2. DO DIREITO
Como sabido, o artigo 144 da Constituição Federal determina que:
A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I. polícia federal; II. polícia rodoviária federal; III. polícia ferroviária federal; IV. Polícias civis; V. polícias militares e corpos de bombeiros militares.
Em seu parágrafo 8º, o mesmo artigo 144 afirma que:
Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei. (destaques nossos).
A interpretação literal de tais dispositivos permitem duas conclusões:
1. A polícia ostensiva é atribuição das polícias militares;
2. As guardas municipais são destinadas à proteção dos bens, serviços e instalações no Município.
De acordo com as leis municipais que regulamentaram a Guarda Municipal em Cachoeiro de Itapemirim, as atribuições da GM compreendem, dentre outras, "desenvolver políticas de Segurança Públicas, no que diz respeito a garantir às pessoas o pleno e livre exercício dos direitos e garantias fundamentais, individuais, coletivas, sociais, políticas", "a colaboração na segurança pública", "articular e apoiar as ações de Segurança Pública desenvolvidas pelas Forças de Seguranças Estadual e Federal dentro dos limites do Município" (Leis 4274/97 e 4491/98), a "manutenção da ordem, em consonância com as polícias Civil e Militar" (Lei 4789/99), e o comando das "investigações e ações reservadas da Secretaria Municipal de Segurança e Trânsito, em parceria com a Polícia Militar, Polícia Civil e Polícia Federal" (Lei 5208/01), nelas inseridas o policiamento ostensivo, preventivo e repressivo, bem como a atividade de investigação da polícia judiciária, na área municipal.
Cristalina, assim, a divergência entre as referidas leis municipais e a Constituição Federal.
Divergem ainda da Constituição Estadual, que estabelece em seu artigo 130 que compete à Polícia Militar, com exclusividade, a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública e em seu artigo 128 que cabe à Polícia Civil as funções de polícia judiciária, polícia técnico-científica e a apuração das infrações penais.
Ao discorrer sobre o tema, o Professor JOSÉ AFONSO DA SILVA afirma:
OS CONSTITUINTES RECUSARAM VÁRIAS PROPOSTAS NO SENTIDO DE INSTITUIR ALGUMA FORMA DE POLÍCIA MUNICIPAL. COM ISSO, OS MUNICÍPIOS NÃO FICARAM COM NENHUMA ESPECÍFICA RESPONSABILIDADE PELA SEGURANÇA PÚBLICA.
A Constituição apenas lhes reconheceu a faculdade de constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei. Aí certamente está uma área que é de segurança: assegurar a incolumidade do patrimônio municipal, que envolve bens de uso comum do povo, bens de uso especial e bens patrimoniais, mas não é de polícia ostensiva, que é função exclusiva da Polícia Militar.
[...]
O CERTO É QUE AS GUARDAS MUNICIPAIS NÃO TEM COMPETÊNCIA PARA FAZER POLICIAMENTO OSTENSIVO NEM JUDICIÁRIO, NEM A APURAÇÃO DE INFRAÇÕES PENAIS [58] (destaques nossos).
ALEXANDRE DE MORAES também já se manifestou pela impossibilidade do exercício de policiamento ostensivo ou judiciário pela Guarda Municipal:
Por fim, a Constituição Federal concedeu aos Municípios a faculdade, por meio do exercício de suas competências legislativas, de constituição de guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei, sem, contudo, reconhecer-lhes a possibilidade de exercício de polícia ostensiva ou judiciária [59] (destaques nossos).
DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO também é taxativo sobre o tema:
"... As duas formas de atuação do Estado, para enfrentar os comportamento e as situações adversativas que põem em risco a segurança, são a prevenção e a repressão.
A prevenção se caracteriza pela previsão; tomada de medidas que tenham como finalidade evitar a violação da ordem jurídica, da incolumidade do Estado, das instituições e dos indivíduos;
[...]
... No plano estadual as atribuições de vigilância se concentram nas Secretarias de Segurança Pública, seus desdobramentos ou congêneres, que congregam as corporações que atendem aos vários aspectos e missões de segurança: Polícia Civil, Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militar, onde exista.
No plano municipal, as atribuições de vigilância se restringem à Segurança patrimonial de seus bens, serviços e instalações [60] (destaques nossos).
Na mesma direção é o entendimento de DIÓGENES GASPARINI:
"... Mesmo que pela sua natureza se pudesse entender a prestação dos serviços de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública como de interesse local, esses não seriam do Município por força do que estabelece o § 5º do art. 144 da CF, que de forma clara atribui essas competências à Polícia Militar.
