PARECER JURÍDICO
EMENTA: REDUÇÃO – MAIORIDADE PENAL – INCONSTITUCIONALIDADE – MENOR INFRATOR – ECA - EDUCAÇÃO.
Trata-se de consulta formulada por Joana Andrade de Oliveira, acerca da redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Traz ainda a consulente, perguntas específicas acerca do aludido tema, sendo elas:
a) A redução da maioridade penal é constitucional?
b) Quais os pontos favoráveis?
c) Quais os pontos contrários?
d) É necessário uma reformulação do ECA?
e) Caso ocorra a redução, haveria diminuição na criminalidade?
f) Quais as soluções viáveis?
É o relatório. Passo a opinar.
A primeira questão objeto de análise diz respeito à inconstitucionalidade que perpassa tal redução. Para sanar tal discussão, basta analisar que a previsão da inimputabilidade, prevista na Constituição Federal em seu art. 228 constitui uma das garantias fundamentais da pessoa humana, não podendo ser objeto de emenda, por tratar-se de cláusula pétrea, sendo vedada sua supressão, conforme dispõe o parágrafo 4.º do art. 60:
“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
§ 5º - A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.”
Além disso, urge destacar que a redução da maioridade penal além de ser eivada de latente inconstitucionalidade legal, ainda paira sobre tal proposta a inconstitucionalidade estrutural, ou seja, aquela oriunda de circunstâncias fáticas e valorativas, tal como a situação estrutural que se instalou nos presídios brasileiros que viola inúmeros princípios inerentes ao homem, como também um dos fundamentos da República Federativa do Brasil que é a dignidade da pessoa humana.
Sendo essa, uma condição mínima de sobrevivência que é negada aos detentos ao serem submetidos a lotações exacerbadas em celas, ausência do mínimo de limpeza, saúde e segurança, alto índice de violência, entre outros inúmeros absurdos reiterados em celas de presídios.
Ademais, a pretensão da redução viola o disposto no artigo 41 da Convenção das Nações Unidas de Direito da Criança, onde está implícito que os signatários não tornarão mais grave a lei interna de seus países, em face do contexto normativo da Convenção, a qual se faz lei interna de caráter constitucional, conforme o § 2.º do artigo 5.º da Constituição Federal.
O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, entende que não pode haver referida alteração:
“A Constituição prevê inimputabilidade penal até os 18 anos de idade. É um direito consagrado e uma cláusula pétrea da Constituição do Brasil. Nem mesmo uma emenda pode mudar isso. Qualquer tentativa de redução é inconstitucional. Essa é uma discussão descabida do ponto de vista jurídico, disse Cardozo, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em 29 de abril. Diminuir a idade penal não só não reduz a criminalidade como pode agravar ainda mais o problema, excluindo muitos que quase já não têm direitos”
Portanto, mostra-se inviável o feito em questão com a vigência da Constituição Federal de 1988, por ser tratar de direito individual, sendo esse, uma cláusula pétrea, apresentando expressa vedação de sua retirada do ordenamento jurídico pátrio.
Os pontos favoráveis trazidos por aqueles que posicionam-se a favor da redução, pairam em grande maioria na alegação de impunidade do menor infrator, punições brandas, da possível redução da criminalidade, entre outros.
Partindo inicialmente do argumento utilizado que versa sobre a falta de punição, ou seja, a impunidade ao menor que comete delitos, é perceptível uma clara inverdade, visto que existem instrumentos que se ocupam de regular tal matéria. O ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente traz em seu bojo medidas socioeducativas que podem ser aplicados à menores que cometem delitos desde os 12 anos de idade.
A lei nº 8.069 de 1990, prevê seis medidas educativas, tais como: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação. Recomenda-se que a medida seja aplicada de acordo com a capacidade de cumpri-la, as circunstâncias do fato e a gravidade da infração.
Além disso, muitos adolescentes, que são privados de sua liberdade, não ficam em instituições preparadas para sua reeducação, chegando até a reproduzir o ambiente de uma prisão comum. Cabe ainda ressaltar que o adolescente pode ficar até 9 (nove) anos em medidas socioeducativas, sendo três anos interno, três em semiliberdade e três em liberdade assistida, com o Estado acompanhando e ajudando a se reinserir na sociedade.
Destarte, a corrente doutrinária contrária à redução, defende que a maioridade penal aos 18 (dezoito) anos não é causadora da situação de violência no país, que a solução para a criminalidade e delinquência juvenil está na não aplicação eficaz do Estatuto da Criança e do Adolescente; conforme pontifica MIRABETE:
“A redução do limite de idade no direito penal comum representaria um retrocesso na política penal e penitenciário brasileiro e criaria a promiscuidade dos jovens com delinquentes contumazes. O ECA prevê, aliás, instrumentos eficazes para impedir a pratica reiterada de atos ilícitos por pessoas com menos de 18 anos, sem os inconvenientes mencionados (MIRABETE, 2007, p.220).”
