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Casamento religioso espírita é ato inexistente

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05/12/2005 às 00:00
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Despacho exarado pela Desembargadora Lucy Lopes Moreira, corregedora-geral da Justiça do Estado da Bahia:

Publicação de 21.09.2005
Comarca da Capital
Proc. 21207/05

Interessada: Bela. Nadir Maria de Aquino Ribeiro de Sousa, Advogada

Assunto: Casamento religioso espirita.

            Acolho o pronunciamento de fls. 35/47, subscrito pelo juiz corregedor Joselito Rodrigues de Miranda Júnior, que integro como fundamento da presente decisão.

            O julgador moderno preocupa-se com o bem e o mal resultante de suas decisões. Atender aos fins sociais e às exigências do bem comum (LICC, art. 5º) é poder-dever do aplicador do Direito.

            No caso concreto, o expediente de fls. 48/49, com o qual o eminente Presidente do "Centro de Estudos e Pesquisas Carlos Imbassahy", Antônio Carneiro Cedraz, traz à colação o substancial parecer subscrito pelos bacharéis Carlos Bernardo Loureiro, advogado, escritor e pesquisador espírita, delegado da Confederação Espírita Pan-americana, membro do "Instituto de Cultura Espírita do Brasil" e membro do "Teatro Espírita Leopoldo Machado", Júlio Nogueira, advogado e diretor jurídico do Teatro Espírita Leopoldo Machado" e Alberto de Carvalho Júnior, membro do conselho editorial do site do "Teatro Espírita Leopoldo Machado", vem reforçar o meu convencimento, no sentido de que o requerimento formulado pelo "Centro Espírita Cavaleiros da Luz", indeferido às fls. 10/11 destes autos, é fruto de iniciativa e interesses isolados, sem a chancela da comunidade espírita e sem qualquer relevância social.

            Posto isto, mantenho a decisão de origem (fls. 10/11), que negou autorização ao requerente, "Centro Espírita Cavaleiros da Luz", para celebração de casamento religioso com efeitos civis. Publique-se.

            Opinativo acolhido, in verbis:

            CASAMENTO RELIGIOSO COM EFEITO CIVIL. COMPETÊNCIA PARA A CELEBRAÇÃO. OMISSÃO DA LEI. IMPOSSIBILIDADE DE SUPRIMENTO PELA CORREGEDORIA GERAL DE JUSTIÇA. AUSÊNCIA DE PODER REGULAMENTAR.

            O atual Código Civil, a exemplo da legislação anterior, não conferiu idoneidade para celebração do casamento religioso a qualquer rito confessional específico. Tal omissão não pode ser suprida pela Corregedoria, pois não lhe compete definir o que é religião, muito menos estabelecer um rol taxativo de religiões idôneas para a celebração. Admitir-se o contrário implicaria em afronta ao princípio da legalidade, estatuído no art. 5º, II, da Constituição Federal, além do sério risco de se resvalar para o arbítrio e a intolerância.


1. Introdução.

            Inconformado com a r. decisão monocrática de fls. 10/11, que lhe negou autorização para celebração de casamento religioso com efeitos civis, o "Centro Espírita Cavaleiros da Luz" pretende rever o referido ato decisório, mediante recurso interposto às fls. 12/16, com pedido de reconsideração às fls. 21/23.

            A pretensão inicial, deduzida pelo Centro Espírita ora recorrente, tem como suporte fático o seguinte:

            "O espiritismo é uma religião cristã, reconhecida socialmente, embora discriminada por pessoas conservadora, alheias ao progresso social, moral e científico (...) é uma religião por conseqüência de seus fundamentos filosóficos e científicos, conduzindo o homem pelos caminhos da fé racionada, que o levarão ao inevitável reencontro com o Criador – finalidade precípua de qualquer sistema religioso legítimo (...) Faz-se mister a celebração do casamento no suso requerido rito em razão da crença inabalável dos nubentes na religião professada, bem como, acima de tudo, a certeza da satisfação interior que, por certo, proporcionará aos nubentes realizando cerimônia que acreditam ser de suma importância para a continuação de suas vidas condignamente sob a égide da religião cuja escolha se deu por manifestação de vontade unilateral, mormente pelo fato de acreditarem nos seus ensinamentos doutrinários" (sic, requerimento de fls. 02/05 dos autos).

