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Ação civil pública contra racionamento em Marília (SP), cuja liminar foi concedida

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01/04/2001 às 00:00
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OFENSA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE

          A respeito do plano de redução de consumo de energia elétrica, dispôs o art. 14, da MP n.º 2.148-1:

          "Art. 14. Os consumidores residenciais deverão observar meta de consumo de energia elétrica correspondente a:

          I - cem por cento da média do consumo mensal verificado nos meses de maio, junho e julho de 2000, para aqueles cuja média de consumo mensal seja inferior ou igual a 100 kWh; e

          II - oitenta por cento da média do consumo mensal verificado nos meses de maio, junho e julho de 2000, para aqueles cuja média de consumo mensal seja superior a 100 kWh, garantida, em qualquer caso, a meta mensal mínima de 100 kWh.

          § 1o Na impossibilidade de caracterizar-se a efetiva média do consumo mensal referida neste artigo, fica a concessionária autorizada a utilizar qualquer período dentro dos últimos doze meses, observando, sempre que possível, uma média de até três meses.

          § 2o Os consumidores que descumprirem a respectiva meta fixada na forma do caput ficarão sujeitos a suspensão do fornecimento de energia elétrica, após quarenta e oito horas da entrega da conta que caracterizar o descumprimento da meta e contiver advertência expressa.

          § 3o A suspensão de fornecimento de energia elétrica a que se refere o § 2o terá a duração:

          I - máxima de três dias, quando da primeira inobservância da meta fixada na forma do caput; e

          II - mínima de quatro dias e máxima de seis dias, em caso de reincidência.

          § 4o A GCE poderá estabelecer prazo e procedimentos diversos dos previstos nos §§ 1o, 2o e 3o deste artigo."

          Ao prever o corte no fornecimento de energia e a sobretaxa àqueles consumidores que consumirem mais de 200 kWh ao mês, a Medida Provisória n.º 2.148-1 afrontou diretamente um dos cânones do Estado de Direito, ou seja, o princípio da igualdade.

          É certo que se admitem desigualdades, mas também é certo que é necessária a existência de uma correlação lógica entre o fator eleito como discriminante e a discriminação legal quanto a ele. E isso, infelizmente, não está ocorrendo no presente caso.

          Ao eleger um padrão mínimo de gastos, não se levou em conta as diferenças de cada consumidor. Ora, muitos trabalham em casa para sobreviver, o que com certeza eleva o consumo de energia elétrica, tão essencial nos dias de hoje; existem famílias compostas de oito pessoas, outras de apenas duas. Não é crível que se preferiu, talvez por maior facilidade de operação, limitar os gastos de todos num mesmo patamar.

          Segundo a Medida Provisória, deverá ser levado em consideração para se fixar a meta de consumo, aquele ocorrido, em média, nos meses de maio, junho e julho de 2000.

          Contudo, referida meta não levará em consideração fatos que alteraram a realidade fática das famílias: o nascimento de um filho, o aparecimento de uma doença, etc.

          Assim, a família que, acreditando que poderia garantir à sua prole uma vida melhor, teve um filho após o período acima e, em razão disto, viu aumentar seu consumo, terá que reduzi-lo a qualquer custo, sob pena de ter que embalar este pequeno e novo brasileiro à luz de velas.

          Também a pessoa que, sucumbindo à insegurança de viver em um País governado por medidas provisórias, onde o Poder Executivo assumiu o papel do Poder Legislativo, contraiu uma doença e, em razão disto viu crescer o seu consumo, também correrá o risco de ter suspenso o fornecimento de energia elétrica.

          Para se ter uma idéia deste contingente de pessoas que tiveram sua realidade alterada no período e nada poderão fazer, basta verificarmos a reportagem publicada hoje no jornal "Folha de São Paulo":

          "Os casais que tiveram filhos depois de junho do ano passado podem se preparar. Sua cota de luz não será maior porque a família aumentou. "Não há excepcionalidade no caso das famílias que aumentaram recentemente", disse Cyro Boccuzzi, vice-presidente da Eletropaulo. Como a companhia está às voltas com uma avalanche de pedidos de casos de exceção para aumento das cotas de energia, Boccuzzi disse que não vai dar para atender a todos.

