Capa da publicação Pataxó queimado em Brasília: recurso em sentido estrito
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O caso do índio pataxó queimado em Brasília.

Recurso em sentido estrito

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24/08/1997 às 00:00

Resumo:


  • O texto apresenta as razões de recurso do Ministério Público contra a decisão de desclassificar a imputação de homicídio doloso para lesões corporais seguidas de morte no caso dos jovens que atearam fogo em um indígena.

  • A argumentação do Ministério Público enfatiza que houve dolo eventual dos réus ao jogarem combustível e atearem fogo na vítima, assumindo o risco de causar a morte, e que a desclassificação do crime foi prematura e não condizente com as provas.

  • O recurso busca reformar a sentença para que os réus sejam pronunciados por homicídio triplamente qualificado, conforme a denúncia, e que o caso seja julgado pelo Tribunal do Júri, seguindo o princípio do "in dubio pro societate".

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

DE OUTRAS VERSÕES INVERÍDICAS:

Também enganou-se, data venia, a MM. Juíza, quando afirma (fls. 578 - grifos acrescidos):

"Uma frase constante do depoimento de Max, no auto de prisão em flagrante, sintetiza o que realmente ocorreu. Está a fls. 15: ´pegou fogo demais, a gente não queria tanto.´ Como já enfocado, assumir o risco não se confunde, em hipótese alguma, com previsibilidade do resultado. Assumir o risco é mais (...) é querer ou aceitar (...) é necessário que o agente tenha a vontade e não apenas a consciência de correr o risco."

Como dar tamanha credibilidade à versão defensiva de MAX e dos demais?! Ela, definitivamente, não sintetiza o que realmente ocorreu! É uma versão que destoa do conjunto probatório. É peça de defesa, com intuito evidentemente de buscar a impunidade. É tão falsa quanto falsos são "o cobertor", "o pano", o uso de um produto inflamável que já estaria dentro do carro... É tão falsa quanto falsa é a "crise de amnésia conjunta", quando todos afirmam que não se lembram de quem foi a idéia de queimar o mendigo, de quem foi a idéia de que o fariam com álcool e fósforos... É tão falsa quanto falsas são as alegações de que se lembram de forma idêntica de determinados detalhes e se esquecem, também de forma conjunta e idêntica, de outros.


DA CORRUPÇÃO DO MENOR

Será possível que se acredite serem verdadeiras as afirmações de que pouparam o "frágil" G. da provável "carreira" do mendigo assustado?! Logo após os fatos, quando estavam todos com os dados fresquinhos na memória, todos os cinco afirmaram, de forma harmônica e sem contradições, na presença de advogados, que G. também participou de todas as etapas. Todos teriam se esquecido de que, há poucos instantes, tinham deliberado proteger sua fragilidade?! E depois, quando pesava sobre eles a acusação de facilitar a corrupção do menor, todos tiveram outro ataque de "boa-memória", lembrando-se que decidiram em comum acordo que o menor era frágil, e que precisava ser protegido da "carreira" do mendigo?! Parece de meridiana clareza que esta versão objetiva absolvição pelo crime de corrupção de menores!

O menor, que, por sinal, nada tem de frágil ou de pequeno, não tinha registros de maus antecedentes. Hoje responde por um ato infracional de homicídio triplamente qualificado. Presentes, pois, os pressupostos para que os maiores sejam julgados pelo crime imputado, naturalmente após apresentação de todas as teses defensivas em Plenário do Júri.


DA DESCLASSIFICAÇÃO NESTA FASE PROCESSUAL

Qualquer principiante sabe que uma das quatro hipóteses legais nesta fase processual é, em tese, a desclassificação. Evidente que a afirmação de que a desclassificação, se fosse o caso, só poderia ser feita pelo Conselho de Sentença, após os debates em Plenário de Júri, referia-se a este caso específico, onde, na fase imediatamente anterior se afirmou, "assumiram o risco de provocar o resultado lamentavelmente advindo". Um entendimento é conseqüência lógica do outro. Se se entendeu estarem presentes os requisitos para a sentença de pronúncia, por via de conseqüência, entendeu-se incabível a desclassificação. A deturpação maldosa do sentido que se quis dar foi proposital.