            Já agora, o recurso interposto está calcado na liberdade de crença e de culto religioso, garantida pelo art. 5º, VI, da Constituição Federal, e nos dispositivos do Código Civil aplicáveis à espécie.


2. Celebração por autoridade incompetente. Casamento Inexistente.

            No caso em exame, a questão de fundo nada tem a ver com a garantia constitucional de liberdade de crença e de culto religioso. A controvérsia gira em torno da existência ou inexistência de efeitos jurídicos do casamento contraído em cerimônia de cunho espírita.

            O plano da existência antecede o da validade. Antes de verificar se o ato jurídico ou o casamento são válidos, faz-se mister averiguar se existem. Existindo, podem ser válidos ou inválidos.

            Deve-se ao jurista alemão Zachariae Von Lingenthal, em sua obra Cours de droit civil français, a elaboração da teoria da inexistência do casamento, mas, como informa EDUARDO DOS SANTOS1, autores italianos apontam os canonistas como os primeiros a formular a distinção entre matrimonium nullum e matrimonium non existens.

            De qualquer sorte, a concepção do ato inexistente, como categoria distinta do ato nulo e do ato anulável, surgiu na França, com o intuito de corrigir a construção jurisprudencial que aplicava, em matéria de direito matrimonial, o princípio pas de nullité sans texte. É que para preservar os casamentos, as nulidades eram taxativamente indicadas na lei. Graves anomalias, como casamento entre pessoas do mesmo sexo ou perante oficial sem poderes para casar, não eram invalidadas pelos Tribunais, porque não estavam elencadas como nulidades no texto legal.

            Essa teoria da inexistência do casamento, consagrada na doutrina francesa, é assim explicada por BERNARDES DE MELLO:

            "Se o suporte fático do casamento prevê como elemento de sua suficiência (a) manifestação de vontade de casar feita por duas pessoas de sexos diferentes, (b) perante autoridade competente, (c) com registro do ato, a falta de qualquer desses elementos faz insuficiente o suporte fático, donde não haver incidência da norma jurídica e, portanto, não ocorrer fato jurídico algum. O casamento é, nesse caso, inexistente em sentido próprio."2

            Com efeito, são condições essenciais à existência jurídica do casamento: a) diversidade de sexos; b) consentimento dos nubentes; c) celebração por autoridade competente. Segundo o magistério de ORLANDO GOMES3, tais condições são pressupostas. Tão necessárias, que o ato praticado sem a sua estrita observância terá, quando muito, a enganosa aparência de casamento, constituindo, em verdade, uma farsa.

            No mesmo sentido é o entendimento de CARLOS ROBERTO GONÇALVES a seguir transcrito:

            "...quem não tem, de modo absoluto, competência para a celebração do casamento sequer pode ser reputado autoridade celebrante. Trata-se de casamento celebrado por particular sem autoridade alguma para presidir a solenidade nupcial e, neste caso, o casamento é inexistente.

            Hipótese ilustrativa de inexistência do casamento por ausência de celebração na forma da lei é a noticiada pelos jornais, referente a um casamento gay realizado, no Rio de Janeiro, mediante ritual próprio e sem a ausência de participação de autoridade competente. Não bastasse, faltava também a diversidade de sexos

.4

            A falta de elemento essencial à perfeição do ato e, portanto, indispensável à sua existência, impossibilita a produção de efeitos jurídicos.

            Ressalte-se que o casamento inexistente não produz qualquer efeito jurídico e nem sequer pode ser havido como putativo5. A inexistência do ato pode ser alegada a qualquer tempo, porque o decurso deste não pode consolidar o que nunca existiu.