          Devem ficar de fora também famílias que compraram muitos eletrodomésticos no último ano ou empresas que aumentaram sua produção. A Eletropaulo calcula que cerca de 15% a 20% dos consumidores poderiam ser enquadrados nos casos de exceção, mas não há como atender a todos.

          Outra categoria que ficou de fora das exceções e terá que tentar negociar sua situação caso a caso é o das famílias que dividem o mesmo relógio medidor de luz. "Existem situações em que se vai ter que conviver com isso, vamos ter que administrar", disse Boccuzzi"

          Além disto, a referida medida provisória não leva em consideração as pessoas com gastos moderados que, ao contrário do Governo Federal, há muito se conscientizaram da necessidade de economizar energia elétrica e agora se vêm obrigadas a economizar o impossível.

          A medida provisória parte da premissa menor falsa que todos nós brasileiros somos esbanjadores, vorazes consumidores de energia elétrica.

          Partindo desta premissa falsa, a Medida Provisória chega a uma conclusão também falsa, que acaba por premiar aqueles que realmente nunca se preocuparam em economizar energia elétrica.

          Isso sem falar, ainda, de um sem número de residências que se utilizam de "gatos" (ligações clandestinas) para se abastecerem de energia elétrica, que não são fiscalizados e que não precisam economizar porque sabem que nada pagarão.

          Não podemos deixar que esta desigualdade gritante se estabeleça em nosso ordenamento jurídico. O Governo Federal, na certa, possui outros meios, mais igualitários, para solucionar a questão.

          Sobre o assunto, já prelecionou o jurista Celso Antônio Bandeira de Mello, em sua pequena obra, mas de grande valor, "O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade":

          "Cabe, por isso mesmo, quanto a este aspecto, concluir: o critério especificador escolhido pela lei, a fim de circunscrever os atingidos por uma situação jurídica – a dizer: o fator de discriminação – pode ser qualquer elemento radicado neles; todavia, necessita, inarredavelmente, guardar relação de pertinência lógica com a diferenciação que dele resulta. Em outras palavras: a discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. Impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferenciado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo. Segue-se que, se o fator diferencial não guardar conexão lógica com a disparidade de tratamentos jurídicos dispensados, a distinção estabelecida afronta o princípio da isonomia" (Celso Antônio Bandeira de Mello. In Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. Editora Malheiros. 3.ª Edição. 6.ª Tiragem. Páginas 38 e 39).

          Robert Alexy, em sua obra "Teoria de los Derechos Fundamentales", também deixa clara a necessidade da correlação lógica entre o fator concreto de discrímen e a discriminação legal:

          " La asimetría entre la norma de igualdad de tratamiento Y desigualdad de tratamiento tiene como consecuencia que la máxima general de igualdad puede ser interpretada en el sentido de un ‘principio de igualdad’ que, ‘prima facie’, exige un tratamiento igual y sólo permite un tratamiento desigual si puede ser justificado con razones opuestas". (Robert Alexy, In "Teoria de los Derechos Fundamentales. Centro de Estudos Constitucionales, Madrid, 1993, pág. 398).

          Não se pode tratar a todos os consumidores de energia elétrica da mesma maneira, sendo imprescindível que se analise caso a caso, de modo que cada qual economize no máximo de suas possibilidades. O povo brasileiro não pode arcar sozinho com os ônus da falta de fiscalização e investimentos no setor, mormente pelo programa de privatizações ter-se iniciado já nos idos de 1996.


OFENSA AOS PRINCÍPIOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA.

          "O devido processo legal tem como corolários a ampla defesa e o contraditório, que deverão ser assegurados aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, conforme o texto constitucional expresso ( art. 5.º, LV). Assim, embora no campo administrativo, não exista necessidade de tipificação estrita que subsuma rigorosamente a conduta à norma, a capitulação do ilícito administrativo não pode ser tão aberta a ponto de impossibilitar o direito de defesa, pois nenhuma penalidade poderá ser imposta, tanto no campo judicial, quanto nos campos administrativos ou disciplinares, sem a necessária amplitude de defesa." (Alexandre de Moraes, In Direito Constitucional. Editora Jurídico Atlas. 6.ª Edição. Páginas 112 e 113).

          Depreende-se da assertiva supra que, o princípio do devido processo legal, o qual engloba ainda os princípios do contraditório e da ampla defesa, tem uma importância salutar em nosso ordenamento jurídico, visto que deve ser observado não apenas nos procedimentos judiciais, mas também nos administrativos.