[...]
... A MELHOR DOUTRINA, NA VIGÊNCIA DESSES DIPLOMAS LEGAIS, ORIENTOU-SE NO SENTIDO DA IMPOSSIBILIDADE DA CRIAÇÃO E DA MANUTENÇÃO DE SERVIÇOS DE POLICIAMENTO OSTENSIVO E DE PRESERVAÇÃO DA ORDEM PÚBLICA A CARGO DE GUARDAS MUNICIPAIS. Nesse sentido concluiu o Procurador do Estado, Dr. Pedro Luís Carvalho de Campos Vergueiro, no parecer citado e assim ementado: "Guarda Municipal – Carece o Município de competência para a manutenção da ordem pública compete, com exclusividade, à Polícia Militar Estadual.
[...]
... Não havendo competência para agir do Município, não se tem como legitimar a atuação do seu "agente policial", mesmo que aquele ou este queira a atribuição. Por essa razão, tem-se como correta a lição de Caio Tácito, assim oferecida: "Primeira condição de legalidade é a competência do agente. Não há, em Direito Administrativo, competência geral ou universal: a lei preceitua, em relação a cada função pública, a forma e o momento do exercício da atribuição do cargo. Não é competente quem quer, mas quem pode, segundo a norma de direito. A competência é, sempre, um elemento vinculado, objetivamente fixado pelo legislador [61] (destaques nossos).
Claro, portanto, que a criação da guarda municipal deve se cingir aos limites do mandamento constitucional, ou seja, a proteção de bens, serviços e instalações dos Municípios, e portanto não pode ser estendida, dentre as suas atribuições, a preservação da ordem pública, inerente às polícias militares.
Neste sentido, as leis municipais que dispuseram sobre a Guarda Municipal não poderiam se desviar da regra-matriz constitucional e incluir entre suas atribuições atividades típicas de polícia ostensiva e polícia judiciária, competência outorgada com exclusividade à Polícia Militar e Polícia Civil, respectivamente, pela Constituição Federal.
Assim, patente a inconstitucionalidade do art.2º, I, II, IV e V, e art.5º da Lei Municipal n. 4274/97, do art.1º e seus parágrafos da Lei Municipal n. 4789/99, do art.1º, § único, do art.2º e seus parágrafos da Lei Municipal n. 5208/01.
Ora, tais dispositivos legais desrespeitaram flagrantemente o comando constitucional insculpido no art. 144 da CF e não têm o condão de contornar tal óbice constitucional. Caso contrário, se a mera previsão em legislação municipal pudesse legitimar a atuação da Guarda Municipal em matéria de segurança pública, ficaria a critério de cada governante decidir a atribuição da Guarda de seu Município.
Desta feita, requer desde já a declaração de inconstitucionalidade incidental dos referidos dispositivos legais.
3. DO PORTE DE ARMA DA GUARDA MUNICIPAL
O artigo 6º., inciso IV, da Lei n. 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento), prevê que:
É proibido o porte de arma de fogo em todo território nacional, salvo para os casos previstos em legislação própria e para:
[...]
IV. Os integrantes das guardas municipais dos Municípios com mais de 50.000 (cinqüenta mil) e menos de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, quando em serviço.
[...]
§3º. A autorização para o porte de arma de fogo das guardas municipais está condicionada à formação funcional de seus integrantes em estabelecimentos de ensino de atividade policial, à existência de mecanismos de fiscalização e de controle interno, nas condições estabelecidas no regulamento desta Lei, observada a supervisão do Ministério da Justiça (destaques nossos).
O Decreto n. 5.123/04, que regulamentou o Estatuto do Desarmamento, determina ainda inúmeros requisitos prévios ao porte de arma da Guarda Municipal, podendo-se citar os seguintes artigos:
Art.34, §1º. As instituições mencionadas no inciso IV do art.6° da Lei n° 10.826, de 2003, estabelecerão em normas próprias os procedimentos relativos às condições para utilização, em serviço, das armas de fogo de sua propriedade.
Art.36. A capacidade técnica e a aptidão psicológica para o manuseio de armas de fogo, para aos integrantes das instituições descritas nos incisos III, IV, V, VI e VII do art.6° da Lei n° 10.826, de 2003, serão atestadas pela própria instituição, depois de cumpridos os requisitos técnicos e psicológicos estabelecidos pela Polícia Federal.
