Resumo: Neste trabalho será realizada a análise dos requisitos para reconhecimento de vínculo trabalhista entre empresa e seus funcionários. Passaremos então a análise da relação mantida entre aplicativos e seus parceiros para verificarmos onde elas se enquadram dentro de nosso sistema e qual o entendimento atual a respeito desta situação.
Palavras-chave: Direito do trabalho, Vínculo Trabalhista, Mobilidade urbana, Aplicativos.
Sumário: Introdução. 1. Como funcionam os aplicativos. 2. Os requisitos para uma relação de trabalho. 3. A lei 13.640/2018 e a utilização do MEI. 4. O reconhecimento do vínculo empregatício. 5. A situação atual e as mudanças necessárias. Conclusão. Bibliografia.
INTRODUÇÃO
O direito do trabalho é um terreno altamente volátil, passa por mudanças constantemente conforme vamos adaptando nossa forma de trabalho aos novos tempos, seja por trabalho remoto, seja por novas formas de trabalho. Sendo assim, é obrigação da justiça e da legislação se manter atualizada e atenta às mudanças para poder proporcionar uma forma justa e legal de trabalho.
Nos últimos anos tem se tornado recorrente o termo Uberização do trabalho, o que inicialmente surgiu como uma ideia maravilhosa de autonomia, liberdade e empreendedorismo usadas para se distanciar da ideia de relações de trabalho ou de subordinação à empresa, logo
Tendo isso em vista, o presente artigo científico tem como objetivo analisar e estudar os principais aspectos desta discussão, bem como seus reflexos no mundo jurídico.
Para tanto foi realizada extensa pesquisa jurídica doutrinária, verificando os requisitos de uma relação trabalhista e a fundamentação de cada um dos pontos necessários para a vinculação entre as partes.
Passa-se, ainda, a análise do cenário legislativo em que esses aplicativos se encontram com a edição da lei 13.640/2018 e o como se portam diante da sociedade.
Por fim, foram analisados julgados recentes para verificar o posicionamento jurisprudencial nacional quanto a esses parceiros dos aplicativos.
Com isso, tenta-se verificar a existência dos requisitos legais e doutrinários quanto ao vínculo empregatício entre os motoristas de aplicativo e as empresas que os contratam, com o fim de analisar a real relação entre eles, e possível necessidade de determinação legal para um vínculo empregatício formal.
1 - Como funcionam os aplicativos
Muito embora a era dos aplicativos já esteja acontecendo há alguns anos, poucos são aqueles que efetivamente conhecem o funcionamento deles. Vamos verificar, por exemplo, o funcionamento da Uber, plataforma que já é essencial na vida do Brasileiro e que virou sinônimo de táxi no dia a dia.
A Uber, empresa multinacional de origem Norte-Americana, surgiu com a proposta de ride sharing (compartilhamento de corridas). Surgiu com o intuito de diminuir emissões de gases do efeito estufa e reduzir custos, uma vez que você poderia compartilhar destinos e veículos. Entretanto, o que se verifica do efetivo funcionamento da empresa é que ela nunca chegou nem próximo dessa realidade. Desde sua inauguração no Brasil, a Uber virou para muitos uma segunda fonte de renda. Principalmente agora com o desemprego em alta e a pandemia cortando diversas vagas, tornou-se para muitos o único emprego. O que era para ser uma diminuição de gastos, logo virou fonte de renda. É possível notar isso através dos dados que indicam que em pouco mais de 7 anos do início das operações da Uber no Brasil, temos mais de 1,4 milhão de motoristas cadastrados.
A referida empresa chama seus motoristas de Parceiros, promete independência, empreendedorismo por ser seu próprio chefe, controlar seus horários e dias de serviço. Diversas liberdades e benefícios que conforme veremos, pouco se sustentam.
No próprio site da empresa, eles definem como funciona a relação com os motoristas da seguinte forma:
É uma ótima alternativa para empregos de motorista em tempo integral ou meio período, ou como um bico temporário ou sazonal.
Ao longo dos anos a forma de remuneração paga pela empresa, assim como os valores aplicados, mudou bastante. Inicialmente era cobrada uma taxa fixa na corrida de 20 a 25% dependendo da cidade, ou seja, a Uber cobrava uma comissão pela plataforma ofertada. Entretanto, viu-se que esse modelo era pouco atrativo tanto para os Parceiros que achavam a taxa absurda, como para a Uber que não demonstra resultados financeiros positivos desde sua fundação, tendo apenas no ano de 2019 um prejuízo de US$ 8,5 Bilhões de Dólares (Aproximadamente R$ 47,63 Bilhões na cotação atual).
