MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA
Nº 899/2009 – BPS
PETIÇÃO Nº 7436/PR (2009/0153110-3)
REQUERENTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL – INSS REQUERIDA: TAIRINE BOUMAIER
RELATOR: MINISTRO JORGE MUSSI – TERCEIRA SEÇÃO
EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO RELATOR:
JUIZADO ESPECIAL FEDERAL. MENOR SOB GUARDA JUDICIAL. DEPENDÊNCIA ECONÔMICA. PENSÃO POR MORTE DOS AVÓS. UNIFORMIZAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA. LEI N° 10.259/2001 (ART. 14, § 4º). INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 16, § 2º, DA LEI Nº 8.213/91, NA REDAÇÃO DA LEI Nº 9.528/97, QUE EXCLUIU DO MENOR SOB GUARDA JUDICIAL A CONDIÇÃO DE DEPENDENTE DOS AVÓS.
- O menor sob guarda judicial, provada a dependência econômica, faz jus aos benefícios previdenciários, porque o art. 16, § 2º, da Lei nº 8.213/91, na redação dada pela Lei nº 9.528/97, na parte em que o excluiu do rol de dependentes do segurado, colide com a Constituição Federal, porque esta assegura ao menor sob GUARDA JUDICIAL tanto a "garantia de direitos previdenciários" (CF, art. 227, § 3º, II) como o "estímulo do poder público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de GUARDA, de criança ou adolescente órfão ou abandonado" (CF, art. 227, § 3º, VI).
- Argüição incidenter tantum de inconstitucionalidade do art. 16, § 2º, da Lei nº 8.213/91, com a redação da Lei nº 9.528/97, que, contanto que admitida como prejudicial pela Egrégia 3ª Seção do STJ, implicará a suspensão do julgamento do pedido de unificação de jurisprudência e a submissão do incidente de inconstitucionalidade à deliberação da Corte Especial, competente para decidir o incidente, ex vi dos arts. 97 da Constituição Federal, 480 e 481 do CPC e 200 do RISTJ e da Súmula Vinculante n° 10 do STF.
- A discriminação introduzida pelo art. 16, § 2º, Lei 8.213/91, redação da Lei 9.528/97, ao excluir o menor sob guarda judicial da condição de dependente do segurado, afronta igualmente o princípio constitucional da isonomia, previsto no art. 5º, caput, da CF/88, pois, do ponto de vista essencial – não propriamente do nomen iuris do instituto jurídico sob cuja tutela vivem –, os menores sujeitos a guarda judicial de outrem necessitam dos mesmos cuidados e da mesma proteção estatal dispensada aos tutelados e aos adotados, tanto para os cuidados da saúde como diante do infortúnio da morte do guardião, tutor ou adotante.
- A declaração de inconstitucionalidade do art. 16, § 2º, da Lei nº 8.231/91, redação da Lei nº 9.528/97, implica a restauração do direito anterior do menor sob guarda judicial à proteção previdenciária, porque tal declaração de inconstitucionalidade implica que o art. 16, § 2º, da Lei nº 8.231/91, com a redação anterior à Lei nº 9.528/97, jamais perdeu eficácia. Lei inconstitucional não tem vigência, validade ou eficácia para revogar a lei anterior compatível com a Constituição Federal.
- Pedido de concessão de liminar, até decisão final da argüição de inconstitucionalidade, no sentido da RECONSIDERAÇÃO DO DESPACHO QUE DEFERIU LIMINAR NO INCIDENTE DE UNIFICAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA formulado pelo INSS e suspendeu o curso de todos os processos contendo idêntica pretensão, em curso nos Juizados Especiais Federais.
- Pedido de submissão do incidente de inconstitucionalidade à deliberação prévia da Egrégia 3ª Seção que, admitindo-o, deverá, por sua vez, submetê-lo à deliberação da Egrégia Corte Especial, com a suspensão do julgamento do pedido de uniformização da jurisprudência, até julgamento final da preliminar de inconstitucionalidade ora suscitada.
- Pedido final no sentido da improcedência do incidente de uniformização da jurisprudência, porque a inconstitucionalidade do art. 16, § 2º, da Lei nº 8.231/91, com a redação da Lei nº 9.528/97, implica a restituição da vigência, validade e eficácia do direito anterior do menor sob guarda judicial à proteção previdenciária.
O Ministério Público Federal, através do Subprocurador-Geral da República signatário, com atribuições especiais para atuar junto à Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência, conforme Portaria n° 215, de 07.05.2008, do Senhor Procurador-Geral da República, nos termos do art. 4º da Resolução n° 390, de 17.09.2004, do Egrégio Conselho da Justiça Federal, vem respeitosamente à presença de Vossa Excelência argüir, como medida de natureza incidental, a inconstitucionalidade do art. 16, § 2º, da Lei nº 8.213/91 (redação da Lei nº 9.528/97), consoante se passa a expor, declarar e requerer.
DO PROCEDIMENTO ACERCA DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE INCIDENTER TANTUM
Antes de adentrarmos na discussão meritória da inconstitucionalidade, que nos seja lícito registrar que a argüição incidental de inconstitucionalidade, como do conhecimento comum, é questão prejudicial ao julgamento da causa principal pela Colenda 3ª Seção, julgamento que deverá ficar sobrestado, uma vez admitido o juízo de inconstitucionalidade, até a solução final deste incidente, para o qual é competente a Corte Especial, consoante, aliás, vem inscrito, respectivamente, no art. 97 da Constituição Federal, nos arts. 480 e 481 do Código de Processo Civil, na Súmula Vinculante n° 10 e no art. 200 do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, a seguir transcritos:
Constituição Federal:
"Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público."
Código de Processo Civil:
"Art. 480. Argüida a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público, o relator, ouvido o Ministério Público, submeterá a questão à turma ou câmara, a que tocar o conhecimento do processo."
"Art. 481. Se a alegação for rejeitada, prosseguirá o julgamento; se for acolhida, será lavrado o acórdão, a fim de ser submetida a questão ao tribunal pleno.
Parágrafo único. Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão."
Súmula Vinculante n° 10:
"Súmula Vinculante n° 10: "Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, art. 97) a decisão de órgão fracionário de Tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte."
RISTJ, art. 200:
"Art. 200. A Seção ou a Turma remeterá o feito ao julgamento da Corte Especial quando a maioria acolher argüição de inconstitucionalidade por ela ainda não decidida."
Destaca-se, em síntese, que consoante o disposto no art. 97 da Constituição Federal, somente pelo voto da maioria absoluta dos membros da Corte Especial será possível a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público. Outros órgãos fracionários, como no caso das Turmas ou Seções do Superior Tribunal de Justiça, não têm essa atribuição, conforme tem decidido o Supremo Tribunal Federal (RE-AgR 156557 - RTJ 151/302; RE-AgR 142652 – RTJ 148/923; RE-AgR 147702 – RTJ 147/1079 e Súmula Vinculante n° 10), devendo apenas, ao reconhecer a presença da eiva de inconstitucionalidade, submeter a apreciação desta preliminar à Corte Especial.
No caso concreto, acolhida que seja a argüição de inconstitucionalidade, pela Colenda 3ª Seção, nos termos do art. 481 do CPC, a questão deverá ser submetida à Corte Especial, à qual compete apreciar, com exclusividade, o incidente.
Por outro lado, o parágrafo único do art. 481 do CPC exige que semelhante argüição de inconstitucionalidade não tenha sido ainda objeto de pronunciamento da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça e do Plenário do Supremo Tribunal Federal, o que é exatamente o caso de que se trata.
A propósito, esclarece o Ministério Público Federal, na pessoa do Signatário, que, durante as pesquisas realizadas para a elaboração deste incidente, não encontrou (tanto na Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça como no Plenário do Supremo Tribunal Federal) sequer referência a algum feito em que haja sido apreciada a argüição de inconstitucionalidade do art. 16, § 2º, da Lei nº 8.213/91, com a redação dada pela Medida Provisória nº 1.523/96, convertida, após numerosas reedições, na Lei nº 9.528-97, que excluiu o menor sob guarda judicial do rol de dependentes dos segurados do Regime Geral de Previdência Social.
SOBRE AS QUESTÕES DE FATO E DE DIREITO ACERCA DA CAUSA PRINCIPAL
Na origem, trata-se de pedido de uniformização da interpretação da lei federal, formulado pelo INSS, buscando arrimo no art. 14, § 4º, da Lei n° 10.259/2001, sob alegação de que a orientação acolhida pela Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais (TNU) teria contrariado a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Apreciando o caso, Vossa Excelência houve por bem deferir liminar para suspender o andamento dos processos em curso em que esteja em discussão o direito de menores sob guarda judicial aos benefícios inerentes à sua condição de dependente do segurado para fins previdenciários.
Passando ao caso concreto, este se refere a uma criança que esteve sob a guarda judicial da avó, durante 12 anos, mais precisamente desde seus 3 anos de idade, até o falecimento da avó ocorrido quando a criança tinha 15 anos, tudo conforme consta do julgamento do pedido de uniformização da interpretação da lei federal, mais precisamente, no voto proferido perante a Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais (TNU) pelo eminente Relator, o Juiz Federal OTÁVIO HENRIQUE MARTINS PORT, nestes termos:
"... no presente caso concreto, conforme se observa da sentença, que foi mantida pela E. Segunda Turma Recursal do Paraná, a autora possuía, na data do falecimento de sua avó, em 12/05/06, 15 (quinze) anos de idade, constando ainda dos autos que a autora estava sob guarda da segurada falecida desde 1994. Permaneceu, portanto, a autora, sob guarda de sua avó desde os 3 anos de idade, razão pela qual está plenamente configurada a situação ensejadora da concessão do benefício previdenciário, estando ainda comprovada a dependência econômica." (fls. 203-v.).