3. O casamento religioso e o Direito brasileiro.

            Desde a Antiguidade, as seitas religiosas consideram o casamento um fato de sua competência, estabelecendo normas para regrar a sua celebração6. O cristianismo elevou o casamento à dignidade de sacramento (Código de Direito Canônico, art. 1.012, § 1º), pelo qual um homem e uma mulher selam a sua união sob as bênçãos do céu, transformando-se numa só entidade física e espiritual (caro uma, uma só carne), e de maneira indissolúvel (quos Deus coniunxit, homo non separet).7

            O Brasil Império só conhecia o casamento religioso e a história registra os esforços da igreja católica para disciplinar o instituto e subtraí-lo à ação do Estado. Somente com a proclamação da República e a conseqüente separação da Igreja e do Estado foi instituído o casamento civil, por força do Decreto no 181, de 24 de janeiro de 1890 e, posteriormente, por dispositivo expresso na Constituição de 24 de fevereiro de 1891.

            Segundo WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, a situação estabelecida foi então a seguinte: "do ponto de vista estritamente legal, o casamento religioso não passava de mero concubinato, que não gerava qualquer direito. Por seu turno, perante a Igreja, o casamento civil era também uma união livre, contrária à moral religiosa".8

            O impasse foi resolvido pela própria sociedade que passou a realizar duas cerimônias autônomas de casamento: uma civil, para produção de efeitos jurídicos, outra religiosa, para satisfação pessoal dos nubentes, segundo os ritos da crença que professavam. Tal prática persiste nos dias atuais, notadamente quando é duvidosa a competência (legitimidade) da autoridade religiosa para a celebração do casamento com efeito civil.

            Hoje, para o ordenamento jurídico pátrio, o casamento continua sendo civil, por disposição expressa no art. 226, § 1º, da Constituição Federal de 1988; o § 2º do mesmo artigo dispõe que o casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

            No campo infraconstitucional, a norma do citado art. 226, § 1º, é reproduzida no art. 1.512, caput, do Código Civil: "O casamento é civil e gratuita a sua celebração". Por outro lado, o art. 1.515 do Código de 2002 estabelece que o casamento religioso, que atender às exigências da lei para a validade do casamento civil, equipara-se a este, desde que registrado no registro próprio, produzindo efeitos a partir da data de sua celebração.

            A lei civil atual, suprindo lacuna da anterior, disciplina as hipóteses de casamento religioso: a) com prévia habilitação (art. 1.516, § 1º); b) com habilitação posterior à celebração religiosa (art. 1.516, § 2º). Exige-se, nas duas hipóteses, o processo de habilitação.

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4. Casamento espírita.

            Em sua tese de Doutorado em Direito das Relações Sociais, o professor CAMILO DE LELIS COLANI BARBOSA faz o seguinte enfoque sobre tema:

            "Observa-se a interpretação doutrinária quanto à legitimidade para que o casamento religioso tenha efeitos civis. Têm sido afastados dos efeitos civis, por conseguinte, sob a alegação de não constituir religião, os matrimônios contraídos em ‘cerimônias’ de cunho espírita. Vale mencionar, entretanto, honrosa exceção noticiada na edição do jornal ‘O Estado de S. Paulo’, veiculada no dia 28.06.02, de decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, reconhecendo casamento realizado em centro de umbanda.

            Torna-se difícil a identificação daquilo que é meramente um culto, da efetiva prática religiosa. Parece-nos, todavia, que as pessoas que professam tais crenças possam vir a obter autorização para a realização deste tipo de casamento, demonstrados claramente os preceitos seguidos e a existência de rituais compatíveis com a ordem legal e os bons costumes". 9

            Seguindo essa mesma linha de raciocínio, ARNALDO RIZARDO, assim se posiciona:

            "Saliente-se que qualquer casamento religioso, celebrado em conformidade com os credos tradicionais, como a religião católica, e com as novas e desconhecidas religiões ou seitas, presta-se para trazer os efeitos civis. Nada se regulamentou quanto à estrutura ou consolidação da religião sob cujo rito as pessoas casam.

            Mas parece que pode exigir o oficial do registro civil a apresentação de alguma prova ou elemento pelo menos sobre a existência da religião e a legitimidade da representação, dentro do credo do celebrante.10

            O atual Código Civil, a exemplo da legislação anterior, não conferiu idoneidade a qualquer rito confessional específico, para celebração do casamento religioso. Até porque, "o casamento é civil", equiparando-se a este o casamento religioso, quando "atender as exigências da lei".