Buscando conciliar esses dois lados, a Uber começou a cobrar uma taxa variável sobre cada corrida, podendo ser acima ou abaixo dos valores anteriormente praticados pela empresa. Por exemplo: se o motorista fizesse uma viagem longa num curto espaço de tempo, ele iria pagar uma taxa maior para a Uber. E, ao contrário, se ele fizesse uma viagem de R$ 10,00, mas ficasse preso no trânsito por uma hora, o percentual em cima daquela corrida seria menor.
O sistema funcionou por pouco tempo antes de começar a ser desvirtuado pelos motoristas. Logo foram descobertas formas de diminuir artificialmente a taxa da Uber, inclusive com o parceiro às vezes pegando engarrafamentos de forma proposital para que a corrida chegasse ao final com o valor da taxa considerado correto por ele.
Vendo esses abusos e o prejuízo da empresa aumentando, decidiu-se por mudar novamente a forma de remuneração desses Parceiros, contando agora com valores fixos por quilômetro rodado e por minuto parado, ou seja, lembrando em muito a cobrança realizada por Táxis. Atualmente a empresa paga a seus Parceiros cerca de R$1,40 por quilômetro e R$0,26 por minuto. Cabe ressaltar que o valor determinado pela Prefeitura da Cidade de São Paulo para táxis, coloca o valor do quilômetro em R$ 2,75 e do minuto em R$ 0,55, aproximadamente o dobro do valor pago pela Uber. É importante levar em consideração também que Taxistas têm um custo operacional mais baixo uma vez que contam com diversos benefícios e isenções fiscais, enquanto os Parceiros Uber não têm nenhum tipo de incentivo.
Ao nos depararmos com essa situação, principalmente como consumidores e usuários do serviço, é fácil não levarmos em consideração que esses aplicativos surgiram sob a premissa de facilitarem contratação de mão de obra para um determinado serviço de forma rápida e conveniente, porém diversos deles começaram a se distanciar dessas raízes.
Os parceiros permaneceram trabalhando durante a pandemia, sem as condições necessárias para protegerem sua saúde e a de terceiros. Tornaram-se, assim, muito vulneráveis ao vírus e suscetíveis de impulsionarem a transmissão comunitária.
Isso porque, por mais que as empresas ofereçam formas aos motoristas se protegerem durante a pandemia, como por exemplo fornecimento de máscaras e álcool em gel, muitos se viram obrigados a se afastar do trabalho por conta de comorbidades pré-existentes, ou por terem contraído a doença, e por não se qualificarem como empregados, conforme abaixo será exposto, param de receber os valores assim que deixam de realizar as corridas, muitas vezes prejudicando seu sustento, ou sendo obrigados a trabalhar mesmo quando doentes.
Tendo observado isso, é nosso dever como agentes do direito, verificar e regular relações interpessoais e profissionais que possam se desenvolver de atividades realizadas dessa forma.
Cabe sempre levar em consideração o fato de que pessoas em momento de necessidade, como o que passamos desde o início da crise econômica, agravada pela pandemia da Covid-19, podem levar os trabalhadores a realizar jornadas intensas para obter a renda mínima necessária para sua subsistência. As vezes superando, e muito, a jornada semanal CLT de 44 horas.
Sendo assim, devemos realizar uma profunda análise para verificar a forma de trabalho desses Parceiros e avaliar se as propagandas das empresas são realmente compatíveis com a realidade, ao ponto de afastar as alegações de relação trabalhista entre empresa e Parceiros.
2 - Os requisitos para uma relação de trabalho
A Consolidação das Leis do Trabalho traz como um dos objetos principais de seu texto, o reconhecimento de relações de trabalho, sendo necessário verificar as qualidades daquela relação para classifica-la entre os diversos tipos existentes, de acordo com a referida Lei.
Dentro do conceito de relação de trabalho, a relação de emprego está abarcada como uma de suas espécies, conforme o ensinamento de Maurício Godinho Delgado:
A primeira expressão tem caráter genérico: refere-se a todas as relações jurídicas caracterizadas por terem sua prestação essencial centrada em uma obrigação de fazer consubstanciada em labor humano. Refere-se, pois, a toda modalidade de contratação de trabalho humano. A expressão relação de trabalho englobaria, desse modo, a relação de emprego, a relação de trabalho autônomo, a relação de trabalho eventual, de trabalho avulso e outras modalidades de pactuação de prestação de labor (como trabalho de estágio, etc.). Traduz, portanto, o gênero a que se acomodam todas as formas de pactuação de prestação de trabalho existentes no mundo jurídico atual. Evidentemente que a palavra trabalho, embora ampla, tem uma inquestionável delimitação: refere-se a dispêndio de energia pelo ser humano, objetivando resultado útil (e não dispêndio de energia por seres irracionais ou pessoa jurídica). Trabalho é atividade inerente à pessoa humana, compondo o conteúdo físico e psíquico dos integrantes da humanidade. É, em síntese, o conjunto de atividades, produtivas ou criativas que o homem exerce para atingir determinado fim. A relação de emprego, do ponto de vista técnico-jurídico, é apenas uma das modalidades específicas da relação de trabalho juridicamente configuradas. Corresponde a um tipo legal próprio e específico, inconfundível com as demais modalidades da relação de trabalho ora vigorantes..
