca rotineira das guarnições, subestimando o Jus Imperii pátrio e reduzindo a quaestio ao mero patamar comercial.

          Esperamos que a preocupação internacional com a vigilância das fronteiras e com a preservação do meio ambiente marinho (diretamente afeto à qualificação dos que trabalham na indústria do petróleo) apure a seleção e o controle da entrada de estrangeiros neste País, em especial dos profissionais que se destinam à execução de trabalho em áreas estratégicas.


Conclusão:

          Os Delegados da Polícia Federal – Impetrados, agiram nos lindes de sua competência, com zelo no cumprimento da Lei, discernindo, com acuidade, disciplina de subserviência.

          As decisões liminares, portanto provisórias e exaradas, em regra,por Magistrados em regime de plantão, ao lume de análises emergenciais e perfunctórias, merecem ser reformadas, eis que a pretensão da Impetrante é desprovida de amparo no ordenamento jurídico, lesionando-o gravemente.

          É o parecer, s.m.j.

          Laudetur Dominus

          Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 2002.

          Edson Martins Areias
          Consultor Jurídico

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

. Trabalho de tripulantes estrangeiros em águas brasileiras: passaporte de turista não é suficiente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16540. Acesso em: 25 abr. 2024.

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