A propósito, conforme consta das certidões de fls. 14 e 15, a guarda judicial foi deferida, em 04.02.1994, a ambos os avós da menor, então com 3 anos de idade, pois nascida em 28.01.1991.
E da inicial, ajuizada em 29.01.2007, consta que ele foi criada e sustentada pelos avós, "desde o seu nascimento, em 1991, sendo a situação legalizada em 1994, através dos autos n° 33/93, de Ação de Guarda" (fl. 2).
Consta ainda que "a dependência da autora em relação aos avós se manteve até o falecimento do avô", quando "então passou a viver sob as expensas exclusivamente da avó", que "era aposentada e recebia pensão por morte de seu falecido marido, com os quais mantinha a menor, autora da presente ação" (fl. 2).
E também na inicial, além de constar a genitora da menor como "solteira" e "do lar", consta ainda que a neta "desde o nascimento viveu sob as expensas de seus avós. Com a morte do avô, sua avó continuou a lhe garantir todo o sustento, educação e todas as necessidades da menor" (fl. 3, in fine).
Dos documentos pertinentes não consta o nome do genitor da menor sob guarda judicial, o que implica dizer que se trata de criança cuja paternidade não foi reconhecida, por isso que os avós assumiram a responsabilidade pela criação da neta.
E tanto parecem acertadas estas considerações, a partir dos fatos narrados na inicial, que a contestação do INSS não impugnou a matéria de fato. Apenas alega que à autora incumbiria a prova da dependência econômica à avó.
Isto implica presunção de veracidade das questões de fato postas na inicial, ex vi do art. 302 do Código de Processo Civil, ipsis verbis:
"Art. 302 . Cabe também ao réu manifestar-se precisamente sobre os fatos narrados na petição inicial. Presumem-se verdadeiros os fatos não impugnados ...".
E o conhecimento da situação de fato já não era tão nova para o INSS, haja vista que, quando do falecimento do avô, a neta requereu lhe fosse deferida pensão, o que foi indeferido, pelo INSS, ao fundamento de que não poderia incluir a neta porque a avó, que tinha preferência sobre ela, estava recebendo a pensão (parecer de fls. 18/19, reiterado às fls. 27/28).
A prova oral é indicativa da dependência econômica, a partir do depoimento pessoal da autora e do testemunho de uma vizinha (fls. 69 e 70), tanto que na sentença restou assentado, in his verbis:
"... tenho como inequívoca a relação de dependência econômica da autora em relação à segurada falecida" (fl. 76-v.).
O recurso do INSS (fls. 80/85), não cuidou de refutar os fatos e circunstâncias que conduziram a um juízo positivo na sentença acerca da dependência econômica da neta,"filha de mãe solteira", conforme resumem as contra-razões (fls. 95, § antepenúltimo).
Subindo os autos, a 2ª Turma Recursal ainda "requisitou mais provas para firmar o convencimento e diante da prova inequívoca da dependência econômica mantiveram a decisão de procedência do pedido" (contra-razões ao pedido de uniformicação, fl. 151, in médio).
Desprovido o recurso do INSS pela 2ª Turma Recursal no Paraná (fls. 110/111), veio com o pedido de uniformização, para a Turma Nacional (fls. 113/124).
Ao apreciar o pedido de unificação referente a este caso, a TNU conheceu do pedido formulado pelo INSS e negou-lhe provimento e, consequentemente, reconheceu a condição de dependente da menor sob guarda, em decisão sintetizada na ementa do v. acórdão, nestes termos:
"PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. MENOR SOB GUARDA. DEPENDENTE DO SEGURADO. EQUIPARAÇÃO A FILHO. ART. 16, PARÁGRAFO 2º, DA LEI 8213/91. REDAÇÃO ALTERADA PELA LEI 9528/97. ART. 33, PARÁGRAFO 3º, DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. CONFLITO APARENTE DE NORMAS. INCOMPATIBILIDADE MATERIAL DO ART. 16, PARÁGRAFO 2º, DA LEI 8213/91, COM O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ART. 227, PARÁGRAFO 3º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. GUARDA E TUTELA. FORMAS TEMPORÁRIAS DE COLOCAÇÃO DE MENORES EM FAMÍLIAS SUBSTITUTAS. INEXISTÊNCIA DE DISCRIMEN VÁLIDO ENTRE AS DUAS SITUAÇÕES PARA FINS DE CONCESSÃO DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO.
1. Constatação de divergência entre o acórdão impugnado e o julgado da Turma Recursal do Rio de Janeiro, colacionado como paradigma.
2. A Lei n.º 9.528/97, dando nova redação ao art. 16, parágrafo 2º, da Lei de Benefícios da Previdência Social, suprimiu o menor sob guarda do rol de dependentes do segurado. O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 33, § 3º, da Lei n.º 8.069/90, confere ao menor sob guarda a condição de dependente para todos os efeitos, inclusive previdenciários. Resta configurado, portanto, o conflito aparente de normas.
3. A questão referente ao menor sob guarda deve ser analisada segundo as regras e princípios constitucionais de proteção ao menor, principalmente em observância ao princípio da proteção integral do menor, previsto no art. 227 da Constituição Federal. Cabe ao poder público e à sociedade o dever de proteção da criança e do adolescente, garantindo-lhe direitos previdenciários e trabalhistas, nos termos do art. 227, caput, e § 3º, da Constituição Federal.
4. Incompatibilidade material do art. 16, parágrafo 2º, da Lei 8213/91, em face dos princípios da proteção integral da criança e do adolescente, e da universalidade da cobertura e do atendimento da Seguridade Social.
5. O art. 16, parágrafo 2º, da Lei 8213/91, faz ainda distinção injustificável entre o menor sob guarda e o menor sob tutela, ao preservar ao segundo a possibilidade de constar como dependente, excluindo o primeiro. Ambos os institutos são formas temporárias de colocação de menores em famílias substitutas, ferindo tal discriminação o princípio da isonomia, em virtude da flagrante discrepância do discrímen utilizado para a desequiparação em confronto com os princípios constitucionais, principalmente o já mencionado princípio da proteção integral ao menor.
6. O menor sob guarda também deve ser equiparado a filho, devendo-se conceder o benefício, desde que comprovada a sua dependência econômica, nos mesmos termos assegurados ao menor sob tutela. 7. Pedido de Uniformização conhecido e improvido.
" (fls. 209/209v.). [São nossos os destaques].
A preponderância do princípio constitucional da proteção integral da criança e do adolescente mereceu lugar de destaque no voto condutor do v. acórdão, do qual pedimos vênia por transcrever os seguintes fundamentos:
"(...) em relação às crianças e adolescentes, faz-se mister salientar o princípio da proteção integral, consubstanciado no art. 227 da Constituição Federal, segundo o qual é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Em seu parágrafo 3º, o aludido dispositivo constitucional consagra ainda a garantia de direitos previdenciários e trabalhistas às crianças e adolescentes.
Consagrou-se, portanto, na Carta Magna, conhecida à época de sua promulgação como Constituição cidadã, o princípio da proteção integral, em plena consonância com o espírito democrático e pluralista que informa todo o texto constitucional, bem como dando densidade normativa ao princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa brasileira (art. 1º, inciso III, da CF).
Observe-se ainda que a responsabilidade em assegurar esses direitos à criança e ao adolescente é solidária, tendo sido diluída igualmente entre família, sociedade e Estado, de modo que a assunção da responsabilidade por um deles não exclui a responsabilidade dos demais, cada um atuando no seu respectivo âmbito de competências, tudo voltado à ampla e irrestrita garantia de proteção ao menor.
De outra parte, no âmbito da Seguridade Social, sobreleva assentar que um dos seus objetivos é justamente assegurar a universalidade da cobertura e do atendimento, obedecendo à seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços, de acordo com o artigo 194, parágrafo único, incisos I e III, da Lei Maior.
Vê-se, portanto, que, ao menos no âmbito constitucional, não há qualquer antinomia principiológica. Tanto os princípios que regem o subsistema da Seguridade Social como aqueles que informam o subsistema da proteção da criança e do adolescente apontam no mesmo sentido, vale dizer, na cobertura do atendimento aos menores e adolescentes, representada pela garantia de seu direito mais básico, qual seja, o direito à subsistência.
A partir dessa premissa, pode-se diferenciar de forma irrefutável as normas cujo conflito é objeto da presente demanda: de um lado, a norma constante do art. 33, parágrafo 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que objetiva a densificação do princípio da proteção integral, estabelecendo que a guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, inclusive para os fins previdenciários, em plena consonância com os preceitos constitucionais: de outra banda, a previsão contida no art. 16, parágrafo 2º, da Lei 8213/91, que caminha em sentido contrário aos princípios constitucionais, negando a este mesmo menor sob guarda a condição de dependente, excluindo-o da proteção previdenciária.
De rigor, portanto, afastar-se a aplicação do artigo 16, parágrafo 2º, ao caso concreto, em face de sua patente incompatibilidade material com os princípios constitucionais que regem a matéria, principalmente o da proteção integral da criança e do adolescente, cuja responsabilidade é não só da família do menor, mas também da sociedade e do Estado. Impende ainda salientar que o magistrado, ao prestar a atividade jurisdicional, deve-se pautar pelo fim social a que se destina a lei, afastando-se da aplicação cega e isolada dos dispositivos normativos, quando estes dissociam a justiça da lei.