Muitos estão convictos de que, nas circunstâncias, os homicidas agiram com dolo direto. O próprio MM. Juiz da Vara da Infância e da Juventude, após minuciosa e criteriosa análise dos autos, chegou à firme conclusão de que assumiram o risco de provocar o resultado lamentavelmente advindo. Com todo o respeito ao entendimento contrário, agiu ele com muita correção e justiça, ao atribuir a G. a prática do ato infracional de homicídio triplamente qualificado.

Esta signatária, da mesma forma que a Promotora de Justiça que atuou no outro processo pelo mesmo delito, e da mesma forma que o MM. Juiz que proferiu o julgamento, com base nas provas apresentadas, viu claramente o dolo eventual. É certo, como aliás já dito pela MM. Juíza (fl. 571), que é tênue a linha divisória entre o dolo eventual de homicídio e o preterdolo nas lesões corporais seguidas de morte. Assim sendo, ainda que haja dúvida, nesta fase processual não devia, com todo o respeito, ter-se procedido à desclassificação. Nesta fase, incide o Princípio maior do in dubio pro societate. Este Princípio é citado na quase totalidade das sentenças de pronúncia. Em geral, já consta até mesmo de um "modelo", no computador.

"Teria sido mais fácil agradar à sociedade utilizando-se o benefício da dúvida"?! Não se trata de ser mais fácil ou mais difícil. Simplesmente, in dubio pro societate!

É bem verdade que nosso Direito Penal adotou a Teoria Finalista da Ação. Mas é igualmente verdade que o sistema processual penal sedimentou e consagrou o Princípio de que, nas fases de proposição - na denúncia e na pronúncia - simples indícios são suficientes. No julgamento sim, incide o princípio in dubio pro reu. Mas para a pronúncia, in dubio pro societate. No caso em comento, nem se trata de meros indícios. Muito menos meras conjecturas. Se não se quer chamar de "provas", chame-se de "veementes indícios" e a solução mais justa e mais correta será in dubio pro societate.

A irresignação, aqui, reclama justo proclamar o egrégio TJDF a impossibilidade evidente de o Magistrado singular - cuja independência o Ministério Público defenderá às últimas conseqüências, na defesa do Estado Democrático de Direito, do qual referido atributo afigura-se corolário - impedir ao Júri a apreciação da causa a ele reservada soberanamente pela Carta Política.

Longe está a espécie, insista-se, de propiciar ao julgador monocrático o afastamento do homicídio doloso, acima de mínima dúvida, em virtude da atipicidade da conduta.

A conclusão agora questionada, ao contrário, resultou da valoração ampla dos fatos e provas, após análise minuciosa do feito, revelando a eminente Magistrada sua compreensão particular da demanda, o que inviabilizou, desde logo e definitivamente, a manifestação dos jurados, a quem caberá o respectivo julgamento e, se for o caso, reconhecer a desclassificação operada de modo prematuro e infundado na presente fase processual.

Enfim, devido mesmo aos referidos veementes indícios de autoria, deveria a pronúncia obrigatoriamente reconhecer o fato tipificado na denúncia como homicídio triplamente qualificado, sem lugar à desclassificação efetuada após exaustiva valoração dos elementos da causa, em claríssima violação da competência do Tribunal Popular (Constituição da República, artigo 5º, inciso XXXVIII e Código de Processo Penal, artigo 74, §1º), em completo desacordo às normas processuais incidentes na espécie (artigo 408 e 410 do Código citado).

Não se trata de negar a possibilidade de o Magistrado apreciar a causa para definir se se tipifica ou não hipótese de crime doloso contra a vida, única circunstância que, de lega lata, atrairia a competência do Tribunal Popular.

Tal juízo de tipicidade, contudo, há de se limitar à verificação de indícios de autoria e somente justificará decisão negativa quando, inarredável e inquestionavelmente, não se verificar a subsunção dos fatos à mesma.

Nada disso ocorreu na espécie.

A uma, porque o quadro fático-probatório amolda com inegável conforto a imputada autoria à norma de regência (Código Penal, artigo 121, §2º, I, III e IV), inviabilizando o respectivo afastamento na presente fase processual.

