III - Da divergência jurisprudencial
Ao decidir da forma como pormenorizadamente acima foi exposto, deu-se, no ven. Acórdão recorrido, a um dispositivo de lei federal (art. 252, I e II, do CPP), interpretação divergente daquela que já lhe deu e têm dado outros tribunais, viabilizando-se, pois, o Recurso Especial também com fundamento na letra "c" do art. 105, III, da Constituição Federal.
Afirma-se, expressamente, no ven. Acórdão recorrido:
"Não é possível desconsiderar-se que o Dr. Mário Ateyeh, de saudosa memória, atuou na sua função correcional, porque ele, como Titular da Vara Especializada de Repressão aos Entorpecentes, era também o Corregedor Natural. É possível estabelecermos um paralelismo entre essa função que o Dr. Mário Ateyeh exercia com a de todo juiz nas comarcas do interior, em que este além de Diretor do Fórum é também o Corregedor do presídio e simultaneamente exercer as funções correcionais nos Cartórios. Se assim o fosse, nenhum Juiz-Diretor do Fórum em comarca do interior poderia exercer a função jurisdicional em processos envolvendo servidores do Poder Judiciário, seus subordinados, que transgrediram normas administrativas ou penais no exercício de suas funções.
Em princípio, entendo que, a menos que se demonstrasse um efetivo prejuízo, não se pode invocar nulidade, mesmo porque, é importante também que se pondere que esse processo causou em toda a sociedade mato-grossense um profundo constrangimento e preocupação. A atuação da Justiça teria que ser firme, não sofrer todos os percalços que, normalmente, a defesa procura imprimir aos processos para com isso protelar a decisão judicial.
O Dr. Mário Ateyeh era o Corregedor a quem incumbia as funções correcionais na Delegacia Especializada, como o Dr. Benedito Xavier de Souza Corbelino fazia respectivas vezes dentro das atribuições do Ministério Público.
O entendimento jurisprudencial é de que no exercício dessas funções, as autoridades judiciais e os membros do Ministério Público não se tornam impedidos, enquanto nos exercícios regulares, normais da função correcional do juiz e da função do Ministério Público.
Com essas considerações, pedindo a máxima vênia ao douto relator, indefiro a pretensão".
Pode-se, portanto, desses trechos acima transcritos, concluir que:
A ven. decisão recorrida sustentou que, ao participar da colheita de provas incriminadoras contra os recorrentes, o juiz prolator da sentença na ação penal atuou como Corregedor Natural, e que no exercício dessa função (corregedor natural) não se torna impedido.
E que, conforme expressamente afirmado no ven. acórdão que apreciou os Embargos de Declaração, "presenciar o trabalho pericial de simples pesagem das drogas não significa participar da perícia, mas exercitar função correcional, uma vez que a droga então supostamente desaparecida estava vinculada a feitos (alguns deles ajuizados) afetos à Vara Especializada.
Diverge, portanto, essa decisão, daquelas adotadas nos seguintes ven. Acórdãos paradigmas: 1º) da Exceção de Suspeição nº 01/79 - Turma simples - rel. Des. Jesus de Oliveira Sobrinho - j. 18.04.79 TJMS - v.u., integralmente publicado in RT 526/434; 2º) Apelação 727.955/3 - J. 18.8.93 - rel. Juiz Ribeiro dos Santos - 5ª C. Tribunal de Alçada Criminal-SP - v.u., integralmente publicado in RT 707/313; 3º) Habeas Corpus nº 45.389-RJ - j. 26.08.68 - 1ª T. STF - rel. Ministro Victor Nunes Leal - v.u., integralmente publicado in RTJ 47/543; 4º) Recurso Habeas Corpus 4.769-PR - 6ª T. - j. 07.11.1995 - rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro - v.u., integralmente publicado na RT 733/530.
Transcrevem-se, abaixo os trechos de cada um dos arestos paradigmas, que demonstram caracterizado o impedimento para julgar ação penal, quando o juiz, na condição de policial ou não, tenha participado na colheita do elementos incriminadores, constando de suas fundamentações posição exatamente oposta àquela adotada no ven. Acórdão recorrido, comprovando-se portanto, a existência de divergência jurisprudencial para fins de admissão do Recurso Especial pela letra "c" do art. 105, III da CF:
1º) Exceção de suspeição 01/79 - Turma Simples - TJMS:
"Está impedido de processar e julgar o réu, o juiz que haja diligenciado a obtenção de elementos incriminadores do ato por ele praticado, antes de instaurada a ação penal".
"O excepto não nega haver praticado tal diligência.