Conforme preconiza o artigo 5º da LICC na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. O fim social da lei previdenciária é abarcar as pessoas que foram acometidas por alguma contingência da vida e que dependam de um auxílio estatal que possa mitigar as conseqüências advindas dessa adversidade, de forma a cumprir o Estado o seu papel de assegurar a dignidade da pessoa humana a todos, em especial ao menor, cuja proteção tem absoluta prioridade.
É de se observar ainda que o artigo 16 faz uma distinção injustificável entre o menor sob guarda e o menor sob tutela, ao preservar ao segundo a possibilidade de constar como dependente, excluindo o primeiro.
Trata-se de discriminação que fere o princípio da isonomia, em virtude da flagrante discrepância do discrimen utilizado para a desequiparação em confronto com os princípios constitucionais, mormente o já propalado princípio da proteção integral do menor.
Nesse ponto, trago à colação os judiciosos comentários dos ilustres Juízes Federais Daniel Machado da Rocha e José Paulo Baltazar Júnior, que, ao discorrerem sobre os dois institutos, asseveram que ambas são formas temporárias de colocação de menores em famílias substitutas, devido ao abandono dos pais ou orfandade. Prosseguem os ilustres doutrinadores afirmando que:
"A guarda prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente pode ser deferida nas seguintes hipóteses: a) incidentalmente nos procedimentos de tutela e adoção (parágrafo 1º do art. 33 do ECA); e b) excepcionalmente, para atender situações peculiares, ou suprir a falta eventual dos pais ou responsáveis (parágrafo 2º do art. 33 do ECA). A tutela, por sua vez, destina-se, principalmente, à preservação dos bens do órfão e, nos termos do parágrafo único do art. 36 do ECA: pressupõe a prévia decretação da perda ou suspensão do pátrio poder e implica necessariamente o dever de guarda. Como se vê, a tutela é um plus em relação à guarda, já que esta não requer a suspensão ou destituição do pátrio poder." (in "Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social", oitava edição, Editora Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2008, p. 101/102).
Nesse compasso, e em face da similitude dos institutos de guarda e de tutela, ambos voltados à proteção de menor afastado de sua família, a melhor exegese do artigo 16, § 2º, da Lei 8.213/91, é no sentido de que o menor sob guarda também deve ser equiparado a filho, devendo-se conceder o benefício, desde que comprovada sua dependência econômica, nos mesmos termos assegurados ao menor sob tutela, sob pena de se ferir a garantia constitucional de proteção do menor.
Não pode o Magistrado ignorar, nesse passo, a possibilidade da utilização irregular do instituto da guarda com o fito precípuo da obtenção do benefício previdenciário. Entretanto, a eventual desvirtuação do instituto não pode servir como fulcro de discriminação odiosa que acaba por excluir o menor sob guarda da proteção previdenciária.
Cabe ao Juiz analisar, no caso concreto, se restou regularmente comprovada a dependência econômica do menor sob guarda em relação ao segurado falecido, denegando a concessão do benefício previdenciário em caso de não comprovação.
Também nesse ponto, valho-me das lições de Daniel Machado da Rocha e José Paulo Baltazar Junior:
´A guarda, como qualquer instituto jurídico, também está sujeita a ser empregada com desvio de finalidade.
Contudo, a restrição geral não é a melhor solução, pois deixa ao desamparo previdenciário um número grande de situações nas quais haveria dependência econômica merecedora da tutela previdenciária.
Assim, conflitando a lei ordinária com preceito constitucional, a exclusão é, neste ponto, inconstitucional, valendo a exigência da comprovação da dependência econômica, o que nos parece acertado – configurando uma situação menos gravosa – em face do grande número de situações em que a guarda é postulada com o único fito de assegurar direitos previdenciários indevidamente.
De registrar, porém, que a guarda, como forma de colocação em família substituta que é, pressupõe a orfandade ou a perda do poder familiar pelos pais, não podendo ser entendida como tal a mera situação de dependência econômica com terceiro, como as avós, quando a criança vive com os pais.´" (in "Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social, oitava edição, Editora Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2008, p. 102)." [fls. 201/203-v.].
Após o julgado da Turma Nacional, foram aviados embargos declaratórios, rejeitados (fl. 232), e daí o incidente de uniformização suscitado pelo INSS perante o Superior Tribunal de Justiça (fls. 236/241), além da interposição de recurso extraordinário (fls. 242/262).
Por decisão do eminente Ministro HAMILTON CARVALHIDO, Presidente da Turma Nacional, o pedido de uniformização foi admitido por decisão de fls. 265/269 e também foi admitido o recurso extraordinário, "uma vez que o acórdão impugnado afastou a incidência da lei federal por considerá-la incompatível com a Constituição Federal" (fls. 270/276).
Por força da decisão de fls. 280/282, ao entendimento de que restou configurada a divergência, Vossa Excelência houve por bem deferir liminar para "evitar decisões conflitantes durante o processamento deste incidente", determinando "a suspensão dos processos nos quais tenha sido estabelecida mesma controvérsia, a teor do disposto nos §§ 5º e 6º do art. 14 da Lei 10.259/2001" (fl. 281, já para o fim).
Solicitadas informações, prestou-as o Excelentíssimo Senhor Presidente da Turma Nacional de Uniformização (fls. 446/464).
E o Ministério Público Federal, em parecer de fls. 490/496, na sequência, opinou pela procedência do pedido de uniformização, embora com ressalva do entendimento pessoal, curvando-se, entretanto, ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que entende como divergente do v. acórdão impugnado.
O que mais releva, entretanto, é que o tema de fundo constitucional foi amplamente debatido tanto na Turma Recursal como perante a Turma Nacional, tal qual foi exposto no voto do Juiz Federal Relator, tendo sido a decisão favorável fundamentada na garantia de proteção integral à criança e ao adolescente inscrita no art. 227 da Constituição Federal.
E, assim, percebe-se facilmente que o v. acórdão proferido pela TNU, diante da incompatibilidade material entre a norma inscrita no art. 16, § 2º, da Lei 8.213/91 (redação atual) e os preceitos do art. 227 da Constituição Federal (que garantem prioridade ao direito da criança e do adolescente, notadamente quanto ao direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de atribuir à família, à sociedade e ao Estado o dever de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão), decidiu o caso conforme a Constituição Federal, afastando a incidência da norma inconstitucional.
Que nos seja lícito, aqui, fazer um retrospecto acerca das normas legais e constitucionais que incidem sobre a hipótese do menor sob guarda judicial, reconhecendo-lhe o direito aos benefícios da previdência social, em igualdade de condições com o filho do guardião.
Aliás, a proteção ao menor sob guarda e sob tutela já faz parte da própria história da legislação previdenciária, que, há mais de meio século, vem proporcionando especial proteção aos menores, quer àqueles sob a condição de designados, quer àqueles sob tutela ou guarda judicial do segurado, conforme exsurge, por exemplo, a partir do disposto no art. 11, II, e § 2º, "b", da Lei n° 3.807, de 26.08.1960, na redação do Decreto-lei n° 66, de 21.11.1966, assim redigidos:
"Art. 11. Consideram-se dependentes dos segurados, para os efeitos desta Lei: (...)
II - a pessoa designada, que, se do sexo masculino, só poderá ser menor de 18 (dezoito) anos ou maior de 60 (sessenta) anos ou inválida; (...)
§ 2º Equiparam-se aos filhos, nas condições estabelecidas no item I, e mediante declaração escrita do segurado: (...)
b) o menor, que, por determinação judicial, se ache sob sua guarda; (...)."
Na redação primitiva da Lei nº 3.807, de 26.08.1960, já estava contemplada a pessoa designada, conforme art. 11, § 1º, que dispunha:
"§ 1º O segurado poderá designar, para fins de percepção de prestações, uma pessoa que viva sob sua dependência econômica, inclusive a filha ou irmã maior, solteira, viúva ou desquitada."
Posteriormente, a Consolidação das Leis da Previdência Social aprovada pelo Decreto nº 77.077, de 24.01.1976, e os demais diplomas que se lhe seguiram, sempre consideraram o menor sob guarda como dependente do guardião. Dizia o Decreto nº 77.077, de 1976:
"Art. 13. Consideram-se dependentes do segurado, para os efeitos desta Consolidação:
I - a esposa, o marido inválido, a companheira mantida há mais de 5 (cinco) anos, os filhos de qualquer condição menores de 18 (dezoito) anos ou inválidos e as filhas solteiras de qualquer condição menores de 21 (vinte e um) anos ou inválidas;
(...).
§ 2º - Equiparam-se aos filhos, nas condições do item I, mediante declaração escrita do segurado:
a) o enteado;
b) o menor que, por determinação judicial, se ache sob sua guarda;
c) menor que se ache sob sua tutela e não possua bens suficientes para o próprio sustento e educação."
Idêntica proteção ao menor sob guarda judicial confirmou sendo, depois, reconhecida pelo Decreto n° 89.312, de 23.01.1984, em seu art. 10, § 2º, "b", diga-se de passagem, em plena harmonia com a Lei n° 3.807, de 26.08.1960 (Lei Orgânica da Previdência Social) vigente à época.
Em reforço a estes tradicionais preceitos, e neles inspirada, veio a Constituição de 1988, que, em seu art. 227, caput, e § 3º, incisos II e VI, estabeleceu o seguinte:
"Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
(...).
§ 3º - O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:
(...).
II - garantia de direitos previdenciários;
(...)
