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A (in)disponibilidade do inquérito policial e sua duração razoável

Agenda 12/10/2022 às 16:40

Não é razoável aguardar a provocação do titular da ação quanto ao arquivamento para um futuro trancamento do inquérito policial pela autoridade judicial, já que o delegado de tem autonomia enquanto único titular do inquérito policial.

O presente trabalho busca sustentar o poder-dever do Delegado de Polícia, como primeiro garantidor da legalidade e da justiça, de sugestionar o arquivamento do inquérito policial sob sua presidência por falta de justa causa (provas de materialidade e indícios de autoria de uma infração penal) em decorrência da ausência de interesse processual superveniente pela manifesta irrazoabilidade do prazo de sua tramitação.

De início, cediço que o inquérito policial é indisponível, ou seja, a Autoridade Policial não poderá mandar arquivar o procedimento (art. 17 do Código de Processo Penal). Outrossim, nada impede o sugestionamento de arquivamento.

De outro lado, o inquérito policial, em casos de investigados soltos, tem como prazo de conclusão, em regra, 30 dias (art. 10 do Código de Processo Penal). Esse prazo, segundo a melhor doutrina e jurisprudência pátria, é impróprio, ou seja, poderá ser sucessivamente renovado para o aprofundamento das investigações e feitura de novas diligências imprescindíveis ao ver da Autoridade Policial ou do titular da ação penal.

Em contrapartida, como princípio norteador a ser observado pelo Delegado de Polícia, tem-se o da razoável duração do processo, este preconizado no rol dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal (art. 5º, LXXVIII), sendo preceito constitucional de aplicabilidade direta e imediata (art. 5º, § 1º, da Carta Magna).

Renato Brasileiro de Lima leciona que o inquérito policial é um procedimento temporário, nota-se:

(...) diante da inserção do direito à razoável duração do processo na Constituição Federal (art. 5º, LXXVIII), já não há mais dúvidas de que um inquérito policial não pode ter seu prazo de conclusão prorrogado indefinidamente. As diligências devem ser realizadas pela autoridade policial enquanto houver necessidade. Evidentemente, em situações mais complexas, envolvendo vários acusados, é lógico que o prazo para a conclusão das investigações deverá ser sucessivamente prorrogado. Porém, uma vez verificada a impossibilidade de colheita de elementos que autorizem o oferecimento de denúncia, deve o Promotor de Justiça requerer o arquivamento dos autos.

A razoabilidade da duração do inquérito policial, dos demais procedimentos apuratórios e também da ação penal ainda está explicitada na Convenção Americana de Direitos Humanos, norma que ostenta caráter supralegal no ordenamento pátrio.

Nesse sentido:

Artigo 8. Garantias judiciais

1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

Mais expressa e consentânea com a Constituição Federal, a Convenção Europeia de Direitos Humanos traz que:

ARTIGO 6º

Direito a um processo equitativo

1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a proteção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.

Ainda no plano internacional, GIACOMOLLI, p. 326, aduz que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos costumam referir os seguintes parâmetros de aferição da razoabilidade: (a) espécie de processo; (b) complexidade do caso; (c) atividade processual do interessado (imputado); (d) conduta das autoridades judiciárias.

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Disso se extrai que a investigação penal tardia não passa pelos filtros constitucional e convencional. Essa conclusão ainda está cristalina na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal que, de ofício, vem trancando inquéritos policiais com prazo de tramitação desmedido.

Para ilustrar, arestos dos Tribunais Superiores:

1. Embora o prazo de conclusão do inquérito policial, em caso de investigado solto, seja impróprio, ou seja, podendo ser prorrogado a depender da complexidade das investigações, a delonga por aproximadamente 14 anos se mostra excessiva e ofensiva ao princípio da razoável duração do processo. 2. Mostra-se inadmissível que, no panorama atual, em que o ordenamento jurídico pátrio é norteado pela razoável duração do processo (no âmbito judicial e administrativo) - cláusula pétrea instituída expressamente na Constituição Federal pela Emenda Constitucional n. 45/2004 , um cidadão seja indefinidamente investigado, transmutando a investigação do fato para a investigação da pessoa. Precedente. 3. (). 4. Colocada a situação em análise, verifica-se que há direitos a serem ponderados. De um lado, o direito de punir do Estado, que vem sendo exercido pela persecução criminal que não se finda. E, do outro, da recorrente em se ver investigada em prazo razoável, considerando-se as consequências de se figurar no polo passivo da investigação criminal e os efeitos da estigmatização do processo. 5. (). RHC 61.451/MG, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 14/02/2017, DJe 15/03/2017.

