R E L A T Ó R I O
Trata-se de Parecer Jurídico buscando o posicionamento sobre a retirada de um Presépio de Natal instalado no prédio onde funciona o Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Estadual da Paraíba, na cidade de Campina Grande do referido estado.
Alega a parte contrária que a presença do mesmo fere, integralmente, o inciso VI do art. 5º da CF por privilegiar determinado segmento religioso em um ambiente público onde existe uma pluralidade de pensamentos. Além disso, menciona que pode haver constrangimento moral em determinados alunos que, por não seguirem a religião cristã ou não serem adeptos a imagens, sentir-se-iam excluídos ou até mesmo ter sua convicção religiosa desrespeitada com a presença do Presépio.
Por sua vez, a parte favorável afirma que não há a existência de desrespeito à liberdade religiosa, tendo em vista que a instalação do mesmo é meramente descritiva, ilustrando um acontecimento importante (o nascimento de Jesus) que é celebrado, oficialmente, não só pelo nosso país, como também por todo o mundo.
É o relatório.
V O T O
I – Considerações iniciais
Antes de adentrarmos na análise detalhada do objeto do presente parecer que se encontra em julgamento, há a necessidade de tecermos algumas considerações prévias. Em determinada situação da vida, o homem é levado a um impasse entre seu dever profissional e seus pensamentos particulares. Quando isto acontece, cabe a ele verificar a circunstância em que isto se opera e, neste caso, saber diferenciar o que é posição de trabalho e o que é posição particular.
Encontramo-nos neste impasse profundo e polêmico. Resta-nos agora saber qual caminho seguir e, para isto, devemos ter em mente qual o papel que tomamos ao sentarmos nestas cadeiras e proferirmos nossas decisões. Aqui não há simples pessoas. Aqui há representantes do Estado, guardiões da Constituição que, como não cansamos de mencionar, devem preservá-la em qualquer que seja a situação. Foi para isto que nos propomos e foi isto que prometemos no primeiro dia que sentamos nestas cadeiras. Destarte, neste momento, somos o Estado. E este não tem cor, nem sexo, nem religião. Neste, há uma pluralidade que forma uma homogeneidade: o povo brasileiro.
Lembro-me, agora, de um dos julgamentos mais polêmicos do Supremo Tribunal Federal: a ADI 3510, de relatoria do Ministro Ayres Britto. Na oportunidade, o saudoso Ministro Menezes Direito também encontrou-se neste impasse a que me refiro. Católico fervoroso, como de conhecimento de todos, o membro do Excelso Pretório, na época, disse uma frase que se encaixa perfeitamente neste julgado: "Estamos numa discussão de âmbito jurídico, não religioso. A religião pertence à intimidade do homem e todos nós devemos abrir nossos corações para proclamar nossa fé no mais íntegro respeito à pluralidade".
É exatamente baseado nesta frase que iremos definir nosso posicionamento. Não travaremos, aqui, uma discussão, puramente, religiosa, até porque este não é o nosso dever. Nossa obrigação é analisar se determinados atos humanos ou normativos agem de acordo ou contrário aos preceitos constitucionais. Faremos uma discussão amplamente jurídica, citando o elemento religioso apenas como embasamento para a aplicação dos artigos da Constituição Federal e não como tema central da questão.
II – Da Liberdade Religiosa:
A parte contrária alega que a instalação do Presépio Natalino feriu a liberdade de consciência e religião fundamentada pelo inciso VI do art. 5º da CF que preleciona: "é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias". Esta foi uma imensa e inestimável conquista que a Constituição de 1988 ratificou para a efetivação do Estado Democrático de Direito. Dizemos isto porque, ainda hoje, outros Estados, embora permitam o culto a outras religiões, deixam claro, em seu Texto Magno, a religião oficial do país (a exemplo da Argentina).
Torna-se, no mínimo, contraditório mencionar-se a liberdade de religião em um artigo e declarar o país adepto a determinado segmento em outro. Foi por este motivo que o Brasil escolheu deixar explícito em sua Constituição que é um país laico. Porém, isto não aconteceu em toda a sua história. Na nossa primeira Constituição, ainda no Império, a liberdade ao culto religioso encontrava-se ameaçada pelo artigo 5º (que, por coincidência, é o que trata, na atual, sobre os direitos e garantias fundamentais,). Este mencionava que: "A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas destinadas para isto, sem forma alguma exterior ao Templo".