Segundo essa corrente, os crimes cometidos por crianças e adolescentes representam apenas 10% do total de crimes no país, conforme SARAIVA:
“... estudos recentes demonstram que a questão da chamada delinquência juvenil representa menos de 10% dos atos infracionais praticados no País se cotejados os números com aqueles praticados por imputáveis..(SARAIVA, 1999: p. 117).”
Ainda segundo tais renomados autores, o diploma do ECA não prevê e nem defende a falta de punição ao adolescente infrator, mas traz disposições legais pertinentes à inibição da prática de atos ilícitos e a sua posterior reeducação, de modo, que haja um maior empenho para a plena aplicabilidade dos artigos consoantes ao ECA. Neste sentido, preceitua MIRABETE:
“A redução da maioridade penal não é a solução para os problemas derivados da criminalidade infantil, visto que o cerne do problema da criminalidade se reluz em decorrência das condições socialmente degradantes e economicamente opressivas que expõe enorme contingente de crianças e adolescentes, em nosso país, à situação de injusta marginalidade social (MIRABETE, 2007, p.217).”
Portanto, o Estatuto da Criança e do Adolescente é uma disposição legal suficientemente capaz de coibir a marginalidade infantil, sem a necessidade de haver a redução da maioridade penal. Resta apensa sua real efetividade frente aos problemas que assolam a sociedade como um todo.
Analisando um terceiro ponto de suma importância no que diz respeito à redução da maioridade penal, cabe destacar sobre a criminalidade. Aqueles que apresentam posicionamento favorável à aprovação do projeto em discussão afirmam que haveria uma significativa diminuição nos índices de violência do país. Porém dados, estudos e pesquisas mostram o contrário, que além de não gerar diminuição, talvez gere até aumento.
Em 54 países houve a redução da maioridade penal e nestes não se registrou redução da violência. A Espanha e a Alemanha por conta do aumento gerado na criminalidade voltaram atrás na decisão de criminalizar menores de 18 anos. Hoje, 70% dos países estabelecem 18 anos como idade penal mínima.
“‘Toda a teoria científica está a demonstrar que ela [a redução] não representa benefícios em termos de segurança para a população’, asseverou em fevereiro Marcos Vinícius Furtado, presidente da OAB. A discussão em torno na maioridade penal só desvia o foco das verdadeiras causas da violência.”
Cabe ainda destacar que aqueles que sustentam que se ocorrer a diminuição da idade de responsabilização criminal irá gerar aumento significativo nos índices de violência e criminalidade, pautam-se na premissa que os indivíduos julgados e sentenciados a penas privativas de liberdade em penitenciárias de todo o país apresentam reincidência de 70%, além de apresentarem condutas mais violentas em seus novos ilícitos.
Sendo que, os menores infratores que são submetidos às medidas socioeducativas constantes no ECA apresentam índices de reincidência abaixo de 20%. Resta comprovado o quanto o sistema penal brasileiro encontra-se falido, distante de alcançar seu escopo principal que seria a ressocialização do condenado. Porém, o Estado apresenta-se falho em sua missão, já que atualmente um presídio é tido como “universidade do crime”.
Assim sendo, a violência não será solucionada com a mais severa punição, mas pela ação da sociedade e governos nas instâncias psíquicas, sociais, políticas e econômicas que as reproduzem. Agir punindo e sem se preocupar em discutir quais os reais motivos que reproduzem e mantém a violência, só gera mais violência.
Partindo para outro ponto de análise acerca do tema em epígrafe, nota-se que a discussão da redução da maioridade penal tornou-se assunto de grande clamor populacional e repercussão midiática. Assim, o Estado ao notar a defasagem de suas políticas públicas que não geram a devida segurança à sociedade, instaurando uma situação de pânico e insegurança generalizada, busca por alternativas populistas, visando “melhorar sua imagem” frente à sociedade civil.
Assim, a população por estar saturada da violência que se instaurou, acredita que medidas mais severas, repressivas, irão solucionar o problema. Muitas vezes, tal crença parte da falta de informação dos efeitos que podem ser gerados por medidas que esquecem de lidar com a causa do problema, partindo apenas para os efeitos gerados, onde os danos podem ser imensos.