O STF pode, de ofício, arquivar inquérito quando verificar que, mesmo após terem sido feitas diligências de investigação e terem sido descumpridos os prazos para a instrução do inquérito, não foram reunidos indícios mínimos de autoria ou materialidade. STF. 2ª Turma. Inq 4420/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 21/8/2018 (Info 912).

Desse modo, com fundamento no entendimento das Cortes Superiores, deverá o Delegado de Polícia, até pela natureza jurídica do cargo (art. 2º da Lei nº 12.830/13) e sua independência funcional, se antever à atuação do representante do Ministério Público e do Juiz de Direito, e sugestionar, em sede de relatório, o arquivamento do inquérito policial que tramita há anos sem se vislumbrar a justa causa, sendo evidente a superveniência da falta de interesse estatal de agir.

Parece completamente desproporcional ter que aguardar o prazo da prescrição da infração penal investigada para o xeque-mate de uma investigação sem qualquer sinalização de elucidação. Também não é lícito aguardar a iniciativa do órgão acusatório.

Não se pode perder de mira as consequências e estigmatização de se figurar no polo passivo da investigação criminal infindável. Ademais, para a Autoridade Policial, poder-se-ia implicar possível abuso de autoridade pela procrastinação ilegal (art. 31 da Lei nº 13.869/19). Fato é que há direitos a serem ponderados. De um lado, o dever do Estado de investigar contextos ilícitos de que tem conhecimento. De outro lado, o cidadão em se ver investigado em prazo razoável. A jurisprudência, como visto, tem assegurado o direito do cidadão.

Eugênio Pacelli de Oliveira, muito bem sinaliza, que: aceitar a eternização da investigação é ignorar os males que não são poucos que a só tramitação de um inquérito policial pode causar naquele apontado como autor da infração penal em investigação.

Inflar as Delegacias de Polícia com um acervo de inquéritos policiais natimortos soberba sobremaneira o trabalho da Autoridade Policial, que poderia se debruçar com afinco em outras investigações exitosas. Também não é razoável aguardar a provocação do titular da ação quanto ao arquivamento para um futuro trancamento do inquérito policial pela Autoridade Judicial, já que o Delegado de Polícia tem autonomia enquanto único titular do inquérito policial. O poder-dever de investigar e o de requerer diligências complementares (ineficientes) não é infinito (ad aeternum).

CONCLUSÃO

Por derradeiro, a despeito da possibilidade de flexibilização dos prazos legais de conclusão das investigações sob presidência da Autoridade Policial, não se pode defender a manutenção de tramitação de inquéritos policiais e acolhimento de diligências infrutíferas se manifesto o excesso de prazo de sua tramitação, não havendo uma perspectiva concreta de justa causa. Por isso, a superveniência da falta de interesse processual.

Essa situação de prolongamento indefinido da investigação revela uma total ineficiência estatal que reflete negativamente na vida do suspeito, o que não pode ser legitimado pela Autoridade Policial em obediência à sua independência funcional, duração razoável do processo, dignidade da pessoa humana, eficiência e razoabilidade preconizados na Constituição Federal e legislação internacional.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL, Código de Processo Penal. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689Compilado.htm. Acesso em: 30 de set. 2022.

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 30 de set. 2022.

BRASIL, Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992 Convenção Americana de Direitos Humanos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em 10 de out. 2022.

BRASIL, Lei nº 12.830/2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12830.htm. Acesso em: 30 de set. 2022.

BRASIL, Lei nº 13.869/2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13869.htm. Acesso em: 11 de out. de 2022.

CONVENÇÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=536&lID=4. Acesso em: 10 de out. de 2022.

GIACOMOLLI, Nereu José. O Devido Processo Penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014, p. 326.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 4ª ed., Salvador: Juspodivm, 2016, p. 140-141.

PACELLI, Eugênio. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência, 13ª ed. São Paulo: Grupo GEN, 2021, p. 69.

STF, Inq 4420/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 21/8/2018.

STJ, RHC 61.451/MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 14/02/2017.

Sobre o autor
Rafael Moraes Tavares

Delegado de Polícia do Estado do Paraná Especialista em Direito Público; e, Direito Constitucional Especializando em Direito Penal e Processual Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TAVARES, Rafael Moraes. A (in)disponibilidade do inquérito policial e sua duração razoável. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7042, 12 out. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100598. Acesso em: 21 nov. 2024.

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