Embora o artigo falasse que todas as religiões seriam permitidas no Brasil, será que ele, na sua essência, assegurava a liberdade religiosa? É óbvio que não. O Estado não tem como impedir a manifestação particular de ninguém. Ele pode até reprimir, mas impedir nunca, porque trata-se de algo subjetivo. O Estado, por mais que prenda, torture ou utilize de qualquer outro meio cruel não tem como impedir que, na mente de alguém, faça-se uma oração, por exemplo. Ele reprimiu, mas não impediu a manifestação do culto religioso. Logo, a parte do artigo da Constituição de 1824 (citado anteriormente) que dá a permissão para qualquer culto religioso particular não interfere em, praticamente, nada na consciência dos indivíduos, não sendo considerado por nós, com as devidas venias para quem pensa de modo divergente, bastante para afirmarmos que havia liberdade de religião na Constituição do Império.
O que importa para nós é a parte final do artigo que proíbe qualquer manifestação pública e exterior ao "templo". Isto é a forma mais pura de intolerância religiosa. Foi pensando em evitar situações como esta, que o constituinte de 88 criou o inciso VI do art. 5º não só defendendo as diversas religiões, como também seus cultos e seus templos em ambiente público.
Portanto, é notório o interesse da CF em assegurar uma liberdade religiosa ampla. Cabe a nós verificarmos se, na instalação do Presépio em ambiente público, há desrespeito à liberdade supramencionada. Vejamos o que afirma Paulo Gustavo Gonet Branco na obra Curso de Direito Constitucional:
A objeção de consciência admitida pelo Estado traduz forma máxima de respeito à intimidade e à consciência do indivíduo. O Estado abre mão do princípio de que a maioria democrática impõe as normas para todos, em troca de não sacrificar a integridade íntima do indivíduo. (BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 508)
O doutrinador é claro ao afirmar que, em se tratar de direito e garantia fundamental, não há o que se falar em posição de maioria. A intimidade de qualquer pessoa deve ser preservada, pois, caso isto não ocorra, estaremos criando uma verdadeira ditadura da maioria (termo que, embora parece antitético, não é muito difícil de se observar).
Queremos deixar claro que, em nosso posicionamento pessoal, somos profundos admiradores não só do Presépio de Natal, como também de todas as outras formas de manifestação natalina. Consideramos este período como de intensa reflexão, paz e harmonia. Porém, este é o nosso vislumbre pessoal. Uma coisa é você armar sua árvore, montar seu presépio e fazer suas homenagens em sua residência. Outra coisa é você fazê-la em um ambiente público.
A Constituição Federal reserva a todos os cidadãos o direito à privacidade. Em seu ambiente particular, você tem direito a expor, plenamente, seu posicionamento, até porque só adentra seu meio familiar, por exemplo, pessoas que possuem uma relação de intimidade e, mesmo assim, elas não são obrigadas a permanecer neste. Há, portanto, uma autonomia de vontade. Porém, isto não ocorre no ambiente público. Não há autonomia plena e irrestrita de vontade neste. Há sim, uma pluralidade de opiniões que devem ser respeitadas.
Embora tenhamos um posicionamento pessoal firmado (já apresentado inclusive), nosso objetivo é emitir opinião jurídico-constitucional. E, nestes termos, é inegável que a instalação do Presépio em um ambiente público (Universidade) fere a liberdade de religião e, consequentemente, o inciso VI da CF. O Estado, como já afirmado, é laico. No momento em que ele opta por privilegiar determinado segmento religioso, poder-se-á causar algum tipo de constrangimento às outras religiões, porque não há um ambiente público só de determinada concepção religiosa. Um universitário protestante, judeu ou islâmico, por exemplo, pode vir a sentir sua liberdade restrita ao ter que estudar em um ambiente onde contêm signos que não são aceitos por sua religião, da mesma forma que um cidadão pode se sentir constrangido ao ser obrigado a entrar num ambiente que não considera adequado.
Por mais que a função do presépio seja meramente descritiva, não se pode afirmar que a presença dele não acarreta algum tipo de supressão à liberdade de culto religioso, pois a presença ou não de constrangimento é subjetivo. Um protestante, por exemplo, por não admitir o culto à imagens, pode se sentir constrangido ao ver a representação de uma cena, que também é sagrada para eles, na forma escultural.