Por mais que compreendamos a atitude do juiz, os elevados propósitos que nortearam a sua conduta, não podemos negar que, em assim procedendo, ficou impedido para processar e julgar o réu.
O art. 252, II, do CPP, ao dispor que o juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que houver desempenhado qualquer das funções previstas no nº I, entre elas a de autoridade policial, alcança não só o juiz que, efetivamente, no exercício do cargo de Delegado de Polícia, pratica as funções que lhe estão afetas, como também o juiz, que embora não tenha exercido o cargo de Delegado de Polícia, pratica ato da alçada da autoridade policial.
O objetivo da lei não é impedir quem foi autoridade policial de exercer a jurisdição no processo, mas impedir quem funcionou na busca de elementos incriminadores, posteriormente, como juiz no mesmo processo.
Temos certeza que com as vistas voltadas para a sua posição de Juiz de Menores, cujas atividades no interesse da proteção do menor se desenvolvem com muito mais amplitude e sem maiores preocupações com formalidades processuais, o dedicado Juiz excepto acabou ingressando em seara alheia, o que, indiscutivelmente, lhe veda, agora, julgar o caso.
A ação praticada pela autoridade judiciária, procurando elementos para esclarecer fatos antes de iniciada a ação penal, insere-se entre as funções da autoridade policial, conforme está explícito no art. 6º, III, do CPP".
2º) Apelação 727.955/3 - 5ª Cam. TACrim-SP:
"Acontece, que a primeira magistrada participou de atos correcionais, decorrentes da sindicância, instaurada pelo Juízo, para apurar os fatos que deram origem à denúncia, abrigados nos reconhecimentos dos acusados (fls.) e tomada de depoimentos da vítima, repetido a (fls.)".
"Consequentemente, estava a MM Juíza impedida de funcionar na ação penal. Daí, a eiva insanável gerada pelo recebimento da denúncia, ato processual que praticou. Agira a magistrada na sindicância, munida de poderes correcionais como Juiz de Instrução, objetivando apurar o acontecido, recolhendo subsídios que respaldaram a denúncia".
"Com efeito, o Juízo de admissibilidade da ação proposta, notadamente, a presença de indícios de autoria na acusação apresentada, culminou viciado, porquanto, se quebrou o princípio da neutralidade do juiz, porque maculada a convicção do Juiz da causa, pois tinha conhecimento direto dos fatos, da increpação; em virtude, repita-se de ter sido atuante e responsável pela apuração da notitia criminis, que chegou ao seu conhecimento".
"A garantia do juiz natural liga-se ao devido processo legal. Além da legítima investidura, precisa o Juiz se achar dotado de garantias inerentes ao desempenho da função jurisdicional. Dentre elas se pode divisar a independência política e jurídica. Ambas asseguram a neutralidade. E, sob o aspecto deontológico, o Juiz impedido, que silencia, viola a regra da lealdade processual (art. 5º LIV da CF)".
"Este Egrégio Tribunal, também, assim já entendeu, consoante v. aresto relatado pelo então Juiz da C. 8ª Câmara, Dr. Canguçu de Almeida, noticiando outro desta 5ª Câmara, cujo teor destaca-se: "O Juiz de Direito que instaura sindicância e a instrui, objetivando a apuração de responsabilidade penal em casos de abuso de autoridade, exercendo assim função de autoridade policial, está impedido para o exercício da jurisdição do processo-crime" (JTACRIM, Lex, 75/268). E que dizer-se, então, se, ao lado dessa atividade, culmina o Magistrado, na sindicância, por externar o indisfarçável convicção convicção a propósito do comportamento daquele a quem, posteriormente, vem a condenar, fiel a este entendimento prematuramente manifestado? Impedido que estava, por tudo isso, o Magistrado de proferir sentença na ação penal que evidentemente já pré-julgara, o impedimento, mais que a nulidade, gerou a própria inexistência jurídica dos atos praticados (cf. Hélio Tornaghi, Comentários ao Código de Processo Penal, II/315, ed. 1965), inexistência que não desaparece sequer na falta de oposição da parte interessada (cf. José Frederico Marques, Elementos de direito Processual Penal, II/407)".
"Enfim, se para o recebimento da denúncia deve o magistrado imprimir um juízo de admissibilidade, estará impedido de fazê-lo quando funcionou em sindicância, visando a apurar o crime e seu autor, atuando como verdadeiro Juiz de Instrução, vale dizer, exercitando tarefas pertinentes à atividade do Delegado de Polícia"
3º) Habeas Corpus 45.389-RJ - 1ª T. STF:
"O art. 252, II, do C Pen., estabelece uma garantia de isenção do juiz, que não deve ser interpretada com muita benevolência, para que não possa ser desvirtuada na prática em prejuízo da defesa".