VI - estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de GUARDA, DE CRIANÇA OU ADOLESCENTE órfão ou abandonado (...)". [Grifamos].
Em consonância com o Texto Maior, ao tratar sobre o instituto da guarda, o Estatuto da Criança e do Adolescente, publicado em 13.07.1990, no seu art. 33, § 3º, dispôs:
"Art. 33. A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais.
(...).
§ 3º A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários." [Grifamos].
Na mesma linha de inspiração constitucional, foi baixada a Lei n° 8.213, de 24.07.1991, que dispõe sobre os planos de benefícios da Previdência Social, cujo art. 16, § 2º, em sua redação originária, estabelecia que:
"Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:
I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qual condição, menor de 21 anos ou inválido;
(...)
§ 2º Equiparam-se a filho, nas condições do inciso I, mediante declaração do segurado: o enteado; o menor, que, por determinação judicial, esteja sob a sua guarda; e o menor que esteja sob sua tutela e não possua condições suficientes para o próprio sustento e educação." [Grifamos].
Como se vê da transcrição, em sua redação primitiva, o art. 16, § 2º, da Lei nº 8.213/91 se apresentava em perfeita harmonia com a Constituição Federal (art. 227, caput, e § 3º, incisos II e VI).
Contudo, veio a ser editada a Medida Provisória n° 1.523, de 11/10/96 (DOU 14.10.1996), convertida na Lei nº 9.528, de 10.12.1998, passando o referido dispositivo a ter a seguinte redação:
"§ 2º O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento."
Como visto, com a nova redação do art. 16, § 2º, da Lei n° 8.213/91, dada pela Lei n° 9.528/97, o menor sob guarda judicial deixou de ser incluído, como era antes, no rol de dependentes do segurado para fins de benefício previdenciário, o que configura evidente tratamento discriminatório e incompatível com o princípio constitucional da proteção integral ao menor, independente de sua condição pessoal.
Ocorre, todavia, que o Estatuto da Criança e do Adolescente, no que tange à matéria, não foi modificado, conservando-se, este sim, em perfeita harmonia com as disposições de nossa Constituição Federal.
Certo é que a nova redação do art. 16, § 2º, da Lei nº 8.213/91 fez com que expressiva quantidade de demandas, principalmente através de ações civis públicas aforadas pelo Ministério Público Federal, chegassem à Justiça Federal, e perante esta, dos precedentes que encontramos, a maioria deles se posicionou no sentido da garantia constitucional da proteção à infância e à adolescência, ou seja, da proteção ao menor sob guarda judicial, tendo-o reconhecido como dependente do segurado e beneficiário para fins de proteção dos órgãos de previdência social, evidentemente, durante a menoridade.
À guisa de exemplo dos inúmeros julgados favoráveis à infância e à adolescência, no caso de guarda judicial, contrários à pretensão do INSS aqui manifestada, pode ser lembrado o da Ação Civil Pública nº 97.0057902-6, proposta pelo Ministério Público Federal, que tramitou perante a 7ª Vara Federal da 1ª Subseção Previdenciária da Circunscrição Judiciária do Estado de São Paulo, cujo pedido foi julgado procedente em 1º Grau e confirmado, via apelação cível, pelo TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO, em recente acórdão que hospedou o entendimento no sentido de que:
"(...) a atual redação do art. 16, § 2º, da Lei (8.213/91) não observa os mandamentos constitucionais de proteção integral e prioritária à criança e ao adolescente, com a garantia de direitos previdenciários (art. 227, § 3º, II, da CF), em razão de sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Desprestigia o acolhimento do menor, sob a forma de guarda, à revelia da disposição do art. 227, § 3º, segundo a qual "a guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários" (...) "é a guarda que confere a tutela cautelar assistencial e social, ao lado da simples administração do patrimônio do tutelado. Os deveres do tutor de dirigir a educação, defender e prestar alimentos ao menor (art. 1.740, CC) confundem-se com o próprio conteúdo da guarda (art. 33, caput, do ECA). Ambos os institutos prestam à proteção da criança ou do adolescente que, por alguma das razões legais, não tem, em sua família originária, a garantia dos direitos à vida e desenvolvimento plenos. A finalidade protetiva permite incluir o menor sob guarda na expressão "menor tutelado" do § 2º do art. 16 da Lei nº 8.213/91." (Apelação Cível nº 2007.03.99.042384-4). [Os grifos são nossos].
Também o TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃO hospedou julgamento favorável ao menor sob guarda judicial, acolhendo pedido do Ministério Público Federal em ação civil pública, conforme ementa do v. acórdão, nestes termos:
"PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO - PROTEÇÃO DE INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS DE MENORES - GUARDA JUDICIAL - DEPENDÊNCIA PREVIDENCIÁRIA - SUPRESSÃO - INEXISTÊNCIA.
1.O Ministério Público Federal tem legitimidade para propor ação civil publica visando à condenação do INSS a admitir os menores sob guarda judicial como dependentes previdenciários dos respectivos guardiães, não apenas pelo elevado interesse social do tema como ainda pela norma do art. 210, V, da Lei 8.069, que se amoldam ao art. 127 da Lei Maior.
2.Pode ser apreciada, em ação civil pública, incidenter tantum, a alegada inconstitucionalidade de norma legal, porque a coisa julgada, mesmo sendo erga omnes (art. 16 da LACP), restringe-se ao que foi pedido pela parte, como questão principal, e efetivamente decidido pelo Estado-juiz (arts. 468 e 128 do CPC), não abrangendo as questões prejudiciais (art. 469, III, do CPC c/c. art. 19 da LACP), pelo que inexiste indevida equiparação às decisões do Supremo Tribunal Federal, em controle concentrado de constitucionalidade, nem usurpação da competência constitucional do Supremo.
3.As crianças e adolescentes sob guarda, nos termos do art. 33, § 3º, do ECA, são dependentes, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários, de seus guardiães, não sendo admissível a derrogação deste dispositivo pela Lei nº 9.528/97, porquanto se trata de leis especiais e, além do mais, o direito em questão tem fundamento constitucional (art. 227, § 3º, II e VI). Vencido, em parte, o relator, que acolhia a argüição de inconstitucionalidade e submetia a questão ao Órgão Especial, nos termos dos arts. 97 da CF e 481 do CPC."
Da mesma forma, decidiu o TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5ª REGIÃO, ao confirmar decisão da Justiça Federal proferida nos autos da Ação Civil Pública nº 98.0000595-1, igualmente proposta pelo Ministério Público Federal, em v. acórdão assim ementado:
"PREVIDENCIÁRIO E CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CABIMENTO. MENOR SOB GUARDA JUDICIAL. PENSÃO POR MORTE. SUPRESSÃO. INCONSTITUCIONALIDADE. EXISTÊNCIA.
- Ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal, visando a compelir o INSS a considerar o menor sob guarda como dependente equiparado ao filho do segurado da Previdência Social, a despeito da supressão de tal possibilidade pela Lei nº 9528/97.
- Em sede de controle difuso de constitucionalidade, a verificação da compatibilidade das normas concretamente aplicadas à lide, com o Texto Constitucional, pode ser feita independentemente de provocação pelas partes, considerando-se a máxima de que o juiz conhece o direito aplicável (juria novit cúria).
- Considerando-se que se cuida de discussão acerca de direitos indisponíveis de menores e a repercussão social da decisão, abrangendo todo o universo de segurados da Previdência no Estado de Sergipe, é cabível a ação civil pública promovida pelo Ministério Público Federal (CF, arts. 127 e 129).
- A criança e o adolescente, através da Constituição Federal de 1988 (art. 227), goza de proteção dos direitos fundamentais à vida e à dignidade humana com todas as repercussões deles emanadas, não cabendo ao legislador ordinário impor-lhes qualquer limitação ao exercício desses direitos.
- Dentre os direitos à proteção especial conferidos pelo legislador constituinte, à criança e ao adolescente, encontra-se a garantia de direitos previdenciários e trabalhistas.
- A guarda está definida no art. 33 do ECA como a situação jurídica constituída que obriga à prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais e o seu § 3º, também, confere à criança ou adolescente a condição de dependente para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários, como não poderia deixar de ser, tendo em vista a subordinação de seu texto aos ditames constitucionais.
- O Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído pela Lei nº 8069/90, é de cunho especial e, portanto, há de prevalecer suas disposições sobre todas as demais de natureza genérica, tal como a da Lei nº 8.213/91, ou a de nº 9528/97 que, ao modificar-lhe a redação, excluiu o menor sob guarda do rol de dependentes dos segurados da Previdência Social, negando-lhe, assim, a proteção previdenciária inscrita no texto constitucional.
Preliminares rejeitadas e Apelação do INSS improvida."
No mesmo sentido, foi decidido no caso da Ação Civil Pública nº 1999.38.00.004900-0, também proposta pelo Ministério Público Federal, que tramitou perante a 29ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais, na qual foi concedida liminar, que posteriormente foi confirmada por sentença favorável ao menor sob guarda judicial, atualmente aguardando julgamento perante o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, onde, em outro e recente julgamento, foi acolhida a argüição de inconstitucionalidade do art. 16, § 2º, da Lei n° 8.213/91, em decisão que, conforme consta dos registros processuais colhido via internet, passou em julgado.