Sendo assim, a Consolidação das Leis do trabalho define que o vínculo empregatício existe quando a relação de trabalho for entre o trabalhador, pessoa física, na prestação de um serviço não eventual, sob a dependência de um empregador, mediante a remuneração de verba salarial.
Destes requisitos, é possível notar a necessidade de o serviço ser prestado por pessoa física, ou seja, não podendo ser prestado por pessoa jurídica, uma vez que o direito do trabalho tutela apenas relações vinculantes à pessoa física. Neste ponto a relação entre os aplicativos e seus parceiros está claramente dentro do padrão uma vez que envolve pessoa física realizando a atividade.
Conforme ensina o doutrinador Amauri Mascaro Nascimento, a pessoa jurídica:
Jamais poderá executar o próprio trabalho, fazendo-o por meio de pessoas físicas, e porque o direito do trabalho protege o trabalhador como ser humano e pela energia de trabalho que desenvolve na prestação de serviço
Outro requisito a ser observado é a pessoalidade. Segundo tal requisito, aquele que for considerado empregado não pode ser substituído por outro qualquer no dia a dia. Novamente, um ponto cumprido pelos aplicativos, em especial os de locomoção, uma vez que obriga os parceiros a terem conta pessoal e intransferível, a qual somente eles podem ter acesso.
A não eventualidade é mais um requisito da prestação no serviço, ou seja, deve haver habitualidade, prestação contínua do serviço. Esse é o ponto onde existe um dos maiores debates sobre o enquadramento dos aplicativos ou não, uma vez que os parceiros não têm metas específicas ou horários a cumprir. Entretanto as empresas estão sempre disponibilizando promoções e campanhas para participação, onde são dados valores extras a motoristas que atinjam certo número de horas, corridas, entregas ou fatores similares. Além disso, cabe levar em consideração que os parceiros acabam trabalhando de forma quase padronizada para conseguir renda suficiente para si e seus dependentes.
Para ser reconhecido o vínculo também é necessário que o serviço seja prestado em face de outros, compensado com alguma forma de remuneração, sendo esse o requisito da onerosidade do serviço.
Elucida sabiamente Sérgio Pinto Martins que:
O empregador recebe a prestação de serviços por parte do empregado. Em contrapartida, deve pagar um valor pelos serviços que receber daquela pessoa. Se a prestação for gratuita, como a do filho que lava o veículo do pai, não haverá a condição de empregado do primeiro. O padre não é empregado da Igreja, pois, apesar de estar subordinado a uma hierarquia, não recebe nenhum valor da Igreja pelo trabalho que faz.
Aqui não há de se discutir, uma vez que é inegável o pagamento de valores pelos aplicativos a seus parceiros.
O último ponto que é levado em consideração é a subordinação, ou seja, um estado de dependência do empregado ao empregador. Para se caracterizar o vínculo é necessário reconhecer a subordinação jurídica entre as partes, tendo o empregador o poder diretivo, disciplinar, fiscalizatório e regulamentar sobre o empregado.
Neste ponto as empresas tendem a discutir que não há poderes sobre o empregado, mas essa é a maior das falácias divulgada por elas. Elas têm o poder de livremente ajustar recebimentos por condutas que não concordam, suspender parceiros sem possibilidade de retorno por motivos internos e pedir reconhecimento facial. Todos provam de forma inegável o controle e subordinação do parceiro ante a empresa.
O entendimento jurisprudencial atual, de acordo com decisão do Desembargador José Eduardo de Resende Chaves, do TRT 3, é o seguinte:
Jornada de trabalho e autonomia. A flexibilidade da jornada de trabalho e da assiduidade não é critério excludente de existência da subordinação. No sistema fordista a disciplina horária era e é o fator preponderante da produtividade. Isso não é mais relevante desde o sistema de acumulação flexível do toyotismo.