Art.40. Cabe ao Ministério da Justiça, diretamente ou mediante convênio com as Secretarias de Segurança Pública dos Estados ou Prefeituras, nos termos do §3° do art.6° da Lei n°10.826, de 2003:
I.conceder autorização para o funcionamento dos cursos de formação de guardas municipais;
II.Fixar o currículo dos cursos de formação;
III.Conceder Porte de arma de Fogo;
IV.Fiscalizar os cursos mencionados no inciso II;
V.Ficalizar e controlar o armamento e a munição utilizados.
Parágrafo único. As competências previstas nos incisos I e II deste artigo não serão objeto de convênio.
Art.42. O Porte de Arma de Fogo aos profissionais citados nos incisos III e IV, do art.6°, da Lei n° 10.826, de 2003, será concedido desde que comprovada a realização de treinamento técnico de, no mínimo, sessenta horas para armas de repetição e cem horas para arma semi-automática.
§1°. O treinamento de que trata o caput deste artigo deverá ter, no mínimo, sessenta e cinco por cento de conteúdo prático.
§2°. O curso de formação dos profissionais das Guardas Municipais deverá conter técnicas de tiro defensivo e defesa pessoal.
§3°. Os profissionais da Guarda Municipal deverão ser submetidos a estágio de qualificação profissional por, no mínimo, oitenta horas ao ano.
§4°. Não será concedido aos profissionais das Guardas Municipais Porte de Arma de Fogo de calibre restrito, privativos das forças policiais e forças armadas.
Art.43. O profissional da Guarda Municipal com Porte de Arma de Fogo deverá ser submetido, a cada dois anos, a teste de capacidade psicológica e, sempre que estiver envolvido em evento de disparo de arma de fogo em via pública, com ou sem vítimas, deverá apresentar relatório circunstanciado, ao Comando da Guarda Civil e ao Órgão Corregedor para justificar o motivo da utilização da arma.
Art.44. A Polícia Federal poderá conceder Porte de Arma de Fogo, nos termos no §3º do art. 6º, da Lei nº 10.826, de 2003, às Guardas Municipais dos municípios que tenham criado corregedoria própria e autônoma, para a apuração de infrações disciplinares atribuídas aos servidores integrantes do Quadro da Guarda Municipal.
Parágrafo único. A concessão a que se refere o caput dependerá, também, da existência de Ouvidoria, como órgão permanente, autônomo e independente, com competência para fiscalizar, investigar, auditorar e propor políticas de qualificação das atividades desenvolvidas pelos integrantes das Guardas Municipais.
(destaques nossos)
Assim, com o advento do Estatuto do Desarmamento - Lei n. 10.826/2003 (e não com a Lei Municipal 5208/2001!!), tornou-se lícito o porte de arma para guardas municipais, desde que preenchidos certos requisitos. Tal porte abrange tanto o porte particular (pessoa física) quanto o porte funcional (pessoa jurídica).
No caso de Cachoeiro de Itapemirim – que possui mais de 50.000 e menos de 500.000 habitantes – os integrantes da Guarda Municipal passaram a ter direito aos portes pessoal e funcional, sendo que este é permitido apenas em serviço.
Entretanto, para que a Guarda Municipal venha efetivamente a exercer o seu direito do porte de arma, faz-se antes necessário preencher os requisitos legais.
O primeiro requisito diz respeito à existência da Ouvidoria. Tal Ouvidoria diz respeito ao controle externo, sendo um órgão autônomo, permanente e possuindo poder investigatório próprio. Como controle externo, deve ser independente, podendo ser representado por membros do Ministério Público e dos Conselhos Comunitários de Segurança, dentre outros. Atualmente, este tipo de serviço vem sendo desempenhado por algumas prefeituras municipais através do "disque-denúncia", ou nos sítios cibernéticos institucionais, não tendo, contudo, a capacidade legal de fiscalizar, auditorar e propor políticas, servindo apenas como instrumento de reclamação quanto a possível infração funcional.
Já a Corregedoria diz respeito ao controle interno, motivo pelo qual deve ser supra corporativa, envolvendo representantes de várias instituições e membros da própria Guarda Municipal, em rodízio, para evitar estigmatizações ou prejuízos na progressão da carreira. Convém ressaltar que a Corregedoria está direcionada para a apuração de infrações disciplinares, bem como aplicação das medidas cabíveis, devendo, entretanto, este organismo de controle ser próprio e específico para os integrantes da corporação, mantendo uma autonomia em relação à corporação Guarda Municipal, mas não necessariamente desvinculada da pasta municipal, as quais ambas estariam atreladas, tendo em vista a necessidade efetiva do controle funcional dos seus respectivos dirigentes.