Também é o mesmo caso da Ação Civil Pública nº 1999.43.00.000326-2, que tramitou perante a 1ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Tocantins, com sentença favorável ao menor, atualmente aguardando julgamento perante o Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
Outra Ação Civil Pública, a de nº 1997.0003837-4, que tramitou perante a 2ª Vara Federal em Florianópolis, também mereceu decisão favorável à tese do Ministério Público Federal, que restou confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em sede de apelação, ficando ali "reconhecido o direito dos menores sob guarda à sua inclusão como dependentes previdenciários, em face do que estabelece o § 3º do art. 33 da Lei 8.069/90 e os arts. 5º e 227 da CF/1988" (Apelação Cível n° 1998.04.01.080271-2).
Enfim, o que mais releva é que todas as ações civis públicas propostas pelo Ministério Público Federal colheram êxito junto a Justiça Federal em 1º Grau e aos Tribunais Federais, no sentido de reconhecer aos menores sob guarda judicial os mesmos benefícios devidos aos dependentes do segurado.
Afinal, pede-se vênia por adotar os fundamentos da argüição de inconstitucionalidade, que exsurge de julgado realizado no dia 20.08.2009, cujo v. acórdão foi publicado no E-DJF1 do dia 21.09.2009, em que a Colenda Corte Especial do Tribunal Regional Federal da Primeira Região houve por bem acolher idêntico incidente suscitado no voto (vogal) do eminente Desembargador Federal CARLOS MOREIRA ALVES, para
"declarar a inconstitucionalidade do § 2º do art. 16 da Lei nº 8.213/91, na parte que excluiu o menor sob guarda judicial do rol dos beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependente do Segurado".
O incidente foi suscitado durante o julgamento de recurso manifestado nos autos da Ação Civil Pública nº 1998.37.00.001311-0/MA, movida pelo Ministério Público Federal, cujo pedido foi julgado procedente em 1º Grau, estando a tese do v. acórdão que reconheceu a inconstitucionalidade daquele preceito (parágrafo 2º do art. 16 da Lei nº 8.213/91) resumida na ementa do v. acórdão, nestes termos:
"CONSTITUCIONAL E PREVIDENCIÁRIO - ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO § 2º DO ART. 16 DA LEI 8.213/91, COM A REDAÇÃO DADA PELA MEDIDA PROVISÓRIA 1.523, DE 11/10/96, REEDITADA E CONVERTIDA NA LEI 9.528/97 - SUPRESSÃO DO MENOR SOB GUARDA JUDICIAL DO ROL DE BENEFICIÁRIOS DO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL, NA CONDIÇÃO DE DEPENDENTE DO SEGURADO - AFRONTA AOS ARTS. 227, § 3º, II E VI, E 5º, CAPUT, DA CF/88 - INCONSTITUCIONALIDADE RECONHECIDA.
I - A redação original do § 2º do art. 16 da Lei 8.213/91 estabelecia que se equiparavam "a filho, nas condições do inciso I, mediante declaração do segurado: o enteado; o menor que, por determinação judicial, esteja sob a sua guarda; e o menor que esteja sob sua tutela e não possua condições suficientes para o próprio sustento e educação."
II - A Medida Provisória 1.523, de 11/10/96, reeditada e convertida na Lei 9.528/97, alterou o aludido § 2º do art. 16 da Lei 8.213/91, para estabelecer que "o enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento", suprimindo, portanto, o menor sob guarda judicial do rol de beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependente do segurado.
III - A Constituição Federal consagra, em relação à criança e ao adolescente, o princípio da proteção integral, cabendo à família, à sociedade e ao Estado o dever de, solidariamente, assegurar-lhes, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, direitos naturais fundamentais (art. 227, "caput", da Carta Magna).
IV - O constituinte elenca, ainda, no § 3º do art. 227 da Carta Maior, sete normas indicativas das obrigações que o legislador ordinário não pode deixar de cumprir, entre as quais destacam-se a garantia, ao menor - criança e adolescente -, dos direitos previdenciários e trabalhistas, e o estímulo do Poder Público ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado.
V - "Sabemos que a supremacia da ordem constitucional traduz princípio essencial que deriva, em nosso sistema de direito positivo, do caráter eminentemente rígido de que se revestem as normas inscritas no estatuto fundamental. Nesse contexto, em que a autoridade normativa da Constituição assume decisivo poder de ordenação e de conformação da atividade estatal - que nela passa a ter o fundamento de sua própria existência, validade e eficácia -, nenhum ato de Governo (Legislativo, Executivo e Judiciário) poderá contrariar-lhe os princípios ou transgredir-lhe os preceitos, sob pena de o comportamento dos órgãos do Estado incidir em absoluta desvalia jurídica." (ADI 2.215/PE, Rel.: Min. Celso de Mello, DJU de 26/04/2001).
VI - Desse modo, a norma contida no art. 16, § 2º, da Lei 8.213/91 - na redação dada pela Medida Provisória 1.523, de 11/10/96, reeditada e convertida na Lei 9.528/97 -, na parte em que exclui o menor sob guarda judicial da condição de dependente, colocando-o à margem da proteção previdenciária estatal, é inconstitucional, pois não se harmoniza com as garantias estabelecidas na Lei Maior, entre elas as do art. 227, caput, § 3º, II e VI, da Carta.
VII - Ademais, a discriminação trazida pela nova redação do § 2º do art. 16 da Lei 8.213/91 - ao excluir o menor sob guarda judicial da condição de dependente do segurado -, afronta, também, o princípio constitucional da isonomia, previsto no art. 5º, caput, da CF/88, pois, do ponto de vista essencial - não do nomen iuris do instituto jurídico sob cuja tutela vivem -, os menores sujeitos à guarda judicial de outrem necessitam dos mesmos cuidados e da mesma proteção estatal dispensada aos tutelados, diante do infortúnio da morte do guardião ou tutor, conforme o caso.
VIII - Acolhimento da arguição de inconstitucionalidade do § 2º do art. 16 da Lei 8.213/91, com a redação dada pela Medida Provisória 1.523, de 11/10/96, reeditada e convertida na Lei 9.528/97, na parte em que excluiu o menor sob guarda judicial do rol dos beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependente do segurado." (INREO 1998.37.00.001311-0/MA, Rel.: Desembargadora Federal Assusete Magalhães, Corte Especial, publicado no e-DJF1 de 21/09/2009, p. 222).
Prevaleceu a tese sustentada no voto proferido pela eminente Desembargadora Federal ASSUSETE MAGALHÃES, cuja transcrição é feita a seguir, na parte que consideramos essencial, a título de fundamentação para o presente incidente de inconstitucionalidade:
"Como visto no relatório, suscita-se, no presente feito, de forma incidental, a inconstitucionalidade do § 2º do art. 16 da Lei 8.213/91, com a redação dada pela Medida Provisória 1.523, de 11/10/96, reeditada e convertida na Lei 9.528/97, que subtraiu, do rol de beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependente do segurado, o menor sob guarda judicial, o qual, na redação anterior, era equiparado a filho, nas condições do inciso I do referido dispositivo legal.
O presente incidente foi suscitado nos autos de ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, na qual visa compelir o INSS a admitir os menores sob guarda judicial como beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na qualidade de dependentes do segurado guardião.
O eminente Desembargador Federal Carlos Moreira Alves, em seu voto-vista, quando da apreciação da remessa necessária, pela 2ª Turma do TRF/1ª Região, bem delineou a questão a ser posta neste incidente de inconstitucionalidade:
" (...) na presente ação civil pública, julgada procedente junto ao primeiro grau da jurisdição, busca o Ministério Público Federal seja compelido o Instituto Nacional do Seguro Social a admitir a inscrição de crianças e adolescentes, sob guarda judicial, como beneficiárias do Regime Geral da Previdência Social, na qualidade de dependentes do segurado. Dos dois fundamentos substantivos da causa de pedir deduzida na lide -necessidade de se reconhecer omissão legislativa na norma inscrita no parágrafo 2° do artigo 16 da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991, com a redação atribuída pela Lei 9.528, de 10 de dezembro de 1997, de modo que, integrada ao disposto no parágrafo 2° do artigo 33 da Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, continue admitida a qualidade, dos menores sob guarda judicial, de beneficiários do Regime Geral de Previdência Social: incompatibilidade, com a ordem constitucional, daquele dispositivo, caso outro seja o entendimento-, louvou-se no primeiro deles a ilustre autoridade judiciária singular para acolher o pleito e, com a negativa de provimento à remessa oficial, posicionou-se Vossa Excelência em igual sentido, como fazem ver os fundamentos de seu douto voto. (...).
De fato, o parágrafo 3° do artigo 33 do Estatuto da Criança e do Adolescente preconiza, de modo genérico, que "a guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários", e nesse mesmo sentido se posicionou, especificamente no âmbito do Regime Geral da Previdência Social, o parágrafo 2° do artigo 16 da Lei 8.213, de 1991, em sua primitiva redação, ao equiparar aos filhos, para percepção dos benefícios nele previstos, mediante declaração do segurado, "o enteado; o menor que, por determinação judicial, esteja sob a sua guarda, e o menor que esteja sob sua tutela e não possua condições suficientes para o próprio sustento e educação". Com a alteração desse texto por força da Lei 9.528/97, fruto da conversão da Medida Provisória 1.523/96 e suas sucessivas reedições, mantendo a equiparação aos filhos, para fins do RGPS, apenas de enteados e menores tutelados, não é possível se pretender, em relação ao menor sob guarda judicial, omissa a disposição posterior e, por via de interpretação, à luz do disposto no preceito protetivo da criança e do adolescente, se lhe atribuir os mesmos sentido e alcance da disposição anterior, como se não houvesse sido ela objeto de qualquer modificação. Se o legislador infraconstitucional, por atuação positiva, específica e proposital, deixou de equiparar a filho, no âmbito do Regime Geral da Previdência Social, o menor sob guarda judicial, o fez com propósito inequívoco de lhe subtrair a qualidade de dependente do segurado, sendo, por óbvio, incompatível com o alcance desse objetivo interpretação da qual resulte mantida esta qualidade.
