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Ação civil pública contra doação de bem de uso comum do povo a entidade civil

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01/08/2000 às 00:00
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DA AUSÊNCIA DE CONCORRÊNCIA PÚBLICA NA CESSÃO DA ÁREA

Pelo exposto, verifica-se que é evidente que a área objeto da presente demanda jamais poderia ter sido transformada em bem dominial. Todavia, ainda que se admita, por inesgotável amor aos debates, a possibilidade que tal imoralidade ocorra, é evidente que no momento de doação da área deveria haver uma concorrência pública.

Aliás, essa é mais uma anomalia da lei municipal nº 11.799, que em seu artigo 1º autoriza o executivo a presentear a associação ré com a área em questão independentemente de concorrência pública!!!

Ora, mesmo que se admitisse a concessão gratuita de direito real de uso a particulares, ela deve estar precedida, necessariamente, de concorrência prévia, dispensada somente se o beneficiário for outro órgão público.

No caso dos autos uma associação foi favorecida por esta lei `sui generis`, não havendo oportunidade para que outras associações ou particulares apresentassem seu projeto de utilização desta grande área que, se não servir uso comum do povo, que tenha pelo menos uma utilização de interesse coletivo comprovado. As próprias autoras, que representam a luta pela qualidade de vida dos munícipes dos bairros estariam interessados em propor utilizações viáveis à área para que a população pudesse gozar um espaço público, de área verde, para muitas funções ainda não exploradas, às expensas da empresa PBK, tendo em vista o termo de ajustamento de conduta homologado por sentença que a mesma firmou com o Ministério Público, conforme já mencionado.

É laragamente sabido que há uma carência de áreas verdes na cidade de São Paulo, sendo que a região onde se localiza a área indevidamente doada é uma das que apresentam tal carência de forma mais crônica.

Sem qualquer desrespeito à honrada comunidade islâmica, cuja importância cultural e econômica não apenas na cidade de São Paulo, mas no país, é inquestionável, porque a doação da área pública deve lhes favorecer?

Do ponto de vista jurídico, ainda que se tratasse a área de um bem dominial, ou melhor dizendo, ainda que pudesse prevalecer a abusiva transformação desse bem de uso comum do povo em dominial, o que se admite apenas "ad argumentandum", jamais á área poderia ser objeto de doação sem concorrência pública, como consta expressamente no art. 1º da inconstitucional Lei Municipal nº 11.799, de 9 de junho de 1995.

Com efeito, há algumas possibilidades legais de utilização por particulares de bens públicos dominiais. O prof. Celso Antonio Bandeira de Mello enumera tais hipóteses(9):

"A utilização por particulares, em caráter exclusivo, de bens dominiais, pode resultar de diferentes atos jurídicos. A saber: locação, arredamento, comodato, permissão de uso, concessão de uso, concessão de direito real de uso e enfiteuse"

No caso em tela, em que pese a anomalia da transformação da área em bem de uso comum do povo para bem dominial, consoante argumentado no tópico anterior, a única hipótese das elencadas pelo Prof. Bandeira de Melo em que a doação da área para a Associação ré poderia se enquadrar é no instituto jurídico de "concessão de direito real de uso", e para que não reste nenhuma dúvida acerca desse enquadramento transcrevemos a definição do eminente professor Bandeira de Mello desse instituto jurídico(10):

"Concessão de direito real de uso, instituto previsto no art. 7º do Decreto-Lei 271, de 28.2.67, é o contrato pelo qual a Administração transfere, como direito real resolúvel, o uso remunerado ou gratuito de terreno público ou do espaço aéreo que o recobre, para que seja utilizado com fins específicos por tempo certo ou por prazo indeterminado"

A própria escritura lavrada perante o 26ª Tabelião de Notas, que tem como outorgante a Municipalidade ré e como outorgada a co-ré, é de "Concessão Administrativa de Uso". Assim sendo, a obrigação de realização de licitação está expressa na lei, precisamente no art. 17, I da Lei 8.666/93:

"Art. 17 – A alienação de bens da administração pública, subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação e obedecerá às seguintes normas:

I – Quando imóveis, dependerá de autorização legislativa para órgãos da administração direta e entidades autárquicas e fundacionais e, para todos, inclusive as entidades paraestatais, dependerá de avaliação prévia e licitação, na modalidade de concorrência"

Portanto, a lei é clara em impor a obrigação de licitar ao Poder público no caso de cessão a particulares do direito de uso de bem público. Mais ainda, deveria ser justificado o interesse público em efetuar tal transação, o que em nenhum momento ocorreu, e haver avaliação prévia do imóvel, que também não ocorreu. Trata-se de um verdadeiro absurdo. Comentando o instituto jurídico da Concessão de Direito Real de Uso, assim deixa expresso o insigne Hely Lopes Meirelles(11):

"A concessão assim concebida substitui vantajosamente a maioria das alienações de terrenos públicos, razão pela qual deverá ser sempre preferida, principalmente nos casos de venda ou doação. A concessão de direito real de uso, tal como ocorre com a concessão comum, depende de autorização legal e de concorrência prévia, admitindo-se a dispensa dessa quando o beneficiário for outro órgão da entidade ou administração pública."