Depois, para chegar à malsinada classificação, a emérita Magistrada necessitou proceder a profunda apreciação mais afinada com o meritum causae, "perdendo-se em estudo comparativo das provas colhidas, reprimindo umas e, com veemência, valorizando outras, exercendo atribuições próprias dos jurados", em contraposição a toda doutrina e jurisprudência pacíficas sobre o assunto (cf. RT 521/439, RT 644/258, apud Damásio de Jesus, Código de Processo Penal Anotado, Saraiva, 12ª ed., 1995, p. 288), acolhidas, até há pouco, nas anteriores pronúncias exaradas pela douta sentenciante.

A questão não se resolve, d.m.v., na aferição do grau de coragem de "decidir" a causa "contra" a opinião pública.

Desclassificar a imputação, nestas circunstâncias, seria ferir de morte o Princípio do in dubio pro societate. E violar um Princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, porque representa um abalo nas vigas mestras de toda a estrutura jurídica.

Alguns simpatizantes da causa defensiva proclamaram que a sentença demonstrou e significou "coragem de enfrentar toda a sociedade nacional e internacional para fazer justiça". Este raciocínio traz ínsita uma inverdade incontestável: a de que pronunciar os réus significaria injustiça. Chegou-se a dizer que, quem pensa diferentemente quer vingança ou linchamento. Por que para todos os presidiários do País a condenação significou "justiça" e para estes rapazes significaria "vingança", "linchamento"?!?!

Não se pede vingança, nem linchamento, nem nada parecido. O que se procura é apenas e tão-somente o cumprimento da norma constitucional que estabelece competência exclusiva do Tribunal do Júri para julgar os autores de crimes dolosos contra a vida. A defesa terá assegurada toda a oportunidade de apresentar ampla defesa em Plenário do Júri. Aliás, mais que "ampla", "plenitude" de defesa. A decisão de pronúncia, neste caso, viria dar aplicação à norma constitucional expressa no artigo 5º, XXXVIII. A linha inversa importa em subversão da ordem constitucional e em transgressão à lei federal, notadamente aos artigos 408, 410 e 74. §1º do Código de Processo Penal.

No STJ, discutindo-se sobre o poder de retirada de qualificadora em sede de Pronúncia, assim decidiu o Exmº senhor Ministro VICENTE LEAL (Recurso Especial de número 604.405/DF - REG. 95.00200092-9 - original sem grifo):

"(...) Não se exige no pronunciamento juízo de certeza, mas mero juízo de probabilidade e não é cabível, nesse ato processual, exame profundo de provas, porque aí não se busca a formação, repita-se, de um juízo de certeza, que há de ser efetuado em momento subseqüente, seja, quando do julgamento pelo Tribunal do Júri, que é o Juiz natural competente para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, segundo o cânon inscrito no art. 5º, XXXVIII, da Carta Magna.

Se assim é, o Juiz da pronúncia, embora esteja obrigado a dar os motivos do seu convencimento, indicativos da existência do crime e da presença dos indícios suficientes de autoria, não deve efetuar valoração de provas, sob pena de incorrer no grave erro de influenciar no ânimo dos integrantes do Tribunal Popular, causa de nulidade do decisum.

Em idêntico sentido, confira-se ainda os reiterados julgados (originais sem grifo):

"Recurso em Sentido Estrito contra despacho de pronúncia - prevalência, nesta fase, do brocardo in dubio pro societate - não merece guarida pretensão de desclassificação para crime (ou contravenção) de competência do Juiz singular se este ficou improvado - inteligência do art. 410 do CPP

(Unânime - RSE 1416/94/DF - Reg. Ac. 72592)

"Processual Penal. Impronúncia (art. 409, do CPP), comprovada a existência do crime e indícios suficientes de autoria, pronuncia-se o réu. Nos crimes dolosos contra a vida, decise-se a dúvida em favor da sociedade. Precedentes da Corte. Recurso provido, para pronunciar o acusado." Unânime

(TJDF - Registro de Acórdão nº 63188 - DJ 5-5-93, página 16276)

"Processo Penal e Penal. Pronúncia. Homicídio. Desclassificação. Competência do Júri. Persistindo dúvida até a pronúncia, quanto à ocorrência de legítima defesa e aos elementos que poderiam ensejar a desclassificação do homicídio para lesões corporais, aplica-se o princípio ´in dubio pro societate´. Ao júri popular caberá decidir o caso. Recurso improvido"