Não existem neste Município Ouvidoria ou Corregedoria [62].
Além da existência da Ouvidoria e Corregedoria, é necessário que os integrantes da Guarda Municipal tenham realizado treinamento técnico de no mínimo 60 horas para arma de repetição e 100 horas para arma semi-automática.
Ainda, os guardas municipais devem ser submetidos a teste de capacidade psicológica a cada dois anos.
Da documentação encaminhada pelo Município, não se tem notícia de aplicação do referido teste de capacidade psicológica nos últimos dois anos.
Necessário também que os integrantes da GM sejam submetidos a estágio de qualificação profissional por, no mínimo, 80 horas/ano.
Tendo sido solicitada tal comprovação por parte do Município, este se limitou a encaminhar declaração do Clube de Tiro e do Tiro de Guerra de Cachoeiro de Itapemirim no sentido destes "apoiarem, direta ou indiretamente" a qualificação dos guardas, ao fazerem uso das dependências dos mesmos visando seu aperfeiçoamento.
Registre-se ainda que todas as ocorrências envolvendo disparo de arma de fogo em via pública deverão ser objeto de Relatório Circunstanciado elaborado pelo guarda municipal envolvido, encaminhado ao comando da GM e à Corregedoria.
Não obstante as inúmeras ocorrências citadas acima acerca de disparos de arma de fogo por guardas municipais, não se tem notícia de nenhum relatório encaminhado a qualquer órgão da Prefeitura Municipal pelos envolvidos.
Pela redação expressa do parágrafo único do art.40 do Decreto 5123/04, acima transcrito, cabe ao Ministério da Justiça, diretamente, conceder autorização para o funcionamento dos cursos de formação da GM e fixar o currículo dos referidos cursos de formação (não podendo tais itens serem objeto de convênio).
No caso deste Município, foi firmado Convênio com o Ministério da Justiça [63], tendo como objeto "a cooperação dos partícipes na aquisição de equipamentos e material permanente, material de consumo, contratação de serviços e realização de um diagnóstico com vistas a pesquisa e avaliação da dinâmica da violência no Município, visando elaborar um Plano Municipal de Segurança Urbana, que ria orientar futuramente os investimentos e ações de prevenção da violência no mesmo, bem como a capacitação dos profissionais da Guarda Municipal, com foco de formá-los para serem agentes de cidadania, o que será complementado com a implantação de oficinas junto aos jovens da comunidade, de acordo com o Plano de Trabalho aprovado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública – Senasp".
O cronograma de execução do referido Convênio previa um currículo, dividido entre Treinamento/Capacitação e Ação Comunitária da GM, perfazendo um total de 760 horas [64].
Em que pese ter sido informado pelo Município, na Prestação de Contas referente ao Convênio em questão [65], que no curso de formação para GM "foi ministrado a grade curricular fixada pela SENASP", além de terem sido fornecidos os cursos referentes à Ação Comunitária, da simples leitura do currículo modelo fixado pelo SENASP e do currículo do curso fornecido pelo Município verifica-se que os currículos são bastante distintos.
Com efeito, o currículo pré-fixado no referido cronograma não coincide com o currículo do curso de formação fornecido a GM deste Município, sendo que este foi fixado pelo próprio Município em parceria com a Faculdade de Ciências Contábeis e Administrativas de Cachoeiro de Itapemirim [66].
Além disso, não se tem notícia de autorização concedida pelo Ministério da Justiça para funcionamento do curso de formação realizado pelos guardas municipais e nem mesmo da fornecimento efetivo dos cursos referentes à Ação Comunitária (oficinas de carpinteiro, pedreiro, padeiro, etc), seja através de certificados ou quaisquer outro meios hábeis a comprovar sua efetiva ocorrência.
POR TODOS ESSES FATOS RESTA CLARO QUE A GUARDA MUNICIPAL DESTE MUNICÍPIO NÃO CUMPRIU OS REQUISITOS LEGAIS NECESSÁRIOS AO PORTE E ARMA DE FOGO A SEUS INTEGRANTES.
E, sendo função institucional do Ministério Público zelar pelo efetivo respeito aos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, na forma do art.129, II, da CF, é que se promove a presente, visando a regularização das atribuições e atividades exercidas pela Guarda Municipal.
Isto porque a forma como a Guarda Municipal vem agindo neste Município representa uma ameaça até mesmo à estabilidade e supremacia constitucionais, seja pela atividade de polícia de segurança exercida de fato, seja pelo porte irregular de arma de fogo.