          Dessa forma, não há como se aceitar as imposições feitas pela União através da medida provisória em tela, sendo estas claramente inconstitucionais, já que, em momento algum tem-se dado ouvidos a qualquer do povo, os quais são diretamente interessados e clamam irrelutavelmente por medidas mais justas para conter tal crise.

          No presente caso, a Medida Provisória prevê a aplicação de penas administrativas consistentes no corte do fornecimento de energia elétrica e na imposição de "sobretaxas" sem qualquer observância no devido processo legal.

          O consumidor terá que submeter-se ao corte do fornecimento de energia sem a possibilidade de defender-se, sem qualquer observância do princípio do contraditório.

          Assim, pouco importa que o consumidor conseguiu economizar apenas 10% (dez por cento) porque os seus filhos ficaram doentes ou que ele próprio sucumbiu enfermo: simplesmente corta-se o fornecimento de energia elétrica por 3 (três) dias.

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          Alertando quanto a importância dos princípios do devido processo legal e da ampla defesa, leciona o Mestre Celso Antonio Bandeira de Mello:

          "Os referidos princípios, da mais extrema importância – e que viemos a incluir nesta relação por oportuna advertência de Weida Zancaner - , consistem, de uma lado, como estabelece o art. 5.º LIV, da Constituição Federal, em que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal" e, de outro, na conformidade do mesmo artigo, inciso LV, em que: "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes". Estão aí consagrados, pois, a exigência de um processo formal regular para que sejam atingidas a liberdade e a propriedade de quem quer que seja e a necessidade de que a Administração Pública, antes de tomar decisões gravosas a um dado sujeito, ofereça-lhe oportunidade de contraditório e de defesa ampla, no que se inclui o direito a recorrer das decisões tomadas. Ou seja: a Administração Pública não poderá proceder contra alguém passando diretamente à decisão que repute cabível, pois terá, desde logo, o dever jurídico de atender ao contido nos mencionados versículos constitucionais". (Curso de Direito Administrativo, 12.ª edição, Ed. Malheiros, p. 85).


OFENSA AOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS

          Além de tudo o acima narrado, conforme se deflui da leitura do parágrafo 1º, do referido art. 14, caberá à concessionária escolher os meses para compor a média do consumidor, caso não seja possível a obtenção da média pelos critérios estabelecidos.

          Ora, como deixar ao talante das concessionárias a escolha dos meses para a feitura da média? Chega-se ao absurdo de deixar o consumidor totalmente à mercê da concessionária, uma vez que a malfadada MP chegou ao absurdo, em seu art. 25, de afastar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor:

          "Art. 25. Não se aplica a Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, em especial os seus arts. 12, 14, 22 e 42, às situações decorrentes ou à execução do disposto nesta Medida Provisória e das normas e decisões da GCE."

          A própria Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, XXXII, prevê a defesa do consumidor:

          "Art. 5º.

          ...

          XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor."

          A Lei criada para proteger os direitos do consumidor é justamente a Lei n.º 8.078/90, e, ao vedar a aplicação de seus preceitos, deixando o consumidor sem sua proteção, a Medida Provisória acabou ferindo direito individual, protegido pelas cláusulas pétreas da Constituição Federal:

          "Art. 60.

          § 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

          ...

          IV – os direitos e garantias individuais.." (grifei)

          Para alcançar seus desideratos, editou-se Medida Provisória que excluiu direito que sequer Emenda à Constituição poderia retirar...

          Como se vê, a União Federal, tentando remediar sua própria omissão em investir num serviço tão essencial ao país como é a energia elétrica, tentou mutilar o maior instrumento criado para a defesa do consumidor, que agora, mais ainda, se encontra em situação de hipossuficiência em relação ao Estado.

          Por fim, o Ministério Público Federal reitera os demais termos da inicial proposta, pugnando pela concessão da tutela antecipada pleiteada e pela procedência do pedido da presente ação civil pública.

          Termos em que,

          P. Deferimento.

          Marília, 24 de maio de 2001.

JEFFERSON APARECIDO DIAS
Procurador da República

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Sobre o autor
Jefferson Aparecido Dias

juiz de Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Jefferson Aparecido. Ação civil pública contra racionamento em Marília (SP), cuja liminar foi concedida. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 50, 1 abr. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16414. Acesso em: 29 mar. 2024.

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