"Não há, neste caso, qualquer indício de parcialidade efetiva do Juiz que presidiu ao Júri, mas garantias dessa natureza devem ser examinadas em têrmos genéricos, por se tratar de impedimento legal por presunção".
"Em casos tais, só a total insignificância do ato praticado poderia afastar a nulidade. A simples possibilidade de haver o ato do delegado influído no julgamento - como ocorre no caso - impedia que ele viesse a funcionar como juiz no mesmo processo".
"Defiro a ordem, para anular o feito, devendo ser realizado outro julgamento, sob a presidência de juiz legalmente desimpedido".
4º) RHC 4.769-PR - 6º T. STJ:
"O magistrado e o membro do MP se houverem participado da investigação probatória não podem atuar no processo. Reclama-se isenção de ânimo de ambos. Restaram comprometidos (sentido jurídico). Daí a possibilidade de argüição de impedimento ou suspeição".
"No tocante ao juiz, em trabalho doutrinário, expus meu pensamento:
"O espaço é limitado. Levanto uma questão. O juiz que realizar a diligência poderá presidir o processo?
Sabe-se, o magistrado precisa ser isento. Não ter interesse pessoal algum. Daí, o impedimento e a suspeição.
Haverá isenção (sentido normativo) para processar e julgar quem promoveu, reservadamente, a prova?
Tenho que a resposta se impõe negativa.
Quem recolheu a prova (ainda que isentamente), com ela ficou comprometido. Pelo menos impressionado. Ao presidir a instrução, até inconscientemente, tenderá a orientar a coleta dos elementos probatórios no sentido de confirmar o que foi por ele recolhido".
"A inovação legislativa não pode ser confundida com o juizdo de instrução. Neste o magistrado recolhe a prova e remete o processo para o juiz competente"
"O juiz, e aqui vai lenta conquista política, há de ser terceiro, não participar do recolhimento probatório, nem promover a imputação. A formação da culpa não se confunde com a busca da prova. Também não se confunde com a possibilidade de o magistrado acompanhar pessoalmente a produção de uma prova, ensejada a ampla publicidade"
"A 6ª T do STJ decidiu questão semelhante.
Dois promotores, por designação superior, acompanharam o inquérito policial, tiveram parte ativa na coleta das provas. Um deles ofereceu a denúncia e arrolou o outro como testemunha. A sentença, por sua vez, acolheu a imputação e condenou o acusado. Pormenor importante: o decreto condenatório considerou relevante o depoimento do promotor. O acórdão anulou o julgamento, considerou que a testemunha não era isenta, estava comprometida com a prova em cuja produção tivera relevante atividade".
Como se pode verificar, pela comparação dos trechos acima transcritos, existe divergência entre o ven. Acórdão recorrido e os Acórdãos paradigmas, divergência essa a respeito da interpretação do art. 252, I e II, do Código de Processo Penal, razão pela qual impõe-se, também por esse fundamento, o conhecimento do Recurso Especial.
Do exposto, demonstrada a contrariedade e a negativa de vigência a vários preceitos da legislação ordinária federal, perfeitamente caracterizada a divergência jurisprudencial na matéria, esperam os recorrentes seja admitido e provido o presente recurso constitucional, reformando-se o ven. Acórdão impugnado, de modo que seja julgada procedente a revisão criminal nº 187/97 promovida pelos recorrentes, harmonizando-se o Acórdão a ser prolatado aos vários precedentes colecionados neste arrazoado, os quais, pela sua iteratividade, já possuem o valor de autêntica Súmula.
Justiça!
Cuiabá, 23 de setembro de 1.998.
José
Carlos de Souza Pires
advogado OAB-MT 1.938-A
Marcos
Martinho Avallone Pires
advogado OAB-MT 4.626
NOTAS
- Autos do processo nº 33/94 - 9ª Vara Criminal
- Autos da revisão criminal.
- Autos da revisão criminal.
- Autos da revisão criminal
- Autos da revisão criminal
- Autos da revisão criminal
- Autos da revisão criminal.
- Autos da revisão criminal.
- Autos da revisão criminal.
- Autos da revisão criminal.
- Ementa do acórdão: Não age com prudência o magistrado que presta
declarações públicas em processo de sua competência jurisdicional, mas isso não o
torna suspeito se os "esclarecimentos" cingiram-se ao óbvio, sem implicar
contra o excipiente intenção de parcialidade. (RT-555/341).