A assiduidade e o controle de jornadas são dois fatores muito marcantes de subordinação, mas não são requisitos essenciais, ou seja, há outras modalidades de configuração da subordinação além do controle de jornada ou de assiduidade. Basta pensar no trabalho a domicílio, no qual os conceitos de controle de jornada e de assiduidade se revelam até mesmo incompatíveis com a garantia constitucional de inviabilidade do lar.
Além disso, nos termos do art. 62 da CLT, os cargos de gestão e aqueles executados fora do estabelecimento do empregador, ainda que não sujeitos ao regime disciplinar da jornada, também não inviabilizam a existência de vínculo empregatício.
No capitalismo cognitivo, o controle e a direção da produção se fazem independentemente do controle de jornada ou de assiduidade. No sistema fordista, da linha de produção, essa disciplina era essencial, para o eficiente desenvolvimento da produção.
Veja bem, nossa legislação atual mesmo se considerando as reformas recentes, não conta com previsões legais quanto a esse tipo de trabalho.
Cabe aos magistrados administrar a situação em parte com ativismo judicial e em parte com tentativa de adaptação de outras normas (nacionais e internacionais) ao ordenamento jurídico brasileiro.
Os requisitos acima elencados são cumpridos de forma tão plena pelas empresas, que temos decisões já determinando o vínculo em locais como a 22º Vara Trabalhista de Brasília-DF:
Aliás, a situação dos motociclistas prestadores de serviços em entregas rápidas, tais como a gerenciada pela segunda ré (IFOOD), já é conhecida desta Justiça Especializada. Do mesmo modo ocorre em situação análoga, delineada pela doutrina e jurisprudência como processo de Uberização das relações laborais, definidor de um novo padrão de organização do trabalho a partir dos avanços da tecnologia
Dessa forma, evidente a presença dos pressupostos fático-jurídicos caracterizadores do vínculo empregatício entre as partes, previstos no arts. 2º e 3º da CLT, quais sejam: pessoalidade, não-eventualidade, onerosidade e subordinação jurídica.
Entretanto, ressalta-se que a discussão acerca do vínculo empregatício desses aplicativos não é restrita ao Brasil e diversos países estão enfrentando essa problemática.
3 - A Lei 13.640/2018 e a utilização do MEI
Em março de 2018 a Lei 13.640 entrou em vigor com objeto de alterar a lei 12.587/2012, regulamentando assim o transporte remunerado, privado e individual de passageiros.
O texto original da lei o enquadrava como um serviço público, ocasionando as mesmas exigências existentes aos taxistas. Tal texto foi aprovado na Câmara dos Deputados.
Com isso, a empresa Uber lançou mão de uma campanha publicitária que intitulou tal lei como lei do retrocesso, alegando que a lei dificultava o funcionamento da empresa no país.
Tal publicidade alcançou seu objetivo quando ao tramitar pelo Senado, o texto foi alterado introduzindo o art. 4º, inciso X, com o novo conceito do serviço:
X - transporte remunerado privado individual de passageiros: serviço remunerado de transporte de passageiros, não aberto ao público, para a realização de viagens individualizadas ou compartilhadas solicitadas exclusivamente por usuários previamente cadastrados em aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede.
Ainda, em seu art. 11-B, a lei discorre sobre os requisitos para aprovação de motoristas para a realização do serviço:
Art. 11-B. O serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros previsto no inciso X do art. 4º desta Lei, nos Municípios que optarem pela sua regulamentação, somente será autorizado ao motorista que cumprir as seguintes condições:
I - possuir Carteira Nacional de Habilitação na categoria B ou superior que contenha a informação de que exerce atividade remunerada;
II - conduzir veículo que atenda aos requisitos de idade máxima e às características exigidas pela autoridade de trânsito e pelo poder público municipal e do Distrito Federal;
III - emitir e manter o Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV);
IV - apresentar certidão negativa de antecedentes criminais.
Parágrafo único. A exploração dos serviços remunerados de transporte privado individual de passageiros sem o cumprimento dos requisitos previstos nesta Lei e na regulamentação do poder público municipal e do Distrito Federal caracterizará transporte ilegal de passageiros.
Com isso verifica-se que os motoristas seriam considerados autônomos, de acordo com os requisitos da CLT:
Art. 442-B. A contratação do autônomo, cumpridas por este todas as formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no art. 3o desta Consolidação.
Assim, a empresa Uber passou a contratar seus motoristas como Microempreendedores Individuais que ofereceriam serviços autônomos para a empresa na captação de passageiros, porém, sem serem enquadrados como funcionários empregados regidos pela CLT.