            A lacuna da lei não pode ser suprida pela Corregedoria Geral de Justiça, pois não lhe compete definir o que é religião, muito menos estabelecer um rol taxativo de religiões idôneas para a celebração. Admitir-se o contrário implicaria em afronta ao princípio da legalidade, estatuído no art. 5º, II, da Constituição Federal, além do sério risco de se resvalar para o arbítrio e a intolerância. É neste sentido o ensinamento de LAMMEGO BULOS a seguir transcrito:

            "O princípio da legalidade é uma das vigas mestras do ordenamento jurídico brasileiro, porque qualquer comando estatal – seja para ordenar ato (ação ou conduta positiva) ou abster fato (omissão ou conduta negativa) – a fim de ser juridicamente válido, deve nascer da lei em sentido formal.

            Tal princípio deve ser compreendido em conexão com as demais disposições constitucionais, harmonizando-se com as normas que estabelecem competência entre os órgãos do poder e enquadram-se na idéia segundo a qual somente o legislativo pode criar comandos inovadores no cenário jurídico pátrio, sendo o único órgão apto a estatuir prescrições inéditas na ordem estatal".11

            Note-se que os casamentos religiosos, celebrados sob a égide dos credos tradicionais, a exemplo do catolicismo, são legitimados pelo costume, fonte subsidiária prevista no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil.

            O costume deriva da longa prática uniforme, constante, pública e geral de determinado ato, com a convicção de sua necessidade jurídica. São, pois, condições indispensáveis à sua vigência: continuidade, uniformidade, diuturnidade, moralidade e obrigatoriedade. Seguramente, a celebração de "casamento religioso espírita" não atende a tais condições, pois não se tem sequer referência, na doutrina espírita, de qualquer sacramento, cerimônia religiosa, rito, ou solenidade especial ligada ao casamento.


5. Conclusão.

            o A decisão recorrida deve ser mantida.

            o Falta ao chamado "casamento espírita" uma das condições essenciais à sua existência jurídica: celebração por autoridade competente.

            o Quem não tem, de modo absoluto, competência para a celebração do casamento sequer pode ser reputado autoridade celebrante.

            o A doutrina mais atual admite a possibilidade de se autorizar a realização de casamento em "cerimônia" de cunho espírita, desde que sejam demonstrados: os preceitos seguidos e a existência de rituais compatíveis com a ordem legal e os bons costumes; existência da religião e a legitimidade da representação, dentro do credo do celebrante. Tais cuidados não foram observados no caso concreto.

            o O ordenamento jurídico pátrio não conferiu idoneidade a qualquer rito confessional específico, para celebração do casamento religioso. A lacuna da lei não pode ser suprida por ato administrativo da corregedoria, ainda que de natureza decisória, pois foge à sua competência definir o que é religião ou estabelecer um rol taxativo de religiões idôneas para a celebração.

            o Os casamentos religiosos, celebrados sob a égide dos credos tradicionais, a exemplo do catolicismo, são legitimados pelo costume, fonte supletiva (LICC, art. 4º ) que deriva de longa prática uniforme, constante, pública geral de determinado ato, com a convicção de sua necessidade jurídica.

            o A decisão administrativa recorrida não acarreta qualquer prejuízo aos administrados, vez que estes têm a opção de realizar duas cerimônias autônomas de casamento: uma civil, para produção de efeitos jurídicos; outra religiosa, para satisfação pessoal dos nubentes, segundo os ritos da crença que professam.

            É como eu penso. À superior consideração.

            (Dr. Joselito Rodrigues de Miranda Júnior – Juiz Corregedor da 4ª Região).

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Sobre o autor
Carlos Bernardo Loureiro

Advogado, Delegado da Confederação Espírita Pan-Americana, Membro do Instituto de Cultura Espírita do Brasil, Presidente da Sociedade de Pesquisas e Estudos Espíritas da Bahia - SPEE-BA e do Teatro Espírita Leopoldo Machado - TELMA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOUREIRO, Carlos Bernardo. Casamento religioso espírita é ato inexistente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 885, 5 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16655. Acesso em: 24 abr. 2024.

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