Dessa forma, frise-se novamente, mesmo que pudesse haver a transformação do bem em questão de uso comum do povo em dominial, ainda assim haveria a necessidade inquestionável e impostergável de realização de uma concorrência pública para a cessão da área, o que não ocorreu.

Se tivesse ocorrido uma licitação com a lisura devida, dificilmente o projeto do réu de construção de uma sede social e cultural teria sido o vitorioso, frente à solução muito mais justa, democrática e benéfica oferecida pelas autoras, dentre outras propostas ainda melhores que poderiam eventualmente surgir.


DA ILEGALIDADE DO CORTE DE ÁRVORES

Como visto, o Conselho Superior da Associação Islâmica pretende erigir na área em litígio sua sede social e cultural, e a área, que vem sendo ilegalmente utilizada para depósito de materiais pesados pela Municipalidade, apresenta, em uma parte, péssimo estado de conservação, e outra parte rica e extensa vegetação, que é protegida pelo Decreto Estadual 30.443, de 20 de setembro de 1989. Pedimos vênia para transcrever o art. 8º desse diploma legal:

"Art. 8º - São imunes de corte, em razão de sua localização e beleza, todas as árvores existentes nos seguintes logradouros públicos de Bairros-Jardins:

          Todas as ruas do Alto da Boa Vista, Jardins Santo Amaro, Petrópolis, Cordeiro, dos Estados e Broklin Paulista."

É induvidoso que o diploma legal supra citado abrange a área em questão. Se a associação ré pretende ilegalmente erigir uma sede social na área em questão, evidentemente não resta a menor sombra de dúvida do risco que as árvores localizadas nesse logradouro público (cuja existência está fotograficamente comprovada) correm sério risco de serem ilegalmente cortadas. Ou seja, como se já não bastasse os réus pretenderem suprimir de toda a população uma área pública de uso comum do povo, pretendem ainda suprimir uma área verde de extrema importância e beleza.

Também por estar presente mais essa ilegalidade, não pode prosperar a pretensão dos réus.


DA MEDIDA LIMINAR

Diante de todo o exposto, não resta dúvida acerca da necessidade da concessão urgente e imediata de uma medida liminar, como previsto no art. 12 da Lei 7.347/85.

Com efeito, o "fumus boni juris" presente está fartamente comprovado, bastando observar que há prova documental incontroversa de que a área destina-se a uso comunitário, de acordo com o plano original de loteamento, bem como observando-se o teor das Leis Municipais em questão, francamente inconstitucionais por contrariarem o art. 180, inciso VII da constituição Estadual, bem como o art. 24, inciso I da Constituição Federal. Foi contrariado ainda o art. 17, I da Lei 8.666/93, por ausência de concorrência pública para a área, e será violado o art. 8º do Decreto Estadual 30.443/89 se o corte de árvores tiver início.

No que tange ao "periculum em mora", o mesmo também está inquestionavelmente presente na hipótese vertente, levando-se em consideração que o início do corte de árvores tornará a situação irreversível, bem como o início das obras por parte da Associação ré tornará mais difícil e gravosa a reposição do "status quo ante".

Aliás, a presença de tais aspectos que autorizam a concessão da medida liminar pleiteada são tão evidentes que, em hipótese idêntica à presente, o Egrégio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ao julgar uma medida cautelar, deixou assentado o seguinte V. Acórdão, de lavra do eminente Des. Antonio Eduardo F. Duarte(12):

"MEDIDA CAUTELAR. Loteamento urbano. Faixa Reservada à utilização pública. Destinação diversa pelo Município. Inadmissibilidade. Recurso Improvido.

Ementa: Nos loteamentos urbanos, o destino a ser dado à faixa de terreno reservada à utilização pública, subordina-se obrigatoriamente ao que estabelecem os arts. 4º e 5º da Lei 6.766, de 19.12.1979, que dispõe sobre o parcelamento do solo. Assim, não pode o Município, no que concerne a essas áreas que foram afetadas ao seu patrimônio por força de norma legal e com a finalidade de implantação de equipamentos públicos urbanos, de sistemas de circulação e para espaços livres, destinar parte das mesmas, mediante permissão de uso a terceiros, para construção de habitações, ainda que visando instalar programa de moradias para a população carente, sobretudo porque tais áreas, nos termos do diploma legal antes referido, integram a parcela do loteamento "non aedificandi".