Além disso, a religião é vista por nós como uma forma de manifestação individual. Logo, a forma mais harmônica para a resolução do fato é o Estado torna-se neutro acerca da temática religiosa e deixar que cada cidadão, em seu ambiente particular, possa manifestar seu interesse religioso. É isto que acontece, por exemplo, em feriados religiosos. Embora esteja disposto no calendário determinada data como dia de descanso, o indivíduo não é obrigado a deixar de trabalhar, por exemplo. Um feriado cristão não impede, por exemplo, que um comerciante de religião afro-descendente abra seu estabelecimento. Diferentemente ocorre no fato deste ter que adentrar num recinto público, no qual é obrigado a estar (sob pena de ser reprovado, por exemplo), mesmo encontrando manifestação religiosa diversa da sua.
O reconhecimento da liberdade religiosa pela Constituição denota haver o sistema jurídico tomado a religiosidade como um bem em si mesmo, como um valor a ser preservado e fomentado. Afinal, as normas jusfundamentais apontam para valores tidos como capitais para a coletividade, que devem não somente ser conservados e protegidos, como também ser promovidos e estimulados. (BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 508)
Portanto, embora em nossa vida pessoal sejamos profundos admiradores da existência do Presépio de Natal, entendemos que há violação do inciso VI do art. 5º, bem como do art. 19, I da CF a respeito da instalação do mesmo em uma Universidade Pública (assim como em qualquer recinto público), pois estar-se-á ferindo a natureza religiosa laica do Estado Brasileiro.
III – Do Dano Moral:
O dano moral está assegurado pela nossa Constituição no inciso X do artigo 5º que menciona que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". No caso em questão, não entendemos haver um dano moral explícito, pois não houve, em nenhum momento, a tentativa de violação da intimidade, vida privada, honra e imagem de qualquer cidadão. Porém, este tema é muito subjetivo e uma pessoa pode sentir sua intimidade violada mesmo que, aparentemente, isto não ocorra. Paulo Gustavo Gonet Branco afirma que:
O fato é que a expressão "vida privada" cobre um vasto campo e está sujeita a interferências emocionais. Alguns dos seus traços básicos, entretanto, devem ser retidos, para prevenir que o conceito se torne excessivamente retórico, em prejuízo à sua valia técnica. (BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 471)
Logo, é notório que não existe situação concreta em que há e em que não há desrespeito à intimidade dos indivíduos. Não é afastado que alguém possa sentir sua intimidade violada ao ser obrigado a permanecer em um local onde existem ícones ou circunstâncias que contrapõe seu modo de ser. Vislumbramos que um estudante pode se sentir constrangido em permanecer na universidade com a existência do presépio, mas não percebemos uma ação tão grave que constitua um dano moral in strictu sensu. Trata-se mais de uma questão de liberdade religiosa do que de violação à intimidade dos indivíduos.
Portanto, não percebemos a existência de um dano moral, em seu sentido estrito, que possa causar direito à indenização (no sentido pecuniário). Porém, como se trata de uma questão de liberdade religiosa, vislumbramos que o indivíduo possa se sentir constrangido em ter que permanecer num local que não considera próprio por determinada circunstância, acarretando, portanto, violação à intimidade (já que não há um conceito rígido acerca do tema). Neste caso, poder-se-á entender que a retirada do presépio seja uma forma de indenização, mas não in strictu sensu como afirmado.
IV – Do Parecer e das Considerações Finais
Decidimos, pois, pela instauração de um parecer jurídico contrário à permanência do Presépio de Natal no hall de entrada do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Estadual da Paraíba, tendo em vista que o Brasil é um Estado, explicitamente, laico e, destarte, não pode apresentar, em ambiente público, qualquer tomada de posição em favor ou desfavor de determinada religião (embora possa ocorrer no âmbito privado).
O Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Estadual da Paraíba é um ambiente público que apresenta uma pluralidade de sujeitos, não apenas no sentido numérico, mas também no sentido moral. Logo, a permanência do Presépio poderá causar algum tipo de constrangimento a um aluno que tenha opinião religiosa diversa, ferindo, portanto, a natureza laica do Estado Brasileiro.
Por fim, sugerimos a retirada do Presépio de Natal do ambiente público, nada impedindo sua permanência em ambiente particular, desde que haja consentimento (a exemplo de um gabinete particular, residência e templos religiosos – tendo em vista que sua particularidade se deve à faculdade de entrada de seus fiéis).
É o parecer.