Não é possível, pois, a meu juízo, se confirmar a sentença pelo fundamento que a inspirou, de índole infraconstitucional, restando, assim, indispensável a análise da alegada incompatibilidade, com a ordem constitucional, da vigente redação do parágrafo 2° do artigo 16 da Lei 8.213/91, no que diz com a exclusão do menor sob guarda do rol dos beneficiários do Regime Geral da Previdência Social.
Nesse particular, tenho como de expressiva razoabilidade a alegação. Com efeito, o artigo 227 da Lei Fundamental é categórico sobre substanciar "dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e Comunitária", explicitando seu parágrafo 3º, inciso II, que o direito a essa proteção especial abarcará a "garantia de direitos previdenciários e trabalhistas". Quer parecer que a alteração legislativa em exame retira do menor sob guarda judicial, dependente do guardião para todos os fins e efeitos de direito, segundo o estatuto protetivo da criança e do adolescente, os direitos previdenciários, deixando-o, quando seja ele dependente de segurado do Regime Geral da Previdência Social, totalmente ao desamparo da previdência estatal. E decerto não poderá ser justificativa válida, para esse desamparo pela previdência estatal, a de ocorrência de abusos na concessão de guardas, pois se é correta a ponderação de que "os fatos claramente abusivos em detrimento do patrimônio do INSS, que é público, deram o indispensável suporte fático à mudança da lei", não é menos correta a de que não lhe servem de suporte jurídico, capaz de afastar a nota de incompatibilidade com a ordem constitucional, pois é evidente que abusos devam ser coibidos, inclusive com medidas legislativas para tal fim, não podendo, porém, tais medidas chegar ao ponto de simplesmente suprimirem do menor sob guarda judicial a proteção previdenciária, até porque, se o benefício representa a contrapartida pelas contribuições pagas pelo segurado, não se pode retirar, de quem dele é dependente, o direito de obter essa contrapartida, finalidade mesma da própria Previdência Social.
Em tais condições, Sr. Presidente, tendo por pertinente a invocada incompatibilidade, com a Lei Fundamental, do parágrafo 2° do artigo 16 da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991, em sua atual redação, no que diz com o menor sob guarda judicial,
e sendo indispensável, a meu sentir, para solução da lide, o controle difuso de constitucionalidade, voto no sentido de que seja suscitado, perante a Corte Especial, o competente incidente de inconstitucionalidade." (fls. 75/77 – grifos nossos) (...).
Esclareço que a jurisprudência do colendo STF ainda não examinou a questão sub judice, ou seja, de inconstitucionalidade da nova norma, em face do princípio da isonomia e do art. 227, caput, e § 3º, II e VI, da Carta Constitucional, havendo precedentes apreciando a questão apenas quanto à inexistência de direito adquirido a regime jurídico (RE 461514/RS, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe de 27/02/2009; RE 472.275/PE, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe de 27/03/2007).
Já a jurisprudência do egrégio STJ tem analisado a questão do direito de pensão ao menor sob guarda judicial, cujo óbito do instituidor ocorreu após a Lei 9.528/97, apenas à luz da legislação infraconstitucional, negando-lhe o direito, ante a alteração legislativa, como se esclarece no voto-vista do eminente Desembargador Federal Carlos Eduardo Moreira Alves, a fls. 75/77.
A Lei 8.213/91, antes da alteração trazida pela Lei 9.528/97, estabelecia:
"Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:
I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido;
(...)
§ 2º Equiparam-se a filho, nas condições do inciso I, mediante declaração do segurado: o enteado; o menor que, por determinação judicial, esteja sob a sua guarda; e o menor que esteja sob sua tutela e não possua condições suficientes para o próprio sustento e educação." (grifos nossos)
Com a Medida Provisória 1.523, de 11/10/96, reeditada e convertida na Lei 9.528/97, o aludido § 2º do art. 16 da Lei 8.213/91 assim passou a dispor:
"§ 2º O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento."
Vê-se, pois, que o legislador ordinário, na nova redação do § 2º do art. 16 da Lei 8.213/91, suprimiu, intencionalmente, do rol dos beneficiários do RGPS, na condição de dependente do segurado, o menor sob guarda judicial.
Por sua vez, a Constituição Federal, ao tratar da família, da criança, do adolescente e do idoso, determina:
"Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
(...)
§ 3º O direito à proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:
(...)
II – garantia de direitos previdenciários e trabalhistas;
(...)
VI – estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado."
Ives Gandra Martins, ao tratar do dispositivo constitucional destacado, afirma que
"Família, sociedade e Estado assegurariam – a Constituição fala em deveres e não em faculdade – à criança e ao adolescente – o constituinte acentua com prioridade – direitos naturais fundamentais.
Tais direitos são o direito à vida, o mais essencial direito do homem em sociedade – por essa razão a Constituição veda a pena de morte, a eutanásia e o aborto –, à saúde, à alimentação – direitos de subsistência fundamentais –, à educação, ao lazer, à profissionalização e à cultura – todos relevantes para o desenvolvimento das potencialidades humanas em todas as suas aptidões –, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. São direitos de particular importância para a realização plena do cidadão." [01](grifos nossos)
Verifica-se, pois, que, em relação à criança e ao adolescente, a Constituição Federal consagra o princípio da proteção integral, cabendo à família, à sociedade e ao Estado o dever de, solidariamente, assegurar-lhes tais direitos naturais fundamentais, com absoluta prioridade.
O constituinte elenca, ainda, no § 3º do art. 227 da Carta Maior, sete normas indicativas das obrigações que o legislador ordinário não pode deixar de cumprir, entre as quais destacam-se a garantia, ao menor – criança e adolescente –, dos direitos previdenciários e trabalhistas, e o estímulo do Poder Público ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado.
Ives Gandra assinala, também, que "tais princípios deveriam, por força do § 1º do art. 5º, ser considerados não só cláusulas pétreas, mas de aplicação imediata" [02], embora, na prática, o que se observa é que muitas cláusulas essenciais de garantia ainda não foram implantadas, revelando, desse modo, seu caráter programático.
Danielle Perini Artifon, em artigo sobre os aspectos constitucionais da exclusão, da proteção previdenciária, do menor sob guarda judicial, aduz que "o legislador constituinte, como se depreende da leitura do texto constitucional, procurou maximizar a tutela aos direitos individuais e sociais da criança e do adolescente, estabelecendo uma normatização genérica que deve servir de parâmetro e orientação para a atividade legislativa infraconstitucional, nos mais diversos ramos do direito", servindo "de pressuposto para qualquer outra manifestação normativa que disponha sobre o assunto, de modo que o legislador ordinário, esmiuçando os preceitos e princípios insertos na Constituição Federal não pode dispor contrariamente a eles e nem limitar seu âmbito de incidência..." [03], sem autorização da própria Carta Política para tanto, sob pena de se revelarem inconstitucionais referidas normas do legislador ordinário.
José Afonso da Silva, ao analisar as normas constitucionais programáticas e a constitucionalidade das leis, assevera que aquelas "se resolvem, prima facie, num vínculo ao Poder Legislativo, quer lhe assinalem somente certo fim a atingir, quer estabeleçam, desde logo, restrições, limites, observância de certas diretrizes, critérios ou esquemas gerais, para alcançar o escopo proposto. [04] ‘Em ambas as hipóteses [sustenta Crisafulli] não há dúvida de que a inobservância das normas constitucionais programáticas por parte do órgão legislativo será motivo de invalidade, total ou parcial, do ato de exercício de seu poder, ou seja, da lei deliberada de modo contrário ou diverso de quanto disposto na constituição. Analogicamente, deve dizer-se, de resto, também nos casos de normas facultativas, quando não tenham sido respeitados os limites e as condições estabelecidos pelas próprias normas.’ [05]" [06] (grifos nossos)
Yussef Said Cahali, ao comentar o art. 34 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) – que reproduz a norma constitucional consubstanciada no referido inciso VI do § 3º do art. 227 –, afirma:
"Em realidade, o legislador, aqui, compromete-se a estimular a guarda como modalidade mais simples e corriqueira, principalmente do menor órfão ou abandonado, de colocação do mesmo em família substituta – ao lado da tutela e da adoção, modalidades mais complexas e menos usuais dessa colocação.
Acalenta-se a esperança de que o menor que caiu na orfandade ou foi relegado ao desamparo ou desprezo no ambiente doméstico encontrará na família substituta o carinho e amparo propícios ao normal desenvolvimento de sua personalidade, vencendo seus conflitos precoces.
A experiência tem demonstrado que a "convivência familiar", ainda que no seio de uma família substituta, apresenta vantagens que se sobrepõem – psicológica, moral e economicamente – às soluções buscadas por via de internação em estabelecimentos governamentais e não governamentais, na formação ou recuperação dos menores carentes.
Daí o aceno, portanto, contido no art. 34, com medidas de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios tendentes a estimular o acolhimento, sob forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado.
" [07].Desse modo, a norma contida no art. 16, § 2º, da Lei 8.213/91 – na redação dada pela Medida Provisória 1.523, de 11/10/96, reeditada e convertida na Lei 9.528/97 –, na parte em que exclui o menor sob guarda judicial da condição de dependente, colocando-o à margem da proteção previdenciária estatal, é inconstitucional, pois não se harmoniza com as garantias estabelecidas na Lei Maior, entre elas as do art. 227, caput, § 3º, II e VI, da Carta.