(ApCiv 4.028/98 – 3ª C.C – TJRJ – j. 01.09.1998 – rel. Des. Antonio Eduardo F. Duarte)

Dessa forma, requerem os autores a concessão urgente e imediata de medida liminar, a fim de que seja determinada aos réus a proibição de qualquer alteração no local, seja para suprimir a vegetação ali existente, seja para iniciar obras de construção de sua sede social e/ou cultural no local público.


DO PEDIDO

Diante do exposto, e de tudo o mais o que dos presentes autos consta, são os termos da presente para respeitosamente requerer a V. Exa.:

a) com fulcro no art. 12 da Lei 7.347/85, a concessão urgente e imediata de medida liminar, "inaudita altera partes", nos termos supra requeridos, sob pena do pagamento de multa diária em caso de descumprimento, sugerindo-se o montante de R$ 10.000,00 (dez mil reais);

b) a citação dos requeridos nos endereços supra mencionados para que, em querendo, acompanhem os termos da presente demanda;

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c) a intimação do ilustre representante da Promotoria de Habitação e Urbanismo do Ministério Público do Estado de São Paulo para que atue no presente feito na condição de "custus legis";

d) a total procedência da presente a fim de que:

- com base no controle difuso de constitucionalidade, seja declarada incidentalmente a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 11.799 de 9 de junho de 1995 e também da Lei Municipal 12.267 de 18 de dezembro de 1996, que deu nova redação àquela, por estarem em contradição com o art. 180, VII da Constituição Estadual e o art. 24, inciso I da Constituição Federal;

- seja declarada a nulidade de pleno direito da Escritura Pública de Concessão Administrativa de Uso lavrada perante o 26º Tabelião de Notas no livro 1656, página 339 à página 343, no dia 09 de dezembro de 1999, que possui como outorgante a Prefeitura do Município de São Paulo e como outorgado o Conselho Superior para Assuntos Islâmicos no Brasil – Consaib;

- seja determinada à Prefeitura do Município de São Paulo a desinstalação do depósito de materiais pesados que funciona no local, bem como a proibição de desenvolver qualquer outra atividade diversa da destinação original da área como bem de uso comum do povo para fins comunitários;

- seja imposta ao Conselho Superior para Assuntos Islâmicos no Brasil a obrigação de não fazer, consistente na não supressão da vegetação do local e a não construção de sua sede social e/ou cultural, ou qualquer outra construção, bem como a demolição do que vier eventualmente a ser erigido e o replantio das árvores eventualmente derrubadas, repondo-se integralmente o "status quo ante";

- na hipótese das obras virem a ser iniciadas, seja imposta a ambos os requeridos, solidariamente, a indenização por danos ambientais, cujo montante deverá ser fixado pelo prudente e elevado critério de V. Exa., sendo que o valor deverá reverter ao fundo a que faz referência o art. 13 da Lei 7.347/85 e a Lei 9.008/95, fundo esse regulamentado pelo Decreto 1.306 de 9.11.94 (Fundo de Defesa dos Interesses Difusos);

e) sejam condenados os requeridos ao pagamento de custas processuais, honorários advocatícios e demais cominações legais;

Protestando-se provar o alegado por todos os meios de prova em direito admitidos, dá-se à causa, para efeitos fiscais, o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), asseverando que os autores estão isentos do pagamento de custas processuais, nos termos do art. 18 da Lei 7.347/85.-

Termos em que,

P. Deferimento.

São Paulo, ......

pp. Marcus Vinicius Gramegna
- OAB/SP 130.376 -


NOTAS

  1. MEIRELLES, Hely Lopes – "Direito Administrativo Brasileiro, 22ª ed., Malheiros, p. 163
  2. SILVA, José Afonso – "Curso de Direito Constitucional Positivo, 8º ed., Malheiros, p. 52
  3. MEIRELLES, Hely Lopes – op. cit. p. 418
  4. LEME MACHADO, Paulo Affonso – "Direito Ambiental Brasileiro", RT, 1989, p. 244
  5. MUKAI, Toshio - "Impossibilidade jurídica de desafetação legal dos bens de uso comum do povo na ausência de desafetação de fato", in RDP 75/246-249
  6. FIGUEIREDO, Lucia Valle – "Disciplina Urbanística da Propriedade", Editora Revista dos Tribunais, 1980, pág. 41
  7. SILVA, José Afonso – "Direito Urbanístico Brasileiro", Malheiros, 2ª ed., p. 184/185
  8. SILVA, José Afonso – ob. cit. p. 184
  9. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio – "Curso de Direito Administrativo", 11ª ed., Malheiros, p. 626
  10. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio – ob.cit. p. 626
  11. MEIRELLES, Hely Lopes – "Direito Administrativo Brasileiro", 22ª ed., Malheiros, p. 446
  12. Acórdão tirado da "Revista de Direito Ambiental", vol. 17, RT, p. 307
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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

. Ação civil pública contra doação de bem de uso comum do povo a entidade civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 44, 1 ago. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16014. Acesso em: 18 mai. 2024.

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