O Brasil já viveu a experiência de reduzir a idade para imputação penal a fim de acalmar o clamor popular, conforme lembra Alexandre Morais da Rosa:
“A Lei 5.258 de 10 de abril de 1967, substituiu a Lei de Emergência (Decreto-Lei n. 6.026 de 24/11/43), que adequava o Código de Menores (1927) ao Código Penal (1940). O Diploma legislativo foi oriundo do caso ‘Aída Cury’ quando da participação de um adolescente na morte de uma estudante. A Lei foi revogada em maio do ano seguinte, apenas 13 meses depois de sua entrada em vigor, pela Lei 5.439, de 22 de maio de 1968.”
Assim, a própria história mostra que todas as legislações produzidas sob o clamor popular, tempos após são abrandadas, ora por inconstitucionalidade, ora por ineficácia, o que só demonstra que legislar para agradar a opinião pública é muito mais fácil do que resolver os problemas estruturais. Prova disso também é a Lei dos Crimes Hediondos, criada em 1990 por clamor popular, em que tornou-se apenas mais um instrumento legislativos sem muitos efeitos práticos e eficazes.
Por fim, vale trazer à tona a crise estrutural e funcional que assola o sistema carcerário, o qual é um problema que a cada dia vem crescendo, pois o aumento da criminalidade e consequentemente da violência vem aflorando a fragilidade das prisões brasileiras, no tocante às condições para cumprimento de penas privativas de liberdade, nesse sentido:
“O sistema penitenciário brasileiro está em crise. A ocorrência semanal de rebeliões e incidentes violentos indica que as prisões e delegacias não estão administradas de modo eficiente e que as autoridades não exercem controle total sobre essas instituições penais. Os condenados passam meses em condições de superlotação e falta de higiene nas carceragens das delegacias, sua transferência para penitenciárias adiada devido à falta de espaço, inércia da justiça ou corrupção. As condições de detenção existentes em numerosas prisões e delegacias brasileiras são pavorosas e equivalem a formas cruéis, desumanas e degradantes de tratamento e punição. Os internos correm o risco de contrair doenças potencialmente fatais, como a tuberculose e a AIDS, e os presos afetados não recebem tratamento adequado. Já ocorreram casos de morte sob custódia de presos paraplégicos devido à negligência médica. O pessoal é insuficiente e em muitos casos recorre-se a policias armados em lugar de profissionais treinados para a função (MOURA, 2000, p. 351).”
Sendo, portanto inviável a ideia de que, o sistema prisional, com sua estrutura e funcionamento falido nos dias de hoje, pudesse caracterizar-se como a solução punitiva inibidora dos crimes juvenis, visto que, o sistema prisional, incumbido da responsabilidade de promover a ressocialização do indivíduo, falha nessa missão com os adultos, quanto mais os menores.
Por fim, acerca do flagrante problema estrutural no Brasil, Callado de Oliveira destaca que uma boa política social é a melhor política criminal.
É notório que o Direito Penal é o ramo mais severo do ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que o mesmo, através de suas penas privativas de liberdade, atingem um dos bens jurídicos mais importantes do homem: a sua liberdade de ir e vir.
Logo, resta claro, que o enfoque principal pauta-se em entender que asseverar o sistema penal e minimizar o sistema social não trará resultados positivos no combate à criminalidade, por intermédio do agravamento excessivo de reprimendas, com penas mais duradouras ou mais cruéis, pois se estará combatendo somente o efeito, e não a causa, uma vez que o ponto central está na certeza da punição, seja dos adultos, seja dos jovens infratores.
Além disso, instrumentos normativos propícios à promover a responsabilização de menores infratores pelo cometimento de ilícitos já existe, restando ao Estado efetivar sua aplicabilidade, atribuindo-lhe maior eficácia no caso concreto. Sendo viável, além disso, uma reformulação no ECA, para viabilizar sua maior aplicabilidade frente aos conflitos sociais.
Porém o enfoque principal que deve ser tomado por objetivo maior do Estado na luta contra a violência e criminalidade entre os jovens pauta-se, sem dúvidas, na educação. A solução não está na reprimenda e sim na educação.
Conclusão
Em face do exposto, respondendo a cada um dos questionamentos formulados pela consulente, opino no sentido de que a redução da maioridade penal mostra-se inviável para solução dos problemas de criminalidade no país, podendo, inclusive, gerar aumento significativo nos índices de criminalidade e a iniciação ainda mais precoce de jovens em ramos ilícitos, como o tráfico de entorpecentes, entre outros. Problemas complexos não serão superados por abordagens simplórias e imediatistas. Mostra-se necessário inteligência e um projeto ético e político de sociedade que valorize a vida em todas as suas formas, focando em conscientização e educação.
É o parecer.
Ilhéus, 03 de novembro de 2015.
Bianca Kruschewsky Vieira Mendonça Benevides.