Ressalte-se, outrossim, consoante preconiza o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, que o Juiz deve, na exegese e na aplicação da lei, atender aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
O fim social da lei previdenciária é proteger os indivíduos acometidos por alguma contingência da vida e que necessitem de uma assistência estatal, a fim de minimizar os efeitos dos infortúnios, de forma a cumprir o Estado o seu papel de assegurar a dignidade da pessoa humana a todos, em especial ao menor, cuja proteção tem absoluta prioridade.
(...).
É justamente neste intuito – assegurar os meios indispensáveis à manutenção da família, ou, na hipótese discutida, do menor – que o citado art. 16 da Lei 8.213/91 arrola os beneficiários do RGPS, na condição de dependentes do segurado.
Ocorre que a legislação ordinária não pode restringir, indiscriminadamente, a proteção estatal estabelecida pelo texto constitucional.
In casu
, como destaca Danielle Perini Artifon, no artigo já mencionado, inexiste qualquer "distinção fática relevante entre a situação do enteado e menor tutelado, por um lado, e do menor sob guarda, por outro, a autorizar que se confira tratamento jurídico diferenciado a este, excluindo-o da condição de dependente e, por conseguinte, tolhendo-lhe a proteção previdenciária. Afinal, a dependência econômica do menor em relação ao segurado mostra-se invariável, seja ele enteado, tutelado ou menor sob guarda." [08]Tanto é assim, que a legislação aplicada ao imposto de renda das pessoas físicas – Lei 9.250/95 – reconhece a condição de dependente ao menor sob guarda do contribuinte:
"Art. 35. Para efeito do disposto nos arts. 4º, inciso III, e 8º, inciso II, alínea c, poderão ser considerados como dependentes:
(...)
IV - o menor pobre, até 21 anos, que o contribuinte crie e eduque e do qual detenha a guarda judicial;
V - o irmão, o neto ou o bisneto, sem arrimo dos pais, até 21 anos, desde que o contribuinte detenha a guarda judicial, ou de qualquer idade quando incapacitado física ou mentalmente para o trabalho;" (grifos nossos)
Ademais, conquanto o instituto da guarda possa eventualmente ser utilizado de maneira desvirtuada – como sustenta o INSS –, para o fim primordial de obtenção do benefício previdenciário, a restrição geral – no caso, com exclusão de todos os menores sob guarda judicial da proteção previdenciária –, não se apresenta como a melhor solução, pois deixa ao desamparo previdenciário inúmeras situações nas quais há dependência econômica merecedora da tutela previdenciária. Ademais, como destacam Daniel Machado da Rocha e José Paulo Baltazar Júnior, na obra Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social, "De registrar, porém, que a guarda, como forma de colocação em família substituta que é, pressupõe a orfandade ou a perda do poder familiar pelos pais, não podendo ser entendida como tal a mera situação de dependência econômica com terceiro, como os avós, quando a criança vive com os pais." [09]
Se eventuais fraudes há, devem ser combatidas pela fiscalização, pela polícia, pelo aparelho preventivo e repressivo que o ordenamento jurídico coloca à disposição do Estado, não com a discriminação odiosa efetuada pela legislação previdenciária ora discutida, que joga, ao desamparo, o menor acolhido no seio de uma família substituta.
Conclui-se, portanto, que a discriminação trazida pela nova redação do § 2º do art. 16 da Lei 8.213/91 – ao excluir o menor sob guarda judicial da condição de dependente do segurado –, afronta, também, o princípio constitucional da isonomia, previsto no art. 5º, caput, da CF/88, pois, do ponto de vista essencial – não do nomen iuris do instituto jurídico sob cuja tutela vivem –, os menores sujeitos à guarda judicial de outrem necessitam dos mesmos cuidados e da mesma proteção estatal dispensada aos tutelados, diante do infortúnio da morte do guardião ou tutor, conforme o caso.
A douta Procuradoria Regional da República da 1ª Região, em parecer da lavra do ilustre Procurador Regional da República Odim Brandão Ferreira, manifestou-se pelo reconhecimento da inconstitucionalidade suscitada, nos seguintes termos, in verbis:
"(...)
III
O acórdão da Turma parece ter sido muito preciso, ao identificar o problema da tese do INSS: ela está fundada em norma legal inconstitucional e, portanto, não se sustenta.
Segundo o art. 226 da Constituição, "a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado". Com esse pressuposto a Constituição da República determina:
"Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
§ 3º. O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:
II – garantia de direitos previdenciários e trabalhistas".
A leitura das normas transcritas parece não deixar sombra de dúvida acerca da patente inconstitucionalidade da nova redação do § 2° do art. 16 da Lei 8.213/1991, dada pela Lei 9.528/1997. Ao contrário do que corretamente acontecia anteriormente, o legislador ordinário eliminou proteção previdenciária das crianças – à qual estava obrigado por força das normas da Constituição referidas –, ao suprimir a possibilidade de os incapazes, cuja guarda tenha sido judicialmente entregue a parente diverso dos pais, se beneficiem dos planos previdenciários. Ora, se avó e neto formam família e se a pessoa capaz é segurada da previdência social, parece ululantemente óbvio que o legislador ordinário não poderia ter excluído essa espécie de incapaz da proteção previdenciária estatal.
Aliás, quando a nova redação da lei limitou a proteção constitucional do art. 227, § 3º, II, aos incapazes da família sujeitos à tutela, mas não assim aos sujeitos apenas à guarda de parente diverso dos pais, ela terminou por ofender o princípio da isonomia do caput do art. 5º da Constituição. Afinal de contas, entre as vozes mais autorizadas da Metodologia Jurídica contemporânea [10] formou-se o consenso de que a igualdade entre seres humanos portadores de características essencialmente iguais constitui a exigência básica de toda ordem jurídica, na tentativa de realização de qualquer projeto de Justiça. Por outras palavras, não se pode dispensar tratamento diversificado a duas pessoas iguais nos aspectos essenciais a serem considerados.
Ora, do ponto de vista essencial – não da denominação do instituto jurídico sob o qual vivem, os incapazes sujeitos à guarda de outrem necessitam dos mesmos cuidados e da mesma proteção estatal – leia-se previdenciária pública – que a lei inconstitucional, perdoe-se a contradição em termos, dispensa aos tutelados. Logo, o legislador ordinário não poderia ter-se valido dessa diferença acessória como marco para excluir certos menores e incluir outros no âmbito da proteção que a República concede às pessoas que a compõem. Donde uma segunda causa autônoma e suficiente de invalidade da norma invocada pelo INSS para negar a pretensão do impetrante.
Com a declaração de inconstitucionalidade da nova redação da lei, abrem-se duas possibilidades técnicas, para a resolução do caso. Ou se considera configurada situação de vácuo normativo, ou, ao revés, há de se concluir pela continuidade da vigência da lei velha, revogada pela inconstitucional.
O afastamento da norma inconstitucional implica, no caso, a concessão da ordem, pois, em princípio, o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei revocatória revela que o direito anterior jamais deixou de viger. Essa solução, inconfundível com a repristinação [11], encontra-se hoje expressa no art. 11, § 2°, da Lei 9.868/1999, que regula a ação direta de inconstitucionalidade: "a concessão da medida cautelar torna aplicável a legislação anterior acaso existente, salvo expressa manifestação em sentido contrário" [12]. Acerca do ponto, Jörn Ipsen afirmou:
"Evidência dogmática: continuidade da vigência do direito antigo.
A declaração de nulidade de uma lei, segundo a concepção aqui defendida, significa que ela não pode incorporar-se ao ordenamento jurídico e, por isso, não desenvolveu nenhuma eficácia normativa. Em conseqüência do dogma da norma declarada nula. Maurer acentua, com razão, que não se trata da questão de saber se o direito antigo torna-se ‘novamente’ eficaz, mas, sim, se ele ‘ainda’ é eficaz. É de acrescentar a isso apenas que, com esse modelo não se descreve a realidade, mas empreende-se uma tentativa de tratar dogmaticamente a realidade, e isso não significa algo diverso que harmonizar o ser e o dever ser. Se se leva em consideração que aqui se pensa em categorias normativas, então a evidência dogmática da continuidade do direito antigo, enquanto o novo for inconstitucional, é pouco discutível.
Como princípio vale, por isso, que o direito antigo permanece intocado e continua a viger, na medida que a lei alteradora , inconstitucional" [13].
Vê-se, portanto, que, para Ipsen, não há outra saída senão admitir que o direito antigo, aparentemente revogado por lei inconstitucional, permaneceu em vigor, desde a sua edição.
A inexorabilidade da retomada da eficácia da lei revogada como decorrência da declaração de inconstitucionalidade da lei revocatória não é correta, malgrado o tom peremptório da doutrina brasileira na proclamação desse equívoco [14]. Há pelo menos uma hipótese na qual se há de reconhecer o contrário, como argutamente notado por Klaus Schlaich:
"O contrário pode ocorrer no caso único da lei de reforma: nela pode ficar expresso que o legislador não desejou apenas melhorar o direito antigo, mas aboli-lo, de qualquer modo, e isso com certeza, mesmo no caso em que a nova regulamentação, por ser inconstitucional, não devesse vingar. Se o desejo do legislador de revogar a situação jurídica antiga for eficaz (competência, processo e tudo o mais constitucional), então a lei de reforma, na sua nova regulamentação ineficaz (portanto, parcialmente nula), ainda tem esse efeito de revogar a disciplina antiga. Assim, dada a ausência de validade da nova regulamentação, não há nenhuma regulamentação" [15].