(TJDF - RSE - Reg. de Ac. nº 60352 - DJ 4-11-92, pág. 35517)

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"Processo Penal - Pronúncia. 1) Havendo indícios da autoria, e devidamente comprovada a materialidade do delito, deve o juiz pronunciar o réu a fim de ser submetido a julgamento pelo Egrégio Tribunal do Júri, pois a pronúncia é mero juízo de admissibilidade, prevalecendo inclusive, nesta fase, o princípio in dubio pro societate. 2) Recurso improvido." Unânime.

(TJMT - RSE nº 061/95 - Santana; Rel. Desembargador Gilberto Pinheiro).

"PENAL E PROCESSUAL PENAL - CRIME CONTRA A VIDA - Dolo eventual infirmado - Desistência voluntária indemonstrada - Desclassificação indevida - Reforma da interlocutória mista - Pronúncia - 1) O agente que, aproximadamente dois metros, aponta arma portentosa (revólver ´38´) contra a região abdominal da vítima e aciona gatilho, mesmo o fazendo uma única vez, obrou com dolo eventual, pois se não teve a deliberada intenção de matar, no mínimo, assumiu o risco de produzir esse resultado, já que a curta distância, a eficiência do instrumento e o alvo escolhido, à toda evidência, afastavam qualquer dúvida quanto à possibilidade do disparo causar o evento letal. - 2) Não há falar em desistência voluntária se houve o tiro e a vítima foi atingida no local desejado, por sinal mortal, principalmente. - 3) Restando não infirmado o dolo eventual, indevida e precipitada é a desclassificação para lesão corporal, no juízo de admissibilidade da acusação, ao argumento de indemonstração do animus necandi, máxime se afirmado, em laudo pericial fundamentado, que a lesão em região fatal provocou risco de vida, em decorrência de hemorragia interna. Até porque, nessa fase, por força do princípio in dubio pro societate, questões intrincadas sobre a definição jurídica devem ser remetidas ao Júri popular, único competente para aprofundar-se no exame da prova. - 4) Inobservadas, pelo juiz singular, as diretrizes dos tópicos anteriores, reforma-se o decisum e pronuncia-se o acusado"

(TJSP - RSE nº 022/92 - Capital; Câmara Única)

Não se pode pressupor nem absolvição nem massacre no Tribunal do Júri. A instituição do Júri no Brasil sempre mereceu estar no capítulo dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, o capítulo mais importante da Lei mais importante. Algumas frases são incansavelmente repetidas em defesa da instituição. A título de exemplo:

"Somos partidários do júri porque ele é emanação da vontade do povo; porque as suas decisões, proferidas por consciências livres de preconceitos, atendem ao pensamento médio da sociedade".

(Evandro Lins e Silva)

"A zona ocupada pelo júri através do mundo contemporâneo traça quase exatamente o meridiano jurídico da civilização e, pela nitidez com que a sua realidade se acentua de país para país, se poderia determinar a situação de liberdade individual no seio de cada povo"

(Ruy Barbosa)

Doutos julgadores, aprofundar a discussão sobre o mérito não é a melhor técnica. Sabe-se que o momento processual não é adequado para se discutir o mérito. Sacrifica-se, no entanto, a melhor técnica em nome do bom Direito.

Por todo o exposto, espera o MINISTÉRIO PÚBLICO, seja provido o presente recurso, para reformar a r. decisão combatida, pronunciando os réus nos termos da denúncia (121, §2º, I, III e IV e artigo 1º da Lei 2252/54).

Brasília, 26 de agosto de 1997

MARIA JOSÉ MIRANDA PEREIRA, Promotora de Justiça

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Sobre a autora
Maria José Miranda Pereira

promotora de Justiça do Tribunal do Júri de Brasília (DF), membro da Associação Nacional Mulheres pela Vida

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Maria José Miranda. O caso do índio pataxó queimado em Brasília.: Recurso em sentido estrito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 2, n. -2138, 24 ago. 1997. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16001. Acesso em: 6 dez. 2025.

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