Nem mesmo essa ressalva se aplica ao caso, dado que, em se tratando de obrigação constitucional de proteção à família e aos menores, o legislador ordinário não poderia optar validamente pela pura e simples supressão do direito. Por outras palavras, uma vez que o legislador estava obrigado a proteger os incapazes, não lhe era dada alternativa, sobretudo a de deixar todas as categorias de menores fora da proteção do sistema previdenciário.
Ora, diante do reconhecimento de que a redação original do § 2º aludido jamais sofreu alteração legislativa, segue-se que o impetrante faz jus ao que postula, porque preencheu os requisitos da lei vigente ao tempo do óbito da instituidora do benefício.
Até aqui, isonomia e proteção ao menor foram tidas como simples peças de retórica jurídica. Por certo, o Judiciário não as aviltará a isso: ao contrário, mostrará que se trata, na verdade, de normas da mais alta hierarquia no nosso ordenamento e que, portanto, não podem ser desrespeitadas por ninguém. Essa, a esperança do Ministério Público Federal.
IV
Em face do exposto, o Ministério Público Federal opina por que se reconheça a inconstitucionalidade suscitada neste incidente.
" (fls. 162/167 – grifos nossos)
Por fim, frise-se que a manutenção do menor sob guarda judicial como beneficiário do RGPS, na condição de dependente do segurado, não viola os arts. 167, XI, e 195, § 5º, da CF/88, porquanto o guardião, efetivamente, contribuiu para que seus dependentes pudessem usufruir de tal benefício e, exatamente por tal razão, o benefício de pensão – observado o caráter contributivo da Previdência Social, consagrado no art. 201 da CF/88 –, era deferido, anteriormente à alteração legislativa ora impugnada, ao menor sob guarda judicial, dependente do segurado.
Portanto, à luz da doutrina e da jurisprudência do colendo STF, invocadas no douto parecer ministerial, declarada a inconstitucionalidade do § 2º do art. 16 da Lei 8.213/91, com a redação dada pela Medida Provisória 1.523, de 11/10/96, reeditada e convertida na Lei 9.528/97, na parte em que excluiu o menor sob guarda judicial do rol de beneficiários do INSS, como dependente do segurado guardião, a consequência jurídica é a de que o direito anterior, ou seja, a antiga redação do aludido § 2º do art. 16 da Lei 8.213/91 – que inclui o menor sob guarda judicial como dependente do segurado –, jamais deixou de viger, porque pretensamente revogada por legislação ordinária inconstitucional, e, em consequência, nula.
Vale citar, aqui, por oportuno, o ensinamento do eminente Ministro Celso de Mello, na ADI/2215/PE:
"Sabemos que a supremacia da ordem constitucional traduz princípio essencial que deriva, em nosso sistema de direito positivo, do caráter eminentemente rígido de que se revestem as normas inscritas no estatuto fundamental.
Nesse contexto, em que a autoridade normativa da Constituição assume decisivo poder de ordenação e de conformação da atividade estatal - que nela passa a ter o fundamento de sua própria existência, validade e eficácia -, nenhum ato de Governo (Legislativo, Executivo e Judiciário) poderá contrariar-lhe os princípios ou transgredir-lhe os preceitos, sob pena de o comportamento dos órgãos do Estado incidir em absoluta desvalia jurídica.
(...)
Cumpre enfatizar, por necessário, que, não obstante essa pluralidade de visões teóricas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal - apoiando-se na doutrina clássica
(ALFREDO BUZAID, "Da Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro", p. 132, item n. 60, 1958, Saraiva; RUY BARBOSA, "Comentários à Constituição Federal Brasileira", vol. IV/135 e 159, coligidos por Homero Pires, 1933, Saraiva; ALEXANDRE DE MORAES, "Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais", p. 270, item n. 6.2.1, 2000, Atlas; ELIVAL DA SILVA RAMOS, "A Inconstitucionalidade das Leis", p. 119 e 245, itens ns. 28 e 56, 1994, Saraiva; OSWALDO ARANHA BANDEIRA DE MELLO, "A Teoria das Constituições Rígidas", p. 204/205, 2ª ed., 1980, Bushatsky) - ainda considera revestir-se de nulidade a manifestação do Poder Público em situação de conflito com a Carta Política (RTJ 87/758 - RTJ 89/367 - RTJ 146/461 - RTJ 164/506, 509).(...)
Mostra-se inquestionável
, no entanto, a despeito das críticas doutrinárias que lhe têm sido feitas (CELSO RIBEIRO BASTOS, "Comentários à Constituição do Brasil", 4º vol., tomo III/87-89, 1997, Saraiva; CARLOS ALBERTO LÚCIO BITTENCOURT, "O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis", p. 147, 2ª ed., Ministério da Justiça, 1997, reimpressão fac-similar, v.g.), que o Supremo Tribunal Federal vem adotando posição jurisprudencial, que, ao estender a teoria da nulidade aos atos inconstitucionais, culmina por recusar-lhes qualquer carga de eficácia jurídica.(...)
Já se afirmou
, no início desta decisão, que a declaração de inconstitucionalidade in abstracto, de um lado, e a suspensão cautelar de eficácia do ato reputado inconstitucional, de outro, importam - considerado o efeito repristinatório que lhes é inerente - em restauração das normas estatais revogadas pelo diploma objeto do processo de controle normativo abstrato.Esse entendimento - hoje expressamente consagrado em nosso sistema de direito positivo (Lei nº 9.868/99, art. 11, § 2º) -, além de refletir-se no magistério da doutrina (ALEXANDRE DE MORAES, "Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais", p. 272, item n. 6.2.1, 2000, Atlas; CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, "A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro", p. 249, 2ª ed., 2000, RT; CELSO RIBEIRO BASTOS e IVES GANDRA MARTINS, "Comentários à Constituição do Brasil", vol. 4, tomo III/87, 1997, Saraiva; ZENO VELOSO, "Controle Jurisdicional de Constitucionalidade", p. 213/214, item n. 212, 1999, Cejup), também encontra apoio na própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, desde o regime constitucional anterior (RTJ 101/499, 503, Rel. Min. MOREIRA ALVES - RTJ 120/64, Rel. Min. FRANCISCO REZEK), vem reconhecendo a existência de efeito repristinatório nas decisões desta Corte Suprema, que, em sede de fiscalização normativa abstrata, declaram a inconstitucionalidade ou deferem medida cautelar de suspensão de eficácia dos atos estatais questionados em ação direta (RTJ 146/461-462, Rel. Min. CELSO DE MELLO - ADI 2.028-DF, Rel. Min. MOREIRA ALVES - ADI 2.036-DF, Rel. Min. MOREIRA ALVES).
O sentido e o alcance do efeito repristinatório foram claramente definidos, em texto preciso, por CLÈMERSON MERLIN CLÈVE ("A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro", p. 249/250, 2ª ed., 2000, RT), cuja autorizada lição assim expôs o tema pertinente à restauração de eficácia do ato declarado inconstitucional, em sede de controle abstrato, ou objeto de suspensão cautelar de aplicabilidade, deferida em igual sede processual:
"Porque o ato inconstitucional, no Brasil, é nulo (e não, simplesmente, anulável), a decisão judicial que assim o declara produz efeitos repristinatórios. Sendo nulo, do ato inconstitucional não decorre eficácia derrogatória das leis anteriores. A decisão judicial que decreta (rectius, que declara) a inconstitucionalidade atinge todos os ‘possíveis efeitos que uma lei constitucional é capaz de gerar’, inclusive a cláusula expressa ou implícita de revogação. Sendo nula a lei declarada inconstitucional, diz o Ministro Moreira Alves, ‘permanece vigente a legislação anterior a ela e que teria sido revogada não houvesse a nulidade".(ADI 2215/PE, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 26/04/2001- parte dos grifos é nossa)
Em face de todo o exposto, acolho a argüição de inconstitucionalidade do § 2º do art. 16 da Lei 8.213/91, com a redação dada pela Medida Provisória 1.523, de 11/10/96, reeditada e convertida na Lei 9.528/97, na parte em que excluiu o menor sob guarda judicial do rol dos beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependente do segurado ("o menor que, por determinação judicial, esteja sob a sua guarda").
É o voto."
No sítio eletrônico do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, colhe-se a informação de que esse v. acórdão transitou em julgado no dia 20.11.2009, o que implica dizer que, dados os efeitos erga omnes da sentença da ação civil pública, sob a jurisdição daquela Corte, o menor sob guarda judicial deverá ser considerado dependente do segurado da previdência social.
Pelos fundamentos apresentados no voto supra e retro reproduzido, temos como incontroversa a eiva de inconstitucionalidade do parágrafo 2º do art. 16 da Lei nº 8.213/91, redação da Lei n° 9.528/97, desde a vigência da Medida Provisória nº 1.523, de 11/10/96, convertida, depois de sucessivas reedições, nesta lei (Lei nº 9.528/97).
A inconstitucionalidade decorre da contrariedade ao disposto no art. 227 da Constituição Federal que, mesmo que entendido como norma programática, determina os rumos da atividade legislativa estatal, não permitindo, em hipótese alguma, que o legislador ordinário retroceda, para colidir frontalmente com as disposições normativas adotadas pela Constituição Federal, aliás, em sintonia com a tradicional legislação ordinária que sempre outorgou especial amparo ao menor sob guarda.
Afigura-se-nos também inegável que a modificação legislativa em referência constitui nítida afronta ao princípio constitucional da isonomia, conforme demonstrado.